CARTA À MINHA MÃE E AO MEU PAI EDÉSIO PASSOS
CARTA À MINHA MÃE E AO MEU PAI
Edésio Passos 2012
TÍTULO ORIGINAL Carta à minha mãe e ao meu pai 2012 Banquinho Publicações LTDA. Rua Fernandes de Barros, 55 Curitiba - PR - Brasil - 80.050-310 Tel.: +55 41 3082-8783 www.banquinhopublicacoes.com.br COORDENAÇÃO André Passos REVISÃO, PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO Banquinho Publicações Texto originalmente lido no lançamento do projeto “Edésio Passos: 50 anos de advocacia”, em 13 de abril de 2012, no Salão Nobre da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba.
I TEMPO DA MEMÓRIA “O tempo da memória segue um caminho inverso ao do tempo real: quanto mais vivas as lembranças que vêm à tona de nossas recordações, mais remoto é o tempo em que os fatos ocorreram. Cumpre-nos saber, porém, que o resíduo, ou o que logramos desencavar desse poço sem fundo, é apenas uma ínfima parcela da história de nossa vida. Nada de parar. Devemos continuar a escavar! Cada vulto, gesto, palavra ou canção, que parecia perdido para sempre, uma vez reencontrado, nos ajuda a sobreviver” – escreveu Bobbio.
Sua obra “De Senectute”, de 1996, é um escrito autobiográfico que trata desde velhice, até Direito e, em especial, o poder. Norberto Bobbio morreu aos 94 anos, a 9 de janeiro de 2004, nascido em Turim em 1909. De preso político, nos anos 43/44, face sua luta antifascista, é nomeado senador vitalício por Sandro Pertini, presidente da República da Itália, em 1984, pelos “altíssimos méritos no campo social, científico, artístico e literário”.
II MARCAS INDELÉVEIS Escrevi, em setembro de 1994, a pedido dos estudantes de Direito de nossa Universidade Federal, um texto publicado no centésimo número do jornal Folha Acadêmica, do tradicional e combativo CAHS (Centro Acadêmico Hugo Simas). No breve artigo, ao reviver os tempos de estudante, então o que minha pena captou foram sinais (ou marcas?) inscritos nas paredes do velho templo do saber: “Há uma sensação estranha ao adentrar a faculdade. Como ela se situa nas mesmas condições da minha época (57/61), parece que o tempo não passou.
Mas há um fator mais forte que alimenta este misto de mistério/temor. Meu filho é estudante alí, os filhos de meus colegas e amigos também alí estão. Se me ressituo no tempo, querendo equiparar épocas distantes, cometo o erro infantil da identificação pelas aparências. Se refuto a similitude, erro em não prestar atenção à repetição da história. De qualquer modo, o velho salão nobre continua tão nobre como antes, as escadarias ainda sustentam as arcadas, os velhos livros são obrigatórios nas citações clássicas. Enquanto isso, os alunos fazem contas de chegar de suas possíveis oportunidades profissionais. Mas passaram-se alguns anos. Tenho que detectar o que pode ser igual, ou semelhante, e o que se diferencia. Primeiro, valores: de honradez, dedicação e competência, que os profissionais do Direito (e outros, por certo, também) devem levar a vida afora.
Segundo, aptidões: os caminhos diversos que serão escolhidos, que nos distinguem nas funções da vida, na aplicação do que aprendemos. Nesta conjugação de valores-aptidão, servirá a possibilidade que se tenha na apreensão da teoria e pesquisa, com a inserção na vida cultural-social-política do momento em que se vive. Estudante de Direito que se aliena de seu tempo, carregará o vício da desatualização e isto poderá lhe ser fatal.” O texto, assim, caminha na análise da relação entre pais e filhos, a projeção de que os erros daqueles acabam sendo ônus para estes, sucessivamente, refletindo-se no plano social-político, para acentuar: “Se me volto para algumas memórias dos anos que se foram, é para situar o que acontece e o que virá. Sartre já disse que ‘cada presente tem seu futuro que o ilumina e desaparece com ele, transfor-
mando-o em futuro passado’. O que acontece hoje se baseia no que sucedeu no passar dos tempos e houve a acumulação dos fatos da vida social e material. Mas o que virá, o futuro, ilumina o que estamos fazendo neste momento. E hoje há duas questões centrais: resgatar valores (ética e dignidade) e afirmar cidadania (direitos sociais e humanos). Para um estudante de Direito, trata-se de algo vital, este resgate e esta afirmação. Se bem assimilados agora, serão projetados no futuro, na tentativa de reequilibrar a instável balança da justiça. Cientes desta realidade, por certo será mais fácil percorrer o caminho que virá. Qualquer rumo que cada um de nós tomará, estará pautado por questões ensinadas nas lições de casa e da escola. Que valores continuam sendo fundamentais (da ética, da dignidade), princípios são sustentação de vida (liberdade e democracia), e direitos e deveres são pilares da sociedade (trabalhar, habitar, estudar, vestir, alimentar-se...)”.
III JORNADA DE LUTA E ESPERANÇA Na jornada de luta e esperança em 2002 — na qual o povo assumiu o poder político tendo à frente o Partido dos Trabalhadores e seu grande líder, Luiz Inácio Lula da Silva — fui honrado com a candidatura a Senador da República, que resultou em um magnífico resultado de quase um milhão de votos. Para aquela memorável campanha, senti a necessidade de gravá-la com versos que demarcavam o momento histórico do povo brasileiro na definição de seu rumo e de sua história. A poesia tinha por título “AGORA VAI SER FACA AMOLADA”. Reproduzo aqueles versos neste resgate de memória de minha trajetória de luta:
“As estrelas do céu caíram na praça. Veio o raiar do sol no horizonte e com ele os Zés e as Marias. Entraram, decididos mas leves, no espaço da certeza que o pão com eles será repartido. Terão que esperar ainda algum tempo. Mas acreditam que não será longo. Vestiram a camiseta preferida, aprontaram-se para o dia da festa colorida. No peito que arfa, o coração dispara no mesmo ritmo da música que relembra a vitória. As bandeiras já não se envergonham de serem vermelhas, pois o vento as aceita e as crianças brincam com elas. Porque foram feitas do sangue de suas lutas. A mensagem de esperança venceu o medo. No caminho da transformação social, as mãos se entrelaçam, acenam, e olhos iluminados vêem surgir
o cavaleiro que apontou o rumo. E agora, na oração com fervor, diz que as mudanças estão próximas. Pois elas são a promessa inscrita na pedra. Conclama a todos para a jornada, com determinação. As lágrimas que verteu insistem em regar seu rosto, mas ele as contém. Não quer que lhe impeçam de ver e sentir os que choram e gritam por terra, trabalho e igualdade, a exigência dos que querem viver. E não mais apenas sobreviver. Todos sabem que a jornada será difícil. Jogaram-se na água da fonte para sentí-lo mais perto. Cercaram o cortejo por todos os lados, para assegurar que ele está protegido. Repetiram a exaustão o seu nome, para gravá-lo na eternidade. Mas certos que o sonho já é realidade.
Não desdenham os perigos, embora os saibam muitos. Armam-se de paciência, mas não mais resignada. Passou o tempo da espera inútil. Vale sim o tempo necessário para transitar de uma margem para outra, atentos para que essa energia não se perca. Na certeza de que agora vai ser faca amolada.”
IV CARTA À MINHA MÃE E AO MEU PAI Não quero que esta oração seja um discurso. Como diz Gabriel Garcia Márquez “eu não vim aqui fazer um discurso”. Quero transmitir meu agradecimento à presença de pessoas tão queridas, através de uma carta à minha mãe e ao meu pai: “Querida mãe, querido pai: Minha letra continua a não ser como era a sua — redonda, caprichada, clara, quase um desenho. Quando eu lhe escrevia, mesmo com atenção para que a senhora não reclamasse, a senhora dizia que entendia — quase nada. Então, eu pegava cada carta e lia, pausadamente, palavra por palavra, muitas vezes expli-
cando o significado. Mas, lembra-se, houve uma carta em que a senhora disse que havia conseguido ler muitas vezes uma palavra, que era sempre colocada em letra maiúscula: REVOLUÇÃO. E que ficou muito preocupada com a tal revolução porque muitos lhe diziam não ser uma coisa boa. Lembra-se que a senhora me pediu que quando viesse essa tal de revolução, eu lhe escrevesse outra carta, mas com letra de forma ou de máquina, que pudesse lhe avisar e lhe garantisse que eu estava bem, que nada me havia acontecido? Demorou muito mãe, mas chegou a hora de lhe escrever. E hoje lhe escrevo na máquina melhor — um computador — e de jeito mais simples, embora queira que seja mais afetuoso. Pai, estou com sua caneta, que o senhor me deixou na hora de sua morte. Eu não pude lhe acompanhar até sua última morada por aqui, por eu estava longe, clandestino, na luta do povo pela liberdade.
Mas eu ainda lhe agradeço por ter cumprido a promessa que fez, que seus filhos iam ser doutores, porque o senhor não teve condições, órfão que ficou aos onze anos e saiu pela vida por sua conta e risco. Também lembro quando nos despedimos e o senhor não entendia por que eu deixava tudo que tinha para caminhar um caminho tão árduo. Hoje, quando escrevo esta carta, o senhor poderá medir que por vezes se escreve torto por linhas certas. Foi a sua história: menino solto na vida, camponês, agente de saúde, contador bancário, dono de bar até chegar a tabelião e membro da maçonaria. Nasceu, viveu e morreu modestamente, mas nos passou o exemplo da dignidade, da lealdade, da gratidão e da perseverança. Vejam que estou bem. Meus cabelos já embranqueceram com os meus mais de setenta anos. Não importa que a perna não dobre, não veja com um olho, a barriga seja o dobro de antes e o sexo... ora, deixa prá lá...
O que vale mesmo, o que interessa, é que tenho companheira, filhos e filhas lindos, netos e neta maravilhosos e até um bisneto para um dia continuar contando toda essa história. E amigos e amigas? Milhares. Tão lindos e maravilhosos como uma música do Vinicius, uma poesia do Drumond, uma pintura do Portinari, ou um livro do Machado de Assis. Todos que estão certamente aí poetando, cantando, pintando e escrevendo. E de advocacia, lá se vão cinquenta anos. O que mais me orgulho da profissão que escolhi é que em todos os atos que participei nesta condição resultaram na construção de uma vida melhor para milhares de trabalhadores e trabalhadoras. Os que não tinham voz, se fizeram ouvidos. Os que foram injustiçados, conseguiram alguma reparação; os que foram perseguidos, resgataram suas liberdades; os que estavam necessitados, obtiveram algum ganho. Mas o que foi e é o mais
importante: ajudei que aprendessem a ser donos de suas próprias existências. E agora, sobre a revolução. Bem, a revolução é como a vida: ela começa quase sempre alegre e confiante, mas, aos poucos, vai se tornando ora possível, ora difícil, ora simples, ora enrolada, tantas vezes rica, outras carente, e, ao mesmo tempo, leve e sofredora. Ela não veio como eu esperava quando, naquela época, com meus vinte anos. Lhes escrevia que a REVOLUÇÃO — assim mesmo, com maiúsculas — seria triunfante, arrebatadora, plena para todos. Como se Che Guevara habitasse em todos nós! Pelo contrário: houve um tempo — e não faz muito — que foi necessário caminharmos nas ruas e nas praças, ocuparmos campos, fábricas e escolas, levantarmos barricadas, empunharmos bandeiras e armas para sermos ouvidos e respeitados. Com essa nossa rebeldia e revolta, muitos de nós foram perseguidos, presos, expulsos de nossa pátria, torturados e assassinados. O que eu passei fui muito pouco diante do que
nossos amigos sofreram, muito e muito mais. O que importa é que não desistimos: acreditamos, nos mantivemos unidos e já avançamos bastante. De repente, de poucos passamos a milhares, até que chegamos a milhões e ficou muito mais fácil, pudemos ir repondo as coisas nos seus verdadeiros lugares. Melhorou bastante de lá para cá, principalmente que as pessoas destituídas de quase tudo levantaram-se, ganharam forma e conteúdo e nosso Brasil ficou forte e respeitado diante do mundo. E milhões que nada tinham já conseguem comer, vestir, morar, se tratar, estudar, trabalhar. Principalmente crer em um mundo melhor para eles e suas famílias. Claro que ainda tem muita gente com várias necessidades, mas devagar vamos vencendo cada degrau desta escada que, às vezes, a gente não vê onde termina. Bom, não podemos esconder que ainda muitos
têm demais, outros muito pouco. Se isto tem jeito? Não vai ser fácil igualar essa balança, vai precisar de muita força para vencer essa barreira, e acho que muita, muita força... Se a gente der uma olhada para o que já passou, penso que força é o que não vai faltar. Vejam o Lula: de migrante na miséria, com a ajuda da mãe e de seus amigos, conseguiu ser operário metalúrgico, foi eleito líder sindical, também foi perseguido e preso, mas não desistiu. Com essa força que nasce de dentro de milhões que acreditaram juntos, seu sonho virou realidade: chegou a presidente da República. Sim, um operário presidente! E a Dilma? A mesma coisa: foi presa e torturada quando jovem. Expulsa do país. Voltou, lutou de novo e hoje comanda nosso Brasil, também pela vontade de milhões que têm fé. Uma mulher, presidenta! Porém, não foi fácil para que o povo se juntasse para essa luta e com essa mesma força que vem de
dentro da gente fizesse a revolução. O quê, muitos acham que não é uma revolução? O que eu penso? Bom, as coisas no Brasil são feitas do jeito que o nosso povo é: se não dá para ir de frente, procura um caminho pelos lados, que vai dar no lugar que quer chegar. É o tal jeitinho brasileiro... É como no futebol: precisa fazer gols para ganhar, mas, se não cuidar da defesa, o perigo é levar gols pelas costas. Assim, cuide-se do ataque, mas não se descuide da defesa. Acho que é como dizia um dos que está aí em cima: um passo atrás para dois passos à frente... Levará mais tempo, é certo. É como construir uma casa: vai pela base, as paredes, o telhado. Depois, quando tiver dinheiro, a pintura. Daí, dá um tempo, junta mais um pouco de dinheiro, e decora, compra móveis novos. Então vai arrumar o quintal. Finalmente, vem o jardim e um puxadinho. Onde estamos? Acho que estamos terminando o telhado...
Hoje, pai, mãe, estou sendo homenageado. Pela minha família — de sangue e de luta. A senhora, mãe, claro, se aqui estivesse, ia dizer que eu mereço. Mas mãe é mãe... não conta, não vale. Eu, por mim, nem viria até aqui. Pensei em achar um meio, ficar doente, cair da escada, fazer uma viagem, esquecer do endereço, mandar um telegrama... Aí o André, meu filho, ficou meio desapontado quando eu disse que não era preciso nada disto. Bastava a presença e palavras dos ministros para encher nossos corações. Mas o André disse mesmo que seria muito desaforo para aqueles que tanto têm me ajudado, acreditado nas mesmas coisas que acredito, percorrido a mesma trilha em que caminho. É... desaforo... Pensei bem, ponderei prós e contras, e como um bom advogado — que, aliás, dizem que sou — medi o que poderia perder no carinho e na ternura e na amizade de cada um, que tem sido tanto.
De fato,conclui: amor não se despreza. Então, coloquei gravata nova — presente da minha filha Ana Beatriz, sua neta que a senhora acalentou — e apareci. Mesmo porque outro dos meus filhos, o Estevão, que está com dezessete anos, na idade dos sonhos, não veio lá de Floripa para pagar tal vexame do pai — e o quê que ele iria contar na volta para sua irmã, minha filha caçula, a Valquíria Tainá, de nove anos, que diz pra todo mundo que eu sou um herói? Mas e principalmente, aqui estou porque, embora eu vá chorar muito, haverá a alegria de todos. Não apenas por mim, mas por todos nós, os que aqui estamos, irmãs e irmãos de mentes e corações, e os que já partiram, como vocês, pai e mãe, e como tantos outros. Porque, como eu lhes escrevia naquelas cartas, a gente está celebrando juntos a fraternidade, a liberdade, a solidariedade e a igualdade!”
V “HACIA LA CIUDAD ESPLENDIDA” Encerro com o poeta maior: “Hace hoy cien años exactos, un pobre e espléndido poeta, el más atroz de los desesperados, escribió esta profecia: A l’aurore, armes d’une ardente patience, nous entrerons aux splendides Villes. (Al amanecer, armados de una ardiente paciencia, entraremos a las espléndidas ciudades). Yo creo en esa profecia de Rimbaud, el Vidente. Yo vengo de una escura provincia, de un pais separado de todos los otros por la tajante geografia. Fui el más abandonado de los poetas y mi poesía fue regional, dolorosa e lluviosa. Pero tuve siempre confianza en el hombre. No perdi jamás la esperanza. Por eso tal vez he llegado hasta aqui con mi poesía, y también con
mi bandera. En conclusión, debo decir a los hombres de buena voluntad, a los trabajadores, a los poetas, que el entero porvenir fue expresado en esa frase de Rimbaud: solo com una ardiente paciencia conquistaremos la espléndida cuidad que dará luz, justicia y dignidad a todos los hombres. Asi, la poesia no habrá cantado en vano.” (Pablo Neruda, “Hacia la cuidad espléndida” – Discurso — Prêmio Nobel de Literatura, Estocolmo, Suécia — 13 de dezembro de 1971)