Antonio Benedito de Siqueira
LUTAS E VITÓRIAS DE UM HUMANISTA A história de Victor Horácio de Souza Costa
1.ª edição 1.ª reimpressão
Curitiba-PR Banquinho Publicações 2012
TÍTULO ORIGINAL Lutas e vitórias de um humanista A história de Victor Horácio de Souza Costa 2012 Banquinho Publicações LTDA. Rua Fernandes de Barros, 55 Curitiba - PR - Brasil - 80.050-310 Tel.: +55 41 3082-8783 www.banquinhopublicacoes.com.br TEXTO Antonio Benedito de Siqueira REVISÃO Andrea Mayumi Maciel COLABORAÇÃO Naiady Piva CAPA Samuel Dickow PROJETO GRÁFICO, EDIÇÃO E EDITORAÇÃO Banquinho Publicações
Siqueira, Antonio Benedito de Victor Horácio de Souza Costa: a trajetória de um humanista / Antonio Benedito de Siqueira: Banquinho, 2012. 176 p. ISBN: 978-85-65388-03-0 1. Biografias, genealogia e insígnia
1.ª edição
À Sonia Goreti de Oliveira Carvalho pelo seu empenho em transformar em texto a versão gravada das onze horas de depoimentos. Ao Samuel Dickow, jovem artista plástico, que criou a capa deste livro. Ao Laércio Souto Maior pelo apoio para que esta obra pudesse ser escrita.
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Em nome do Victor, dedico esta her贸ica hist贸ria aos que nunca fugiram dos duros embates dos(as) trabalhadores(as).
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O RESGATE NECESSÁRIO | 09 Prefácio | 11 Sem nunca esquecer a família | 17 a luta sindical | 51 cassado, mas na luta | 89 eventos de são josé | 111 no governo | 125 livro ata do fórum sindical de | 133 debates de paranaguá SOBRE O AUTOR | 173
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O RESGATE NECESSÁRIO
Há tempo que os estudiosos e pesquisadores do mundo do trabalho do Paraná esperavam que um pensador político à altura dos episódios de luta vividos pelos dirigentes sindicais do estado assumisse o compromisso de através dos seus escritos repassar para as novas gerações de trabalhadores paranaenses a saga dos embates entre a classe operária e o empresariado local. Coube ao professor de Economia da Universidade Estadual de Ponta Grossa Antonio Benedito de Siqueira contar numa linguagem singela e agradável para se ler, a trajetória do Victor Horácio de Souza Costa, uma das mais respeitadas lideranças da história do sindicalismo paranaense. O professor é com certeza o único e importante intelectual do estado dedicado na atualidade a resgatar a história do movimento sindical do Paraná no século XX, e dos seus mais expressivos líderes. Ao longo do livro, o leitor constatará que não é uma obra que se revele ao primeiro olhar. Essas memórias do Victor devem ser examinadas à luz da mentalidade da época e das circunstâncias políticas que a engendraram. Portanto, exige uma releitura. Outro aspecto importante dessa obra: o escritor trabalhou bem a forma para adaptar a emoção e o pensamento humanista da personalidade enfocada diante de suas lutas e das vicissitudes da vida, que a todo momento nos surpreende e emociona. LAÉRCIO SOUTO MAIOR é advogado, escritor e idealizador do Arquivo Manuel Jacinto Correia - Centro de Pesquisa e Documentação Social.
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PREFÁCIO Em língua indígena, Pernagoá quer dizer “grande mar redondo”. Paranaguá é a baía que abraça uma porção do Oceano Atlântico, no litoral paranaense. Victor Horácio de Souza Costa nasce no bairro da Costeira, na Paranaguá plantada às margens do Rio Itiberê, antes Taguaré. Num misto de rio e mar cresce o vilarejo, o mercado e o embarcadouro desde fins do século XVI, provando a luta da multiplicidade de trabalhadores que o porto comporta. Neste meio, o “Vitinho” experimenta a forja do trabalho em idade precoce num armazém do porto. O mar sempre fez parte de sua vida, sem disso se dar conta. Pode-se dizer que o mar foi o cupido de um namoro bem-sucedido. Mas não é só por essas razões da cidade litorânea natal e do encontro do amor que o mar representa a vida do Sr. Victor, como eu o chamo. Victor não conheceu apenas o mar protegido da baía, mas o mar aberto de duros enfrentamentos políticos. Ao ler sua biografia/memória resgatada por Antonio Benedito de Siqueira em estilo literário realista e elegante, com respeito e admiração, vê-se que narrador e protagonista provocam uma simbiose. Há identidade no relato, identidade política como um abraço parnanguara de mar. Por que Victor nos dá a imagem do mar? Por ser profundo em seu caráter e plácido na persistência das decisões. Não copiou do mar a impetuosidade extemporânea, mas a recorrência das marés, lutando por justiça, avançando contra rochedos da ditadura militar no Brasil dos anos 1960 e 1970. Destemido, fez-se defensor de si próprio nos meandros do poder judiciário. Em marés vazantes, devastadoras, re-
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pressoras das liberdades, tolhedoras da vida que o mar carrega, Victor soube ampliar a outros a proteção. Não se deixou abater. A. B. de Siqueira trabalha o pensamento fiel e nos conduz pelas marés da vida de Victor. Recupera a palavra em lembranças significativas qual mosaico que não obedecendo a linearidade nos dá o valor de um tempo. Sua narrativa nos fascina com a leitura de uma vida. Prende-nos o fôlego quando as vozes se tornam uníssonas: o leitor fica sem saber quando a fala de um superpõe-se em continuidade ao raciocínio do outro. Não são castelos na areia, são movimentos concretos, violentos, históricos para além da dimensão pessoal que marcam as “lutas e vitórias de um humanista”: perseguido político injustamente punido. Sem deixar escapar o seu lado romântico, brejeiro de flautista, responsável pai de família, filho agradecido, aficionado do futebol, atuante e competente advogado, profissional bancário diligente, generoso companheiro de lutas por direitos dos trabalhadores, Siqueira registra os atos de um Victor idealista no qual os princípios democráticos o fizeram solidário cidadão de quantos cruzaram o seu caminho. O traço forte de personalidade desse homem é perceptível: Victor é um agregador. Isso o demonstrou sempre. E em conjuntura especial do início dos anos 1960 do qual o Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense, entidade civil que presidiu, foi destaque. Mais uma vez a presença do mar que, agora revolto e encapelado engolfa essa experiência organizativa e marca quase toda a sua vida. Na então conjuntura nacional de desenvolvimento econômico e democratização do Brasil, período João Goulart, somam-se a grande importância da exportação do café pelos portos e a atuação sindical na conquista de direitos trabalhistas. Em Paranaguá, os armazéns abarrotados de sacas de café para exportação exigiam contínuo trabalho dos ensacadores, estivadores, conferentes, portuários, arrumadores que, organizados por diferentes categorias de trabalhadores em setores econômicos estratégicos, desenvolviam mobilizações capazes de paralisar as atividades portuárias. Parte significativa dos trabalhadores operava em condições ad-
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versas de demanda, jornada, salubridade, remuneração e mesmo de competição entre eles. A exploração do trabalho incluía, à época, o fato de o próprio sindicato administrar o trabalho do transporte do café ensacado. Há sinais de um voltar-se contido para o trabalhador: a Administração do Porto de Paranaguá, em 1961, assina convênio para prestação de serviços e assistência aos associados fornecendo alimentos e medicamentos, e organiza a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) no ano seguinte. O relevante, no entanto, é que além dos muros do porto, os trabalhadores aglutinam-se para fazer prevalecer os seus direitos. Em 1961, nasce a Associação dos Portuários de Paranaguá, em 1962, é organizada a União dos Portuários de Paranaguá e também desponta o inédito Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense. Os movimentos para melhoria das condições de trabalho tiveram na unidade dos trabalhadores de diversas categorias a sua sustentação. Atuando de forma concomitante, os bancários, os estivadores e ensacadores contribuíram para efetivar a construção do Fórum Sindical, em 1.° de Maio de 1962. Essa demonstração de capacidade de negociação dos trabalhadores junto ao poder público e às classes patronais durou dois anos e fez com que os trabalhadores de Paranaguá vivessem uma intensa ação sindical para que suas reivindicações fossem respeitadas em um dos portos de maior volume exportador nos anos 1960. A experiência do Fórum estendeu-se vida afora de Victor na luta contra a injustiça e em defesa dos socialmente mais fracos. É ela que A. B. de Siqueira nos conta, fazendo-nos reeditar nesta biografia sui generis o clássico personagem Diego – do escritor uruguaio Eduardo Galeano –, que não conhecia a grandeza do mar. O pai levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando fi-
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nalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar. Nas páginas que seguem irá crescer aos nossos olhos a figura discreta de um paranaense do qual nos orgulhamos: o Sr. Victor, combativo sindicalista, coração generoso, articulador político de causas nobres, advogado honesto, líder militante íntegro, exemplo para as novas gerações que não conheceram as iniquidades de tempos sem democracia, ainda que precisemos muito para aprimorá-la. Esse é o mar que A. B. de Siqueira ajuda-nos a olhar. 1.º de Maio de 2012 Jubileu do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense. Silvia Maria de Araújo é socióloga, ex-professora da UFPR e atual presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet).
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Antes da solenidade de juramento na Faculdade de Direito de Curitiba, em 23 de fevereiro de 1962
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SEM NUNCA ESQUECER A FAMÍLIA
A ditadura está no fim, mas ainda faz seus estragos. Longa reunião para resolver um problema das muitas greves daqueles primeiros anos da década de 1980. Até os pelegos, aqueles dirigentes que docemente aceitaram as regras do regime militar, estão mobilizados. Há uma dura disputa no campo sindical. Já é quase democracia, mas a polícia bate, bate forte e duro. Os cassetetes são os mesmos do período das trevas. Em Curitiba faz frio. Tempo coberto. Chove fininho. A reunião não termina. A nova direção sindical não aceita os argumentos do governo, não reconhece os esforços de mediação desenvolvidos para evitar um conflito desnecessário entre a polícia e os sindicatos que conduzem as greves para a reposição salarial. Meio-dia, as crianças continuam esperando no Colégio Santa Maria, mas Victor não se abala, permanece com paciência explicando que para fazer greve não é preciso provocar a polícia. Uma polícia treinada na época do arbítrio, que ainda a qualquer pequeno desentendimento desce a borracha. Enfim, consegue explicar e convencer os dirigentes sindicais de que o acordo que ele fez com o capitão vai funcionar e os trabalhadores não vão apanhar. Mesmo quando, só para provocar, ficam durante horas assobiando os apitos estridentes nos ouvidos dos policiais. Irritados, batem mesmo que orientados pelo comando a não reagirem aos gestos provocativos dos piqueteiros. Os grevistas, na falta do patrão para xingar, descontam nos policiais. Até que
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apanham e a oposição vai para o rádio e a TV reclamar que o governo está agindo da mesma forma que o regime militar. Mas deixemos esses assuntos para um capítulo próprio. Para iniciar o relato, para descrever os feitos do maior líder sindical do Paraná no início dos anos de 1960, é prudente um recuo no tempo, voltar ao processo de formação dessa personagem pouco conhecida do grande público, mas reverenciada pela esquerda e difamada pela direita. De algum lugar no tempo, é preciso dar a partida na narrativa que pretende descrever um lado pouco conhecido do líder dos trabalhadores que marcou a história sindical do Paraná nos anos de 1960. A história do líder sindical Victor Horácio de Souza Costa, o Vitinho. Iniciemos pela história de uma inocente flauta. O seu Roge, como era conhecido o Sr. Roge da Costa, foi durante muito tempo oficial de Justiça e aposentou-se como fiscal de rendas do estado do Paraná. Também foi jogador e técnico do Paranaguá Futebol Clube, agremiação na qual o Victor exerceu mais tarde os seus talentos de jogador, um raçudo lateral direito e, às vezes, quarto zagueiro. Voltemos à flauta. O pai era músico e nas horas vagas, nos momentos de lazer depois de uma longa jornada de trabalho, participava de um conjunto musical, que muitas vezes ensaiava em sua casa. Por isso, Victor declara que se criou ouvindo música. Apesar disso, o seu Roge não estimulava o filho a aprender a tocar, a ser músico. O desejo do pai se cumpriu, ele tornou-se sindicalista, dos bons, dos combativos, embora nunca tenha sido comunista. Uma figura singular, embora combativo, não pertencia nem era conduzido pela direção do Partido Comunista, que tinha nos anos de 1950 e 1960 uma grande influência política no movimento sindical do Brasil e também em Paranaguá. Uma questão logo se levanta: por que um músico, um artista não deseja que seu filho siga os seus passos? Normalmente, o pai espera que o filho siga o seu próprio caminho. Victor desconfia que o seu pai quisesse preservá-lo dos encantos da vida boêmia. Discretamente, negaceando, com jeito, vai contando a história do seu
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Acima: Roge e seu conjunto musical se apresentando em baile estudantil no Clube Olímpico de Paranaguá, em 02/09/1953
Abaixo: Roge e seu conjunto em apresentação em baile carnavalesco em Paranaguá
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Roge, querendo revelar, mas com o cuidado de não parecer que está condenando as atitudes paternas. Nas muitas conversas, nunca manifestou qualquer ressentimento pelas atitudes do seu pai. Verdade seja dita: com a vida que seguiu, a distância que sempre manteve dos encantos da vida mundana e dos prazeres da carne desta nossa época que valoriza tão intensamente a vida material, as preocupações do seu Roge se revelariam totalmente infundadas. O pai só não pode impedir que ele seja apreciador de uma boa música. Nem que sem a permissão paterna pegasse a flauta e tentasse desvendar os seus deliciosos segredos. Um instrumento que levava o pai a gastar o ordenado nas noites de festanças com mulheres e bebidas. A mãe assistia aos esforços do filho em aprender a tocar o instrumento: não permitia, ao mesmo tempo em que não proibia. Assim, sem qualquer tipo de orientação, exceto do que via e ouvia nos ensaios do conjunto musical em sua casa, aprendeu o suficiente sobre o instrumento. Essa inocente desobediência a um desejo do seu pai viria a ser decisiva anos mais tarde. Em 1964, quando foi demitido do Banco do Brasil e após dois meses e meio de prisão, a que fora condenado arbitrariamente pelos representantes locais do golpe militar, a família – o pai, a mãe, a irmã, o cunhado – reuniu-se e decidiu que chegara a hora dele tirar férias. Ele não encontrou nenhum cabimento nessa decisão. Afinal, até aquele momento a sua vida se resumia ao trabalho e à política sindical. Ao futebol quando podia e sobrava um tempo. A flauta, o proibido instrumento da ruína dos bons moços, quase nunca era tocada. Permanecia onde o pai a guardava. A família decidiu e ele rumou para a praia. Não tinha nada o que fazer naqueles dias. O máximo que conseguiria era voltar em cana, caso pensasse, apenas pensasse, em retornar às atividades sindicais. O cunhado tinha um pequeno apartamento na praia, em Matinhos. Tinha que ir. Obedeceu. Foi para as indesejadas férias. A
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Acima: equipe do Paranaguá Futebol Clube na época em que Roge era jogador e conquistou os campeonatos de 1940, 1942 e 1943
Abaixo: Paranaguá F. C. campeão em 1956, 1957 e 1959
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família e a ditadura militar conspiravam contra a sua vontade de lutar pelas causas dos trabalhadores. Apesar de contrariado, entrou no clima das férias que a família, para protegê-lo, decidiu que ele deveria gozar. Já que ia passar uns tempos de molho, lembrou da flauta. Na hora de arrumar a mala, colocou-a junto aos demais objetos da viagem. Morava e trabalhava ao lado do mar, em Paranaguá. A residência ficava a poucos quilômetros dos principais balneários do Paraná. Apesar disso, nunca ia à praia, nunca visitava o mar. Não é que tivesse aversão às praias e ojeriza ao descanso. Somente faltava tempo. Tempo gasto no banco, no sindicato, no time de futebol. Discreto, sério, avesso a contar vantagens, minimiza até os grandes feitos que realizou. Não fala de mulheres. Mas com certeza, pelo que contam indiscretos amigos, não se casou virgem. Para explicar os motivos de estar tão próximo ao mar e tão longe das praias e seus encantos, da paisagem e das mulheres, vai com timidez elencando as entidades em que teve participação como dirigente ou como um tenaz incentivador. Inimigo do errado, sempre encontrou nas entidades coisas que podiam ser melhoradas. Foi com esse espírito que se tornou dirigente sindical, administrador de time de futebol de campo e de salão, da Associação Atlética Banco do Brasil, a AABB, do Lions Clube, e da Maçonaria, que exerceu a advocacia social. Prática que se não o levou à ruína, contribuiu em muito para que não seja um homem rico. Com tantos adversários, fica difícil chegar à praia. Mesmo que seja de Paranaguá a Matinhos. Mas como já se disse, tinha que ir. Por poucos dias que fossem, era uma decisão irrevogável da família. Falhou a estratégia da recusa. Pegou a mala e rumou para a grande e indesejada viagem. Já está registrado, mas não custa enfatizar, relembrar. Levou a flauta. Encontrou uns amigos. Amigos, o Victor sempre tem de sobra, em todo lugar. Adversários também. Por conta desse seu jeito de fustigar o que está errado, dessa convicção quase religiosa de que é possível tornar o mundo um lugar muito melhor para se viver. Mas com um ponto de exclamação: para todos viverem! Sem que
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manifeste conhecer a verdade do cristianismo esotérico, ele sabe de algum jeito secreto que não é possível haver felicidade na terra enquanto houver uma pessoa sofrendo. Sabe que enquanto houver um pecador, as portas do paraíso estarão fechadas para todos. Não reclama. Otimista, luta sempre. Não alivia com os poderosos, porém, é condescendente com os fracos. Aponta rumos, não com palavras, mas com ação. No seu evangelho o princípio não é o verbo, é a ação. Havia músicos entre os amigos. Entrou no clima da música e passou a participar das serenatas. Modesto, não diz que tocava flauta no grupo musical improvisado. Candidamente, apenas diz: “a gente brincava”. Ama a música e respeita os músicos. Assim, o máximo que se permite na arte musical é confessar que brincava. Nem provavelmente revelaria essa qualidade, se não fosse para ilustrar um fato decisivo na sua vida. Tocavam em um lugar que era ao lado do apartamento onde estava abrigada a família daquela que viria a ser a sua esposa. Da música, começou o namoro que resultou em um casamento que já dura mais de quarenta anos. Como bom representante da espécie masculina, não lembra o ano do casamento. Mas não tem como telefonar para a esposa para se informar da data. Fica aqui uma tentativa de intriga a uma bela história de amor. Na firmeza das convicções, fala com objetividade, com lógica de matemático, ainda que seja advogado. Toda a frieza do relato se perde quando fala da esposa. Sua voz torna-se terna, os olhos brilham felizes. Todas as pessoas que não sejam totalmente destituídas de sensibilidade não têm como não ficarem enternecidas pelo amor que dedica à esposa. Victor se refere à família da esposa com carinho e respeito. Pelo que recorda, estavam em férias, hospedados no apartamento que fazia divisa com os ensaios musicais da praia, a sua futura sogra, Romilda Ravaglio Gunchor, e as três filhas, Sueli, Marise e Miriam, dois tios, uma tia e uma prima. O marido, o pai das moças, Bruno Gunchor, tinha falecido há uns seis meses. Não conheceu o sogro, por isso não pôde trocar ideias sobre a situação dos metalúrgicos e propor que o sindicato fosse mais atuante. Mesmo que soubesse que
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o Sindicato dos Metalúrgicos na época fosse uma fração da poderosa máquina sindical dos dias de hoje. Victor logo se enamorou da Marise. Ela descende de poloneses e italianos. Muito bonita: Victor com gosto faz questão de registrar. Antecipando o relato, prevendo a pergunta que fatalmente virá, logo diz: “ali começamos o namoro e nunca mais nos separamos”. Esse é um ato de um enredo que ainda não terminou. Voltemos ao início da estratégia romântica. Se você, leitor, imagina que ele não tinha estratégia, talvez se engane. Victor pensa longe. Sabe o que quer, e o que se sabe é que ele apaixonou-se por Marise assim que a viu. Sabe-se disso pela confissão dos gestos corporais enquanto conversa, pelo aveludar da fala, pelos olhos que brilham, pelo gosto que tem em revelar essa conquista de mais de quarenta anos. Talvez fosse a única pessoa capaz de afastá-lo da luta contra a ditadura militar e do esforço para fazer movimento sindical avançar, mesmo que os dirigentes fossem considerados pelegos. Sem preconceito, compreende as limitações humanas e ideológicas dos dirigentes sindicais. Trabalhadores, muitos sem instrução escolar e política, são facilmente manipulados pelos patrões, pelo capital. Sabe que é preciso ganhar esses companheiros para a causa dos trabalhadores. Nisso não mede esforço, não abdica a pedido de ninguém. Nem de sua amada esposa. Mas ela nunca pôs resistência à missão do marido. Voltemos à empreitada romântica. Junto a dois amigos, confessa que ficou mais desinibido e tomou coragem de participar de uma serenata que faziam toda noite. Releva a confissão, diminui a importância do evento musical e procura ressaltar a sua pouca importância como músico. Assim, podem-se compreender as suas palavras registradas no gravador: “era uma espécie de serenata e se bem que eu nunca fui um bom músico”. No entanto, tem consciência que levava jeito para o instrumento. As limitações com o instrumento musical eram decorrência da falta de dedicação aos estudos, pela falta de tempo e por outras prioridades. Nem vinha da proibição do pai, mesmo que velada. Até
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Fotos do casamento de Victor e Marise, realizado na Igreja de Santa Teresinha, em Curitiba, no dia 15 de julho de 1967
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porque Victor é um espírito que só encontra limites nos seus valores éticos, nunca no arbítrio de uma autoridade externa ao seu ser. Se achasse justo desobedecer ao pai, desobedeceria. Alinha a sua ação, a sua conduta a uma causa, à busca da justiça, e para isso não se prende às formalidades de leis injustas, ou manuais de treinamento que tenham forma de catecismo. Detalhista no relato, aponta as dificuldades do aprendizado musical: dedicação e tempo, além de talento, são indispensáveis para que se toque bem um instrumento. É preciso muito ensaio. Para tirar-se uma notinha requer-se muita dedicação. Não tinha tempo. Só agora, na praia com os amigos e com os músicos, é que gostaria de ter o talento de Pixinguinha. Para agradar o ser da sua eterna adoração, Marise. Apesar de pegar pouco no instrumento, de reconhecer que era um amador, um aprendiz que não se dedica aos estudos, embalado pelo grupo e entusiasmado pelas férias, passou a ser membro da orquestra. Dessa decisão, dessa empolgação com as férias que nunca tirou na vida, foi que as coisas se encaminharam para um final feliz. Fala com entusiasmo. Aconteceu um fato interessante: foram fazer uma serenata, por conta do interesse de alguém em namorar uma moça. Victor pegou a flauta e foi junto, solidário no projeto de conquista e embalado pelo clima de festa. Explodiu uma confusão, um alvoroço danado. Viu brilhar na noite um revólver. O pai da moça não gostou do galanteio musical feito à filha. Ele, que recém escapara da prisão política, corria risco de vida por conta de uma inocente intenção do amigo em conquistar o coração de uma donzela. Não se assustem, é uma expressão daquele tempo, e fazia todo o sentido. Afinal ainda estamos em 1964, em Matinhos, no veraneio de pessoas conservadoras da época. Para o bem de todos e dele, que temeu que a sua flauta, a flauta emprestada do seu pai, fosse confundida com um revólver. Tudo terminou bem, apenas em susto e um memorável corridão. Esse relato não confere com a imagem pública de Victor. Parece que ele nunca viveu uma aventura, nunca participou das
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molecagens da juventude. A conversa sempre sóbria, os propósitos sempre sérios, nunca revelam essas peripécias só conhecidas dos amigos muito chegados e da família. O relato puxa outras das muitas histórias, aventuras do seu Roge. Tem gosto em contar as aventuras do pai. Vê semelhança no seu aperto na praia com um fato ocorrido com o pai em outra ocasião. Num baile, o seu Roge obrigou-se a pular uma janela e sair corrido. Teve que cair fora às carreiras. A encrenca, o entrevero, sempre acontecia por causa dos pais, dos maridos e dos namorados que não se agradavam com os rumos do baile ou da serenata. Era o jeito extremo que encontravam de defender a honra das filhas, das esposas e das namoradas dos mais assanhados. Para ilustrar o lado sedutor do pai por conta da música, conta outra peripécia do seu Roge. Ajudou um amigo também músico a roubar uma moça. A família não queria o namoro e muito menos o casamento. A aventura terminou bem, eles se casaram e viveram um longo e feliz casamento. Victor corrige o longo e feliz casamento, até o final de suas vidas. Embora não toque mais, ainda mantém guardada com carinho uma flauta de alpaca, presente que o pai lhe deu há muito tempo e que pretende doar a um museu de Paranaguá. A flauta de prata, muito bonita, de seu Roge, ficou com a segunda esposa após seu falecimento. Seu Roge foi um músico atuante, de múltiplas atividades: compunha músicas para o carnaval, participava dos blocos e tocava em bailes e nas festas carnavalescas em Paranaguá. Além de ter sido um grande instrumentista, é autor de letras e músicas. O lado artístico do pai o levou à vida boêmia. Não o condena, fala dele com carinho e respeito, mas não deixa de ser objetivo na avaliação. Diz, com clareza: “evidentemente, a vida de boemia não agradava a família, porém, os excessos do seu Roge eram administrados com muita paciência, mesmo que propiciasse inevitáveis sofrimentos, porque era uma pessoa com as mãos abertas, o dinheiro que tinha no bolso era de todo mundo”.
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Quando estava na boemia, na farra, era um pródigo. As mulheres das boates levavam todo o dinheiro que tinha nos bolsos e ele não se importava. Isso sacrificava a família. Assim que registra esse traço irresponsável do pai, logo destaca suas qualidades: era um homem muito generoso e extremamente honesto. Quando era oficial de Justiça, sempre primou pela ética. Se pudesse ajudar as pessoas, ele o fazia. No caso de um despejo, por exemplo, ele procurava aconselhar o inquilino a procurar novamente o advogado, mesmo quando estava de posse do mandado judicial nas mãos. Agia assim por pena das pessoas e sempre dava um jeito para não prejudicar ninguém em função da sua autoridade. Não aceitava suborno. Victor diz isso com orgulho. Esse lado virtuoso do pai apaga no filho os sofrimentos decorrentes das irresponsabilidades com o dinheiro sempre escasso para a manutenção da família. Essa conduta manteve depois como fiscal de rendas do estado do Paraná, emprego conseguido por meio de concurso público. Nessa função teve muitas propostas indecorosas, pois foi fiscal de rendas quando o café era “o rei café”, era o “ouro verde”, e por isso corria muito dinheiro em Paranaguá. Um fiscal que fizesse vistas grossas para os procedimentos errados, que levariam o fisco a ter prejuízos, era muito bem-visto e remunerado por empresários corruptos. Aquela pessoa que não resistia aos encantos da boemia, a ponto de prejudicar materialmente a família, nunca cedeu um milímetro no correto cumprimento do dever como funcionário público. Essas histórias foram relatadas por pessoas amigas e conhecidas de seu pai. Por isso, não tem dúvidas em creditar ao pai a conduta correta que procura imprimir na sua vida pessoal e na educação dos filhos. Ele lhe deu os piores e os melhores exemplos: vida boêmia e o proceder impecável no trato da coisa pública. Por conta disso, elegeu como conduta pessoal a dedicação total à família e um proceder reto nos assuntos da moral. Recebeu como recompensa uma esposa amorosa e dedicada e
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Acima, a esposa de Victor, Marise. Abaixo, o casal e seus quatro filhos: Victor Júnior, Rogê, Karine e Karoline
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quatro ótimos filhos: Victor Júnior, médico, professor, doutorando em medicina; Rogê, advogado; Karine, advogada; e Karoline, odontopediatra. Na medida em que a conversa flui, vai puxando pela memória e relembra uma saborosa história que mostra bem a figura singular do seu pai. Depois da morte de seu Roge, ficou sabendo em que condições ele participou dos exames do concurso para agente de rendas do Estado. Um dia, encontrou um amigo de Paranaguá no supermercado em Curitiba, que não via há muitos anos. Conversa vai, conversa vem, é tiro longo nos bate-papos, tem uma paciência ímpar para ouvir e igual disposição para falar. Durante a conversa, o velho amigo lembrou-se quem era o pai do Victor. Então, o amigo passa a contar-lhe um evento com o seu pai no dia do concurso para fiscal de rendas do estado. Portão já fechado, pois havia passado alguns minutos do tempo estipulado para a entrada. De repente, o seu Roge aparece num porre desgraçado. Era visível que estava embriagado. O amigo diz que convenceu os outros fiscais e deixaram o candidato atrasado entrar. Pensou: “para que prejudicar o moço com uma linha tão pouco importante do regulamento”. Naquele estado de embriaguez, não iria conseguir fazer a prova. Ledo engano, estava bêbado, mas não tinha perdido o preparo conseguido com muito estudo. “Papai era fraco para bebida”, Victor contemporiza, “com qualquer coisinha já se notava, não era mais a mesma pessoa”. Apesar de alcoolizado, tinha condições de fazer a prova, pois havia se preparado para o concurso, estudado com dedicação e seriedade. Além disso, era detentor de uma bela caligrafia, o que era muito valorizado naquela época em que poucos usavam máquina de escrever e de computador nem sequer se sonhava. Segundo Victor, a cultura e o amor aos estudos, seu Roge herdou do pai, que foi fiscal, guarda da alfândega, função que requeria um bom nível de escolaridade e instrução. Seu Roge e os
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irmãos Ducastel e Doroti ficaram órfãos muito cedo. Pai e mãe morreram de tuberculose e, por isso, foram criados pela tia Nina, costureira, e pela avó Edevirge. Ela tinha ancestrais da raça negra e seus antepassados foram escravos no Rio Grande do Sul. A família sempre foi muito unida e batalhadora. Seu Roge aprendeu a tocar flauta aos 17 para 18 anos de idade, ensinado por um amigo de nome Estevão, que também era negro. Por conta da juventude e do ambiente festivo, foi fisgado pela vida boêmia: “o papai começou a tocar flauta muito cedo e daí para a boemia era um passo. Ele sabia disso, que a música é um chamariz para a vida noturna, para as festas e a vida alegre das casas noturnas, bares e salões de bailes”. Reflete no que acabou de dizer acima e pondera que talvez isso fosse uma verdade naquela época, mas hoje a carreira de músico é mais profissional e os artistas se cuidam melhor na vida pessoal. A música naquela época era um bico para o seu Roge e os demais músicos que tocavam juntos. Era uma atividade que dava pouco dinheiro e muita alegria. A mãe e a avó materna do Victor mudaram-se, no início dos anos de 1920, de Piraquara para Paranaguá. Junto a sua mãe, mudaram-se todos os membros da família, exceto um tio que ficou administrando os negócios de um parente rico, de quem se tornou herdeiro. Ele era proprietário da chácara, em Paranaguá, onde Victor nasceu e viveu até os quinze anos, no bairro da Costeira. Veio ao mundo no dia 16 de novembro de 1935, data em que se comemora com grandes festas a padroeira do Paraná, Nossa Senhora do Rocio. Recorda que moravam nessa chácara ele, os pais, dois tios que morreram solteiros, e sua avó, “uma pessoa muito querida, senti muito a morte dela”. A ascendência negra do pai do Victor vem do lado paterno. Pelo lado materno, a mãe do Victor descende de portugueses. Na medida em que não tem nenhuma fotografia dos avôs, não tem certeza da informação acima. Apenas sabe que tem antepassados que foram escravos, o lado africano da família.
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A conversa flui, o tempo passa, e toma um caminho diferente, o que é normal com essa singular pessoa. A conversa é um rio que serpenteia seguindo o traçado do terreno. O relato não segue uma linha reta. Para chegar aos detalhes do namoro com Marise, muitas voltas são dadas, muitas curvas precisam ser vencidas. A proposta é para se deixar de lado por um momento as peripécias do pai, os assuntos da família, e voltar a falar do namoro. Ele concorda. Gosta do assunto e aprecia recordar a aventura romântica. Depois que pensou que ia levar um tiro, diz meio acanhado, mas sem deixar de valorizar a ousadia, passou a ter mais contato com Marise. Afinal, estavam hospedados em apartamentos que tinham portas de entrada uma ao lado da outra. Diz, com perspicácia: “a Marise passando por ali, uma conversinha, um papo, uma coisa e outra, a gente se aproximou”. Essa foi a estratégia dos dois, confidencia com uma discrição que parece que não vai sair no livro. Imagine a cena. Nem ele, nem ela nunca tinham namorado. Além de tudo, diz o adágio popular, amor de praia, não sobe a serra. Tinha tudo para dar em nada. No entanto, deu tudo certo, tanto que estão juntos há mais de 40 anos, com dois filhos e duas filhas. Aquele que tiver a curiosidade de pesquisar não terá qualquer dificuldade em constatar que a canção “A praia”, cantada por Agnaldo Rayol, versão de Bruno Silva para “La Playa”, de Jovan Wetter e Pierre Elie Barouth, fazia o maior sucesso nas paradas da década de 1960, revelando mais uma feliz coincidência que amor e música foram o binômio responsável em plena praia por uma feliz união entre Victor e Marise. Não é demais dizer que Marise sabe que o Victor tem uma grande paixão por ela. Ele diz: “Aí eu combinei com ela, que iria visitá-la. Ela concordava, mas não levava muita fé. Achava que de repente ficava por isso mesmo. Não acreditava que eu estivesse levando o namoro a sério”. Levar a sério um namoro naquele tempo era evoluir para uma proposta de casamento. Visitá-la na sua casa era demonstrar que levava o namoro a sério, que gostava dela.
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Quando a visitou, em Curitiba, Marise estava na casa de uma tia. Esse foi o primeiro contato desde a praia. Ela ficou surpresa. Talvez, porque não esperasse a visita. Provavelmente não esperava que o namorico levasse Victor a deslocar-se de Paranaguá para fazer-lhe uma visita, apesar dele ter feito a promessa. Se soubesse do seu poder não ficaria surpresa: “minha mulher é muito bonita. Só não se candidatou a Garotas Luzes do Morgenau porque seu pai não permitiu. Todavia, foi eleita Rainha Primavera do referido clube. Ela era tão bonita quanto a Miss Brasil, a Martha Vasconcellos”. Isso não é tudo o que sente pela esposa. Ainda hoje, fica todo derretido quando se refere a ela. Confessa feliz, “até hoje sou apaixonado pela Marise”. Para competir com dona Marise só tem os filhos e nos últimos tempos uma penca de idosos do Banco do Brasil, perseguidos pela ditadura, que não foram indenizados. Mas esse assunto será tratado em detalhes em lugar específico deste livro. Registra, faz gosto em gravar para história, que “como ela era uma moça muito bonita, chegou a ser garota propaganda, isso já depois de casados, da Niase, em inserção publicitária na televisão”. Lembra aos leitores dos dias de hoje que a Niase é uma poderosa e conceituada empresa de produtos de beleza. Tudo começou porque a esposa resolveu ajudar no orçamento da casa. Marise passou a fazer cabelo e unha para ganhar algum dinheiro, pois a vida estava difícil em termos materiais, ainda que o casal vivesse muito feliz. Por causa desse trabalho, resolveu fazer um curso oferecido pela marca, com a irmã mais nova. A Niase a convidou a fazer um comercial, porque viu que era muito bonita. Quando a propaganda passava na televisão e aparecia a fotografia de Marise, os dois ficavam deveras muito alegres. O comercial não rendeu nada. Mas do salãozinho montado nos fundos de casa veio uma preciosa ajuda em dinheiro para o orçamento da família, quando após dois anos em Mato Grosso, voltou em 1968 e continuou a carreira de advogado em São José dos Pinhais. Novamente, é prudente esperar a história fluir na velocidade de Victor e voltar ao namoro. “Eu tocava a flauta, perturbava os ouvi-
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dos dela. Não sei se foi por isso ou não que ela se interessou por mim. Até hoje eu brinco com a Marise sobre o fato, mas ela é muito reservada, e nada responde. Porém, foi aí que tudo começou”. Apesar do encanto que a moça lhe causava, e da situação profissional em que se encontrava, banido do banco e perseguido pela ditadura, tinha consciência do seu valor e mantinha elevado o amor próprio: “eu era formado em Direito, afinal eu não estava jogado fora por causa desse bendito banco. Não tinha vícios, meu comportamento estava muito claro ali, não tinha bebida, não tinha farra, bagunça, droga. Tinha alguma coisa para oferecer, se bem que essas coisas do amor às vezes não estão muito ligadas a virtudes, qualidades e posses”. A futura sogra, pela percepção do Victor, via o início do namoro “até com simpatia”. Dá ênfase no “até com simpatia”. “Minha sogra era uma pessoa muito boa e desde o início simpatizou-se comigo. Isso facilitou muito. Uma pessoa de formação espiritual elevada, médium do espiritismo kardecista por mais de quarenta anos”. Ele a acompanhou muitas vezes até o centro espírita quando ela ia cumprir as suas obrigações espirituais. Numa frase resume a sogra: uma pessoa de boa formação, com uma vida sofrida, mas guerreira e vencedora. O espiritismo traz de volta o seu Roge para o centro da conversa. “Papai tinha aquela boemia dele, tinha fases, alternava. Às vezes deixava de fazer as farras dele por um bom tempo, depois retornava”. No entanto, com a idade, as fases de farra tornavam-se mais espaçadas. Após a morte da esposa, a mãe do Victor, e do segundo casamento, ele acomodou-se. Passou a interessar-se pela literatura espírita e a frequentar o Centro Espírita Paz e Luz. Nesse mesmo lugar, Victor também foi tomar passe durante muitos anos. Foi lá que um dos seus tios, Ducacil Costa, atuou como médium receitista. Ele faz questão de registrar que o tio era uma pessoa muito boa e que o Centro Paz e Luz nesse tempo já era muito antigo, tendo sempre sido dirigido por pessoas caridosas e dispostas a fazer o bem. Ate hoje é um praticante do espiritismo. Não entra na discussão se é ciência ou religião, para ele é um movimento de pes-
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Acima, Victor recebe certificado de conclusão do curso científico pelo Colégio Estadual José Bonifácio de Paranaguá
Abaixo, foto posada do jovem formando
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soas interessadas em fazer o bem. O espiritismo é mais uma das positivas influências do pai na vida de Victor. Apesar de espírita, nunca entrou em atrito com a esposa, católica praticante, que faz novena e recebe a capelinha em casa há muitos anos. Todos os quatro filhos são batizados no rito católico. De volta ao trabalho que Marise teve que enfrentar para ajudar nas despesas de casa, Victor é fustigado com uma pergunta indiscreta e difícil. O que se quer saber é se tendo uma esposa que admite ser muito bonita, não ficou com ciúme de ela passar a trabalhar fora. Não foge da pergunta, mas ao seu jeito contorna a fustigada e não responde a questão diretamente. Revela que o local de trabalho de Marise e da cunhada era num salão nos fundos da casa da sogra, onde morava até o nascimento do primeiro filho. Elas, assim que fizeram o curso, foram trabalhar praticamente dentro de casa. Tão logo a vida profissional de Victor deslanchou em São José dos Pinhais, Marise pôde dedicar-se exclusivamente ao lar. Essa, porém, não foi a única experiência dela com o trabalho remunerado. Ela já tinha atuado em uma fábrica de tecidos, de fitas para vestidos, a Wenske, que se localizava próxima da Praça do Expedicionário. A irmã de Marise, sócia no salão de beleza, fez concurso para o Banco do Brasil, onde se aposentou, após exitosa carreira. A sogra, que Victor respeitava, quis o namoro desde o início. A conversa chega ao sogro. Ele era um verdadeiro artista em fundição e trabalhos em bronze. Victor diz que aquilo era muito tóxico e como naquele tempo não havia medidas de proteção à saúde do trabalhador, causou-lhe a morte aos 43 anos de idade. Apesar de prejudicado pela falta de proteção ao trabalhador, era um operário inteligente e acompanhava a legislação trabalhista do seu tempo. Líder entre os colegas, foi candidato à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de Curitiba. Por fim, Victor é enfático: Marise, as irmãs e a mãe sofreram terrivelmente com a morte do seu Bruno Gunchor, com a circunstância que o levou a sofrer um infarto e morrer precocemente.
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Já que o assunto é família, a conversa chega aos filhos. Concorda com a avaliação dos amigos e conhecidos que é um pai dedicado, a ponto de levar e buscar os filhos, já adolescentes, na escola todos os dias. Não se anima a dar trela ao assunto. Não pode dizer que eles são perfeitos, mas também não vai de maneira alguma fazer qualquer juízo deles que não seja elogios. Prefere calar. A sua expressão, porém, o trai no propósito de julgar com isenção: sem dúvida é um pai coruja para quem os filhos não têm defeitos, dentro do seu coração. É visível a afeição que demonstra pelos dois filhos e pelas duas filhas. Deles sente muito orgulho. Discretamente muda o rumo da conversa. Volta ao pai. “Papai, apesar da vida boêmia, exigia aplicação dos filhos nos estudos”. Pelo emprego na alfândega, o posto que ocupou, o avô do Victor devia ter um bom grau de escolaridade. Assim, seu Roge, esperando que os filhos tivessem bons empregos, via na educação a forma de obtê-los. O pai do Victor por sua vez era um assíduo leitor da revista “X9”, jornais, e mais tarde da literatura espírita. A leitura não era apenas um objeto de lazer ou forma de procura espiritual. Acompanha tanto as mudanças na legislação que trata dos assuntos da sua função de agente de receita, quanto da que trata dos seus direitos como servidor público. Por fim a sua mãe entra na conversa. “Se de papai peguei esse gosto de defesa dos direitos das pessoas, da minha mãe aprendi a gostar da política”. O assunto não se firma. Resolve falar dele mesmo quando era criança. A mãe o leva à infância, à nostalgia de tempos felizes. Nasceu na Costeira, bairro de classe operária. No clube social e esportivo, o Paranaguá Futebol Clube, seu pai foi jogador e treinador. Nesse time, Victor também jogou futebol e foi campeão por algumas vezes. Era uma equipe sempre respeitada. De cores alvinegras na camisa, era apelidada de Fantasma do Sítio, assim como o rubro Rio Branco é de Leão da Estradinha. Só tinha o campo e a sede social velha, cedidos por empréstimo pelo deputado federal Miguel Bufara, que mais tarde construiu e doou uma sede social nova para o
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Acima, a equipe do Elite do ano de 1952
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Abaixo, a equipe do Seleto por ocasiรฃo do jogo disputado contra o Ferroviรกrio, no estรกdio Orestes Thรก, em Curitiba, em 16 de agosto de 1953
Acima, a equipe juvenil do Madureira, de Paranaguรก
Abaixo, Equipe do Elite que venceu o Rio Branco pelo placar de 2 a 1, em 23/08/1953
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Acima, o time dos Bancários campeão da Suburbana de 1952
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Abaixo, equipe amadora do Rio Branco, campeã de 1954
Acima, a equipe de aspirantes do Paranaguรก F. C. que venceu o Atlanta por 2 a 0 em junho de 1954 e terminou campeรฃ da categoria
Abaixo, a equipe do Paranaguรก F. C. que empatou em 4 a 4 com o A.A. Estiva em 11 de julho de 1954
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Acima, a equipe do Paranaguá F. C. de 1956, antes da derrota por 4 a 3 para o Seleto
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Abaixo, equipe do Paranaguá que foi vice-campeã de 1955 após perder para o Rio Branco por 2 a 1. Detalhe para um pássaro que pousou no ombro esquerdo de Victor e é observado por Walter Lay, à sua esquerda
Acima, a equipe da Seleção da Liga de Amadores de Paranaguá que derrotou os profissionais do Rio Branco, por 3 a 1, em 1956
Abaixo, equipe vice-campeã do Paranaguá F. C. que perdeu para o Rio Branco por 2 a 1, em 1956
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Acima, a equipe de aspirantes do Paranaguá de 1956
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Abaixo, foto que precedeu o jogo que terminou em vitória do Universal por 2 a 1. Apesar da derrota, o Paranaguá sagrou-se campeão da Taça Cidade de Paranaguá de 1956
Acima, a equipe do Paranaguá que venceu o Elite por 9 a 4, em 1957, vencendo a Taça Cidade de Paranaguá
Abaixo, a equipe do Paranaguá que sagrou-se campeã do Torneio Início de 1957
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Acima, equipe do Paranaguรก F. C. campeรฃ de 1957
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Abaixo, a equipe do Paranaguรก que venceu o Seleto por 2 a 1, em junho de 1959
Acima, a equipe do Elite que venceu o Rio Branco por 4 a 3 na disputa pela Taça Dr. Roque Vernalha, em 13 de março de 1960
Abaixo, a Seleção da Liga de Futebol Amadora de Paranaguá, que empatou em 5 a 5 com o Rio Branco, em disputa pela Taça Mozart Pereira Alves, em setembro de 1960
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Acima, a jogadores e torcedores do Paranaguá comemoram a conquista do título de 1959
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Abaixo, a entrega de faixas aos jogadores e diretores do Paranaguá após conquista do campeonato de 1959, invicto. Foto tirada na sede social do clube, localizada no bairro da Costeira, em 16 de janeiro de 1960
clube. Não tinha estádio e nem mesmo alambrado. O meio do campo era cortado por caminho por onde as pessoas transitavam. Isso não impediu que Victor vivesse uma intensa carreira de jogador de futebol e participasse das atividades sociais do local, que já não existe. Era um time formado por pessoas humildes, em grande maioria. Nesse meio social foi que ele nasceu e passou a infância, jogando futebol e betes, soltando pipas e balões, entre outras brincadeiras. Feito esse retorno à infância, Victor retorna à mãe. Chamavam-na Áurea. No registro: Oréa de Souza Costa. Uma grafia torta em decorrência da pronúncia do pai português e do escrivão desleixado. Era uma mulher do lar. Mantinha a casa sempre limpa. Sua vida era lavar, passar, cozinhar. Mas nas horas vagas, lá estava ela com o rádio ligado na Rádio Mairinck Veiga a ouvir o noticiário político. Admirava o governador Leonel Brizola. Victor confessa que esse deve ter sido o motivo que o levou a entrar na vida sindical muito cedo. O primeiro emprego foi numa firma de café em Paranaguá. Isso no ano de 1950. Tinha então apenas 15 anos. Neste ponto muda todo o rumo da conversa. Para fechar o capítulo é preciso retornar ao seu início. Encerrada a negociação, imediatamente ruma ao colégio para buscar os filhos, que estão a esperar há algum tempo. O dia começa às seis da manhã, quando se levanta para levar as crianças para a escola e só termina lá pelas 23 horas, quando retorna de mais uma ou duas reuniões políticas ou sociais. Pouco descansa. Mesmo que não pareça, a família está sempre em primeiro lugar.
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I Convenção Nacional dos Bancários realizada no Rio de Janeiro entre os dias 24 e 29 de março de 1960
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A LUTA SINDICAL
Victor fala pouco da mãe. Descreve-a como uma mulher do lar, mesmo que interessada nos assuntos da política. Parecia, porém, que ela o tinha influenciado a seguir a luta sindical. Diante da pergunta, ele credita mais ao pai do que à mãe o seu interesse pelo sindicalismo, pela luta social. O pai como oficial de Justiça sempre mencionava o problema da injustiça. Injustiça, no caso, contra os pobres, os trabalhadores, o povo. Por conta disso, sentiu-se inclinado a estudar Direito, ainda que só viesse a advogar muitos anos depois de formado por absoluta necessidade e não por opção profissional. A escolha da carreira que deveria seguir já estava feita quando prestou o concurso para trabalhar no Banco do Brasil. Daí para o sindicalismo foi um passo natural. Começou a trabalhar em 1950, com apenas 15 anos de idade. Isso já foi escrito. O que não está registrado é que já nessa tenra idade se interessou pelos assuntos do sindicato. No emprego, na companhia de café, entrou em contato com trabalhadores que vieram de Santos para Paranaguá. Eles tinham formação política e experiência sindical, estavam acostumados com o embate entre patrões e empregados. O ambiente familiar e os primeiros contatos com o mundo do trabalho iriam traçar o rumo que seguiria por toda a vida. A primeira pessoa que o influenciou no mundo do trabalho foi Juvenal Santos. Victor faz questão de registrar que era uma pessoa muito boa, gente fina, que veio de Santos. Era um trabalhador
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que tinha boas ideias, que sempre via o lado do empregado. Juvenal acabou sendo eleito mais tarde presidente do Sindicato dos Empregados na Administração do Comércio de Café de Paranaguá. Trabalhando em um meio, em um ambiente de muita injustiça e vendo os ensacadores se acidentarem e serem despedidos sem ter nenhum direito, sem nenhuma indenização, observando a luta desse pessoal — pois trabalhou por um período dentro do armazém — encontrava cada vez mais motivos para exercer aquilo que viria a ser o traço da sua via política: a defesa dos fracos contra as injustiças. Chegou ao emprego por meio do seu padrinho de batismo, Joaquim Pinheiro, que era fiel de armazém. O padrinho e o gerente Antonio Benedito da Cunha eram membros da Loja Maçônica Perseverança, em Paranaguá. De qualquer forma, entrou na companhia Comércio e Indústria, pelas mãos do padrinho. Mais tarde também entrou para a Maçonaria, mas nessa instituição por convite de outra pessoa, somente em 1976. Assim, começou a tomar gosto pela vida sindical. Tinha encontrado o caminho. Dessa época se lembra que o sindicato tinha um presidente muito bom, pessoa séria, mas que não tinha preparo para ser um dirigente sindical combativo. Muito educado, muito simples, cordato, não tinha condições de mobilizar ninguém. Em uma palavra, era apenas um burocrata. Disso se aproveitavam os administradores e os patrões para manter o ambiente de trabalho em péssimas condições. Para não falar dos baixos salários. Frente a essa situação, concluiu que estava na hora de mudar. Nas conversas que se seguiram, Juvenal Santos se candidatou e venceu as eleições. Em 1957, a vida muda de rumo, quando entra para o quadro de funcionários concursados do Banco do Brasil. Lá, ele encontra uma elite de bancários intelectualizados, sendo que alguns eram membros do Partidão. No Brasil inteiro, era um pessoal de linha de frente, politizado, “os caras eram gênios”. Gente idealista, batalhadora e muito inteligente. Nesse período, já iniciara o curso de Direito. Mesmo assim, subestima os seus conhecimentos frente ao discurso político dos comunistas. O que não pode negar é a sua
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Acima, os funcionários do Banco do Brasil da agência de Paranaguá, em 1957
Abaixo, a delegação do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense, presidido por Victor, recebe o ministro do Trabalho, Amauri Silva, no Campo da Aviação, em Paranaguá
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combatividade, a sua atuação mobilizadora dos bancários da cidade e das demais categorias de trabalhadores em Paranaguá. Enquanto isso, os intelectuais que diz tanto admirar mantêm uma linha de reuniões clandestinas para influenciarem nos embates sindicais. Os funcionários do Banco do Brasil tinham um grande status social e eram bem remunerados. Por isso, era um local de trabalhadores com elevada escolaridade. Lembra que até médico diplomado trabalhava como bancário na instituição. Entrou no Banco do Brasil no dia 1.° de fevereiro de 1957 e tinha nessa época pouco mais de 21 anos de idade. Talvez por isso, pela pouca idade e por trabalhar e atuar em categorias que se caracterizavam por fazerem trabalhos braçais, logo ficou empolgado com o idealismo e cultura política dos comunistas. Embora o partido já atuasse na cidade, só tomou conhecimento da atuação dos comunistas depois que foi contratado pelo Banco do Brasil. Apesar de dar grande importância à formação teórica dos membros do Partido Comunista Brasileiro, PCB, e minimizar a sua formação pessoal em termos de educação política, ele reconhece que logo houve uma sintonia de propósitos, pois os ideais dos militantes iam ao encontro do que ele aprendia na ação prática entre os trabalhadores da companhia de café, onde teve o seu primeiro emprego e batismo sindical, quando participou decisivamente na substituição de um presidente sério, porém conformista e despreparado, por outro com mais capacidade de defender os interesses dos trabalhadores. No banco circulava o jornal “Novos Rumos”, veículo do PCB. Por conta disso e das conversas, logo tomou conhecimento da ação política do partido. Mas era de circulação restrita, quase que exclusivamente destinado aos militantes do partido, aos simpatizantes e às pessoas de confiança. O trabalho era discreto, mas não fechado. Apesar da discrição na ação partidária, Victor avalia que a influência do PCB era muito grande no movimento sindical, e se fazia com maior nitidez entre os trabalhadores de algumas categorias profissionais, como os bancários, os estivadores, os ensacadores e os operários da construção civil.
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Depois de ingressar no Banco do Brasil, em 1957, por concurso público, entrou em contato com pessoas que se diziam membros do PCB. Esses indivíduos já atuavam no movimento social há bastante tempo, em Paranaguá, mas ele desconhecia essa provável ligação com o Partido Comunista. Essas pessoas tiveram papel decisivo, por conta de uma firme militância no movimento sindical, para derrotar o presidente do Sindicato dos Ensacadores, anterior à presidência de Nilton Abel de Lima, o maior líder da categoria em toda a história de luta desses bravos trabalhadores. O presidente não era apenas um dirigente pelego, era uma pessoa de formação reacionária, anticomunista ferrenho. Assim, os comunistas tinham motivos para querer tirá-lo da direção sindical. O presidente derrotado mais tarde tornou-se policial. Embora suponha que várias pessoas pertenciam ao partido, Victor ignora quem dirigia o PCB em Paranaguá. Não deve surpreender que conheça tão pouco da estrutura, da direção do partido em Paranaguá, pois nunca foi comunista. Por modéstia e admirar sinceramente a formação teórica, diz que não tem preparo para entrar no partido. Mesmo não sendo comunista, não compreendendo os fundamentos teóricos da ditadura do proletariado, está disposto a sacrificar certos preceitos das liberdades burguesas se isso for necessário para melhorar a vida do povo. A democracia é um conceito vazio, no seu entendimento, pois constata pela observação e leituras políticas que, na verdade, os mandatos são comprados, mesmo antes das convenções da maioria dos partidos. Assim, chega à conclusão óbvia de que, pelo atual sistema eleitoral, ao povo só é dado o direito de votar nos já escolhidos e/ ou comprados, em sua maioria absoluta. Então, pergunta: onde está a liberdade, a democracia? Qual a importância da liberdade, se existem desempregados, crianças abandonadas nas ruas, no vício, na criminalidade, sem boas escolas, pessoas passando fome, sem assistência médica de qualidade, governos corruptos desde 1500? Victor, fiel à sua história, não tem dúvidas de que “o povo deve continuar ocupando as ruas até arrumar a casa, dentre outras ações sempre pacíficas”.
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Nilton Abel de Lima, presidente do Sindicato dos Carregadores e Ensacadores de Café de Paranaguá, inaugura o armazem do SAPS, instalado nas dependências do Porto de Paranaguá, em 1963. Ao lado dele, o ministro do Trabalho, Amauri Silva
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Assim, para ele, o socialismo com todos os seus defeitos ainda atende muito mais aos interesses dos trabalhadores do que o capitalismo. Se fosse possível dar um rótulo, poderia-se defini-lo como um social democrata autêntico. A sua recusa, porém, de submeter à autoridade possibilita que seja visto como um anarquista. Um anarquista conservador. “Não sou um intelectual, não sou um teórico, não li os livros que eles leram, quer dizer, não li Marx, Engels, Mao, Gramsci, Prestes, Amazonas, Gorender, sou apenas um sindicalista”. Na verdade, os livros que Victor leu, deu atenção, são os de André Luis, psicografados por Chico Xavier, um homem de elevada estatura moral, e do doutrinador Alan Kardec. Sempre esteve ligado ao cristianismo, na acepção do espiritismo difundido no Brasil por Chico Xavier. Rende respeito e homenagens ao espírito desencarnado do Dr. Leocádio José Correia, ser humano (ele insiste em grafar “entidade” em lugar de “ser humano, por conta do espírito do Dr. Leocádio não estar encarnado em um corpo físico e atuar no plano terreno por meio de médiuns) de enorme prestígio no meio espírita. Mesmo não sendo do partido e nunca tendo sido convidado a filiar-se ao PCB, convite que teria com gentileza recusado, sempre teve com os comunistas uma relação de mútua confiança. A confiança recíproca decorre da percepção de que as lutas que ele considerava justas também eram as batalhas cotidianas dos militantes do partido que ele conhecia em Paranaguá. Apenas os seus adversários o estigmatizam às vezes chamando-o de Vitinho, comunista. Victor, com elegância, rebate esse carimbo e descaracteriza a intenção de ofender: “eu não tenho capacidade de ser comunista”. Outro motivo para o trabalho conjunto com os comunistas eram os valores éticos e morais que ambas as partes defendiam na prática. Reconhece que poderia ter resolvido todos os problemas dos seus familiares a partir do momento em que assumiu a presidência do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense, fundado no dia 1.° de maio de 1962. Nessa época, já era presidente do Sindicato dos Bancários em Paranaguá. Victor faz questão de destacar que o Fó-
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rum Sindical foi objeto de dissertação de mestrado, em 1988, no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná: “Fórum Sindical em Paranaguá: tecendo um princípio”, de autoria de Valéria Villa Verde, e orientada pela professora Dr.ª Oksana Boruszenko. A banca foi composta pela professora Oksana, presidida pelo professor Claudio Batalha, da Unicamp, e pela professora Silvia Maria de Araújo, do Departamento de Ciências Sociais da UFPR. Avalia que chegou à presidência do Sindicato por ser muito amigo dos colegas de banco e por ter assumido muitas vezes a defesa dos funcionários. Por conta disso, foi lembrado para ser candidato. Também atribui importância às atividades sociais que desenvolvia na cidade e o fato de ter sido um esportista, pois foi jogador de futebol de gramado e de salão, em times de primeira divisão de Paranaguá por muitos anos. Na esfera esportiva, jogou no time de futebol de salão da AABB, que tinha uma excelente equipe. Considera que em Paranaguá se jogava o melhor futebol de salão do Brasil naquela época. Pela contundência da declaração, reconhece: “sei que muita gente vai duvidar, mas é a mais pura verdade”. Para corroborar a avaliação conta, como exemplo, que o time da AABB fez uma partida no Rio de Janeiro contra a equipe do Tijucas e só não venceu, perdeu por um a zero, porque a quadra era de taco liso e a equipe de Paranaguá não tinha o tênis adequado para esse tipo de piso. Os jogadores quase não conseguiam ficar em pé para poder desenvolver todo o talento da equipe. Para enfatizar essa justificativa para a magra derrota no campo adversário e da adversidade imposta pela quadra, chama como prova o fato de que os times de Curitiba nunca levavam a melhor quando jogavam contra as equipes de Paranaguá. Santa Rita, Raul Veiga e Bamerica também eram poderosas equipes. Paranaguá era um celeiro de excelentes craques de futebol de salão naquela época. Victor quer fazer justiça ao registrar que o precursor do futebol de salão em Paranaguá foi um português, “grande desportista, de excelente caráter, João Freitas de Oliveira, que vindo do Rio de
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Acima, Valéria Villa Verde durante apresentação de sua dissertação: “Fórum Sindical de Paranaguá: tecendo um princípio”, na UFPR, em 1988
Abaixo, a banca que examinou a dissertação de mestrado da professora Valéria Villa Verde
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Janeiro para residir em Paranaguá trouxe do América Futebol Clube as regras do futebol de salão”. Aproveitando o relato desse fato esportivo, cabe registrar que na sua gestão como presidente da AABB de Paranaguá, a associação participou de todas as modalidades de esportes praticadas na cidade: futebol de gramado e de salão, vôlei e basquete. Promoveu vários eventos culturais, realizou bailes abrilhantados por músicos e cantores de Curitiba e Rio de Janeiro. Victor foi cinco vezes campeão em dois anos. Campeão pelo segundo quadro e bicampeão pelo primeiro quadro de futebol de campo gramado pelo Paranaguá Futebol Clube; e bicampeão de futebol de salão pela AABB. Jogava no campo de dia e no salão à noite. Criou a liga de futebol juvenil de Paranaguá, da qual foi presidente, tendo por secretário Eurípedes Vila Branco. A liga organizou dois campeonatos, sendo que o primeiro foi disputado com os jogadores descalços. Muitos deles vieram a jogar na primeira divisão de futebol de Paranaguá. Alguns entraram para os times profissionais de Rio Branco e Seleto. Aquela liga foi idealizada e presidida por Victor quando tinha apenas 13 anos de idade. Esse espírito de liderança contribuiu mais tarde para ser escolhido candidato a presidente do Sindicato dos Bancários e eleito numa categoria com forte participação política de membros do PCB. Chegou à presidência pela concordância de duas alas que tinham fundado a entidade: uma conservadora, que tinha um vezo anticomunista, mas que respeitava o jogo democrático; e outra liderada pelos militantes do PCB, que convivia com os seus adversários ideológicos respeitando as suas posições. As lideranças dessas duas alas não tinham interesse em disputar a presidência e rachar o sindicato. O presidente Aramis Teixeira, da ala conservadora, não queria continuar na direção. Propôs que o candidato fosse o Victor. Jahyr Freire, da ala comunista, topou. Dessa forma, foi candidato e se elegeu presidente. Tanto é verdade que conseguia conciliar a ala conservadora e a revolucionária, que a eleição teve apenas uma chapa inscrita para disputar
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Acima, a visita de Valéria Villa Verde ao Núcleo Regional da Secretaria do Trabalho do Estado do Paraná, em Paranaguá, para tomada de depoimentos para sua dissertação de mestrado
Abaixo, Clarício Correia, presidente da União dos Portuários de Paranaguá e secretário do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense em depoimento a Valéria, em 06 de setembro de1987
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Acima, a equipe da AABB que venceu o Sertaneja, por 1 a 0, em junho de 1959. A partida foi preliminar Ă disputa em que o Rio Branco venceu o Guarani por 3 a 1
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Abaixo, a equipe de futsal da AABB que venceu a A.A. Alvorada de Curitiba por 5 a 4, em junho de 1960
Acima, a equipe de futebol de salão da AABB que representou Paranaguá e saiu vice-campeã num torneio estadual, realizado na cidade de Londrina (campeã). Nesta campanha, a equipe venceu a seleção de Curitiba por 5 a 2
Abaixo, a Seleção Bancária campeã do torneio realizado no campo do Seleto, em comemoração ao aniversário da cidade, em 29 de julho de 60
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Acima, a equipe da AABB de futebol em foto tirada em 30 de maio de 1958
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Abaixo, a equipe da AABB que empatou com o Cascudo Rio Branco em 1 a 1, em 24 de maio de 1959
Acima, time de futsal da AABB campeão da Taça Hugo Correa, em setembro de 1958. Abaixo, equipe de futebol de salão da AABB/Paranaguá que disputou o torneio estadual em Londrina
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Acima, a equipe de futsal da AABB de 1960
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Abaixo, foto antes da partida entre o Santa Rita e a AABB que terminou empatada em 2 a 2
Acima, a equipe do Hercules que venceu o Alvorada (Curitiba), por 2 a 0, em 11 de junho de 1960
Abaixo, equipe que disputou a Semana da Marinha , em 06 de dezembro de 1961
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os votos dos eleitores, no ano de 1959. Foi reeleito também com chapa única. Para presidir o sindicato, Victor não foi liberado pelo Banco do Brasil. Além das questões sindicais, tinha que dar conta dos seus afazeres. Para exercer a função nada recebia, ao contrário, tinha que tirar dinheiro do bolso. Mesmo face a essas adversidades, assumiu o cargo na sua plenitude. Gozando da confiança de duas alas adversárias, Victor começou a escalada rumo à glória sindical, ao sofrimento pessoal e à perseguição política. A associação dos bancários no sindicato era grande, mas a categoria era pequena por conta dos poucos bancos instalados na cidade. Assim, a receita era quase toda do imposto sindical e não da taxa associativa. Quando aprovou em assembleia a construção da sede própria em um terreno já pertencente ao sindicato, adquirido na gestão do Victor, teve que recorrer a um empréstimo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários, IAPB, do Paraná, cujo delegado era Otto Bracarense Costa, que foi um dos maiores líderes da classe dos bancários. A bem da verdade, esse terreno foi adquirido com o dinheiro arrecadado por meio de um Livro Ouro, passado por uma comissão de bancários nas firmas de café, com Victor na presidência do sindicato. Quando ocorreu o golpe de 1964, quase cinquenta por cento da obra estava pronta. Pelo que se comenta entre os bancários da época, a junta interventora teria trocado o imóvel inacabado por uma ou duas salas localizadas no Palácio do Café, por interferência do general interventor federal na prefeitura, que substituiu o prefeito Brasílio Abud, cassado pelo golpe de estado. A partir de 1.º de maio de 1962 já estava liderando o Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense. Antes da organização do Fórum Sindical, a luta trabalhista era um assunto de cada categoria. O sindicato tratava apenas dos assuntos da sua corporação. Poucos se conheciam entre os dirigentes e nada sabiam dos problemas que afetavam as demais categorias. Não compreendiam
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os interesses mais gerais da classe trabalhadora, lidavam apenas com os assuntos econômicos dos membros da própria categoria. Eram dirigentes, ressalvadas algumas exceções, sem capacidade de elaboração política e para liderar lutas que fossem além das demandas trabalhistas e da rotina sindical. Apesar dessas limitações, com a semente do Fórum Sindical floresceu um combativo movimento sindical em Paranaguá. A conjuntura política da época viraria o movimento na cidade de cabeça para baixo e transformaria o Victor, seu condutor, na maior liderança sindical que o Paraná já havia produzido. O movimento trabalhista e a ascensão do vice-presidente João Goulart à presidência da República abriram as porteiras para o conflito entre a esquerda e direita, entre os que queriam manter tudo como estava e os que aspiravam e lutavam por reformas. No fogo cruzado, entre os combatentes da ordem vigente e os soldados das mudanças, surgiu em Paranaguá a ideia de se formar uma associação não sindical entre todos os sindicatos para encaminhar as demandas que não fossem estritamente da alçada da categoria profissional. Essa ideia foi trazida por pessoas vindas de Santos, que passaram a fazer assembleias para defender a proposta de montar um fórum de entidades sindicais em Paranaguá. Victor passou a participar das reuniões. Do plenário, via o debate correr na concorrida reunião, onde se sobressaíam os trabalhadores da orla marítima, da construção civil e os ensacadores, inclusive orientados pelo Partidão. Não demorou a surgir a intervenção de Victor. Para encurtar o assunto, ir diretamente ao ponto que o leitor já sabe que vai chegar, ele foi eleito por aclamação presidente do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense, em assembleia superlotada de trabalhadores de todas as categorias, realizada no Sindicato dos Estivadores. Uma entidade que Victor deu dimensão histórica, mas cuja ideia não tem certeza se veio de Santos ou de Curitiba. Victor, porém, dá crédito à declaração de João Pessoa da Costa, o Janguito, associado, na época, do Sindicato dos Condutores Autônomos de Paranaguá, de
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Acima, trabalhadores reunidos em assembleia do F贸rum Sindical de Debates do Litoral Paranaense no dia 28 de janeiro de 1961
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Abaixo, assembleia do F贸rum Sindical de Debates em favor dos motoristas aut么nomos
Acima, o presidente do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense, Victor Horácio de Souza Costa, fala aos trabalhadores no dia 01 de maio de 1962
Abaixo, assembleia geral do Fórum Sindical de Debates sobre a movimentação de carga no Porto de Paranaguá e a situação dos motoristas, em 1962
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Acima, desfile dos trabalhadores de Paranaguá, no dia 1.º de maio de 1962
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Abaixo, Sra. Rio Apa faz oração antes do início da reunião do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense no dia 1.º de maio de 1962
Acima: na mesa, no canto direito, estรก o presidente do Sindicato da Estiva, Antonio Maia, durante a entrega de faixas ao time campeรฃo de 1959
Abaixo, o encontro histรณrico dos sindicalistas Luiz Inรกcio Lula da Silva e Nilton Abel de Lima
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que a ideia lhe foi passada por um conferente não identificado, juntamente com cópia dos estatutos do Fórum Sindical de Santos, e logo a propagou, resultando em assembleias conjuntas de associados de sindicatos para fundarem um fórum de entidades sindicais do litoral paranaense, em Paranaguá. No entanto, Victor mantém convicção de que o fórum foi pensado e organizado pelo Partidão, porém, comandado por um grande líder operário, o estivador João Batista Teixeira. Confessa que não sabia o rabo de foguete que estava pegando, mas logo avisa que não tinha medo de fantasma. A tarefa não o amedrontava e enfrentou o problema com a maior naturalidade. A entidade está constituída, o presidente precisa mostrar serviço. Isso não abalou a coragem de Victor. Problemas em Paranaguá eram inumeráveis à época. Faltava apenas alguém para pegar o touro à unha. O primeiro desafio que requeria liderança e coragem, além do processo de formação do Fórum Sindical, logo apareceu. Um tremendo rabo de foguete. O problema se localizava na movimentação do café dos armazéns para o Porto de Paranaguá, por meio de caminhões. A maioria das empresas que prestava serviços de transportes eram fantasmas. Essas empresas conseguiam trabalho por meio de esquemas escusos junto aos dirigentes das empresas armazenadoras, segundo comentários. O transporte de café de uma empresa à outra não era um serviço rentável, mas do armazém para o porto, o frete era compensador, dava um bom dinheiro para o transportador. O Sindicato dos Motoristas Autônomos tinha uma cooperativa anexa ao sindicato. Os caminhões dos associados do Sindicato e da Cooperativa dos Motoristas estavam com as carrocerias quebradas, sem faróis, pneus carecas, um verdadeiro desastre. As empresas fantasmas ficavam com todo o transporte, pois tinham esquemas fraudulentos com os armazéns. Só quando havia muito serviço é que sobrava algum frete para os caminhões da Cooperativa e do Sindicato dos Motoristas Autônomos. Era preciso dar um jeito na situação. O Fórum Sindical entrou na parada. Venceu. Victor pagaria muito caro por essa ousadia.
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Os motoristas da cooperativa venceram a luta, mas não foi um processo simples. Precisou de outras estratégias, a participação de outras cabeças e de outros líderes combativos, como Antonio Maia, presidente do Sindicato da Estiva, João Batista Teixeira, Nilton Abel de Lima, presidente do Sindicato de Carregadores e Ensacadores de Café, e muitos outros. “O Nilton era um negro alto, forte e que tinha uma autoridade sem tamanho no meio da categoria dos ensacadores. Abel de Lima assumiu a causa da cooperativa. Para quem vinha fugido do Acre, da escravidão dos seringais, era uma luta tranquila”, Victor avalia. Para encurtar a conversa, com o apoio do Fórum Sindical, os ensacadores decidiram e fincaram o pé: “para empresa fantasma não carregamos mais nenhum saco de café”. Na luta, passaram a se unir trabalhadores que não se falavam, sindicalistas que procuravam no máximo fazer reivindicações para a sua categoria. Uniam-se e praticavam a solidariedade, não no discurso, apenas, mas na prática. A adesão dos ensacadores à reivindicação dos motoristas autônomos já era suficiente para deixar os empresários de cabelo em pé. Victor, no entanto, partiu para ganhar os corações e as mentes da população de Paranaguá. Passou a ser fonte do jornal “Última Hora”, do jornalista Cícero Cattani. Quando o periódico chegava a Paranaguá, os empresários ficavam preocupados. Victor elogia Cícero, “um cara muito inteligente”. As informações que ele recebia eram editadas com isenção, sem distorções. Avalia que o jornal exerceu um papel muito importante. Um dia, chega uma informação: Cícero Cattani não era mais chefe de redação do “Última Hora”, pois tinha se transferido para Curitiba. O pessoal do jornal quis saber se Victor conhecia alguém capaz de substituir Cícero. Ele diz que sentiu um frio na barriga. Imediatamente, lembrou-se de Miguel Salomão. Ressalta suas qualidades: um texto impecável, uma inteligência brilhante. A partir dessa sugestão, Miguel Salomão, que dava expediente no Banco do Brasil durante o dia, passou a editar o “Última Hora” em Paranaguá, à noite.
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Assim era o poder do Victor naqueles dias: era capaz de colocar um colega do Banco do Brasil para dirigir o jornal que era estratégico para as atividades sindicais e políticas que aconteciam em Paranaguá naqueles dias memoráveis no início dos anos de 1960. Miguel Salomão não era comunista, mas tinha ideias avançadas, no parecer de Victor. Nessa parte da gravação, faz questão de terminar com a questão dos motoristas autônomos. “Então a coisa estava uma ebulição tão grande que não precisou nem a gente mandar a turma parar. Nas assembleias o assunto era esse: vamos acabar com esse negócio de empresa fantasma tomar frete dos trabalhadores cooperados”. Chegava o caminhão para ser carregado, se fosse de empresa, os ensacadores eram incisivos: “não é da cooperativa, nós não carregamos”. E não carregavam. Os trabalhadores chegaram a cercar o Centro de Comércio do Café e contaram com a ajuda, com o importantíssimo apoio inclusive do Padre Gustavo Pereira, sediado em Curitiba, contrariando orientação do seu superior Dom Manuel da Silveira d’Elboux. O volume do movimento em Paranaguá atingiu tal monta e abalou os interesses de pessoas secularmente exploradoras dos trabalhadores, que Victor foi chamado a Curitiba. Enfatiza que foi um convite, não uma convocação. Jesus da Costa Paz, Antonio Maia, Clarício Correia, Cezinando Benkendors, Aroldi Armstrong, juntamente com o Victor, compunham a comitiva que veio a Curitiba para falar com o governador. Recebeu do governador um tratamento cordial e amistoso. Já estava acostumado a ser bem tratado pelo secretário do Trabalho, Aristides Simão, pessoa equilibrada, que não era de fazer ameaças, mas do governador não esperavam tanta atenção e disposição para entender os problemas dos trabalhadores no Porto de Paranaguá. O governador quis saber o que estava acontecendo. Victor contou o problema e ponderou: “o senhor peça para as empresas trazerem o contrato social, o registro na Junta Comercial, e ficará provado que são todas fantasmas. Não pagam impostos. Conseguem
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trabalho por meio de comissões que pagam, de propinas, aos fiéis de armazéns e aos gerentes de empresas, para deixarem os motoristas autônomos de lado, sem trabalho, sem ter como dar de comer para os filhos, sem recursos para arrumar os caminhões, ferramentas de trabalho desses trabalhadores”. “O sindicato e a cooperativa, legalmente constituídos, estão padecendo sem serviço, porque não dão propina para ninguém, não pagam comissão, não se utilizam da prática do suborno”. Após ouvir os argumentos apresentados por Victor, o governador decidiu que no Porto só entrava caminhão da cooperativa. Acabou com as empresas fantasmas. O governador, ao resolver o problema entre os motoristas cooperados e as empresas fantasmas, cria sem querer uma dificuldade entre os próprios trabalhadores. O presidente do Sindicato dos Motoristas Profissionais, Eugênio da Silva Neves, o Zora, amigo de Victor e dirigente combativo, perguntou: “como ficam os motoristas que são empregados das empresas fantasmas?” O acordo indiretamente os colocava fora do mercado, pois trabalhavam contratados pelas empresas de transportes que operavam no porto. Na medida em que elas não mais podiam fazer frete, ele passou a ser uma exclusividade da cooperativa, do Sindicato dos Motoristas Autônomos. O problema foi facilmente resolvido: toda empresa fantasma podia entrar no rodízio do Sindicato dos Autônomos e trabalhar. Toda a resistência foi quebrada e o Sindicato dos Motoristas Autônomos e Cooperativa tornaram-se uma potência em Paranaguá. Victor não faz uma avaliação de Ney Braga que se tornou um quadro da ditadura, mas tem uma lembrança positiva do governador da época da democracia, de antes do golpe de Estado. Tinha uma postura de respeito para com os trabalhadores e com os movimentos sociais, pois era ligado à democracia cristã. Victor se lembra que até esteve em uma convenção do Partido Democrata Cristão, PDC, em Curitiba, a convite do Dr. Miranda Ramos, superintendente do Porto de Paranaguá na época. Lembra-se que esteve presente nessa con-
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venção Eduardo Nicanor Frei Montalva, que foi presidente do Chile. Apesar da combatividade, das lutas, dos problemas que criavam para os patrões em Paranaguá, o movimento mantinha um bom relacionamento com o porto e com o governo. O Dr. Arthur Miranda Ramos, engenheiro, era uma excelente pessoa, homem simples, sempre colaborou com o movimento sindical. A admiração por ele é tal que o Victor pede para registrar que era um homem honesto. “Por esse eu ponho a mão no fogo. Morreu pobre”. Esse registro não prejudica constatação de que tão logo se instalou o regime militar ele mudou de postura, assim como o governador Ney Braga. A pressão dos militares os fez mudar de lado, passar a apoiar o regime. Não tiveram força e não puderam resistir às vantagens de ser governo, mudando de lado e de postura. Apesar dessa crítica, Victor não deixa de ser generoso com Ney Braga e o engenheiro Miranda Ramos. Dá a eles o crédito do qual são merecedores. Atitude típica dessa figura que não tem ódio no coração e honestamente julga os atos das pessoas na devida época, sem nunca as condenar, sem as destruir enquanto seres humanos. Esse convite para irem ao Palácio do Governo falar com o governador é um indicador do tamanho do problema que os trabalhadores estavam criando em Paranaguá, após a organização do Fórum Sindical. Uma entidade que construiu a unidade da classe trabalhadora em Paranaguá naquele curto período de tempo em que pôde funcionar livremente, de 1.° de maio de 1962 a 1.° de abril de 1964. Instado a puxar pela memória, esta narrativa é a transcrição do que Victor vai se lembrando, na medida em que a conversa anda e o tempo passa. O tempo passa é uma inverdade, pois bom de conversa, não deixa os ouvintes sentirem que as horas avançam. Sem vaidade, tenta a todo instante minimizar a sua importância, ainda que o Fórum Sindical tenha sido pensado pelo Partidão, e se tornado uma entidade de grande voz política pela ação de um grande contingente de pessoas e, entre elas, Victor foi a maior, a mais lúcida e combativa. Ele nega essa avaliação, aponta outros companheiros, mas no íntimo sabe que a direita tinha motivos para fazer dele o úni-
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co dirigente sindical a perder o emprego no Banco do Brasil no Paraná, mesmo sabendo que ele não fazia parte do PCB. Aliás, dessa perseguição política na agência do Banco do Brasil em Paranaguá, não escaparam também das medidas punitivas em suas carreiras, alguns até com prisões, por atividades sindicais, Osvaldo Barbosa Santos, Diógenes Leal de Oliveira, Nelson da Silva Cabral, Miguel Salomão, Nilande Dutra dos Santos, Celso Manoel da Costa e Adilson de Souza Pinheiro, os dois últimos mencionados, irmão e primo do Victor, respectivamente. Victor tem ainda, além de irmão e primos, uma irmã, dona Elzie Mari Chapaval, casada com o empresário e advogado Dr. Raul Maia Chapaval, e um grupo de sobrinhos médicos, empresários e autônomos nas áreas de informática, comércio exterior, estudantes e donas de casa. Há sobrinhos que lhe tratam carinhosamente de “Padrinho” e outros de “Vovô”. Outras pessoas foram presas e perseguidas por motivos políticos em Paranaguá, que teve, inclusive, cassado o mandato do prefeito Brasílio Abud, comerciante altamente conceituado e um dos maiores líderes políticos da história de Paranaguá. Por oportuno, convém registrar que no mesmo dia em que reassumiu as suas funções no Banco do Brasil, após ter sido colocado em liberdade, Victor recebeu a surpreendente e honrosa visita do general Agostinho Pereira, num maravilhoso e destemido gesto solidário, que relembra emocionado. Tratava-se de um patriota e valoroso militar reformado do Exército Nacional, que quando capitão foi perseguido político pela ditadura de Getúlio Vargas, e que manteve até o final da vida os mesmos ideais de glorioso passado. Destaca ainda que, de igual modo, ficou sensibilizado com o ato de coragem de seu colega de banco e hoje médico, Dr. Cetímio Vieira Zagábria, que, de imediato à sua demissão, visitou-o em casa, mesmo correndo sério risco de ser preso como subversivo. Aliás, isto acabou acontecendo em ocasião posterior, por sua militância política e sindical. Então, relembra que o Fórum Sindical vivia permanentemente em assembleia, com as portas abertas. Até o capitão Meireles,
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da polícia, participou de uma reunião, mesmo que os dirigentes e os trabalhadores desconfiassem que o militar era do Serviço de Informação da Segurança Pública do Estado do Paraná. O Fórum Sindical ficou em muita evidência pela lutas que travava e também porque o governo de Jango apoiava as justas reivindicações dos movimentos sociais. É grande a deferência de Victor em relação ao presidente João Goulart. Por isso, os trabalhadores aproveitaram para se organizar, visando conquistas para melhorar as suas vidas. Nesse período de grande avanço do movimento social no Brasil, durante o Governo Jango, o Fórum Sindical estava sempre reunido. Até os sindicatos menores, de categorias com menor poder, ou em fase de organização, entravam na luta embalados pelas conquistas e pela força que tinham com a união, com a luta conjunta. O Fórum Sindical contava também com a valiosa participação do representante estudantil Maurício Victor de Souza, jovem idealista e brilhante orador, estabelecendo um elo imbatível entre estudantes e trabalhadores, importantíssimo até os dias atuais na defesa dos ideais democráticos da humanidade. José Vicente Elias era outro apoiador importante. Para corroborar essa ideia da força da união, cita o caso do Sindicato dos Auxiliares da Administração do Café, categoria a que pertenceu, quando entrou no mercado de trabalho. Essa entidade com pouco poder sindical também resolveu se levantar e apresentou pela primeira vez as suas justas e esquecidas reivindicações. Se bem que, como deve se lembrar o atento leitor, Victor já tinha feito uma pequena revolução no sindicato, trocando o presidente, nos idos da década de 1950. As reivindicações eram dirigidas ao Centro de Comércio do Café, mas a entidade não tinha poderes para celebrar acordo coletivo do trabalho. Mas assinavam e cumpriam porque senão o pessoal entrava em greve. O sindicato era assessorado por um advogado progressista e muito competente, o Dr. José Martins do Carmo. Assim, houve uma parada geral dos trabalhadores, em todas as empresas que comercializavam café. O Fórum Sindical acompa-
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nha, apoia e estimula o movimento. De repente, numa assembleia dos funcionários do comércio do café, apoiada pelo Fórum Sindical e realizada no Sindicato dos Estivadores, aparece o capitão dos Portos. Apresentou-se como o porta-voz de uma contraproposta da diretoria do Centro do Comércio do Café, que estava reunida no Palácio do Café. O capitão dos Portos apresentou a contraproposta na assembleia e se retirou. Atento, Victor achou estranha a intervenção daquela autoridade. O assunto não era da alçada dele. A greve era dos trabalhadores da administração do comércio do café. Victor conversou com o advogado Dr. José Martins do Carmo, com Nilton Pinheiro Pereira, presidente do sindicato, e ponderou que estava acontecendo uma coisa muito estranha. Disse para o pessoal não suspender a greve. Foi atendido. Falou para o advogado e para o presidente do sindicato: “toquem a assembleia, até a gente pegar a palavra da diretoria do Centro do Comércio do Café”, que ainda estava reunida naquela noite. Os empresários desmentiram o capitão dos Portos, cujo nome Victor não se recorda, mas faz questão de ressalvar que não se tratava do capitão Benedito Jordão de Andrade. A negação não convence Victor até hoje. Ele tem certeza de que era tudo combinado para esvaziar a greve, para desmoralizar o sindicato e o Fórum Sindical, arrefecer a disposição dos trabalhadores de acreditarem na greve. A partir desse fato, os empresários tiveram a certeza de que os trabalhadores estavam organizados e dispostos mesmo a ir à greve. Por consequência, concordaram em atender as reivindicações dos trabalhadores. Foi uma grande, uma memorável vitória. Outro evento de grande repercussão foi a greve de solidariedade ao movimento paredista dos bancários, uma paralisação de âmbito estadual. Para garantir a entrada dos fura-greve, o governador Ney Braga mandou o Secretário da Segurança Pública, general Ítalo Conti, colocar a polícia na porta dos bancos em Curitiba. Na medida em que mais bancários furavam a greve, o movimento
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ia perdendo força e estava na iminência de terminar sem nenhuma conquista e uma inesquecível derrota. Na Federação dos Bancários, Victor deu a ideia da greve de solidariedade. Paranaguá parou, menos farmácias e hospitais. O governo assinou um acordo com os funcionários do Banco do Estado. Os demais bancos seguiram o governo e fizeram acordo com os trabalhadores. Entre os bancários havia aqueles que defendiam as ideias da direita. No entanto, fiel ao seu estilo, reconhece que estavam no seu direito de defenderem as suas ideias e seus valores. No auge da Guerra Fria, tinham a cabeça feita pela propaganda norte-americana. Assim, esses trabalhadores e dirigentes sindicais aderiram ao propósito de massacrar a esquerda e destituir os governantes que não atendessem aos interesses norte-americanos, tanto os governos democráticos quanto os ditatoriais. Ele chega ao ponto que sempre temeu em tratar, pelo risco de ser mal compreendido. Se não fosse um fato histórico, ele não tocaria no assunto. Mas não tem jeito. Não há como fugir da questão da Igreja Católica no processo da derrubada do Jango. Todos sabem, até os paralelepípedos das ruas de Paranaguá, que a igreja estava dividida e uma parte do clero aderiu aos esforços da direita para pôr fim ao movimento social, em consequência da Guerra Fria. Antes de fazer a sua avaliação, de registrar o que viu, faz questão de expor o entendimento que tem do assunto. Para ele, a igreja como instituição é sagrada, é uma das representantes de Cristo na Terra. Mas o clero é formado por pessoas humanas, não tem os poderes de Deus, estão sujeitos ao erro, a se renderem aos interesses terrenos. É nessa situação que avalia o papel de uma parte dos sacerdotes católicos em Paranaguá, que tiveram uma trajetória semelhante em quase todo o Brasil. Assim, encontrou numa ala do clero um adversário poderoso, principalmente dos religiosos vindos dos Estados Unidos. A igreja disputava a direção política do movimento social e procurava influir na opinião da população de Paranaguá. Para isso, tinha uma rádio
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como instrumento para difundir as suas ideias e atrair simpatizantes para a sua causa, que naquele momento estava mais vinculada aos ideais da direita política. No entanto, não obteve sucesso, porque o movimento social tinha apoio dos trabalhadores e da população. Era uma luta exercida dentro da democracia. Como diz: “a população e o trabalhador estavam com a gente e nada era feito escondido, tudo era feito de forma aberta”. O movimento era grande e Victor era o maior líder sindical entre todos os dirigentes. Diz que não fazia parte de nenhum partido político, nem nunca foi convidado a participar. Mas não teria entrado, ainda que entenda que todo brasileiro deva participar da vida política, mas nunca soube o que fazer num partido político. Por pensar de forma independente e por sua formação humanista, Victor logo se empolgou com a Encíclica Mater e Magistra, do Papa João XXIII, publicada em 15 de maio de 1961, um marco importante na doutrina social da igreja, enfatiza. Em consequência, cotizou-se com alguns colegas e mandou imprimir grande número de exemplares na gráfica do Sr. João, localizada na parte térrea de um dos velhos casarões da Rua da Praia, para distribuição gratuita. Por isso, Victor não estranha que em alguns lugares do país várias pessoas tenham sido perseguidas por ocasião do Golpe Militar de 1964, porque a direita retrógrada e golpista considerava a Encíclica um documento subversivo. Victor finaliza: “Pasmem!” Muitas pessoas do seu círculo de amizade avaliam que se não fosse o golpe, teria sido prefeito de Paranaguá. Ele exclui toda e qualquer possibilidade disto ter acontecido. Ele jamais seria candidato. Não queria ser candidato naquele tempo e continua hoje convencido que esse era o caminho correto a seguir naquela época. Assume-se com orgulho apenas um sindicalista. Sempre quis ser somente um líder sindical, nada mais. Por conta dessa recusa de participar da vida partidária, naturalmente surge a dúvida: quem o orientava na direção do movimento, quem dava o rumo político das ações de massas? Revela que se orientava pelo que ouvia, pelas ideias que trocava com a direção
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dos bancários em Curitiba, nos congressos da categoria, nos boletins, pela imprensa, pelo jornal “Última Hora”. Victor destaca os nomes dos principais líderes dos bancários do Paraná com eficiente e combativa atuação à frente da classe: Otto Bracarense Costa, Wilson Chedid, Fernando Tristão Fernandes, Nilo Izidoro Biazetto, Laélio de Andrade, Mario Lacombe, Décio Francisco de Freitas, Antonio Batista Filho, Wilson Previde, Jahyr Freire, Italino Perufo, Wilson Marcelino, Nereu João Lagos, João do Rosário Fontoura, Antonio Simon Sobrinho, Wladimir Bruno Tucunduva, Ruy Schimmelpjeng Sampaio, Érico Spoganicz, Ari Bracarense Costa, José Pedron e Silva Filho, Almerj Medeiros, Loné Borges de Sá, Antonio Alves de Castro, Eloy Rebello, João Bosco de Figueiredo, dentre tantos outros. Um fato é deveras surpreendente. Entre tantos intelectuais com quem conviveu, reconhece em Osvaldo Barbosa Santos o seu principal interlocutor político. Tece sinceros elogios a ele: pessoa que tem na conta de muito culto, leitor voraz da literatura marxista, quadro preparado, pessoa muito correta. Um grande amigo. Barbosa Santos era técnico e jogador do time de futebol de salão em que Victor jogava. Se o leitor está surpreso com essas revelações, pare, tome fôlego e acredite. Osvaldo Barbosa Santos era o contínuo do Banco. Não há ironia nessa frase, quer-se apenas chamar a atenção, apontar a singeleza e a humildade dessas duas personagens. Não teve a confirmação da suposição de que Barbosa Santos era militante do PCB. Os amigos avaliam que ele tinha condições de ser prefeito de Paranaguá. Facilmente seria eleito deputado. Mas isso não se confirmou por conta da cassação política de fato e pelo que já declarou, como já foi registrado anteriormente. Isso nunca aconteceria porque ele jamais iria se candidatar. Não desdenha do prestígio que um político goza, nem minimiza o poder da função pública, seja no Parlamento, seja no Executivo. Nunca declarou, mas pelo que deixa transparecer nas conversas informais, considera a política uma dura atividade, porque quem entra nela tem que dançar conforme a música. Muito zeloso
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Osvaldo Barbosa Santos, esposa e filhos
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da sua independência e das suas convicções, tem certeza que teria de transigir, o que nunca esteve disposto a fazer. Negocia sempre, mas nunca recua dos seus princípios. Negociar para ele é quase que sinônimo de convencer o interlocutor, de trazê-lo para o campo das ideias que defende. Ainda hoje está convencido que poderia fazer mais pelos trabalhadores sendo um combativo dirigente sindical do que participando da vida partidária, condição para disputar os cargos eletivos. Como nunca entrou em nenhum partido, nunca esteve em condições de ser candidato. Apesar de admirador de Jango, nunca entrou para o Partido Trabalhista Brasileiro, PTB. Amigo dos militantes comunistas, jamais entrou para o PCB. Não se arrepende. Nunca fez nada que não estivesse convencido, nada que colocasse em risco o seu livre arbítrio, o que a vida partidária quase sempre impõe. Aos comunistas é imposto necessariamente cumprir as determinações da direção superior, esteja ou não de acordo com o que pensa o militante. Não entrou para o Partido, mas trabalhava junto, assumia as lutas que o PCB também encampava. A identidade era essa e nesse ponto terminava. Para fugir da resposta, para não demarcar uma divergência com os comunistas, que existia, mas que Victor conscientemente não sabia qual era, e que inconscientemente não aprovava, atribui qualidades intelectuais que parte dos comunistas não tem, pois no fundo a grande massa dos militantes são pessoas comuns, mas de grande valor, movidas por um ideal de justiça e igualdade social. Por isso diz: “acho que para ser comunista é preciso que a pessoa tenha um nível intelectual elevado, ser versada na filosofia”. Por filosofia Victor quer dizer a economia política, o materialismo histórico e o materialismo dialético. Precisa ser conhecedor das obras de Lênin, de Engels, de Marx. Ele nunca se deu ao trabalho dessas leituras. Preferiu assuntos esotéricos no espiritismo kardecista e, mais tarde, nos ensinamentos propiciados pela Maçonaria. Apesar de não viver a política partidária, não ser membro do Partido Comunista, ser um cristão sincero, um cidadão defen-
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sor da democracia, foi duramente perseguido, preso, cassado, torturado, processado, demitido do Banco do Brasil e acusado de ser um perigoso subversivo. A ditadura não encontrou nada contra ele. Era apenas um cidadão que lutava pelos interesses dos trabalhadores. Não podendo ser acusado de nada de errado pela ditadura, foi perseguido e prejudicado. Honesto, pagou um alto preço, mas manteve a cabeça em pé e envelheceu com respeito dos amigos e justo orgulho de si mesmo. O Fórum Sindical que congregava as entidades do movimento social e todos os sindicatos do litoral paranaense assumiu uma dimensão política que explica a perseguição ao seu líder. Só não assumiu um protagonismo ainda maior porque a ditadura foi instalada sem sofrer grandes resistências. Os trabalhadores ficaram em assembleia no Sindicato dos Ensacadores esperando a ordem para participarem da resistência ao golpe que destituía o presidente Jango. A ordem não veio, os trabalhadores voltaram para casa. Victor foi o único funcionário do Banco do Brasil demitido, em 1964, por motivos políticos no Paraná. Hoje, ele avalia que a resistência teria propiciado um banho de sangue inutilmente, porque se fossem chamados pelas lideranças iriam para o confronto armado, mesmo que destreinados e sem nenhum tipo de armamento. Esse despreparo para a resistência Victor atribui ao caráter na luta dos trabalhadores em Paranaguá: era uma luta pelo avanço da democracia, para politizar os trabalhadores, pelas reformas de base, por aumento de salários e por outras conquistas. O movimento tinha uma diretriz política, e estava voltado às questões do emprego, do salário e da distribuição de renda, enfim, de assuntos de interesse geral dos trabalhadores e do país. Não pensavam em violência. Antes de encerrar este capítulo, Victor faz questão de registrar um profundo e eterno sentimento de gratidão pela solidária e efetiva assistência que lhe prestou o seu saudoso e querido tio Ducastel Victor da Costa, o tio Duca, residente em Curitiba, durante o período em que esteve preso.
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CASSADO, MAS NA LUTA
Victor foi destituído da direção do Sindicato e preso sob o argumento de que era um perigoso subversivo. No dia 2 de abril estava na prisão e por dois meses e meio ficou na cadeia. O crime que justifica a prisão está contido nas suas palavras: “posso dizer de boca cheia que fui um dos dirigentes sindicais que não se corromperam. Poderiam ter a pretensão de me comprar, mas ninguém nunca se atreveu em apresentar uma proposta, uma vantagem, pois seriam violentamente repelidos. Na realidade, sabiam que não teriam sucesso”. A saída da prisão não deixa de ser curiosa. Como se verá à frente ele foi advogar em Mato Grosso a convite do Tristão, que havia sido destituído da presidência da Federação dos Bancários e transferido para Ponta Porã. Não tendo cargo em comissão e com jornada de trabalho de seis horas, tinha tempo para advogar. Pelos acasos da vida, Tristão era vizinho do general Massa, que viria a ser delegado da Delegacia Regional do Trabalho no Paraná. Tristão tinha um filho pequeno de quem o general gostava muito. Em função disso, tornaram-se grandes amigos. Tristão foi preso, mas não se tinha nada contra ele, afora ser um importante líder sindical. Nesse início, o regime ainda não era tão duro. Assim que o golpe se consolidou, o general foi à prisão e liberou o Tristão. Ele ohou para Victor e perguntou para o Tristão: “quem é esse ai?” Ele respondeu, “é um grande amigo”. O general mandou soltar Victor também. Victor não se ilude com o gesto do general. Ele era um fiel servidor do regime, se bem que fosse uma pessoa afável e de trato agradável. Serviu ao regime sem cometer grandes arbitrariedades,
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mas a sua missão na Delegacia Regional do Trabalho, DRT, era impedir que o movimento sindical atuasse livremente. Quando o General liberou Victor da cadeia, não sabia que ele era apenas um dirigente sindical combativo, que destoava dos dirigentes sindicais corporativos e dóceis com o governo e os patrões. Nas palavras do dirigente sindical se confirma qual era o seu compromisso: “eu não fazia propaganda do PCB, nem contra nem a favor. Eu poderia ser do partido a partir da minha luta, isso já era suficiente. Apesar de não ser do partido sempre defendi os companheiros que estavam comigo”. Sérios, honestos, combativos e idealistas eram os companheiros, “entre os comunistas e os não comunistas”, Nilton Abel de Lima, Antonio Maia, João Batista Teixeira, Clarício Correia, João Pessoa da Costa, José de Souza Reis, Paulo Simeão Costa, Mário Siqueira, Milo Albini, Guaraci Nobre Rolim, Paulo Eugênio Sudório, Jahyr Freire, Carlos Graça, Antonio Maria, Francisco Rolim, Miguel Salomão, Antonio Casas, Diógenes Leal de Oliveira, Cezar Batista, Estanislau Eloi Cardoso, Osvaldo Barbosa Santos, Nilande Dutra dos Santos, Adilson de Souza Pinheiro, Celso Manoel da Costa, José Damaso de Oliveira, Nilton Pinheiro Pereira, Eujácio de Almeida, Miguel Veiga, Jorge Veiga, Francisco João dos Santos, Innocente do Nascimento Marques, Arcesio Leocádio da Rosa, João Rodrigues Batista, José Heleodoro Brinhosa, José Maria Novootero, Joaquim Rocha da Silva, Cezinando Bekendors , Américo Costa, João Abade, Olivino Albini, João Abílio, Rogério Montovani, Jesus da Costa Paz, Manoel Leandro da Costa Junior, Maurício Vitor de Souza, João Bispo da Silva, Ariston Oliveira Pires, Manoel Vicente da Silva, Angelo Portuário, Antonio Camilo do Nascimento Junior, José Vicente Elias, Mario Ribeiro, Heitor Souza, Pedro Rosa Machado, Zeno Estivador, Hermínio Arrumador, Simão Inácio da Silva, Tertulino Francisco da Silva, Swami Vivekananda, João Manoel dos Santos, Manoel Julião, Acácio Fernandes, Antoninho Sapateiro, Edivaldo José da Silva, Paulo Semião, João José Sanches, Luiz Rangel, Eloy Bispo dos Santos, Haroldo Cesar da Costa, Moacir Rodrigues, Airton N. da Costa, Benedito Jesus de Lima Vicente Esperança, Ranulfo Martins, Luiz Gonçalves, Levi
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Martins de Souza, Wilson do Rosário Rodrigues, Olinto Alves da Silva, dentre tantos outros. O movimento social em Paranaguá, porém, não era uma luta visando o comunismo. Era um trabalho humanitário, em defesa daqueles que tinham força, mas ignoravam que a possuíam. Daqueles que tinham direitos, mas não sabiam. Dos que sabiam dos direitos, mas não tinham forças ou não sabiam como defendê-los. O trabalho sindical era um movimento humanista, não uma luta comunista. Assim evidencia-se que ele lutou pelas causas da humanidade e não pela ideologia comunista. Esse traço da personalidade foi há muito tempo identificado pelo Miguel Salomão que declarou um dia: “Victor, você não é comunista, é um humanista”. Um acréscimo é preciso colocar na frase: um humanista espiritualista. Reluta em dar razão a essa avaliação, pois pode parecer que está a vangloriar-se dos trabalhos que fez e das lutas que comandou. Para deixar isso evidente, diz que o que a mão direita faz a esquerda não precisa saber. O trabalho realizado por ele não tem jeito de ficar anônimo, pois é de conhecimento corrente o que ele realizou em favor dos que precisaram da sua ajuda. E por falar em Miguel Salomão, ele disse também ter se lembrado do Victor como dirigente sindical, quando assistiu o desempenho do ator Gianfrancesco Guarnieri como protagonista no filme “Eles não usam Black Tie”. A lembrança é por considerar a personagem com estilo semelhante ao do Victor na condução do movimento sindical. Então o defensor das causas da justiça social recebe como recompensa o desemprego, a cassação e a perseguição. No entanto, não desanimou, manteve acesa a chama do inconformismo e compromissos pelos quais lutou desde o início dos anos de 1950. A defesa daqueles que não sabiam que eram detentores de direitos e quando deles tinham consciência não contavam com força pessoal para torná-los realidade. O curso de Direito era feito com sacrifício em Curitiba ao mesmo tempo em que trabalhava no Banco do Brasil e dirigia o Sin-
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dicato, cumprindo uma agenda desgastante de trabalho político e social. Várias disciplinas teve que fazer em segunda época por conta do excesso de faltas. O estudo de Direito se deu em um caminho assaz acidentado. Os mais próximos sabem o quanto lhe valeram o apoio de dona Mause, dona Izaltina e dona Leonor Pavanelli da Costa, principalmente, a querida tia Leonor. Agora desempregado, o curso de Direito concluído com tanto sacrifício e dedicação foi o que lhe restou para ganhar a vida. A advocacia, porém, seria mais um instrumento usado para lutar pelos fracos e oprimidos e, como será visto às páginas à frente, uma valiosa ferramenta que utilizou para forçar a ditadura a reparar os seus atos arbitrários. Formado e demitido do banco, foi convidado a trabalhar no escritório de advocacia que Tristão mantinha em Ponta Porã, no Mato Grosso. Apesar de funcionário do Banco do Brasil, Tristão advogava, já que não tinha cargo em comissão e cumpria a jornada legal de seis horas diárias de trabalho. Assim, ao começar a carreira de advogado, Victor teve que se mudar para a distante e desconhecida cidade de Ponta Porã. O convite decorreu da necessidade de atender a clientela em tempo integral, na medida em que Tristão dedicava expressiva parte do dia nos afazeres do Banco do Brasil. Tristão encontrou assim um jeito prático de ajudar um velho companheiro do movimento sindical e ex-colega do banco. Veja a ironia. Tristão, que era presidente da Federação dos Bancários, foi igualmente afastado do mandato sindical, mas não foi demitido. A punição foi a transferência e impedimento de exercer cargo em comissão e atraso de promoções. A punição do Victor foi muito mais drástica, sendo ocasionada pelo que representou a sua atuação à frente do Fórum Sindical. Aceitou a sociedade proposta por Tristão e deixou a noiva em Curitiba, o que deve ter sido um tormento, pois apaixonado e no ápice da paixão dos primeiros tempos é obrigado a separar-se do amor da sua vida, por uma longa distância no tempo e no espaço. Não reclama. Ao contrário, agradece a oportunidade dada
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pelo amigo, por Tristão. Avalia que advogar em lugar tão distante e numa realidade social que desconhecia deu-lhe bagagem para que viesse a se tornar um advogado especializado nos assuntos, nas demandas cotidianas do povo. Torna-se um advogado que para se manter assume todos os tipos de causas que dão dinheiro, quase sempre muito pouco. Entretanto, nunca se recusaria a defender pessoas que não podiam pagar os honorários. Por mais de nove anos, contando Ponta Porã e São José dos Pinhais, foi advogado dos pobres. Ir para o Mato Grosso foi decisivo na sua formação prática nos segredos do Direito. Deixou a advocacia, quando pela experiência adquirida na profissão soube ganhar, pelo menos, a sua readmissão ao invés da legalíssima reintegração ao Banco do Brasil, no Tribunal Superior do Trabalho, TST. No TST, acabou por fazer a própria defesa, já que alertado pelo professor Milton Vianna, de quem foi aluno na Faculdade de Direito de Curitiba, retirou a causa do seu advogado, que se era competente, mas sendo reacionário, parecia que não tinha interesse em ganhar a causa. O professor teria constatado que o advogado do Victor, em Brasília, era um simpatizante da ditadura. Para que o leitor entenda o termo “legalíssima reintegração” é necessário esclarecer a diferença entre os dois conceitos: readmissão e reintegração. A readmissão não contemplou o Victor com todos os direitos como se estivesse na ativa. Assim, não recebeu os salários atrasados, as promoções e demais vantagens de direito, que lhe seriam garantidos somente pela reintegração, negada pelo tribunal. Já se sabe que o Victor é um humanista, que é por formação familiar adepto do espiritismo da linha kardecista, mas é preciso fazer um importante registro, por ser mais uma evidência da pessoa tolerante com as ideias das demais pessoas que convive. Não se deve subestimar a confissão de que é um adepto do ecumenismo, que reconhece a importância e o valor de todas as religiões. Esse seu traço tolerante o fez conviver de forma respeitosa com pessoas de todas as confissões religiosas. Mesmo avaliando que uma parte da Igreja Católica lutou contra os avanços sociais
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que pretendia conquistar para os trabalhadores em Paranaguá, sempre tratou com respeito e consideração as autoridades da igreja e as pessoas investidas do poder de governo notoriamente vinculadas ao catolicismo. Assim, o importante político paranaense, à época vice-governador, mais tarde, deputado, senador, ministro, Affonso Camargo foi recebido com toda consideração em Paranaguá, quando se dirigiu à cidade para dar o resultado do acordo que o Banco do Estado do Paraná tinha assinado com os bancários. Affonso Camargo e o general Alípio Ayres de Carvalho, que o acompanhava, foram recebidos com todo o respeito por uma imensa assembleia de trabalhadores no Fórum Sindical. O motivo da visita era dar a notícia do acordo feito pelo governo com os bancários do Banestado, para por fim à greve de solidariedade que parou todos os setores da economia de Paranaguá, menos farmácias e hospitais Quando veio a demissão do Banco do Brasil e a cassação do mandato sindical, teve que advogar para sobreviver e para defender os seus direitos. Para sua surpresa, já na fase final do processo, do longo calvário que teve que percorrer, encontrou no general Alípio A. de Carvalho, então deputado federal da Arena, Aliança Renovadora Nacional, partido de sustentação da ditadura, um apoio inesperado e decisivo para que viesse a ser readmitido pelo Banco do Brasil. Victor reputa esse apoio do general o mais importante e decisivo. Chega a usar a expressão: “um dos meus maiores protetores”. Para enfatizar o valor que dá ao apoio do general Alípio para o seu processo no TST, relembra que só o tinha visto uma vez na vida, durante uma greve em Paranaguá, junto com o vice-governador Affonso Camargo. Um dia recebeu um convite para se encontrar com o general Alípio. Pensou o pior, milico, deputado da Arena, só podia ser problema muito grande, mais um incômodo, mais uma pedra no caminho. Mais um resgate do seu carma que deveria enfrentar. Recebeu o recado por meio de um grande amigo, Alcides Pereira Munhoz. Alcides era uma pessoa solidária, um grande coração, tinha certa re-
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lação de amizade com a família do Victor em Paranaguá. Do Victor não era nessa época um amigo muito chegado. Era amistoso o relacionamento, mas à distância. Alcides trabalhava nos Correios como telegrafista. Passavam por suas mãos muitos telegramas de políticos e, entre eles, os do deputado Alípio. Tomou a decisão de falar com o deputado: “poxa, esse general pode ajudar o Victor”. Contou ao general o que tinha acontecido, a perseguição que o Victor estava sofrendo há anos. Preparou o espírito e dirigiu-se ao encontro do deputado Alípio. O encontro aconteceu em Curitiba, na casa do general, que o recebeu muito bem. A conversa começou pela frase do general, que o Victor guarda na memória tal qual foi dita há mais de trinta anos: “sou a favor da Revolução, mas sou contra as injustiças”. Ouviu da boca do Victor toda a sua história. Depois disso, assumiu o compromisso: “pode contar comigo para o que for preciso”. A narrativa dá um salto no tempo, quase no dia da vitória no TST, conseguida com a pressão velada do general Alípio e a perspicácia do Victor que se antecipou a um conselho mandado por telefone de Curitiba pelo seu ex-professor, para que retirasse a causa do advogado que iria fazer a defesa oral do seu processo no julgamento da ação. Tentou advogar em Paranaguá, mas o risco político era muito alto. A direita achava que ele continuava atuante na vida política. E estava. Junto com Nilton Abel de Lima, impusera uma fragorosa derrota aos representantes do regime, articulando um voto decisivo para a eleição do então vereador Nelson Bufara à presidência da Câmara de Vereadores de Paranaguá. Se não havia clima para advogar, organizou uma carteira de imóveis e passou a intermediar compras e vendas de terrenos e casas. O bondoso e inesquecível Leon Chapaval, pai de seu cunhado, cedia espaço e o telefone da sua loja para que pudesse exercer atividade de corretor, mas era uma situação precária, temporária. Namorava, mas não pensava em casar logo, pois não tinha condições de manter a família. Só se casou um ano depois de estar advogando em Mato Grosso.
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Já falamos disso: Tristão foi transferido para Ponta Porã, Mato Grosso, e lá mantinha ativo um escritório de advocacia. Veja, atento leitor: líder sindical de posição humanista, sem filiação partidária, ecumênico, espírita, demitido do Banco do Brasil sob a acusação de ser um perigoso subversivo, vai para Mato Grosso advogar a convite de um ex-colega do banco, que se especulava membro do PCB. No desterro, Tristão monta um escritório de advocacia e convida para ser seu sócio o mais perigoso subversivo do Paraná, o único que perdeu emprego no banco. A injustiça é tão flagrante que mesmo um quadro da ditadura reconhece o absurdo da situação e dá todo apoio para que a justiça fosse aplicada, ou seja, o seu retorno ao emprego que injustamente tinha perdido. Apesar de ser o único funcionário do Banco do Brasil a ser demitido no Paraná, não guarda mágoas ou ressentimentos e procura dar valor ao bem que recebe das pessoas. Agradece a oportunidade dada por Tristão. Até hoje o tem na conta de um grande amigo que o ajudou numa hora difícil, convidando-o para ser seu sócio no escritório de advocacia que tinha aberto em Ponta Porã. Para que não reste dúvida pela gratidão que tem pelo amigo, faz questão de frisar que foi morar na casa do Tristão nos primeiros tempos em Mato Grosso. Embora diga que não se sinta desonrado em ser chamado de comunista, pois reconhece o valor dos membros do PCB com quem conviveu e militou no movimento social, não encontra muito sentido na perseguição que sofreu apenas sob a acusação de militância nos ideais do comunismo, se os supostos comunistas que conhecia no Banco do Brasil, na sua maioria absoluta, mantiveram o emprego, no início do regime militar. O que realmente pesou na balança foi a sua forte liderança junto aos trabalhadores na presidência do Fórum Sindical de Debates do Litoral Paranaense, que marcou época pelo que representou na história política e sindical de Paranaguá, em particular, em apenas dois anos de existência. Victor tem certeza de que o Fórum Sindical jamais se extinguiu, pois a semente da união dos trabalhadores do litoral parana-
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ense foi plantada antes dele, por ser universal, e continuará germinando e dando forças às conquistas de suas legítimas reivindicações. Para não parecer que essas pessoas não foram perseguidas, faz questão de registrar que elas perderam cargos em comissão, chefia, foram transferidas para locais inóspitos. Por conta disso, muitas acabaram por se demitir do emprego no banco. Para corroborar o sofrimento que essas pessoas também passaram, cita o caso de um colega, que portador da doença de Chagas, com sequelas graves, teve que se demitir, pois para onde foi transferido não havia recursos médicos para tratar desse tipo de doença. Depois de uns tempos, a repressão pegou todo mundo, todos os que tivessem uma atuação política, mesmo que restrita em defesa da redemocratização. Os danos morais e financeiros sofridos pelos perseguidos políticos foram extremamente elevados. Victor tornou-se sócio de Tristão, reconhece com humildade, com nenhuma experiência nos tribunais. Durante um ano advogou em Ponta Porã, dividindo os honorários do escritório e morando na casa do seu sócio. Depois desse período, mudou-se para Amambai, cidade próxima a Ponta Porã, sempre em sociedade com Tristão. No começo, ficou hospedado no único hotel da cidade. Por conta da proximidade, pegava causas em Amambai e Ponta Porã. Logo depois, alugou uma modesta casa em Ponta Porã e casou-se em Curitiba e por mais um ano morou em Mato Grosso. Dois anos no total. No último ano, com Marise ao seu lado. Em Amambai, ganhou dinheiro para viver modestamente e dar conta das muitas despesas de viagem para acompanhar os processos que respondia na Justiça do Paraná. Voltou de Mato Grosso, agora, um advogado traquejado. As demandas de terras, os problemas com gado, as poucas causas trabalhistas, demandas de família, eram o seu ofício diário. Isso o tornou um advogado experiente em direito civil e criminal. Por ser região de fronteira, divisa com o Paraguai, havia muito contrabando, tráfico de drogas e refúgio de criminosos. Não era um lugar muito ameno para se advogar, apesar do povo maravilhoso e de colegas e amigos inesquecíveis que lá deixou.
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Conta uma história que resume o clima na cidade. Um militar ficou descontente por conta de uma ação executiva que o Victor moveu contra ele no Fórum de Ponta Porã. Ao invés de ir conversar com Tristão, que era o chefe do escritório, para solucionar o caso com Victor, o sargento partiu para a agressão física. Nas palavras de Victor: “quando estava indo para casa, ele me cercou na rua. Do sargento vieram socos e pontapés. Daí lembrei-me daqueles tempos de circo em Paranaguá, que a gente saía no final das aulas do ginásio, lutava boxe e se comia no pau. Aqueles caras do famoso Circo Queirolo eram uns filhos da mãe. Eles davam luvas para quem gostava de lutar. Eu gostava. Lutava sempre com um colega da minha turma. Ninguém se machucava, mas dava uma canseira danada, o braço ficava pesado”. “O sargento veio, chegou perto de mim, eu estava de manga de camisa, sem arma, nunca tive arma. Não fiquei preocupado, perguntei: o que o senhor deseja? Ele veio para cima de mim. Deve ter dado uns três chutes, uns quatro socos, mas não me achou, não ia me achar, eu poderia ter revidado. Mas não revidei. Os taxistas estacionados nas proximidades a tudo assistiram. O militar ficou sem graça e foi embora”. “O sargento era considerado homem valente. Imaginei comigo, o que será que ele está pensando. Almocei tranquilamente e fui para o Fórum. Quando lá cheguei, o compadre do sargento, que tinha se retirado para o Paraguai, estava me esperando e me disse: sei que o compadre fez uma besteira, mas eu queria dizer para o senhor que ele não tem nada contra o senhor, que se arrependeu. Disse para ele, olhe na minha mala, não tenho arma. Para mim está tudo bem, está tudo resolvido”. Após enfrentar o sargento no braço em Ponta Porã e com três processos em andamento no Paraná contra si na Justiça, resolveu encerrar a sua jornada em Mato Grosso. Os processos na Justiça começaram com o afastamento da diretoria do Sindicato dos Bancários em Paranaguá. O afastamento é uma medida administrativa da Delegacia Regional do Trabalho, órgão do Ministério do Trabalho. Era a primeira providência que as
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autoridades tomavam para destituir a diretoria de um Sindicato. Era uma regra que valia para todo mundo. Depois desse afastamento era montado um processo para destituir ou manter a diretoria do sindicato sob intervenção do Ministério do Trabalho. No processo administrativo, a Comissão Geral do Ministério do Trabalho nomeava os interventores nas entidades sindicais, que faziam todo o levantamento da situação do sindicato. Para analisar se havia desvio de recursos e outros procedimentos irregulares, os interventores nomeavam um perito para fazer o trabalho, normalmente de natureza contábil. Bastava um pequeno erro na escrituração contábil para justificar a destituição da diretoria, se assim interessasse aos agentes da ditadura. E se não houvesse um erro, eles inventavam algum. Na época, os sindicatos estavam obrigados a contabilizar as receitas e as despesas conforme as regras da contabilidade pública no caso do imposto sindical e pelas normas contábeis exigidas do setor privado, quando se referia a receitas próprias, a mensalidade dos sócios, por exemplo. Os dirigentes em sua maior parte ignoravam essa exigência, o que tornava possível o Ministério destituir todas as diretorias que não rezassem pela cartilha das autoridades. O exemplo acima exposto mostra que o Victor e a diretoria já estavam condenados. O ministério só cumpria uma formalidade. A sentença já estava dada. Não voltariam para reassumir o sindicato. Ocorre que os interventores no Sindicato dos Bancários de Paranaguá nomearam perito um contador que, por oportunismo, virou inimigo político do Victor, a partir da ditadura. O contador cometeu uma série de erros na análise da contabilidade para poder incriminar a diretoria por corrupção. Por conta do trabalho do perito, a diretoria foi destituída. O Ministério do Trabalho não apenas afastou definitivamente a diretoria como encaminhou o processo para a polícia, que instaurou inquérito policial contra toda a diretoria do sindicato. O afastamento do sindicato propiciou, no entendimento do setor de recursos humanos do Banco do Brasil, que estava sob intervenção dos militares, as condições para que o Victor fosse demitido.
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O erro do pessoal de recursos humanos, por imposição dos militares, foi confundir afastamento da função sindical com a destituição do cargo de dirigente. Assim que a diretoria foi afastada, entenderam que podiam se ver livres do funcionário incômodo. Se a demissão tivesse se dado após a destituição da diretoria, a luta para retornar ao banco teria sido muito mais difícil. O processo foi uma montagem contábil na tentativa de incriminar a diretoria por corrupção. Antes de explicar como os seus adversários fizeram para arrumar motivos para destituir os diretores, Victor faz questão de registrar que o sindicato tinha uma base pequena de arrecadação mesmo somando o imposto sindical e a mensalidade dos sócios. Numa categoria tão pequena como era a dos bancários de Paranaguá arrecadava-se um montante apenas suficiente para pagar as despesas de manutenção do sindicato, que eram mínimas. Às vezes, nem para isso era suficiente e então pagava as despesas do sindicato com dinheiro do próprio bolso. Apesar da carteira de Victor ter sido fonte de receita para manter o sindicato, quem fez a perícia agiu de má-fé. O Dr. Oscar Nelson Reimann, assessor jurídico da Delegacia do Trabalho Marítimo, subordinado ao capitão dos Portos, e membro da Comissão Geral de Interventores nos Sindicatos de Paranaguá, surpreso com o absurdo constante da perícia, pediu explicações ao Sr. Miguel Freitas, pessoa altamente conceituada e contador do Sindicato dos Bancários, sobre a tal diferença a menos no laudo pericial. O Sr. Miguel não teve a menor dificuldade em demonstrar o erro absurdo e a má-fé do perito em acusar uma milionária diferença, aliás, inexistente na escrituração contábil do sindicato, cujo responsável era ele mesmo, contador competente e conceituadíssimo. Enfim, ficou comprovado que não havia, sequer, um centavo de diferença. “Quer dizer que o perito com a vontade de prejudicar o Victor assinou o atestado de burro”, esta foi a expressão do Dr. Oscar ao Sr. Miguel. Mesmo assim, por ordem das autoridades superiores da ditadura, a perícia foi encaminhada ao Ministério do Trabalho, que não teve, obviamente, dúvidas em destituir a diretoria e mandar processar os
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seus componentes. Afinal, no período da ditadura valia tudo, inclusive calúnias levantadas contra os adversários. Victor respondeu o processo na Justiça comum, juntamente com os demais membros da diretoria do sindicato: Reinaldo dos Santos Julião, tesoureiro do Banco do Estado de São Paulo, e Diógenes Leal de Oliveira, funcionário do Banco do Brasil, e foram todos absolvidos. Na sentença, o Juiz fez constar que o acusador era pessoa com reputação duvidosa. Ficou tão caracterizado o absurdo da acusação e da perseguição política à diretoria do sindicato que o Ministério Público nem sequer recorreu. Romaldo Pereira Rodrigues, seu chefe na Carteira de Comércio Exterior, CACEX, prestou um importantíssimo e verdadeiro depoimento em favor de Victor, naquele processo. Apesar disso, com prejuízos incalculáveis, Victor foi demitido sem justa causa, tanto que o Banco do Brasil mandou pagar a indenização. Confiante de que seria um dia reintegrado aos quadros do banco, Victor não assinou a rescisão do contrato de trabalho, nem recebeu a indenização proposta pelo banco. A precipitação do setor de recursos humanos do banco propiciou condições para que o Victor entrasse na Justiça do Trabalho reclamando o seu retorno ao quadro de funcionários, pois fora demitido quando ainda detinha o mandato sindical. O processo girava em torno do seguinte questionamento: o dirigente sindical afastado tem direito à estabilidade provisória? O Victor entendia que sim. Por isso entrou na Justiça. Onze anos depois o Tribunal Superior do Trabalho aceitou a tese, sustentada desde o início por seu advogado Dr. Edésio Franco Passos, dos mais conceituados na área trabalhista. Victor teve que responder a outro processo de natureza política na Justiça Militar, juntamente com outros companheiros. Ele foi acusado de pertencer ao grupo dos onze, dentre outras denúncias. Segundo suas palavras, meras bobagens. Era uma acusação eminentemente política. Nesse processo, Victor era acusado de subversivo, agitador, de comunista, etc., e por isso foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional.
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O advogado desse processo era profissional competente, de posições políticas avançadas. Victor sempre o considerou uma boa pessoa e bom profissional. No entanto, nesse processo na Justiça Militar escolheu o caminho mais arriscado. Entrou com habeas-corpus coletivo. Esse tipo de pedido era sempre negado pela Justiça Militar. Advogado experimentado pela militância no Mato Grosso, entendia que o correto era um procedimento estrategicamente diferente: entrar com medidas em favor dos menos comprometidos e na medida em que fossem deferidas, se daria entrada pela ordem, individualmente, dos pedidos em favor dos indiciados mais comprometidos no processo. Em decorrência da estratégia arriscada do advogado, todos os acusados foram prejudicados. Victor evidentemente reclamou da atuação, do caminho seguido pelo advogado, que se ausentara de Curitiba, e comentou com outras pessoas o que havia ocorrido. Um dia encontrou o advogado antes de uma audiência nos corredores da Auditoria Militar e teve com ele uma acirrada discussão dispensando-o da assistência jurídica do grupo. O advogado veio de encontro a Victor e irado disse: “você falou que eu fui vigarista com você. Eu lhe dou um tiro na cara”. Victor levantou-se e, olho no olho, relatou todos os maus serviços que lhe foram prestados. “Apenas contei o que aconteceu. Se os seus amigos concluíram que essa foi uma atitude de um vigarista, isso é conclusão deles, não foi o que eu disse”. O advogado recuou. Depois de poucos instantes do incidente, se volta para o Victor e diz que gostaria de continuar a ser o seu defensor. Passados todos esses anos, não mudou a sua avaliação sobre o trabalho do advogado, já falecido, nesse caso, mas logo esqueceu o erro e perdoou a ofensa. Até porque tem um juízo positivo da pessoa do advogado em questão que mais tarde exerceu com brilhantismo a magistratura em outro estado, aposentando-se. Enfim, por conta do erro de estratégia, Victor e os demais indiciados foram a julgamento militar no início do AI-5. Todos foram absolvidos. O promotor recorreu fora do prazo e a sentença transitou em julgado. Nessa fase do julgamento, o advogado era o Dr. Djalma Garbelotto.
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Sentaram no banco dos réus, além de Victor, Miguel Salomão, Nilton Abel de Lima, João Batista Teixeira, João Pessoa da Costa, Antonio Camilo Nascimento Junior, Claudio Lopes, Guaraci Nobre Rolim, Nilande Dutra dos Santos, Diógenes Leal de Oliveira, Antonio Maria e o jornalista Joaquim Esteves, salvo erro ou omissão do entrevistado, por decurso do tempo e falta de documento. Aliás, é importante que se diga que os presos e perseguidos políticos do Paraná foram defendidos por corajosos e competentes advogados, dentre os quais se destacaram o professor René Ariel Dotti, Dr. Antonio Acir Breda, Dr. Élio Narezi, Dr. Otto Luiz Sponholz, Dr. José Carlos de Castro Alvim, Prof. Lamartine Correa de Oliveira Lyra, Dr. Albarino de Mattos Guedes, Dr. Aurelino Mader Gonçalves, Dr. Djalma Garbelotto e mais um ou outro, que contaram com total e destemido apoio da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Paraná, opositora da ditadura inconteste, brava e eterna defensora dos direitos humanos e da democracia. Victor, apesar da rebordosa que liderou em Paranaguá, nunca faltou a um dia de trabalho no banco, salvo em casos excepcionais. Cumpria diariamente o expediente a que estava obrigado pelo contrato de trabalho, exceto nos momentos em que fosse atender um telefonema de algum dirigente sindical ou trabalhador. Afinal, o Fórum Sindical estava em reunião ou assembleia quase todos os dias. Na reclamação trabalhista que promoveu contra o Banco do Brasil e tramitava na Justiça Federal, o mesmo advogado que errara na Justiça Militar volta a errar ao deixar de recolher as custas do processo, e por isso o juiz decretou, de acordo com a lei, deserta a apelação de uma sentença, que, aliás, continha um lamentável equívoco ao julgar improcedente a reclamação em que Victor pleiteava a sua reintegração, pois fora demitido sem justa causa antes da destituição da diretoria do Sindicato por parte do ministro do Trabalho. Convém registrar que o juiz de Direito da Comarca de Paranaguá, com o parecer favorável do digno representante do Ministério Público, declarou-se, também, de forma totalmente equivocada,
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incompetente para julgar a reclamatória trabalhista por entender que a competência caberia à recém-criada Justiça Federal, encaminhando-a para a Vara da Fazenda Pública Estadual, em Curitiba, que a substituía até a sua instalação. Na verdade, era um momento impróprio, de altíssimo risco para o Judiciário revogar um ato ilegal e arbitrário da ditadura recém-instalada, analisa Victor. Por conta dessa omissão de pagamento das custas, foi preciso que o Victor entrasse com uma ação rescisória na Justiça Federal, no Tribunal Federal de Recursos, na época sediado no Rio de Janeiro, com importante atuação do Dr. Alaor Galhardo. Não se esqueça que Victor estava morando e advogando em Mato Grosso. Ganha a ação no Rio do Janeiro, o processo volta a ser julgado em Paranaguá, que nesse tempo já tinha instalada a Junta de Conciliação e Julgamento da Justiça do Trabalho. Plena ditadura, ainda. O processo cai na mesa de um juiz em Paranaguá. Não é uma situação fácil a do magistrado, Victor avalia. Nessa época, já tinha voltado de Mato Grosso, morava em Curitiba e advogava em São José dos Pinhais. Realista, pergunta que juiz iria querer desfazer um ato da ditadura: a sua demissão do banco. Na hora de julgar, o juiz saiu de licença. Por coincidência, talvez; por precaução, provavelmente. A decisão recaiu às mãos de uma juíza substituta. Para complicar, os dois vogais, representantes classistas dos trabalhadores e dos empregadores, eram notoriamente simpatizantes do regime militar e inimigos ideológicos do Victor. Não podia haver ambiente mais hostil do que esse para complicar o julgamento. O vogal representante dos empresários era o perito que fez o levantamento no sindicato e distorceu os fatos para que a diretoria pudesse ser destituída. O outro vogal tinha uma forte relação com os setores direitistas do clero em Paranaguá e foi testemunha de acusação contra a diretoria do sindicato. A situação era de fato muito adversa naquela instância do Judiciário Trabalhista. Assim, quando a juíza substituta leu a sentença que negava o pleito de retorno ao banco, ninguém ficou sur-
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preso. Surpreendeu, porém, o visível constrangimento da magistrada, que disse que se a decisão fosse por alguma razão injusta, ela esperava que fosse reformada por outra instância. “Se o senhor recorrer da sentença, requeira dispensa das custas que eu defiro”. Não foi possível gozar dessa regalia, porque uma portaria recém-chegada impedia essa possibilidade. O recurso foi feito de imediato pelo Dr. Edésio Franco Passos. Apesar da sentença desfavorável, os vogais reacionários não mais tinham como interferir, eles que se não tinham poder de decisão, apenas suas presenças foram suficientes para pressionar a juíza. Desse momento, dessa situação, Victor estranhamente guarda na lembrança certa simpatia pela juíza que não deferiu o seu pleito, mas que se sentia constrangida pela decisão que tomava. No fundo da alma e pelo preparo nos assuntos da lei de que era detentora, ele acredita que a juíza teria dado ganho de causa, se houvesse condições políticas para isso acontecer. O processo foi para São Paulo, porque naquele tempo ainda não existia o Tribunal Regional do Trabalho do Paraná. Caminhemos, porém, pois há uma jornada longa para São Paulo e Brasília. O advogado que o representou em Paranaguá substabeleceu a ação para um escritório de advocacia paulistano, indicado pelo professor Milton Vianna. Novamente perde a causa nessa instância do Judiciário Trabalhista, também em condições que não se diferenciaram das anteriores, pois a ditadura ainda estava de pé. Embora entenda que fosse evidente o direito a estabilidade do dirigente sindical afastado para responder processo administrativo pelo Ministério do Trabalho, atribui a derrota nessa instância ao momento político que o país passava. O regime tornava-se cada vez mais duro e repressor. As pessoas tinham medo naturalmente de contrariar o poder ditatorial instalado no país. Novo recurso, agora para o Tribunal Superior do Trabalho, TST, em Brasília. A ação foi substabelecida a um advogado de Brasília. Depois de três derrotas, em Curitiba, Paranaguá e São Paulo, passou a acompanhar com maior zelo ainda todos os passos do processo. Co-
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nhecia de cor todo o conteúdo processual. Essa era a fase decisiva. Se perdesse, adeus Banco do Brasil. A perda seria muito grande. Não em dinheiro, até porque não recebeu os salários a que tinha direito pelos anos que ficou arbitrariamente fora do Banco. Mas seria uma derrota política e pessoal. Estava em jogo não apenas dinheiro, emprego, mas principalmente dignidade, direito, honra. Praticamente mudou-se para Brasília na fase do julgamento no TST. Um velho e grande amigo, Iran Milton Greca, hospedou-o em seu apartamento, o que não deixou de ser uma ajuda inestimável, haja vista Brasília ser uma cidade muito cara para se viver e visitar. Encontra o advogado no TST no dia do julgamento sem ter tido qualquer outro encontro prévio com o seu defensor. Apresenta-se: “eu sou o Victor”. O advogado responde: “tudo bem, o seu processo está aqui. Você dá um giro, volta daqui a uns quinze minutos, vou dar uma olhada no processo. Tem bastante tempo para começar a sessão do tribunal”. Victor é modesto, como já se disse, mas tinha uma bagagem volumosa de processos que já tinha defendido em sua agora longa carreira de advogado. Não se atreveria a supor que fosse melhor advogado. Mas espantou-se: quinze minutos para ler, analisar e montar a defesa oral. Por doze longos anos analisou o processo, conhecia-o inteiramente e não achou possível que alguém, por mais competente que pudesse ser, tivesse condições de dar conta do recado em quinze minutos. Contrariado e desnorteado com a atitude do advogado que o defendia em uma ação que representava justiça, honra, e de enorme significado político para si mesmo e para outros trabalhadores, saiu. Deu os inacreditáveis quinze minutos pedidos pelo colega para reunir os argumentos para a defesa oral numa sessão do TST. Passam-se os quinze minutos pedidos pelo advogado. Retorna. O advogado pondera: “olha colega, sabe que falei com outro advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, CNTI, examinei o processo. Infelizmente o teu caso não tem condição, porque isso aqui é matéria de fato e nesses casos os ministros nem prestam atenção. A gente fala e os ministros não escutam, dão
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contra, nem querem saber. Matéria de fato em recurso de revista, eles nem querem saber”. Victor se espanta com o argumento do advogado. Pondera: “isso é matéria de direito. A minha tese, a nossa tese é se o dirigente sindical de sindicato sob intervenção tem estabilidade provisória, se tem direito à estabilidade provisória ou não de acordo com a lei. Ninguém está pedindo para eu provar se era dirigente sindical ou não era, nem eles, o banco, estão alegando que não provei isto ou aquilo. Não é matéria de prova que está em discussão, é uma matéria de direito. Eu era dirigente sindical, não estava destituído, estava apenas afastado quando o banco me demitiu. Tenho direito a estabilidade provisória ou não”. O advogado retruca. “Não, não é isso. Conversei com outros advogados e chegamos ao entendimento de que se trata de uma matéria de fato e não de direito”. Esse argumento abalou de vez a confiança do Victor no advogado. Pensou: “Vou tirar a ação desse meu advogado. Não vou deixá-lo fazer a sustentação oral, porque ele vai me prejudicar”. Confessa:“Eu conhecia tudo, os argumentos estavam na palma da mão: lei, jurisprudência, doutrina. Eu poderia não conhecer outras coisas do direito do trabalho, mas aquele caso eu conhecia. Era a minha vida aquilo. Não era só uma questão financeira, era uma questão moral, de honra, uma questão política, sabe, era tudo”. Chega a hora do julgamento. Victor diz para o advogado; “olha, vamos fazer o seguinte, não precisa fazer a sustentação, peço que você não faça”. O advogado abriu a pasta, entregou a procuração, e disse indignado: “não sou palhaço”. Victor nada respondeu, pois estava no tribunal, à frente dos ministros. Mas pensou, “vou mostrar se você é palhaço ou não é”. Veio o julgamento. O advogado do Banco do Brasil fez uso da palavra. Valeu-se de uma jurisprudência descrita pela metade e já juntada na inicial. “Se analisada no seu inteiro teor ela, indiscutivelmente, me favorecia”, analisa. Sem defesa, sem advogado, ainda assim Victor venceu.
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Uma vitória parcial, garantia a estabilidade ao dirigente sindical afastado, tese que sustentou em várias esferas da Justiça. Estava aberto o caminho para voltar ao Banco do Brasil. Não ganhou, porém, o direito a receber os salários atrasados, dos anos em que ficou impedido de trabalhar no banco, a carreira que não pôde seguir, entre outros prejuízos. Logo em seguida, Victor recebe um recado do seu amigo Greca mandado pelo professor Milton Vianna, passando a orientação para ele retirar a procuração do advogado, que se desconfiava fosse um integralista. Victor já tinha se antecipado. No fim de tudo, quis o destino que Victor fosse o advogado de si mesmo, ainda que não tivesse feito a sustentação oral. Ainda durante o julgamento, ao ouvir o parecer do ministro relator, Victor, emocionado, cobriu os olhos com as mãos para esconder as lágrimas. Após tantos anos de luta, era a primeira vez que presenciava, de um magistrado, o acolhimento da tese da estabilidade provisória do dirigente sindical afastado por intervenção. Mais do que isso, vinha à lembrança de Victor o esforço dramático despendido pelo Dr. Milton Vianna em seu auxílio, já que o professor se encontrava gravemente enfermo e fragilizado e, ainda assim, ficava inteiramente ligado ao caso apenas para auxiliar um ex-aluno a recuperar um direito e livrar-se de uma grande injustiça. A segunda vez que Victor se emocionou pelo professor Milton Vianna foi quando do seu falecimento. Após a retirada de todos os que estiveram presentes em seu féretro no Cemitério Municipal de Curitiba, Victor, tomado de profunda tristeza, chorou pela perda do grande e inesquecível mestre e amigo. Vitória. Um peso imenso sai das costas. Ninguém avalia o que é esperar por mais de onze anos para que os seus direitos fossem reconhecidos. Mas entre a taça e os lábios há uma infinita distância. O Banco do Brasil entrou com recurso. Atendendo um conselho de sua mãe, dona Áurea, Victor fez a sua defesa oral. Victor ganhou novamente. Mais uma vitória. Ainda não é o momento de Victor beber o néctar tão esperado, voltar para o Banco do Brasil. Há o processo
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interno de readmissão. Por mais de um ano o banco enrola. Com o apoio do general Alípio, depois de mais de onze anos, no dia 8 de dezembro de 1975, em plena era Geisel, Victor retorna ao banco. Por acaso ou não, no Dia da Justiça e de Nossa Senhora da Conceição, a Nossa Senhora dos Direitos Humanos.
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Acima, associados e domadoras do Lions Clube de São José dos Pinhais - Centro em foto tirada por seu atual presidente, Eugênio João Pissaia (gestão 2012 - 2013)
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Abaixo, as associadas do Lions Clube de São josé dos Pinhais - Centro em campanha filantrópica pelas crianças carentes abrigadas na Casa Lar
EVENTOS DE SÃO JOSÉ
Os padres brasileiros e norte-americanos não eram simpatizantes do movimento dos trabalhadores em Paranaguá. Na medida em que era a maior liderança dessa mobilização, Victor merecia toda a antipatia dos religiosos. Havia uma disputa pela direção política das ações dos trabalhadores. Victor queria fazer com que os trabalhadores ganhassem mais e conquistassem mais direitos. Não tinha interesse em desestabilizar o governo de Jango, até porque era simpatizante das suas propostas de governo. Ainda hoje se refere ao Jango como a mãe da classe trabalhadora. Os padres viam tudo como uma conspiração comunista. Não sabiam nem queriam saber que o Victor não era comunista. Era uma pessoa em termos de religião, ecumênico, e em termos políticos, um humanista. Constava que para se contrapor ao movimento dos trabalhadores, o clero programou para um final de tarde a santa missa e procissão de São José, o Carpinteiro, no dia 1º de maio, e convidou o Fórum Sindical de Debates de Paranaguá para participar. A direção da entidade não teve dúvidas. Interpretando a vontade da grande maioria dos trabalhadores, convocou-os para os sagrados eventos em louvor do Santo Padroeiro dos Trabalhadores. A passeata com a procissão partiria da Igreja de Nossa Senhora do Rocio, localizada no bairro do Rocio, em direção à catedral, no centro da cidade. Debaixo de sol escaldante, os trabalhadores esperaram por horas o início da procissão. Nem um padre ou outro representante de igreja compareceu para dar-lhes uma satisfação.
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Na medida em que a procissão não saía, os trabalhadores fizeram a passeata de primeiro de maio sem a companhia de São José. Parecia que os padres não queriam passeata em conjunto com a procissão e o movimento dos trabalhadores. Talvez fosse apenas uma provocação. O movimento não era contra a igreja. Os padres não acreditaram nos bons propósitos do Fórum Sindical e só se deram por satisfeitos quando Jango caiu e Victor foi para a cadeia. Essa introdução visa mostrar um fato emblemático. Dava a impressão que os padres teriam dado a entender que quiseram valer-se do pai de Jesus para crucificar o movimento que Victor liderava, o que muito incomodava as classes ricas da cidade. No entanto, quando voltou de Mato Grosso, foi em São José dos Pinhais que foi advogar e estabilizar a sua vida. A experiência em Mato Grosso na sociedade com o Tristão o qualificava para advogar em um centro maior. Por um feliz acaso, em uma das vindas de Mato Grosso a Curitiba, para tratar dos processos de seu interesse que tramitavam na Justiça, encontrou um grande amigo, membro do Poder Judiciário, que sugeriu que fosse advogar em São José dos Pinhais, pois seria possível arrumar escritório e trabalho naquela comarca. Acatou de imediato aquela abençoada ideia. Na cidade, havia bastante serviço para mais um advogado, um profissional com uma experiência comprovada. Embora tivesse relativamente pouco tempo de exercício no ramo da advocacia, a experiência adquirida nos tribunais procurando defender-se das acusações que pesavam contra a sua pessoa, a luta em Mato Grosso, em uma região de fronteira e de refúgio de criminosos e de conflitos de terras, entre proprietários, grileiros e posseiros, além dos embates sindicais em Paranaguá o tinham amadurecido para as causas mais difíceis que pudessem aparecer. São José era o carma do Victor. Assim, como o mais obediente servo de Deus, que sem discutir cumpria as tarefas dadas pelo Grande Arquiteto do Universo, Victor assumiu o seu destino. O destino de enfrentar as adversidades sem maldizer os homens ou reclamar da sorte. Assumiu o seu carma. Victor vê o carma de forma positiva, pois
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para ele, além de um resgate de pecados passados, é também oportunidade para construir o futuro. Sabe que no lugar do errado é preciso colocar o que é certo, em lugar da vingança, perdão, em lugar da injustiça, a justiça, em lugar do conflito, do dissídio, a composição de interesses. Dessa forma, de 1968 a 1975, atuou como advogado em São José dos Pinhais. O primeiro escritório de advocacia em que trabalhou ficava na Praça Rio de Janeiro e pertencia ao Dr. Dario Marchesini, a quem ficou eternamente grato. Não ficou rico, mas agradecido do que pôde obter no novo domicílio profissional. Revela que se deu por muito satisfeito com o que ganhou, pois pôde comprar um terreno, com o auxílio do casal Idalina e Luiz Andretta, tios e padrinhos da Marise, e construir uma modesta casa. Pela primeira vez, comprou um carro, usado. Por fim, teve como se mudar da casa da sogra, sua saudosa amiga. Mesmo o advogado mais modesto em pretensões profissionais ficaria insatisfeito com a riqueza acumulada. Victor não é tão modesto, é uma pessoa de grandes ambições. Mais do que dinheiro e prestígio, ambiciona cumprir o seu carma, o que se registra mais uma vez não é visto como castigo, mas como expiação de pecados antes cometidos. Por isso, para quem não o conhece muito bem, pode parecer surpreendente a declaração de que se deu por muito satisfeito com a modesta lista de bens que conseguiu acumular. Diz satisfeito, mas sem afetação ou orgulho, que mais do que dinheiro ganhou a alegria de atender a comunidade mais carente, que aparecia no Fórum e que não tinha condição de contratar um advogado. A maioria das pessoas pobres que procuravam a justiça em São José dos Pinhais eram encaminhadas pelos funcionários do Fórum para o escritório de advocacia do Victor. Ninguém ficava sem receber atendimento, orientação e defesa, mesmo não podendo pagar pelos serviços. Não apenas os serviços eram gratuitos, mas também algumas despesas eram custeadas por ele. Incompreensível, pode parecer às pessoas comuns: Victor agradece a Deus que o tem ajudado até hoje pelos
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serviços gratuitos que prestou às pessoas necessitadas dos serviços da Justiça. Para exemplificar essa dupla consequência – o bem que fez e o retorno que, reconhece, recebeu - da advocacia social na sua vida, o relato de um único fato é suficiente, pela amplitude que Victor atribui ao acontecimento. Já era final de tarde. Muito frio. Chovia. Quando já dava por encerrado o expediente, chega ao escritório uma mulher pretendendo mover uma ação de alimentos contra o seu companheiro. Analisa o caso. O companheiro da mulher era dependente químico, de bebida alcoólica, sem trabalho fixo e sem renda definida. Não pega a ação, embora saiba que a Justiça vai dar ganho de causa para a mulher. Mas essa seria mais uma das várias causas semelhantes que iria ganhar. Dada a sentença pela Justiça, não haveria como executar, porque o devedor não tem condições de cumprir a determinação. Observador e humano, enquanto conversava com a mulher concluiu que a criança que ela levava nos braços estava muito doente. Se não fosse tratada com urgência provavelmente morreria. Disse para a mãe, “a senhora”, não trata por “você”, nem as pessoas mais humildes, “tem um serviço mais urgente a fazer: levar essa criança ao médico”. “Não tinha nem o que comer, como pagar uma consulta”, pensou. Enfiou a mão no bolso e retirou todo o dinheiro que tinha. Contou. Era suficiente para pagar o médico e talvez comprar os remédios que viessem a ser receitados. Passou o dinheiro para a mãe pagar a consulta e aviar a receita. Indicou o médico, que atendia ao seu filho, em Curitiba. Um ato desse drama se fecha. Os espectadores podem concluir que o Victor é um homem muito virtuoso ou um tolo. No julgamento dos homens tanto uma como a outra sentença gozara de prestígio social. A peça, porém, não terminou. Pegou o carro, já havia ganhado um Fusca usado de seu pai, e foi para casa. Não tinha casa própria. Ainda morava com a sogra, na rua Almirante Tamandaré, em Curitiba.
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No quarto, além da cama do casal, ficava espremido num canto o berço do seu primogênito, com uns nove meses de vida. Pai novo, mas pessoa experiente, perguntou. “O Júnior mamou?”. “Sim”, responde prontamente Marise. “Regurgitou?”. “Sim”, responde de novo Marise. Deitou-se. Marise, apesar disso, disse para ele dar uma última olhada no Júnior. Levantou-se com dificuldade. Imagine, um quarto apertado para um guarda-roupa, uma cama de casal e um berço. Os móveis estão mais apertados do que sardinha em lata. Victor se contorce e dá um jeito de acender a luz. Pega o Júnior nos braços. Verifica aterrorizado que o bebê está com os lábios roxos, que respira com muita dificuldade. Conclui em um átimo que a criança está morrendo. Desespero de todo mundo. A sogra e a cunhada rezam. Marise chora. Victor atônito. Não sabe o que fazer. Chamar um médico? De que adianta se a criança está morrendo? Tia Lurdes, evangélica de muita fé e esposa de Ari Ravaglio, irmão de dona Romilda, e que residia numa casa nos fundos, veio em socorro e pegou o Júnior no colo. Sem refletir, sem saber por qual motivo teve a ideia. Agiu. Victor colocou a boca na boca da criança e fez uma forte sucção. Voltou-se, em seguida, para falar com a Marise, quando, de imediato, a tia Lurdes o chamou já com o Júnior virado de bruço para o chão, recuperado após expelir um pequenino resto de banana raspada e não digerida, preso na garganta e que lhe estava asfixiando. Naquele momento, nem com todo o dinheiro do mundo Victor salvaria a vida do seu filho. Nesse dia, recebeu o maior presente de Deus. Em São José dos Pinhais, advogou para ganhar dinheiro suficiente para sustentar a família e formar um pequeno patrimônio. O animal político não morreu. A ditadura cortou as asas para voar na luta sindical. Isso não impediu que arrumasse outras formas de ser um cidadão comprometido com a sua comunidade. Tão logo chegou a São José dos Pinhais, observou que não havia agência do Banco do Brasil. Por mais estranho que pareça, demitido do Banco do Brasil por perseguição política, continuava a ser um ardoroso defensor
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da importância dessa instituição pública de crédito. A defesa não se prende ao corporativismo de quem defende o banco em razão dos interesses profissionais, já que na época o emprego no Banco do Brasil era considerado de primeira linha. O motivo da defesa do banco decorria da compreensão de que uma instituição pública de crédito é fundamental para o crescimento econômico e o desenvolvimento social de uma cidade, de uma comunidade. Notou algo que lhe pareceu muito estranho: uma cidade do porte de São José dos Pinhais, com um mercado bancário já desenvolvido, não ter uma agência do Banco do Brasil. Assim como já contribuíra para a criação da agência de Antonina, no Paraná, e de Amambai, em Mato Grosso, foi um dos primeiros a semear a ideia de que já passara da hora do banco investir em São José dos Pinhais. A fim de chamar a atenção para a importância de uma agência do Banco do Brasil, em Antonina, Victor plantou notas no jornal “Última Hora” atribuindo a políticos, sem citar nomes, o compromisso de trazer o banco para a cidade. Em seguida, lançou nova nota sobre a boa repercussão junto aos meios empresariais da cidade. De certa forma, Victor era o padrinho de uma agência, ainda que anônimo, que reduziria os seus rendimentos, haja vista que como funcionário do banco lotado em Paranaguá, era mandado a Antonina para fazer trabalhos da CACEX, e pelo deslocamento recebia diária. Um deputado interessado assumiu a causa, sem que se soubesse dos seus reais motivos, mas o fato é que Antonina ganhou a agência do Banco do Brasil, tão necessária à economia da cidade. Quando estava advogando no Mato Grosso notou que as pessoas de Amambai que quisessem se relacionar com o Banco do Brasil tinham que se deslocar para Ponta Porã. Não teve dúvida, valeu-se do vitorioso expediente adotado em Antonina e passou a lançar notas no jornal “Duas Bandeiras”, de Ponta Porã, atribuindo aos políticos da cidade a intenção de instalar uma agência do Banco do Brasil em Amambai. O resultado final na campanha feita anonimamente foi a criação da agência. Reconhece que até hoje ninguém soube desse seu trabalho, até porque o fez em favor do banco e das necessidades da cidade.
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Quando passou a advogar em São José dos Pinhais, em 1968, notou que a cidade não tinha uma agência do Banco do Brasil. Para ele, isso era incompreensível. Avaliou que não tinha como usar o expediente adotado em Antonina e Amambai, porque não possuía acesso à imprensa. Achava que a mídia local não estava propensa a encampar a bandeira da agência do Banco do Brasil na cidade. Partiu para o trabalho boca a boca. Lançou a ideia no Lions, conversou com inúmeras pessoas, sempre apontando o fato inusitado de São José dos Pinhais não ter uma agência do Banco do Brasil e a necessidade da comunidade mobilizar-se para sensibilizar a direção do banco para que fosse instalada uma filial na cidade. A ideia se espalhou. Em poucos anos, a agência do Banco do Brasil estava instalada em São José dos Pinhais. Para que isso acontecesse o movimento contou com o dedicado trabalho na linha de frente dos companheiros do Lions Clube, de São José dos Pinhais - Centro. Não tinha interesse pessoal na agência, até porque estava fora do banco lutando para recuperar o emprego que a ditadura havia lhe retirado. Mas continuava movido pela convicção de que o Banco do Brasil era um agente indutor do investimento, do crescimento da economia local, e portanto uma importante fonte de geração de empregos para as pessoas que precisavam trabalhar. Na medida em que teve uma origem na pobreza, enxerga no trabalho, no emprego, a saída da pobreza e da miséria às centenas de pessoas que atendia no seu escritório de advocacia em Mato Grosso e São José dos Pinhais. Victor adaptava às circunstâncias da política os propósitos que o levaram à luta social nos anos de 1950. As reminiscências dos programas de rádio falando de política que a sua mãe ouvia repercutem com renovado vigor em sua vida em São José dos Pinhais na fase em que o arbítrio alcança a sua máxima virulência. Assim que chegou a São José dos Pinhais para advogar, notou que a Associação Comercial da cidade estava inativa há doze anos. Parecia que os empresários estavam anestesiados ou amedrontados pela crueza da repressão política. Não era sem motivo que os empresários estivessem tão retraídos na defesa dos seus interesses, pois o regime
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considerava qualquer movimento uma ação de subversivo. A única atitude bem recebida era o elogio às obras do regime, porém, ainda aqui se corria o risco de elogiar a pessoa errada e ser punido, perseguido por conta até mesmo de uma ação subserviente ao governo militar. Tinha esse diagnóstico, pois estava escolado com as repressoras medidas do regime e com a fraqueza das pessoas, que tinham muito a perder. No entanto, mais do que voltar para o banco, até porque estava se saindo muito bem com a advocacia, que se não o enriquecia, dava para manter a família e ainda sobrar uma poupança que aumentava o modesto patrimônio, a ação era para despertar as pessoas para a necessidade da volta da democracia. Assim, colocar a Associação Comercial tanto beneficiaria os empresários da cidade, porque tinha uma instância de defesa dos interesses econômicos, como um fórum de luta pela democracia e, por extensão, um ácido a mais a corroer as correntes do arbítrio, que sufocavam o corpo e a alma do povo. Em conversa com Moacir Piovesan, que queria ser candidato e acabou por ser prefeito da cidade, sugeriu a criação da Associação Comercial nas suas propostas de campanha. Piovesan disse que a associação já existia, estava somente desativada. Os documentos da entidade estavam com o Sr. Trevisan. Sem diretoria há mais ou menos doze anos, a entidade estava acéfala. O Lions assumiu a luta para a recuperação da entidade, inclusive a primeira diretoria reconstituída foi toda formada pelos sócios do clube de serviço, e presidida pelo Sr. Diorgenes Ferreira de Paula, conceituado empresário e ruralista. Ao ir para São José dos Pinhais por motivos profissionais, recebeu do seu amigo e ex-colega de Banco do Brasil, Dr. Moacyr Visinoni, a tarefa de fundar o Lions na cidade. O Lions era mais uma forma de contribuir para a justiça social, para combater os malefícios da pobreza, econômica e moral. Victor está no Lions de São José dos Pinhais há 37 anos. O Lions é um clube de serviço, e que ninguém se engane com suas atividades aparentemente recreativas. Há uma concepção cada vez mais moderna de leonismo aos quais se enquadram perfeitamente os denominados companheiros, companheiras e domadoras de São
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José dos Pinhais. Um clube de serviço diferenciado, em alguns aspectos, formado por um grupo de pessoas especiais daquela cidade, localizada na Região Metropolitana de Curitiba, que pratica a filantropia de dar o peixe, entretanto visa a filosofia de ensinar a pescar. Esse perfil do Lions é decorrência das discussões democráticas em todas as reuniões do clube. Atribui esse viés avançado de ajudar as pessoas a se autonomizarem da caridade e da filantropia a qualidade dos membros do clube em São José dos Pinhais. A militância continua até hoje no clube fundado no dia 16 de outubro de 1975, com 27 associados, dos quais ainda estão ativos Alberto Alexandre G. Nogueira, Norberto Kaesemodel e o próprio Victor, acompanhados por suas esposas Glacir Maria Melo Nogueira, Leony de Lima Kaesemodel e Marise G. Costa, respectivamente. Às realizações que mostram o tipo especial de que faz parte o Lions Clube de São José dos Pinhais - Centro, enumera a campanha pela paz, uma ideia de entronizar uma bandeira branca da paz da Organização das Nações Unidas, ONU, na panóplia, onde estão as do Lions, a da cidade e do país. A Governadoria do Distrito LD1 - Região “B” Paraná e alguns Clubes já aderiram à ideia. Foi também entronizada na panóplia do clube a bandeira do Japão, simbolizando preces a Deus implorando para amenizar os sofrimentos de sua população flagelada e pela rápida recuperação das cidades localizadas no litoral norte daquele país, destruídas por forte terremoto e tsunami ocorridos no dia 11 de março de 2011. Outra campanha permanente, dentre várias importantes, cita a de uma parceria com a antiga e tradicional Livraria do Chain, de propriedade do consagrado livreiro Aramis Chain, para distribuição de livros a escolas de São José dos Pinhais, no sentido de incentivar os alunos ao hábito da leitura. Orgulha-se de uma grande realização dos companheiros do Lions: a Casa Lar, prédio construído por meio de campanhas de arrecadação de fundos, onde são abrigadas crianças carentes. Até hoje o clube contribui para a conservação física do imóvel e a assistência às crianças.
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Dentre outras atividades, acrescenta as importantes participações dos companheiros, companheiras e domadoras em outras obras que surgiram ao longo do tempo como a Praça Melvin Jones, o Museu Municipal Atílio Rocco, a Biblioteca Scharffeberg de Quadros e mais de vinte anos de atuação junto a uma fundação educacional. Há, também, em estudo no clube, mais um majestoso projeto propagador da paz, que envolve uma grande parceria entre o Lions, o Rotary, a Maçonaria e o Aeroporto de São José dos Pinhais, representado pela Infraero. E, ainda, o engajamento na campanha para a construção da terceira pista do Aeroporto de São José dos Pinhais, que tem como um dos seus principais líderes o dinâmico empresário Valmor Weiss. Implantou o projeto “Universalização do Conhecimento”, que visava levar o conhecimento a todos a custo zero, por meio de voluntários, tendo como um dos seus principais objetivos o aproveitamento dos espaços ociosos das escolas à noite, feriados, sábados e domingos, implantado no Colégio Estadual Maria Vidal, do bairro Cidade Jardim e Colégio Municipal do Bairro Faxina, com o apoio de entidades comunitárias. O trabalho social foi desenvolvido por meio de cursos, palestras e outras atividades no período de 1999 a 2008, algumas atividades em parceria com a Prefeitura Municipal. Além dos associados do Lions e suas esposas, tiveram atuações de destaques nesse projeto Pedro Conrado de Lima, coordenador, Dr. Edison Luiz Pereira, Dr. Roberto Barcelos Costa, Dr. Victor Horácio de Souza Costa, Dr. Fabiano Antonelo, Dr. Elias Gilson Garcia, Dr. Victor Horácio de Souza Costa Junior, Hélio Luchesi Ribas, Antonio Marcos de Oliveira, Alberto G. A. Nogueira, Benedito dos Santos, Amélia Servelho Albertini, Sonia Maria do Nascimento, João Paulo de Souza, Dirce Carmonese Bogo de Lima, Augustinho Michalizem, Moacir Kusma, Luiz Carlos Monteiro, Ismar Appel e muitos outros. As entidades representadas são as Associações e os Conselhos de Moradores, Lojas Maçônicas Cardoso Junior, José Bueno Mendes, Verdade Real e Gralha Azul, Lions Clube São José dos Pinhais Centro e Lions Clube Aeroporto de São José dos Pinhais. Convém destacar ainda que um dos maiores feitos do Clube foi a eleição do associado e fundador do Clube, Alberto A. G. No-
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Abaixo, placa dedicada ao Victor pelos IIr:. da Maรงonaria, funcionรกrios da empresa Ultrafertil S/A
Acima, Victor no IV Congresso Grande Oriente do Brasil - Paranรก
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Churrascada promovida em agosto de 1985, na AABB, pelos colegas da agência do Portão do Banco do Brasil, em Curitiba, em homenagem ao Victor por sua aposentadoria. Da esquerda para a direita: Rogério, Moser, Victor, Sr. Dempsy e Macu
gueira, como Governador do antigo Distrito L-6, atual LD-1, período de 1997/1998, quando exerceu um eficiente mandato sempre na carinhosa, dinâmica e inseparável companhia de sua esposa Glacir Maria Melo Nogueira. Diz, finalmente, que o Lions Internacional é o maior clube de serviço do mundo, espalhado por todos os continentes, constituído por pessoas de bem, tendo como um dos seus principais objetivos ”servir ao próximo, desinteressadamente”. Sob a proteção do Grande Arquiteto do Universo, também entrou há 37 anos na Maçonaria, que é uma instituição filosófica, filantrópica, educativa e progressista. Na Maçonaria, Victor continua a frequentar duas lojas. Deixou a advocacia para retornar ao Banco do Brasil, quando ganhou a demanda no Tribunal Superior do Trabalho. Ao ser readmitido, além de desempenhar as suas funções visando aos interesses do
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BB e dos clientes, o que julgava sua obrigação, estabeleceu uma linha de atuação de defesa dos funcionários. A indignação contra as medidas ditatoriais despertam em Victor a ira do inconformismo contra o mal feito. Assim assumiu como suas as questões que pudessem ser ou não ser harmonizadas. Mesmo fora da estrutura sindical por mais de 15 anos, a chama se acendeu novamente e Victor arrumou poucas e boas encrencas com determinados superiores autoritários. Num procedimento inédito, que ainda hoje está na vanguarda das relações capital e trabalho, liberava as funcionárias para atenderem os filhos em casa, para levar ao médico quando estavam doentes e por outros problemas de ordem pessoal. Para não prejudicar o serviço na agência, distribuía o trabalho de quem fosse dispensado para outros colegas. Como todos gozavam do benefício, nunca houve problema. A solidariedade era a prática unânime. A importância dessa gestão de pessoal pode ser resumida numa frase de uma bancária no dia da festa de despedida do banco que aconteceu no restaurante do Parque Barigui: “agora preparem as costas para as chibatadas, porque nosso protetor foi embora”. Já que se trata de despedida, Victor faz questão de registrar a sua admiração e gratidão aos senhores Núncio Montingelli, Raul Schuchovski e Joaquim Dempsy Ferreira Rego, ex-gerentes com os quais trabalhou no Banco do Brasil. Essa gratidão estende a todos os professores, em especial à sua primeira professora do curso primário, dona Maria Correia Defreitas, da Escola Mista da Costeira de Paranaguá, por sua bondade e competência. Não menos gratidão sente pelos parentes, colegas e amigos devido à solidariedade que recebeu deles, inclusive, em pensamentos, promessas e orações nos momentos mais difíceis da vida.
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Acima, o pátio da Universidade Popular do Trabalho (UPT), no bairro Tarumã, em Curitiba, em 1989
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Abaixo, o secretário do Trabalho Rubens Bueno dá posse à primeira diretoria da UPT, composta por Laércio Souto Maior, Alípio Leal e Aluízio Gogola
NO GOVERNO
A grande festa na AABB termina. Victor encerra, em 1985, um período de uma vida vivida com paixão e intensidade. A vida de bancário está finalizada pela aposentadoria. Colocar os chinelos e descansar não está no horizonte dessa figura humana nascida para ação. O regime militar havia acabado há pouco tempo e muitas das estruturas do arbítrio ainda estavam a funcionar. Álvaro Dias ganhou a eleição e sucedeu ao Governador José Richa, que fizera um governo cuja marca foi a democracia e a participação popular. Álvaro recria a Secretaria do Trabalho, extinta no período militar. Assume o comando da secretaria um jovem parlamentar, Rubens Bueno — um político singular, que tinha a qualidade de aproveitar em sua equipe pessoas de grande talento e de dar liberdade para que elas dessem asas à imaginação e trabalhassem para concretizar os projetos. Se ele gostasse da ideia, aprovava, mandava executar e assumia todas as consequências. Rubens reuniu uma equipe de alto nível que o ajudou a consagrar-se como o mais prestigiado Secretário do Trabalho, até hoje, mais de vinte anos após ter deixado o cargo. Victor compõe essa equipe na área de Relações do Trabalho, coordenada pelo professor Ronaldo Lopez Garcia. Num time composto por ele, Ruy Sergio Costa Silva, Jane Beatriz Martins Soares, Jane Maria Salgado Cattani, Antonio Benedito de Siqueira, Nilo César Sobral Ramos, Biratã Higino Almeida Giacomoni, Friedmann Wendpap, Rosane Silva, Victor logo se destacou por três ações concretas: primeiro, foi um dos principais servidores da Secretaria do Trabalho a atuar na mediação
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dos movimentos grevistas, de trabalhadores de empresas privadas e empresas públicas. Intermediou, inclusive, reivindicações de algumas categorias dos portuários junto à Administração do Porto de Paranaguá, satisfazendo, plenamente, os representantes dos trabalhadores. A meta era fazer com que os movimentos reivindicatórios dos trabalhadores não extrapolassem a justa demanda trabalhista, nem que a polícia praticasse atos truculentos como estava acostumada. Na época da democracia isso parece desnecessário, mas naqueles tempos em que a semente da violência das forças da ditadura ainda tinha terreno propício para germinar, esse trabalho foi de excepcional importância. A experiência, a calma e a firmeza de Victor foram um dos esteios a garantir o direito de greve no Estado do Paraná. Se houve o lamentável episódio com os professores foi por consequência da Secretaria do Trabalho não ter sido a mediadora do conflito. Segundo, estabeleceu uma linha de ação que tinha como princípio atender a todas as correntes do movimento sindical. Naquele momento, o movimento sindical havia se dividido em três correntes contrárias: 1) o sindicalismo articulado com o sistema confederativo, com a estrutura corporativa da legislação sindical, 2) a corrente sindical que queria dar dinamismo ao sindicalismo corporativo e 3) a organização sindical que pretendia suprimir o sindicalismo corporativo. Os sindicatos vinculados ao sistema corporativo pretendiam manter as coisas como estavam na época do regime militar. Um período em que nada fazer em termos sindicais era condição para a manutenção do poder sindical. A corrente sindical que pretendia dinamizar a estrutura corporativista era conduzida pelas lideranças sindicais corporativas que viam no horizonte a impossibilidade de manter o poder sindical sem ajustar-se aos novos tempos. Essa corrente sofria influência do Partido Comunista do Brasil, PCdoB, Partido Comunista Brasileiro, PCB, e Movimento Revolucionário 8 de Outubro, MR8, que viam nas centrais sindicais uma correia de
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transmissão da tática e da estratégia revolucionária que tinham à época. Essas forças políticas e sindicais organizaram a Central Geral dos Trabalhadores, CGT, presidida por José Carlos Feliciano Moreira, hoje prestigiado advogado trabalhista. A corrente sindical adversária do corporativismo, vinculada ao Partido dos Trabalhadores, PT, tinha como estratégia de ação conquistar a hegemonia política entre os trabalhadores e por conta disso, da máquina sindical. Para isso, organizaram a Central Única dos Trabalhadores, CUT. A central, dirigida por petistas marcados pela inocência e radicalidade da adolescência, tinha a todos como adversários. Todos eram igualmente inimigos dos trabalhadores. Essa visão fazia com que se posicionassem com desconfiança em relação ao governo do PMDB. Mesmo que eventualmente preferisse fortalecer a CGT, Victor entendia que não se tratava de um assunto de governo. Portanto, todos deviam receber o mesmo tratamento. O desafio era conter a adesão cínica dos dirigentes vinculados à ditadura e manter um elo de contato com aqueles que viam no governo do PMDB um adversário que precisavam combater e repudiar. Terceiro, participou da construção do mais ousado projeto da gestão do secretário Rubens Bueno: A Universidade Popular do Trabalho, UPT. O projeto da UPT foi idealizado pelo genial agitador e empreendedor cultural, o ainda hoje comunista Laércio Souto Maior. Nessas três frentes de trabalho, Victor consumiu anos da sua aposentaria em troca do prazer e do compromisso de trabalhar pela democracia, em troca de um cargo no governo, cuja remuneração mal dava para abastecer o carro para ir fazer política sindical em Paranaguá. Para esse trabalho em Paranaguá, nunca aceitou receber diárias. Dois fatos são suficientes para ilustrar a ação do Victor na Secretaria do Trabalho. O primeiro e mais importante foi a mediação dos conflitos trabalhistas. Nessa mediação sobressaía a preocupação de garantir o direito de greve, sem que os trabalhadores fossem es-
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pancados pela polícia. Desse processo de mediação, resultou a constituição de uma estrutura tripartite: Secretaria do Trabalho, onde os dirigentes sindicais representantes dos empregadores, dos trabalhadores e do governo buscavam a composição de interesses. Essa prática do tripartismo levou ao acordo do Paraná, uma tentativa de domar a inflação e criar condições para a geração de empregos. Nos conflitos de interesses entre capital e trabalho, as empresas estatais também recorriam à Secretaria do Trabalho para mediar os conflitos. Um fato de grande repercussão à época foi a demissão de três funcionários do Banestado. Os trabalhadores e o Sindicato alegavam que o banco demitira os funcionários por conta de atritos com o seu chefe, por consequência de divergências políticas e sindicais. A Secretaria do Trabalho assumiu o compromisso de resolver o assunto e readmitir os funcionários. Victor e o coordenador de Relações de Trabalho, professor Ronaldo Lopez Garcia, investigaram o assunto e fizeram um detalhado relatório ao secretário Rubens Bueno, que a partir das conclusões levou o governador Álvaro Dias a determinar à direção do Banestado a readmissão dos demitidos. Antes que a decisão fosse implementada pelo banco, Ronaldo comunicou a dois dirigentes sindicais dos bancários que o assunto estava resolvido, mas que na correlação de forças do governo, a solução impunha uma derrota à diretoria do Banestado. Aos inexperientes e combativos dirigentes, a ponderação entrou por um ouvido e saiu por outro. No outro dia estava nos jornais que a Secretaria do Trabalho havia confirmado que havia perseguição política no Banestado. A readmissão do funcionário não se confirmou. Mais tarde na Justiça do Trabalho, Victor testemunhou em defesa de um dos demitidos, José Carlos Catarino, proc. 51/90, e confirmou que houve perseguição política por parte da direção do banco aos três funcionários, em virtude de serem ativistas sindicais combativos. Sabe-se que o cargo de Victor dava uma remuneração suficiente para encher o tanque da Belina, algumas vezes. Mas ele não trabalhava por dinheiro. Se estivesse interessado em ganhar dinheiro, poderia atender e expandir a clientela dos serviços de advocacia, se bem que quase
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nunca cobrava pelo trabalho. Um quarto de século depois, continuava interessado pelo movimento sindical em Paranaguá. Na medida em que havia sido constituído o escritório Regional da Secretaria do Trabalho em Paranaguá, Victor viu que era desejável que a ação poderia voltar-se para contribuir para a união dos sindicatos como havia acontecido no início dos anos de 1960. O dinamismo do chefe do escritório, Germano José Pavelkiewicz, e as orientações de Victor contribuíram para que os sindicatos tentassem elaborar uma pauta de discussão e reivindicação em comum. Houve também uma avanço na ação do movimento popular. Dessa união sindical e da mobilização popular surgiu a Frente Sindical e Popular de Paranaguá e, em consequência, a candidatura de um dirigente sindical a prefeito, a qual acabou por ser vitoriosa. Pela primeira vez na história, um trabalhador era eleito Prefeito de Paranaguá. Na avaliação do Victor, essa vitória poderia ter sido mais bem aproveitada, se houvesse uma maior sintonia entre os programas da Secretaria do Trabalho e a Prefeitura de Paranaguá. Encerrada a fase de governo, parecia que Victor iria enfim vestir o pijama, calçar os chinelos e assistir novelas no aconchego do lar ao lado de sua querida Marise. Quem apostou nessa possibilidade, perdeu. Victor encontrou novas causas para lutar. Primeiro, assumiu também para si a causa da anistia dos funcionários do Banco do Brasil. Nessa tarefa, gasta horas diárias - não é exagero, ficava por horas todo dia - ao telefone articulando os perseguidos do banco que não receberam a indenização e viajando inúmeras vezes para Brasília para tentar convencer a Comissão de Anistia a pagar o que os bancários têm direito. Aliás, pela mesma causa durante muitos anos auxiliou companheiros de outras categorias. O fardo ficou mais leve após a criação, por sugestão de Victor, da Associação Nacional dos Anistiados Políticos do Banco do Brasil, ANAP-BB, presidida pelo seu amigo e ex-sócio, Dr. Fernando Tristão Fernandes, com sede no Rio de Janeiro, que continuou dando assistência aos anistiados. A excessiva demora dos julgamentos prejudica os que têm direito à indenização em prestação mensal, permanente e continuada, mais os valores retroativos, tão justa a quem muito perdeu com
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a carreira no Banco do Brasil, por conta de transferências, destituições, impedimentos, prisões, torturas, processos e perseguições políticas durante o Golpe de Estado em 1964. Dentre tantos horríveis sofrimentos impostos aos perseguidos do Banco do Brasil e do terror da ditadura aos seus funcionários, cita como exemplo que Aluísio Palhano Pedreira Ferreira, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito, Contec, foi torturado até a morte nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, DOI-CODI, um dos órgãos de repressão da ditadura. Os assassinos desapareceram com o corpo de Palhano. E o que é grave também, sob fortes pressões, são as decisões da Comissão de Anistia ao flagrante arrepio da lei, que implica em mais uma dolorosa decepção, em especial quando cometida por pessoas de posições progressistas como se fossem brucutus da ditadura, no que se refere, em particular, aos processos de interesse dos perseguidos políticos do Banco do Brasil. “O ingresso no Judiciário para recuperar os seus direitos sonegados não está totalmente fora de cogitação, se é que existe alguém pelo avançado de suas idades com ânimo e saúde para aguardar o seu epílogo, uma vez que, por tratar-se de matéria constitucional, poderá tramitar até o Supremo Tribunal Federal”, finaliza Victor. A preocupação de Victor, nos últimos tempos, tem sido ainda auxiliar os perseguidos políticos a conquistar a anistia, prosseguir com suas participações no Lions, na Maçonaria, e colaborar com a Associação dos Amigos do Arquivo Manoel Jacinto Correia, da Secretaria do Trabalho, Emprego e Economia Solidária, idealizado por Laércio Souto Maior e da qual Victor é o presidente de honra. Entre as pessoas que contribuíram decisivamente para que o projeto do Arquivo Manoel Jacinto Correa pudesse ser concretizado, Victor faz questão de registrar o apoio de José Benedito Pires Trindade, Padre Roque Zimmermann, Emerson Nerone, Fernando V. Peppes, Nelson Garcia, Elietti de Souza Vilela, Tércio Alves de
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Albuquerque, Iram de Rezende, Nuncio Mannala, Luiz Claudio Romanelli e Marcelo Alvarenga Panizzi. Ainda hoje, em tudo que participa há a persistente preocupação com a justiça social e a paz. Sua vida cotidiana é lutar em favor dos seres humanos, em prol do humanismo. Quando transpor o limiar poderá dizer com paz na consciência: “lutei. Lutei contra as injustiças e por um mundo melhor”. O seu epitáfio poderá com acerto ser a frase que entre sério e brincando cumprimenta todos os amigos: “E a revolução, continua?”.
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SOBRE O AUTOR
Antonio Benedito de Siqueira é economista, mestre em História Econômica e doutor em Economia e Política Florestal pela UFPR. É professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Também é autor das seguintes obras: - “Produção Florestal Empresarial e Associativa, Análise e Contextualização Macroeconômicas”. Editora Juruá, 2009. - “Sindicato de Estado e Negociação Coletiva de Trabalho na Indústria Paranaense nos anos 1970”. Instituto Memória, 2009. - “Crise Econômica e Sindicato no Brasil (1980 a 1984)”. Instituto de Memória, 2010. - “Economia do Trabalho e Sindicalismo: Escritos Avulsos”. Instituto Memória, 2011.
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