HQUEBRADAS – AS SARAUZEIRAS ONÍRICAS A poética-ativista das periferias em quadrinhos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÍDIAS CRIATIVAS MESTRADO PROFISSIONAL EM CRIAÇÃO E PRODUÇÃO DE CONTEÚDOS DIGITAIS

THAIS QUINTELLA DE LINHARES

HQUEBRADAS – AS SARAUZEIRAS ONÍRICAS A poética-ativista das periferias em quadrinhos na promoção da ocupação de espaços de narrativa do senso comum na questão da demanda por direitos humanos

Rio de Janeiro, julho de 2020


THAIS QUINTELLA DE LINHARES

HQUEBRADAS – AS SARAUZEIRAS ONÍRICAS A poética-ativista das periferias em quadrinhos na promoção da ocupação de espaços de narrativa do senso comum na questão da demanda por direitos humanos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Mídias Criativas da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Mário Feijó Examinadores:

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Rio de Janeiro, julho de 2020 FOLHA DE APROVAÇÃO A dissertação “HQUEBRADAS – AS SARAUZEIRAS ONÍRICAS – A poética-ativista das periferias em quadrinhos na promoção da ocupação de espaços de narrativa do senso comum na questão da demanda por direitos humanos”, realizada por Thais Quintella de Linhares, aluna do mestrado profissional do Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, linha de pesquisa Conteúdos e Objetos Digitais Editoriais, foi ..........................................., em ......../......./2020, pela banca composta pelos seguintes membros:

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Mário Feijó (Orientador)

_________________________________________________________________________ Profa. Dra. Kátia Augusta Maciel (UFRJ)

_________________________________________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Benevides (UERJ)

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Dedico esta dissertação ao meu querido amigo Écio Salles (in memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Gratidão poderia ser um subtítulo desta dissertação. Os últimos anos foram os mais difíceis, até onde me lembro, tanto em termos profissionais quanto pessoais. Foram anos de grandes perdas. Perdas de perspectivas, de ilusões e o que mais doeu, de grandes amigas e amigos. Completar este projeto é um passo à frente para viver o luto e prosseguir na luta, com a certeza de que todos aqueles que estiveram comigo neste trajetos, permanecerão presentes nas criações aqui apresentadas, seja como tema, seja como motivação. Sei que dificilmente conseguirei descrever um a um meus agradecimentos da forma como merecem, mas tentarei. Meu primeiro muito obrigada é para as minhas três musas, Maria Inez, Yolanda Soares e Lindacy Fidélis, às Sarauzeiras Oníricas, por confiarem a mim a honra de contar um pouco de sua história. Assim sendo, tenho de adiantar minha gratidão a Écio Salles (in memoriam) e Julio Ludemir, por me reconhecerem como parte da família FLUP (Festa Literária Internacional das Periferias). Graças a estas vivências me redescobri como pessoa, sobretudo cidadã carioca, brasileira, gente. Estendo esse agradecimento a todos desta família, poetas, produtores, quebradeiras e quebradeiros, que trazem pro centro do palco a festa da periferia. Tem sido transformador e maravilhoso viver isso junto. Agradeço muitíssimo ao corpo de professores do PPGMC, ao acolherem e contribuírem de forma Inestimável ao desenvolvimento deste projeto. Não imagino nenhum outro lugar que poderia estar melhor preparado para tal, e nem com tanta potencialidade para futuros desdobramentos a partir dos produtos gerados. E claro que não posso deixar de citar aqui o quão foi importante a ajuda de Joice Andrade, que mais de guia nos processos burocráticos, foi um verdadeiro anjo-da-guarda em momentos de maior tensão no desenrolar da vida acadêmica. Ao lado disso, o companheirismo de meus colegas de sala aparece como um apoio que não raras vezes contribuiu fortalecendo e agregando materiais importantes para a conclusão desta. Dentro deste destaque, exalto ainda os colegas Hamilton Kabuna, Rapha Pinheiro e Andreia Vieira, juntamente aos professores Amaury Fernandes, Octávio Aragão e Cláudia 5


Mendes, através dos quais fortaleço meu contato e articulações no universo dos eventos, produções e publicações de histórias em quadrinhos e livros. Não posso deixar de agradecer igualmente as novas amizades feitas durante o período de residência, sobretudo à Patrícia Muller, grande artista ​parisiense-charitoise​ e a Eduardo Pinto Barbier, que junto a ter me abrigado em sua casa durante a pandemia da covid-19 de 2020, ajudou-me a manter segura e com a paz de espírito necessária para concluir os textos de minha dissertação e produtos do mestrado. E num último momento, contando os minutos para a entrega do produto, minha querida amiga e grande jornalista Akemi Nitahara me brindou com seu parecer e revisão das artes. Muito agradecida!

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AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

Por fim, e certamente mais importante, agradeço aos meus pais, Tuxaua e Eliana Quintella de Linhares, pelo apoio material e emocional, e aos meus amados filhos, Breno Dinarte e Ian Dinarte, que mesmo de longe, foram minhas melhores companhias em todo esse trajeto. ​Aos meus filhos e meus pais, sem os quais por sua ajuda, apoio e compreensão eu não teria como ter cumprido esta importante etapa de minha educação acadêmica e profissional. Por todo amor e dedicação oferecidos, meu eterno carinho e gratidão.

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"Não é fácil pra qualquer um que se mete a fazer algo capaz de reinventar a cidade, capaz de reinventar a vida. Que aposta na alegria, não na tristeza”. (Écio Salles, criador e produtor da FLUP, a Festa Literária Internacional das Periferias)

“Torturar corpos é menos eficaz que moldar mentalidades.” (Manuel Castells)

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RESUMO

Dentro da grande rede de saraus, ​grafitaços feministas e bailes funk – na cultura periférica, os poetas são os que mais circulam e conectam os diferentes núcleos emergentes desta construção cultural na demanda por direitos sociais. Este projeto estudará como este processo vem se consolidando e afetando o cenário urbano de garantia de direitos, e como produto será criado um álbum de histórias em quadrinhos com relatos biográficos a partir da cartografia das andanças de três poetas: Lindacy Menezes (Lindinha), Yolanda Soares (Yoyo) e Maria Inez (Mery Onírica), as Sarauzeiras Oníricas. As narrativas de suas aventuras em tempo presente, entrecortadas com memórias de suas juventudes nas favelas e ruas, se confundem com a história de uma cidade que se urbanizou rápida e caoticamente desde a Ditadura Militar, passando por um processo de transição democrática que até hoje não se consolidou. PALAVRAS-CHAVE: Histórias em quadrinhos, saraus poéticos, favela, direitos-humanos.

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ABSTRACT Within the large network of soirées, feminist graffiti and funk dances - in peripheral culture, poets are the ones that most circulate and connect the different nuclei emerging from this cultural construction in the demand for social rights. This project will study how this process has been consolidating and affecting the urban rights guarantee scenario. As a product, an graphic album with biographic testimonies will be created following the cartography of the wanderings of three poets: Lindacy Menezes (Lindinha), Yolanda Soares (Yoyo) and Maria Inez (Mery Onírica), the Sarauzeiras Oníricas. The narratives of their adventures in the present time, interspersed with memories of their youth in the favelas and streets, are mingled with the history of a city that was rapidly and chaotically urbanized since the Military Dictatorship, passing through a process of democratic transition that is still to be consolidated . KEYWORDS: Comics, poetry slam, favela, human rights.

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SUMÁRIO

Introdução

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Capítulo 1: "Direitos Humanos é coisa de bandido!”

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De como se iniciou o desmonte da narrativa hegemônica de criminalização dos Direitos Humanos, favelas e movimentos sociais a partir de novas tecnologias de comunicação em rede.

1.1 – Mídia Hegemônica

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1.2 – Caso Rafael Braga

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1.3 – A literatura internacional subiu os morros

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1.4 – A Universidade das Quebradas

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Capítulo 2: Historicidade

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Este capítulo se propõe a apresentar o crescimento de um movimento que se utiliza das artes gráficas e performáticas enquanto constrói uma iconografia original e brasileira de afirmação das liberdades sexuais e direitos civis das mulheres. Especialmente uma população que, quando não é tornada invisível institucionalmente, é ainda alvo de violência explícita, as mulheres negras moradoras das favelas e periferias urbanas.

2.1 – "Quem ama não mata"

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2.2 – Slam das Minas

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2.3 – Mulheres Maravilhas

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2.4 – As Periquitas

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2.5 – As Guerrilla Girls

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2.6 – Rede Nami

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2.7 – Internet

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2.8 – Recriando as narrativas

Capítulo 3: Metodologia, a observação participante

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A metodologia tal como ela se desenvolve, com a inserção dentro do contexto representado. A presença da autora junto às personagens biografadas, participação nos eventos relatados. 3.1 – Observação participante e a autoficção 3.1.1 – Breve nota sobre o método

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3.2 – O chamado à participação

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3.3 – A trajetória de uma observadora participativa

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3.4 – Autoras que são personagens

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3.5 – Memórias Quebradas

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3.6 – As Protagonistas

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3.6.1 – Memórias Sarauzeiras

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3.6.2 – Memórias de Maria e a favela do Vila Vintém

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3.6.3 – Memórias de Lindacy e a favela da Rocinha

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3.6.4.– Memórias de Yolanda Soares e a favela da Maré

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Capítulo 4: CIBERQUEBRADAS a convergência das periferias

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Neste capítulo serão analisados os cenários e as personagens representadas nas narrativas. Mostras de suas artes, o contexto onde atuam e os recortes de representação.

4.1 – Sarauzeiras no Instagram

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4.1.1 – #Lindacy

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4.1.2 – #Yolanda

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4.1.3 – #Maria Inez

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4.2 – POETA ou POETISA?

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4.3 – As crias e as quebradas

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4.4 – Facebook

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4.5 – A Vingança da Poesia

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4.6 – FLUP –A Festa Literária na Convergência

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4.7 – As Sarauzeiras Convergentes

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4.7.1 – "A mídia tornou-se suspeita"– piscina do tráfico

Capítulo 5: Descrição do produto – Álbum em quadrinhos

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O último capítulo abordará a análise do processo de criação artística e produção gráfica das narrativas. Partindo do estado atual da arte, evoluindo para as soluções escolhidas para materializar o álbum de histórias quadrinhos.

5.1 – Histórias são melhor contadas em quadrinhos

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5.2 – O Estado da Questão

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5.2.1 – MAUS de Art Spiegelman

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5.2.2 – Days of Destruction, Days of Revolt de Hedges e Sacco

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5.2.3 – Vírus Tropical de Power Paola

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5.2.4 – Couro de Gato: uma história do samba de Patati e Sánchez 118 5.3 – Formato

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5.4 – Estilo Gráico

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5.4.1 – Relato do tempo presente

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5.4.2 – Relatos memoriais

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Capítulo 6: Residência na França

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O desdobramento da ideia original em um novo produto realizado durante a recente Residência Artística obtida por meio de edital do governo francês.

6.1 – Edital Odyssée

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6.2 – Paris

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6.3 – Angoulême, capital dos quadrinhos

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6.4 – Recepção e estrutura em Charité

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6.5 – La Charité das Favelas, o produto da residência francesa

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Capítulo 7: Outros produtos do "Sarauverso"

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Histórias curtas e exposições desdobradas a partir da criação do produto principal.

7.1 – Café, sorvete e um cadáver

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7.2 – MenorCidade

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7.3 – Poetas das Quebradas

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Conclusão

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Referências

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PRODUTOS:

PRODUTO A – Sarau Estação 67

PRODUTO B – La Charité de las Favelas

PRODUTO C – Café, Sorvete e um Cadáver

PRODUTO D – MenorCidade

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INTRODUÇÃO

Em 2015 já eram mais de 130 saraus poéticos na grande Rio de Janeiro – e outros mais em Nova Iguaçu, São Gonçalo, Campo Grande, Duque de Caxias e Magé – que surgem de forma espontânea a partir de inúmeros coletivos1. Forma de resistência das favelas e periferias a ataques protagonizados pelo poder Estatal, sob a alegação de uma “guerra ao tráfico”, dita política de segurança que já nasceu sem a pretensão de dar certo, a não ser no quesito “controle social” e “exclusão de direitos”. Contra as violações de direitos humanos, a arte – poesia, quadrinhos, grafitagem, batalhas de MCs e ​Slams – se ergue como um poder inesperado e transformador. A ideia é fazer o registro se aproveitando das narrativas pessoais de três artistas cujos dramas que se espelham no macrocosmo das convulsões sociais das periferias. Yolanda começou a trabalhar com 14 anos para ajudar os irmãos na favela da Maré e superou um casamento abusivo nas mãos de um marido violento. Lindacy, que iniciou-se como trabalhadora doméstica aos nove anos, sonha ainda conhecer sua mãe biológica, tendo sido entregue num bordel ainda criança. Maria Inez dormia nas ruas, tendo sofrido dois estupros o primeiro aos nove anos de idade, aprendeu suas primeiras letras com sua mãe usando o chão de terra como caderno. Não à toa a menina acreditava ver fantasmas por trás das lixeiras onde mais tarde, acharia os livros de sua biblioteca. Ao redor destas mulheres a cidade cresceu desordenada, afastando e aproximando afetos. As três se descobrem poetas em uma oficina do Festival Literário das Periferias (chamado antes de FLUPP, sendo “das UPPs2”) – a FLUP – num momento em que as UPPs ainda prometiam a salvação. Se juntaram a outras personagens marcantes: como o radialista Bruno Black (talvez o mais divertido dos poetas negros); a ex-chefe do tráfico na Rocinha, Raquel de Oliveira, que foi uma das sarauzeiras originais, hoje escritora de contos eróticos e professora de crianças; o coreógrafo do Vidigal, Márcio Januário, tutor das Sarauzeiras Oníricas e por fim a dupla dinâmica das quebradas: Julio 1

Mapeamento dos Saraus da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – acesso em 4 de dez. 2018. Acessível

em http://mufaproducoes.com/mapeamento-de-saraus- rj/ 2 UPP – a Unidade de Polícia Pacificadora – ​foi um projeto aplicado em 2008 pela Secretaria Estadual de Segurança do ​Rio de Janeiro​ que pretendia instituir ​polícias comunitárias​ em ​favelas​, principalmente na capital do estado​, como forma de desarticular facções do tráfico de drogas ilícitas.

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Ludemir e Écio Salles (falecido em 2019), diretores da FLUP. As memórias trazem o ritmo dos dramas de Tarantino, a poesia crua de Ettore Scola e o lirismo militante de Lars Von Trier. A decupagem, o traço, o estilo, busca experimentar um pouco desta estética carioca, da favela, de cartografias oníricas, seja do alto do Teleférico do Alemão, do grafite da minas ​afrografiteiras,​ a brisa fresca do Piscinão de Ramos, na ladeira da Rocinha, no ritmo do slam de Madureira, do samba do funk, do ​anarcofunk e bater cadenciado dos trilhos dos trens da Central do Brasil. O que busca-se é registrar uma fatia deste movimento que abriga resistências a partir de duas narrativas gráficas. Nosso ponto de partida é a pequena odisseia quando as Sarauzeiras foram chamadas para abrir como convidadas especiais o Sarau Estação 67, em Santa Cruz. Cravado em meio a uma região extremamente carente de atenção por parte do Estado, sobretudo cultura, seus produtores encaram de um lado milicianos, de outro evangélicos fundamentalistas, para trazer ao palco a criatividade dos artistas locais e remotos. Poesia, música, grafite e dança, cortam a noite em busca de protagonismo na construção de narrativas que sobrepujam a violência, seja é física, material ou espiritual. Nesta história em quadrinhos, ficamos conhecendo também um pouco das origens das três senhoras poetas, de como foram recebidas e moldadas pela cidade do Rio de Janeiro e seus mapeamentos. Avaliaremos aqui também os motivos que pautaram a escolha do suporte, no caso a história em quadrinhos, dentre outros tantos à disposição dos criadores nos atuais dias de redes sociais e acesso a tecnologias de criação de conteúdos para distribuição e consumo. Longe de pretender alguma hierarquia entre os suportes existentes, há de se entender a forma como diferentes mídias convergem, e as pensar de forma a otimizar o que se pretende, por exemplo, se queremos uma maior difusão, ou atingir um nicho específico. Isso será discutido mais a fundo quando apresentarmos a forma como os poetas de periferia se utilizam destas formas de publicação e difusão, partindo sempre do nosso objeto, As Sarauzeiras Oníricas, através de suas interações com as redes cibernéticas e presenciais. O segundo produto apresentado, vem de uma oportunidade surgida já no decorrer do mestrado: uma residência artística no interior do Vale do Loire, na França. Um projeto apresentado a um edital específico para criadores americanos promovido pela Association 16


des Centres Culturels de Rencontres (ACCR)3. Este novo produto trabalha com retratos que recebem interferências textuais criadas a partir dos depoimentos fornecidos pelas poetas e também de três mulheres moradoras da cidade visitada, instigadas por perguntas que as mulheres das favelas enviam às mulheres francesas e vice-versa, promovendo um diálogo entre os cotidianos das favelas e da cidadela medieval francesa de Charité-sur-Loire. A busca por um discurso feminino é estratégica em um projeto onde se pretende debater a situação dos direitos humanos em periferias e locais isolados, como as favelas brasileiras ou a pequenina Charité-sur-Loire, cujas características históricas foram especialmente interessantes neste projeto, como será melhor exposto em capítulo posterior. Assim como a favela é a periferia da cidade, a mulher se encontra na periferia da cidadania, e recai sobre ela o ônus mais pesado quando se trata de arcar com questões oriundas da briga de classes e construção, ou mesmo destruição, através de suas representações imagéticas. Buscamos assim reconstruir narrativas que nos ajudem a repensar a sociedade, usufruindo de suportes que possam aliar a potência da palavra com a transparência da comunicação pela imagem. E também olhando além para algo que possa instigar desdobramentos de novas narrativas e explorações de discursos e estéticas. Partimos das periferias cariocas para o mundo, na intenção de tocar outras periferias e formar redes que se comuniquem identificando similitudes e divergências na intenção, sobretudo, de potenciais transformadores na busca da garantias de direitos. Assim defini-se como objetivo geral desta, traçar uma cartografia poético-visual por meio do registro em quadrinhos das memórias das poetas em suas andanças pelos territórios diversos das periferias do Rio de Janeiro. Disponibilizar o material produzido, acrescentando ao projeto um valioso acervo do que foi/é a vida das três mulheres da periferia – sob o impacto da violência urbana, a força de uma amizade alinhavada por cenas de grande drama e beleza, a sua produção poética pautando o tom das cenas representadas em HQ. Pautar denúncias quanto à saúde do Estado Democrático de Direito e as violações de Direitos Humanos nas

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Association des Centres Culturels de Rencontres (ACCR) a Associação dos Centros Culturais e de Encontros, ligada ao ministério da cultura e comunicação da França.

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áreas de moradia mais pobres. Revelar que estas áreas, de fato, as não domesticadas pela narrativa cultural das elites, se mostra como a mais criativa e fecunda, e portanto a com maior potencial transformador e de resgate democrático. Os saraus e suas maiores estrelas, as Sarauzeiras Oníricas, apresentando uma radiografia do que é, e como se transforma, o mapa poético do Rio e suas periferias. Puxar o público para assumir autorias e interferências, tornando o pensar sobre si uma experiência compartilhada. E em um segundo momento, usar esse produtos como canais que conectam grupos de promoção do debate por direitos em outros locais geográficos, como feito durante a residência no estrangeiro.

Como objetivos específicos definimos:

– Produzir álbum/graphic novel de 80 páginas – subdividido em capítulos, no formato 24,0x16,5 cm, a ser publicado em plataforma digital, com possibilidade de versão impressa (todo o arquivo estará pronto e disponível para tanto) das “Sarauzeiras Oníricas”. – Produzir coletânea de 12 painéis/histórias em quadrinhos, no formato 21x28cm (A4), a ser publicado em plataforma digital, com possibilidade de versão impressa (todo o arquivo estará pronto e disponível para tanto) referente ao produto da residência: “La Charité de Las Favelas”4. – Disponibilizar os materiais documentais dos testemunhos, e de referência para o público em plataforma de livre acesso. – Promover a obra em sites, veículos de comunicação popular, eventos e grupos de trabalho de coletivos diversos. E também em eventos, saraus e exposições em instituições.

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“La Charité de Las Favelas” faz um jogo de palavras com “charité" , palavra francesa “caridade”, e as redes de colaboração formadas pelas mulheres das comunidades.

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CAPÍTULO 1: "Direitos Humanos é coisa de bandido!” De como se iniciou o desmonte da narrativa hegemônica de criminalização dos Direitos Humanos, favelas e movimentos sociais a partir de novas tecnologias de comunicação em rede.

1.1 – Mídia hegemônica

Conhecidas como “Jornadas de Junho de 2013”*, manifestações populares contando com multidões tomaram as ruas das capitais brasileiras, carregando bandeiras diversas, algumas vezes até mesmo conflitantes. Naquele momento diversos meios de comunicação se apropriaram dos movimentos para defender as pautas de seus patronos, optando por narrativas nem sempre fiéis às que os protestos pediam. Pautas contra violência policial dentro das favelas, por exemplo, foram ignoradas. Demandas urgentes por direitos foram sufocadas, ou simplesmente ignoradas, a favor de uma única que permitisse a utilização dos manifestos nacionais sob uma narrativa tradicionalmente usada para manipulação da opinião pública no jogo do grande poder: o combate contra a corrupção no meio da política institucional. Dentro destas manifestações advogados voluntários de direitos humanos se misturavam ao povo se dispondo a auxiliar gratuitamente em caso das prisões arbitrárias, que são táticas de manobras repressivas do poder público em flagrante violação do direito constitucional à manifestação e livre expressão. Coletivos como os Advogados Ativistas5, se organizaram nas capitais e também os advogados do Instituto de Defensores de Direitos Humanos, o DDH6 no Rio de Janeiro. Originalmente criado para intervir junto à demanda da população mais carente de acesso à justiça, quando diante do quadro caótico das imensas marchas populares de junho de 2013, os DDH partiu então para atuação também nas ruas. E foi nesse momento que o grupo inicialmente pequeno viu se aproximarem diversos voluntários. Outros jovens 5

Advogados Ativistas (AA) – coletivo paulistano de advogados que voluntariamente atendem a vítimas de violações de direitos humanos. 6 O Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) – localizado na cidade do Rio de Janeiro, atende a vítimas de violações de direitos humanos, em condições de vulnerabilidade social, articula ações de ​advocacy​, além de promover formação legal sobre direitos a populares.

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advogados, sobretudo recém formados, que ingressaram no grupo por ideais democráticos, em defesa dos manifestantes. Havia a percepção geral da oportunidade para uma transformação de uma sociedade que então ainda estava longe de se estabelecer como garantidora de direitos. A Jornadas de Junho levou muitos às ruas e foi a porta de entrada de muitos que hoje atuam em causas sociais e democráticas.

Parte da equipe original na sede do DDH. Foto: arquivo do DDH.

Além das estratégias repressivas, sendo a mais comum a prisão arbitrária de manifestantes, o poder público lançou mão e outras ações para intimidar qualquer expressão crítica ao governo. Grampos ilegais na linhas telefônicas de advogados voluntários, processar os defensores e também políticos de oposição, jornalistas independentes e manifestantes – através de ​lawfare7– e criar narrativas criminalização de movimentos sociais e defensores de direitos humanos com auxílio de veículos comerciais de mídia, especialmente os vinculados ao uso de verbas estatais em propaganda na páginas e horários de transmissão. Assim, publicações como a revista Veja, o jornal O Globo e TV Globo, no Rio de Janeiro, insistentemente pautavam a narrativa deslegitimando as manifestações como se não passassem de “baderna” e “vandalismo”. ​Lawfare:​ ​o emprego de manobras jurídico-legais como substituto de ​força armada​, visando alcançar determinados objetivos de ​política externa​ ou de ​segurança nacional​, ou ainda, na perseguição a opositores políticos internos. 7

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Matéria publicada após uma das grandes manifestações no centro do Rio de Janeiro.

Num primeiro momento, a mídia comercial ainda não havia se apropriado das manifestações para vender sua pauta aliada à oposição praticada pela Direita ao governo federal de centro-esquerda da então presidenta eleita Dilma Roussef (do Partido dos Trabalhadores – PT), especialmente no Rio de Janeiro, onde o então governador Sérgio Cabral (Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB) administrou sob denúncias graves de corrupção, a realização de dois grandes eventos: Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016. Então a pauta na mídia era criminalizar tudo que se alinhasse a demandas da Esquerda, tais como direitos civis, saúde, educação, acesso à cidade e segurança pública cidadã, em especial aqueles empenhados em denunciar irregularidades nas obras referentes aos grandes eventos contratadas às empreiteiras através de licitações.

Prova inconteste da criminalização da população vulnerável, além dos constantes atos de preconceito e discriminação que sofrem por parte da sociedade, são algumas declarações proferidas pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, para quem as favelas seriam “fábricas de produzir marginal”, e pelo Secretário de Segurança Pública do Estado, José Mariano Beltrame, que defende a ideia de que “tiro na zona sul é uma coisa, na favela é outra”. Importante papel também exerce a mídia, que na maioria absoluta das vezes só freqüenta as favelas para cobrir eventos ligados à violência. A reforma da segurança pública deve, pois, ser iniciada pela efetiva descriminalização da pobreza, com a implementação de políticas inclusivas e de valorização, bem como a instalação de escolas, hospitais, e espaços culturais e esportivos nas comunidades. (Laíze Gabriela Benevides, Matheus Rodrigues, Rafael Rondis de Abreu Segurança Pública e Direitos Humanos no estado do Rio de Janeiro 96 DOI 10.12957/dep.2011.2319 Direito e Práxis, vol. 03, n. 02, 2011)

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Especificamente visando difamar os advogados, a mídia focou em publicar matérias que distorceram a visão da população sobre a atuação dos defensores de direitos humanos, focando especialmente na articulação dos voluntários com a Secretaria Estadual de Direitos Humanos, que atuava frequentemente na garantia de direitos de manifestantes, e que então era chefiada pelo deputado estadual de esquerda, Marcelo Freixo (Partido Socialismo e Liberdade – PSOL). Ressalta-se que o DDH é uma instituição reconhecida como importante por sua atuação independente (não usa recursos de editais públicos) por diversos agentes de defesa de Direitos Humanos no Brasil e no mundo. Notas de apoio foram lançadas em defesa do Instituto, porém, tais notas tem alcance limitadíssimo quando comparadas ao “estrago" de uma capa de O Globo ou coluna da Veja podem obter. É uma guerra desigual onde vence a narrativa de maior alcance e suporte econômico. O ataque costuma ser proporcional ao tamanho da bandeira e à força da luta. Esta convicção é, mais que nunca, aplicável à deliberada campanha de deslegitimação e ataque realizado contra o deputado estadual Marcelo Freixo e o coordenador do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Thiago de Souza Melo, no contexto da lamentável morte do cinegrafista do Grupo Bandeirantes, Santiago Andrade, enquanto cobria uma manifestação contra o aumento das passagens de ônibus no centro do Rio de Janeiro no dia 06 de fevereiro de 2014. Desde o domingo seguinte, 09 de fevereiro, a mídia tinha realizado uma campanha difamatória da atuação de Marcelo Freixo e Thiago Melo enquanto defensores de direitos humanos atuando no contexto das manifestações marcadas por uma brutal repressão policial, onde se contabilizou diversas detenções arbitrárias. Importante ressaltar que a atuação de Marcelo Freixo na defesa dos direitos humanos antecede a sua atividade parlamentar. Ao longo de mais de 20 anos de trabalho, conquistou reconhecimento tanto no âmbito nacional como internacional. O próprio jornal O Globo, que então o atacava, já o utilizara diversas vezes como consultor para suas matérias. Como não poderia deixar de ser, devido à sua trajetória, sua equipe era então composta de pessoas ligadas aos 22


movimentos sociais e comprometidas com a defesa dos direitos humanos. O advogado Thiago Melo era um deles, assim como também era um dos fundadores do DDH, associação civil sem fins lucrativos, que nasceu em 2007 para apoiar as vítimas do Estado, quando dezenove pessoas foram mortas durante operação policial no complexo de favelas do Morro do Alemão,8 num evento que ficou conhecido como a Chacina do PAN9. No dia seguinte à mega-operação do dia 27 de junho, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) visitou o local, entrevistou moradores e colheu seus testemunhos onde se denunciavam as execuções feitas por policiais. O então presidente da comissão, João Tancredo, apresentou denúncias à imprensa e ao Ministério Público sobre evidências que apontavam para as mortes sem confronto. Intimidado a não prosseguir com as denúncias, Tancredo foi demitido pelo presidente da OAB-RJ – o advogado Wadih Nemer Damous Filho – e suas descobertas, ignoradas pelos meios de comunicação, não chegariam jamais a público. Alguns advogados de sua equipe, entre estes Thiago Melo, decidiram acompanhá-lo e juntos fundaram o DDH, que de forma independente poderia atuar sem temor de interferências por motivações político partidárias. O trabalho do DDH consistia em oferecer assessoria jurídica gratuita para pessoas que não podem pagar pelo serviço em casos emblemáticos de violência institucional. A chegada das UPP não cumpriu com as promessas de inclusão social, cristalizando-se um mais uma forma de repressão na falta de políticas sociais que efetivassem a garantia de direitos, segundo apontado pela vereadora Marielle Franco10 em

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O Complexo do Alemão fica na Zona Norte do Rio de Janeiro, mais especificamente sobre a Serra da Misericórdia e é situado entre os bairros de Ramos, Penha, Olaria, Inhaúma e Bonsucesso. É composto por 13 favelas: Morro da Baiana, Morro do Alemão, Alvorada, Matinha, Morro dos Mineiros, Nova Brasília, Pedra do Sapo, Palmeiras, Fazendinha, Grota, Chatuba, Caracol, Favelinha, Vila Cruzeiro, Caixa d'Água, Morro do Adeus. Sua população é estimada entre 100.000 a 300.000 habitantes. A região tem um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do município do Rio, sendo 0,587. Um terço de seus moradores têm renda inferior a um salário mínimo. (PORTAL MEIO NORTE, 2007) 9 Em outubro de 2007, relatório feito por peritos forenses designados pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, comprovou que houve execuções sumárias e arbitrárias no Complexo do Alemão. De acordo com o documento, a polícia gastou 70 balas para matar 19 pessoas, sendo que, pelo menos em dois casos, os laudos comprovam que houve execução. 10 ​Marielle Franco, então vereadora (PSOL), destaque na luta contra a violência policial nas favelas, assassinada numa emboscada organizada por milicianos do "Escritório do Crime", organização criminosa que então dominou grande parte das comunidades nas periferias cariocas e até a presente data o crime se encontra não elucidado quanto aos seus mandantes.

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Seguindo o raciocínio que se apresentou até o momento, pode-se identificar que a realidade de aplicação das UPPs não apresentou qualquer alteração de qualidade na forma de políticas públicas, sequer de policiamento. Até agora, o que se pode verificar é o predomínio de uma ideologia que conquista significativamente a cidade articulando a paz com a ação policial. Porém, não é possível, por meio de ações policiais, conquistar um ambiente de paz ou de segurança”. (Franco, 2014: 47). Na cidade modelo dos grandes investidores, as contradições se acirram e a população se levanta contra a retirada dos seus direitos. Na mesma medida, o poder público abre mão da legalidade para a manutenção da ordem estabelecida e acirra a violência institucional. Professores criminalizados, centenas de manifestantes levados para delegacias em um só dia: a forma de repressão pode ser diferente, mas a polícia que assassina nas favelas é a mesma que reprime a luta por direitos. Nesse sentido, a aprovação da PEC-51 pode ser considerada um avanço nas políticas de segurança nacional (Franco, 2014: 119).

A campanha que depois viria a ser articulada contra Marcelo Freixo e Thiago Melo era uma flagrante utilização política da trágica morte do cinegrafista como mote para manipular a opinião pública e criminalizar parlamentares, organizações e defensores de direitos humanos e deslegitimar a luta por direitos que havia então tomado as ruas. Promovia-se então o apagamento das pautas populares enquanto já se preparava a inflação do discurso de combate à corrupção descolado de qualquer participação popular real que pudesse de fato transformar a sociedade. Num ano de eleições nacionais e Copa do Mundo, a estratégia de tirar de foco a pauta política das manifestações era evidente. A campanha orquestrada, entre outros, pela mídia impressa e televisiva, a brutal atuação policial, o crescente investimento do Estado na aquisição de armamentos bélicos e de vigilância, as legislações e medidas de exceção, buscavam silenciar cada vez mais a voz das ruas. A tentativa de criminalizar a atuação do deputado Marcelo Freixo e Thiago Melo visava atingir a luta de todos os defensores de direitos humanos e por consequência as demandas dos movimentos sociais representativos das pautas das favelas e periferias urbanas. Numa prática apontada pelo sociólogo Zygmunt Bauman como a ​criminalização da pobreza​: “Cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer, como o produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação – como a própria encarnação do pecado.” (BAUMAN, 1999, p. 59).

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Essa guerra desproporcional de narrativas denunciava o calcanhar de Aquiles tanto dos movimentos sociais quanto dos coletivos de advogados voluntários que atuavam em sua defesa: a falta de uma comunicação mais ampla que informasse de forma clara e transparente ao público consumidor das notícias, qual era o papel dos defensores de direitos humanos e como eles atuam. Trabalhando com objetivo de cobrir essa falta é que coletivos de comunicação e artistas voluntários viriam a se juntar aos advogados dos DDH. Podemos mesmo dizer que as Jornadas de Junho foram responsáveis por uma nova geração tanto de advogados quanto de arte-ativistas, engajados com as pautas de Direitos Humanos e defesa da Democracia. Foi neste momento em que nos encontramos como participante destes grupos. A atuação junto ao DDH inicia-se com a criação de peças informativas, comunicados urgentes, representação em reuniões de outros coletivos populares, monitoramento de informações e divulgação de decisões das assembleias populares sobre CPIs ligadas a questões de segurança pública (uma das principais pautas das manifestações e também a mais invisibilizada pela mídia comercial) e formação de parcerias com outras instituições engajadas, sobretudo na área da comunicação e cultura. Com a popularização da difusão de conteúdo promovida pela Internet de banda larga, materiais que possibilitaram a artistas e comunicadores a transmitir os discursos sociais, a grande mídia perdia pela primeira vez uma poderosa hegemonia.

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Chamada para o Festival Todo Mundo tem Direitos, realizado junto com a Anistia Internacional e outras organizações populares de direitos, no Rio de Janeiro em 10 de dezembro de 2015, em comemoração ao Dia Internacional dos Direitos Humanos. Arte de Thais Linhares assinando como "Mirim".

Dois memes criados para divulgação dentro da página de Facebook do DDH. O plantão jurídico acompanha as demandas solicitadas durantes as manifestações noite e madrugada adentro. Artes de Thais Linhares assinando como "Mirim".

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1.2 – Caso Rafael Braga

Enquanto as Jornadas de Junho marcaram o início do engajamento de muitos em pautas de cidadania, para alguns, em especial para um jovem catador de papel de vinte e cinco anos, Rafael Braga, seria o princípio de uma virada trágica em suas vidas. No dia 20 de junho de 2013, Rafael Braga Vieira se encontrava no centro da cidade do Rio de Janeiro, fazendo a coleta de papel para conseguir os trocados que levava para sua mãe, dona Adriana, e seus seis irmãos, moradores da favela da Vila Cruzeiro. Semi-analfabeto, acostumado a dormir na rua pra economizar passagens. Foi interpelado por policiais militares na Rua do Lavradio ao sair de um casarão abandonado carregando duas garrafas de produtos de limpeza: um desinfetante da marca Pinho Sol e um detergente. Os dois policiais já o conheciam de vista, e teriam pedido que os acompanhasse até a delegacia para averiguações. Ocorre que, o que viu-se ali foi mais uma das prisões arbitrárias, do tipo praticado pela polícia durante as manifestações populares, para "mostrar ao público". Algum tempo depois de ser deixado em espera na delegacia, Rafael foi apresentado a duas supostas "provas" de que estaria disposto a praticar vandalismo: as garrafas de produtos de limpeza abertas, com um líquido que ele não soube identificar e retalhos de pano preso a suas bocas plásticas. Na realidade uma tentativa torpe por parte dos policiais de simular explosivos caseiros do tipo coquetéis molotov11. Mais adiante no decorrer desta história, um perito atestou que os artefatos não representam perigo, pois sendo de plástico, sequer poderiam funcionar como explosivos, visto que não sendo de vidro, não teriam como se romper permitindo a combustão do líquido inflamável pelo contato com o retalho de pano em chamas . Foi preso, acusado de tentar usar os explosivos. Cabe aqui citar que houve uma série de prisões similares, ou seja, feitas de forma arbitrária, com objetivo de intimidar os manifestantes. Todos, com a única exceção do catador de papel Rafael Braga Vieira, seriam liberados em menos de um dia. Rafael, permanece, até a atualidade, o único acusado, condenado e preso em decorrência das manifestações do dia 20 de junho de 2013. 11

"​Coquetel molotov ​é uma arma química incendiária geralmente utilizada em protestos e guerrilhas urbanas. No Brasil, a posse, fabricação ou o uso de tal artefato configura crime de "posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito", estando o infrator sujeito à pena de reclusão de, no mínimo, três anos até o máximo de seis anos e multa, conforme disposto na Lei 10.826/03, Art".​Wikipedia (PT)

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–Após a condenação de Rafael em primeira instância, em 2 de dezembro de 2013, o Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que vinha acompanhando diversos casos de manifestantes presos durante os protestos de junho daquele ano, passou a atuar em segunda instância em favor de Rafael. “Havia um cenário em que cresciam em profusão aquelas acusações arbitrárias, mas, paralelamente, o judiciário arquivava, ou então absolvia os acusados, seguindo uma lógica de trabalho condizente com as regras legais. Só que o caso do Rafael saltou aos olhos, porque nós acompanhamos a atuação da Defensoria em primeira instância, e ele foi condenado mesmo assim, com uma prova muito fraca”, diz o advogado Carlos Eduardo Martins, do DDH. Em artigo publicado em setembro de 2014, Martins e Thiago Melo, diretor do DDH, afirmam que, “no caso de Rafael, o Judiciário não relativizou o depoimento dos PMs que o acusaram do porte de coquetéis molotov”, desconsiderando inclusive o fato de o acusado ter alegado desconhecer a substância inflamável no frasco. Segundo os advogados, “vigora no Tribunal de Justiça do Rio a inconstitucional Súmula 7012, que orienta os julgadores a condenar um cidadão com base apenas no relato policial: ‘O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. (…) – De acordo com Martins, “é muito estranho um ser água sanitária, como é, inapta para explosão, e no outro surgirem 400 mililitros de etanol, porque não é uma composição usual de um produto com aquela rotulagem. Mas, o que a gente questiona é que, mesmo com essa composição, um artefato sob essa constituição, em uma garrafa de plástico, não pode ter aptidão para funcionar como explosivo, é um artefato fracassado. Porque a composição do molotov é lastreada no conjunto da garrafa de vidro, que espalha as substâncias que vão formar combustão. Então é a combustão, que é um pavio embebido de gasolina, um material inflamável, mas tem que ter esse pavio e um receptáculo de vidro. E era um receptáculo de plástico com etanol. Então é algo completamente discrepante. Ainda que, por exemplo, fosse um receptáculo com gasolina, de plástico, com pavio, ele não seria apto a explodir, como é o caso desse encontrado com o Rafael. Na realidade, nem o líquido inflamável é usual para coquetel molotov. Teria que ser gasolina, e não etanol”​. (SANSÃO, Luiza. Ponte Jornalismo)

O caso Rafael Braga teria se perdido no apagamento das pautas que não interessam ao jogo da macro política, não fosse a atuação dos comunicadores e arte-ativistas voluntários. Fazia-se necessária a denúncia da injustiça que exemplificam o funcionamento enviesado do sistema, que longe de garantir direitos, se mostrava como ferramenta de controle de classes e supressão de direitos básicos.

​A Súmula 70 do código penal, coloca que "​ “o fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação” sendo abusivamente usada na condenação de suspeitos sem que nenhum outra prova confirme ao delito. 12

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A transposição do caso de Rafael Braga para quadrinhos foi a primeira divulgação de fato deste caso de forma a torná-lo popular nas redes sociais. Mais tarde migraria com rapidez para outros suportes, o que facilitou sua difusão pelas redes de comunicação digitais e de eventos e reflexos em demais órgão de defesa de direitos.

Essa prancha de histórias em quadrinhos foi divulgada em veículos estrangeiros, tais como o coletivo de comunicação Democracy Now, ligado aos movimentos de ocupação em Wall Street. Ao lado, ​a filósofa e ativista norte-americana Angela Davis, símbolo da luta pelos direitos civis da população negra, durante sua palestra do dia 25 de julho de 2017, em Salvador, na Universidade Federal

da

Bahia

(UFBA),

manifesta

seu

apoio

a

Rafael

Braga

Vieira.

Ver

em:

https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2017/07/angela-davis-na-bahia-mulheres-negras-s ao-esperanca-da-liberdade/

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Duas artes de uma série criada para divulgar informes sobre o andamento do processo contra Rafael Braga Vieira. Autoria: Thais Linhares

Primeira imagem, retrato de Rafael Braga Vieira feita com Pinho Sol, do artista Alex Frechette E ao lado, o retrato feito por Tavarez Vandal, para auxiliar na arrecadação em benefício da campanha. Abaixo, expo-manifesto na Cinelândia, em ato pela liberdade de Rafael Braga, novembro de 2016. Imagens retiradas da página do DDH.

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O caso se desdobra em uma segunda violação, ainda mais grave, por configurar um tipo de prática recorrente utilizada pelas forças de segurança dentro das favelas: o de implantar provas para provocar confissões ou falsos testemunhos. A nota do coletivo formado na defesa de Rafael Braga na ocasião de uma segunda prisão, quando o mesmo se encontrava já em cumprimento de pena em liberdade utilizando uma tornozeleira eletrônica, explica o ocorrido:

A Campanha pela Liberdade de Rafael Braga Como dito acima, após a notícia de condenação do Rafael no final de 2013, diversos coletivos, ativistas e militantes começaram a se mobilizar em torno da causa do Rafael Braga. No início de 2014, há diversas reuniões e chamados aos movimentos sociais, coletivos e militantes do Rio para construir a luta pela liberdade do Rafael. Após algumas atividades iniciais como panfletagens e Culto Ecumênico na porta do presídio em Bangu, a luta se estabelece como uma Campanha fixa, horizontal e aberta em meados de 2014, quando é organizado um Ato-Vigília nos dias 25 e 26 de agosto, dia da decisão sobre a Apelação contra a prisão dele. Em novembro de 2014, é organizada uma Campanha Nacional pela Liberdade do Rafael Braga fruto de uma articulação da Campanha local junto com o DDH e o extinto Fórum de Enfrentamento ao Genocídio do Povo Negro. Durante cerca de 2 meses, o caso do Rafael foi massificado nacionalmente, ocorrendo atividades em relação ao caso em mais de 10 Estados do Brasil. No Rio, a Campanha organizou um ciclo de debates em praças em Olaria, Centro e Largo do Machado, falando sobre seletividade penal, racismo e genocídio do povo Negro. Desde o início, a Campanha pela Liberdade de Rafael Braga se preocupou, para além de lutar pela liberdade do Rafael, em criar laços com a família dele e ajudar no que fosse possível. Dona Adriana, sua mãe, sempre esteve junto à Campanha. Além das atividades, atos e marchas pela liberdade do Rafael, sempre nos mobilizamos para ajudar financeiramente tanto a família como o Rafael dentro da prisão, através da arrecadação de doações, alimentos e venda de materiais de propaganda como bottons e camisas. Uma das principais bandeiras levantadas pela Campanha é o motivo de Rafael ter sido e ainda estar preso. Rafael Braga foi detido e condenado em 2013 mesmo sem ser manifestante. Ele foi detido por ser negro e pobre. Como não é militante, nenhuma mobilização ocorreu à época da sua prisão, tendo sido rapidamente julgado e condenado. Mesmo após sua condenação, as mobilizações pelo Rafael Braga nunca obtiveram tanta atenção como as lutas para libertação de outros presos das manifestações de 2013 e 2014. Rafael é símbolo da seletividade penal e racismo estrutural que permeia a justiça brasileira. A nova prisão de Rafael em 2016 veio para reforçar esses pontos. Vivendo em uma área militarizada, Rafael foi abordado e acusado de tráfico. O kit flagrante forjado pelos PMs para incriminar o Rafael é comumente utilizado em áreas de favela e periféricas. A guerra aos Negros camuflada de guerra às drogas segue fazendo novas vítimas diariamente, exterminando o povo Negro e impulsionando o encarceramento em massa. Atualmente, a Campanha se reúne todas as terças-feiras às 19 horas, na Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro, nas escadarias da Câmara. Caso esteja chovendo, a reunião é transferida para a marquise do Restaurante Amarelinho, ao lado da Câmara. ("Sobre", em A Campanha Pela Liberdade de Rafael Braga)

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Página de quadrinhos feita 24h depois da segunda prisão de Rafael Braga Vieira com objetivo de rapidamente divulgar uma visão direta dos fatos, contornando o discurso hegemônico de criminalização dos pobres. O texto é exatamente o depoimento da testemunha feito ao advogado do DDH, Lucas Sada. Arte de Thais Linhares, assinado com o pseudônimo de Mirim.

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1.3 – A literatura internacional subiu os morros

Em 2012 por iniciativa de uma dupla de agentes culturais da baixada fluminense, surgiria a Festa Literária das UPPs, a FLUPP – que mais tarde mudaria seu nome para FLUP – a Festa Literária das Periferias. O primeiro conselho da FLUP incluía ainda Heloísa Buarque de Holanda e Luis Eduardo Soares. Aqui cabe apresentar um texto especialmente escolhido para aprofundarmos nas motivações dos criadores Júlio e Écio. Na era entre o último governo Lula e o primeiro governo Dilma, de 2010 para 2011, justamente quando comecei a morar no Rio, ainda havia expectativas na cidade em relação às chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas favelas. Tanto que Julio, inspirado pela Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, pensou numa Festa Literária das UPP, a FLUPP. E foi falar com o seu amigo Écio (Salles), que já tinha todo um trabalho com as periferias. Ecio foi curador do selo Tramas Urbanas na editora Aeroplano (de Heloísa Buarque, sua grande incentivadora), fizera o livro “Poesia Revoltada” sobre hip hop no Brasil e “História e Memória de Vigário Geral”, depois da chacina que em 1993 aconteceu naquela favela, colaborara com o Afro Reggae (também em Vigário Geral), com o Observatório das Favelas (na Maré), era uma cria do Alemão, estava na cultura da Baixada, estudara jornalismo, haveria de doutorar-se na UFRJ. Muito calo na luta contra várias espécies de discriminação, incluindo a racial, ele que era marido de uma negra, pai de meninas mestiças. Ecio e Julio chamaram parceiros como o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a ensaísta e crítica Heloísa Buarque de Holanda, o ex-colega de Julio no “Jornal do Brasil”, e então editor do programa “Fantástico”, Toni Marques. Foram agregando escritores publicados, e em 2012 já tinham em curso as sessões preparatórias da FLUPP, que eram a FLUPPensa. Encontros, debates, workshops em que escritores traziam experiências e comentavam os textos experimentais de jovens das favelas. Uma sequência de sábados históricos. (COELHO, Alexandra Lucas, Revista Periferias)

Julio Ludemir e Écio Salles são as bases constituintes deste projeto. Desde o início estiveram nas articulações que nos conduziram aos encontros necessários para formatar roteiros, personagens e resgates memoriais. O "efeito FLUP" que move e comove pessoas e lugares vem estruturando redes de narrativas onde periferias se fazem centrais, privilegiando as pautas de direitos humanos até então abafadas pelas culturas conduzidas pelas elites econômicas, desinteressadas nas garantias de direitos que muitas vezes se apresentam como impedimentos para lucros. O primeiro contato com a FLUP se deu em meados de 2016, após quatro horas de viagem entre terminais de ônibus urbanos, até o interior de uma das diversas pracinhas das quadras geometricamente planejadas da Cidade de Deus, bairro da zona oeste do Rio, 33


imortalizada em 2002 pelo filme homônimo de Fernando Meirelles13 que se tornaria sucesso mundial mas a deixaria marcada como local de crime e violência extremadas, tornando-se referência do que significaria então “favela brasileira" aos olhos do mundo. Imprimia-se ali de forma definitiva a narrativa das periferias como abrigos de criminosos e vítimas. Ocorre que a Cidade de Deus é um bairro grande, diversificado em comércio, escolas, centros de cultura e com um histórico de resistência popular e luta por direitos que remete até os primeiros anos de sua criação, como conjunto habitacional que recebe a maior parte de seus moradores durante a Ditadura Civil-Militar brasileira. Mais que área de intencional segregação, foi povoado por excluídos das áreas mais valorizadas das cidade, expulsos a fogo (literalmente) de bairros da zona sul carioca visados por agentes imobiliários e também por deslocados pelas grandes enchentes. Para reformular essa percepção, e comemorar os 50 anos de "nascimento" da Cidade de Deus, que a FLUP de 2016 escolheu invadir a CDD14, com escritores, poetas e quadrinistas. A Festa vinha então através de suas oficinas formativas, onde moradores das comunidades preparavam seus textos originais sob orientação de profissionais da literatura, publicando novos autores, sempre oriundos das áreas de favelas e periferias por onde passava. Uma das características mais interessantes da FLUP é ser cigana: a cada ano ela escolhe uma favela diferente para instalar seu "circo literário". E dali para o mundo projeta novos autores, revelados dentre as "crias15" dos morros, ao mesmo tempo em que traz para dentro das comunidades autores consagrados no cenário internacional. Naquele ano de jubileu de ouro a FLUP decidiu produzir um álbum coletânea de histórias em quadrinhos que contasse as memórias dos primeiros moradores da Cidade de Deus. O FLUP Pensa dividiu-se em três grupos: contos, poesia e histórias em quadrinhos. No interesse desta dissertação focaremos apenas no projeto do álbum de histórias em quadrinhos.

​Cidade de Deus é o 3º filme do diretor Fernando Meirelles. Tendo dirigido antes O Menino Maluquinho 2 A Aventura (1998) e Domésticas - O Filme, junto a Nando Olival. Meireles recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Diretor em 2004 por seu trabalho em Cidade de Deus. 14 ​CDD, é a sigla para Cidade de Deus. Como é comum ao se referir a algumas das favelas no Rio de Janeiro. Exemplo: CPX, é Complexo do Alemão; PPG é Morro do Pavão e Pavãozinho-Cantagalo e VDG é o Morro do Vidigal. 15 "​Cria" é a forma carinhosa como os nascidos ou criados nas favelas e comunidades brasileiras referem-se aos seus. Exemplo: "Marielle Franco é cria da Maré!". 13

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O contato inicial com os produtores da FLUP visava aliar as atuações do Instituto de Defensores de Direitos Humanos com o potencial na cultura e comunicação, e fortalecer narrativas sobre direitos, memória e denúncias por parte do mesmo público que ambas estas organizações atendiam. O DDH no campo do direito legal e a FLUP na cultura. Daí diversas propostas de comunicação foram realizadas, dentre elas a de utilizar as histórias em quadrinhos pelo seu potencial inerente como suporte de mídia. Mais adiante, no capítulo 5 nos aprofundaremos neste aspecto. Junto à FLUP captaram-se artistas interessados em participar e realizou-se diversas gravações com moradores originais que serviram de base para a elaboração dos roteiros sobre as memórias da Cidade de Deus16. Como resultado das oficinas foi editado e publicado o álbum de histórias em quadrinhos "Cidade de Deus 50 anos", reunindo-se autores de origens diversas, majoritariamente de favelas e periferias cariocas.

Este ano, Ludemir disse que a Flupp está "radicalizando" no trabalho de criação da memória da favela. "A gente entendeu que a favela tem um grande desejo de registrar a sua memória". Isso tem sido feito por meio de relatos de moradores mais antigos, chamados moradores-fundadores. A partir desses depoimentos têm sido criadas histórias em quadrinhos contando a história de cada um deles. Os autores das histórias em quadrinhos concorrerão ao Prêmio Flupp HQ. Além de ter a obra publicada, o vencedor, que será escolhido entre candidatos brasileiros e estrangeiros, ganhará passagens para conhecer o Festival de Desenhos Animados de Angoulême, na França, em 201717. (Julio Ludemir, criador e produtor da FLUP)

16

Assista alguns destes depoimentos em: https://www.youtube.com/watch?v=QrUVoBNld2g&list=PLbKQxer9T0IeC4Qoh_LuMtLnw2hQKb0WR 17 A vencedora foi Roberta Nunes, com história feita a partir dos relatos de Cilene Regina Vieira, liderança comunitária e produtora cultural na Cidade de Deus.

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Capa do álbum de histórias em quadrinhos "Cidade de Deus 50 Anos" organizado em 2016 (ano da efeméride na CDD) e publicado em 2017. Reúne um conjunto de histórias em quadrinhos sobre a comunidade da zona oeste carioca.

Como uma das participantes do processo, a presente mestranda produziu uma das histórias memoriais publicadas no álbum. A HQ "Pães Doces", conta a história da líder comunitária, religiosa, poeta e letrista Valéria Barbosa. Esse processo que mais adiante se torna a preparação para a observação participativa sobre a qual se baseou esta tese e produtos será descrita com mais detalhe no capítulo 3, sobre a metodologia adotada.

Uma das páginas de HQ "Pães Doces", parte integrante do​ álbum de histórias em quadrinhos "Cidade de Deus 50 Anos". Nesta cena vemos o relato de Valéria do sonho onde preconizaria o terreiro onde mais tarde iria se integrar.

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Duas páginas de HQ "Pães Doces", parte integrante do álbum de histórias em quadrinhos "Cidade de Deus 50 Anos". Nesta cena vemos o relato sobre da favela do Pinto (que seria removida e seus moradores levados em caminhões de lixo para a Cidade de Deus) e sobre as moradias dos primeiros moradores.

Páginas de HQ "Pães Doces", parte integrante do álbum de histórias em quadrinhos "Cidade de Deus 50 Anos" expostas durante a FLUP na Cidade de Deus em 2016. Foto da autora.

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1.4 – A Universidade das Quebradas

UQ na LETRAS – Direito à Cultura Apesar da literatura ser uma das linguagens artísticas com menor presença no circuito que envolva o diálogo periferia e indústria cultural – com as devidas exceções comprovando a regra, o trabalho desenvolvido em Manguinhos com a estética favelofágica pode se desdobrar na noção conceitual e metodológica de Promoção da Literatura. (Publicado por universidade quebradas em 28 de agosto de 2019 em Dia a Dia).

Ingressar na Universidade das Quebradas durante o decorrer das aulas de mestrado foi essencial para melhor embasamento dos trabalhos de resgate de memória e articulação de redes. A Universidade das Quebradas, ou UQ, tem como objetivo exatamente a formação de laços. Juntando saberes populares e acadêmicos, periferia e centro, a UFRJ e os cidadãos geradores de cultura e transformação. Ali se encontram diversos coletivos, produtores, autores e andarilhos, num caldeirão de ideias que por sua vez gera novos movimentos dentro e fora da academia. Seus alunos são chamados de quebradeiros. Naquele ano de 2018, o tema que serviu de disparador para debates e produções foi "O Rio de Lima Barreto". Discutiu-se a evolução urbana, questões do higienismo na virada do século XIX para o XX, representatividade negra nas artes e o protagonismo da mulher, sobretudo a de periferia, na política e comunicação. Durante este período foi desenvolvida a ​Revista UQ e também a apresentação "Poetas das Quebradas" que apresentaremos no capítulo 7 sobre produtos desenvolvidos junto ao objeto principal deste mestrado.

Quebradeiras e quebradeiros. Foto: UQ, 2018.

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CAPÍTULO 2: Mulheres, a periferia dos Direitos Humanos

Este capítulo se propõe a apresentar o crescimento de um movimento que se utiliza das artes gráficas e performáticas enquanto constrói uma iconografia original e brasileira de afirmação das liberdades sexuais e direitos civis das mulheres. Especialmente

uma

população

que,

quando

não

é

tornada

invisível

institucionalmente, é ainda alvo de violência explícita, as mulheres negras moradoras das favelas e periferias urbanas.

2.1 – “Quem ama não mata”

Segundo dados da Anistia Internacional de 2017, o Brasil lidera a lista dos países que mais assassinam pessoas identificadas com grupos LGBT. É hoje também o quinto colocado mundial no recorte do “feminicídio”, isto é, o crime cujo motivador está relacionado à condição feminina da vítima. Dentro deste universo, destaca-se o maior números de assassinatos tendo as mulheres negras como alvo.

O Ipea18 mostra ainda que a taxa de homicídios de mulheres negras é maior e cresce mais que a das mulheres não negras. Entre 2007 e 2017, a taxa para as negras cresceu 29,9%, enquanto a das não negras aumentou 1,6%. Com essa variação, a taxa de homicídios de mulheres negras chegou a 5,6 para cada 100 mil, enquanto a de mulheres não negras terminou 2017 em 3,2 por 100 mil. (LISBOA, Vinícius, em "Ipea: homicídios de mulheres cresceram acima da média nacional", Agência Brasil, EBC Online, publicado em 05/06/2019)

Em pleno regime militar, em 1976, lia-se nos muros da cidade, entre grafites de insondável significado como o “lerfa mu” e o “celacanto provoca maremoto”, o clamor pela vida do: “Quem ama não mata”.

18

Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsáveis pela publicação do Atlas da Violência (edição 2019).

39


Tratava-se de uma frase em protesto pela absolvição do assassino da socialite Ângela Diniz, executada à queima-roupa por seu ex-companheiro Doca Street. Eles estiveram juntos por apenas três meses e o motivo do assassinato teria sido que Ângela decidira terminar o relacionamento devido ao ciúmes possessivo de Doca. A defesa conseguiu sucesso com uma pena de dois anos, que não seriam cumpridos por conta de um sursis,​ alegando “legítima defesa da honra” (masculina) dita necessária diante dos comportamento “imorais” de Ângela, descrita como uma mulher lasciva e com relações homossexuais em seu passado. Portanto, aos olhos da sociedade, ali se configurava um corpo onde se justificaria à sua eliminação pela não conformação aos limites impostos pela sociedade à “mulher direita”. O levante do então movimento feminista foi intenso e obteve êxito ao conseguir um segundo julgamento que resultou em uma pena mais condizente: quinze anos. Foram estas mesmas mulheres que sob a opressão do regime organizaram o movimento pela Anistia e retorno dos exilados políticos na década seguinte. Já havia então publicações feministas clandestinas, que exploravam a arte do cartum contra o apagamento da cidadania plena da mulher. Sob a violência sistêmica, os homossexuais também tinham sua existência violentada pelos militares. É do ano seguinte à condenação de Doca Street, a Lei do Divórcio e da Separação Judicial (Lei 6515/77). A brasileiras porém, ainda não conseguiram fazer valer a letra Constitucional garantido plenos direitos de autonomia no que tange à interrupção voluntária da gravidez, garantida em 34 países incluindo a França, Alemanha, Estados Unidos, Uruguai, Zâmbia, Cuba ou Canadá, mas ainda criminalizada aqui. Em agosto de 2006, já passados mais de 20 anos do fim do regime militar, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) institui agravante para crimes cometidos por parceiros dentro do contexto da violência doméstica. Em 7 de março de 2017, é publicado o primeiro “Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil”, elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sobre o Lesbocídio – As histórias que ninguém conta. Nele se revela o alarmante número de 180 assassinatos de lésbicas entre 2000 e 2017, onde 126 destes ocorreram após 2014, sendo os assassinos em sua maioria homens. Junto a isso há ainda os suicídios, representativos da rejeição social, e sobretudo familiar, 40


das jovens lésbicas. É a partir destes contextos que mulheres heterossexuais, lésbicas e transsexuais se organizam para pautar as narrativas através das artes do que é “normal” e contra a noção do corpo “matável” que liberou Doca Street em seu primeiro julgamento. Trata-se de estratégia de sobrevivência em uma sociedade extremamente hostil à autonomia dos corpos cuja identidade feminina é vivenciada como sendo um alvo móvel para todo tipo de violência. Dentro de uma cultura que busca explicitar o corpo da mulher como objeto à serviço do poder patriarcal, e não respeitoso de sua própria autonomia, no corpo da mulher negra esta noção de posse é ainda mais reforçada devido à história de um país construído sobre o ombro de negros escravizados trazidos da África.

No ano de 2016, foram assassinadas 4.645 mulheres no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. O aumento em dez anos foi de 6,4% - em 2006, foram mortas 4.030 mulheres no Brasil e a taxa de homicídio feminino ficou em 4,2 por grupo de 100 mil. Os dados fazem parte do estudo Atlas da Violência 2018, apresentados ontem (5) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A situação se agrava quando consideradas apenas as negras, que inclui as mulheres pretas e pardas. Enquanto entre as mulheres negras a taxa de homicídio ficou em 5,3 por grupo de 100 mil em 2016, entre as não negras, englobando brancas, amarelas e indígenas, a taxa foi de 3,1, uma diferença de 71%. “Nos últimos 10 anos a taxa de homicídios de mulheres não negras diminuiu 8% e no mesmo período a taxa de homicídio de mulheres negras aumentou 15%. Ou seja, é necessário que haja uma focalização das ações do Poder Público, no sentido de reverter esse cenário trágico que a gente pode ver a partir do Atlas”, destacou o pesquisador do FBSP David Marques. Em 12 estados, o aumento da taxa de homicídio de mulheres negras foi maior do que 50%, sendo dois deles superior a 100%, Amazonas e Rio Grande do Norte. Em Roraima o aumento de assassinatos de mulheres negras em 10 anos foi de 214%. Goiás apresenta a maior taxa de homicídio de negras, com taxa de 8,5 por grupo de 100 mil. No Pará foram assassinadas, em 2016, 8,3 mulheres negras para cada grupo de 100 mil e em Pernambuco a taxa ficou em 7,2. São Paulo, Paraná e Piauí têm as menores taxas de homicídio de mulheres negras do país, com 2,4, 2,5 e 3,4 por 100 mil, respectivamente. Em sete estados houve redução da taxa no período, entre 12% e 37%. Entre as mulheres brancas, houve crescimento no número de assassinatos superior a 50% em seis estados. No Tocantins o crescimento, entre 2006 e 2016, chegou a 131,5%, na Bahia 148,4% e no Maranhão houve aumento de 246,9% na taxa de homicídio de mulheres não negras. O estado mais violento para esse grupo é Roraima, onde 21,9 mulheres não negras são assassinadas a cada grupo de 100 mil, seguido de Rondônia, com taxa de 6,6, e Tocantins, com 5,7. Os estados que menos matam mulheres não negras são o Piauí, com 0,8 por 100 mil, Ceará, com 1, e Alagoas, com 1,3. Excluindo Roraima, nenhum estado tem taxa de homicídio de não negras superior a 7 por 100 mil, enquanto entre as mulheres negras apenas sete estados tem taxas abaixo de 5. (NITAHARA, Akemi, em "EM 10 anos assassinatos de mulheres negras aumentaram 15,4%", publicado em 06/06/2018, Agência Brasil, EBC Online)

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2.2 – O Slam das Minas

Em 2017, sob as árvores do Largo do Machado, zona sul do Rio de Janeiro, nascia o SLAM das MINAS. Uma de suas criadoras, a poeta e fanzineira Yassu Noguchi, surpreendeu-se a ver a praça lotada com uma multidão de mulheres, de idades variadas, muitas delas acompanhadas de bebês e crianças, e ainda alguns companheiros e fãs masculinos de rodas de poesias. Sendo uma iniciativa nova, um desafio poético de slam só para participantes mulheres, imaginou que a adesão seria pouca, levando tempo para “inflamar”. Mas o que se viu foi o contrário.

Artista Thais Linhares retratando as poetas do SLAM durante a apresentação. Foto de Akira kono (Largo do Machado, Rio de Janeiro, 2017).

Certamente Yassu Noguchi não se lembrou no momento, dos grupos de redes sociais, sobretudo no Facebook, de adesão exclusiva para mulheres onde milhares de meninas e mulheres compartilhavam sem receio de opressão masculina suas aspirações. O transbordamento destas ações coletivas das redes virtuais para as presenciais eram de se esperar. A demanda reprimida desde o “quem ama não mata” se impõe sobre as agendas individuais dos grupos que rapidamente se comunicam e formam alianças.

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Exemplos de alguns destes grupos exclusivos para mulheres:

ZINE XXX – quadrinistas e poetas, organizou em 2015 a partir da mobilização em rede virtual sua primeira grande série de coletâneas de histórias em quadrinhos impressas, totalmente financiadas de forma coletiva, com autoras mulheres. HQ das Manas ​– mulheres quadrinistas. Girls of comics Now! – denunciado e derrubado do Facebook sob acusação de ser “excludente” pois só permite mulheres e LGBTs, esse grupo se organizou e retornou em menos de 24h após a derrubada. Girls Artists Gang – ilustradoras e artes gráficas em geral com maior experiência profissional. Mulherio das Letras 2018 – escritoras e poetas, promove saraus e coletâneas impressas. Prosas para Contextação – advogadas produzindo literatura, fotografia e poesia, mas não apenas. Objetivo é a edição de revista impressa, o primeiro número foi lançado em 2018. Advogadas se apresentam também em saraus poéticos e organizam eventos. Através de assistência jurídica voluntária, ou como função de seus cargos na Defensoria Pública, as advogadas constituem o elo para o encaminhamento das demandas legais de mulheres vítimas de violência. MariaLab network – segurança, ativismo e tecnologia em rede para mulheres cisgênero e transgênero. Revista Farpa​ – impresso de coletivo de quadrinistas feministas. LGBT Brasil e Arte Representativa LGBT​ – pautas LGBTs. Companhia das Minas RJ – mulheres buscando apoio de outras mulheres para irem juntas a eventos ou se hospedarem na cidade. É um grupo de apoio para dar segurança às mulheres na mobilidade urbana. Feminismo Nerd – o meio da cultura nerd é comumente tóxico para as mulheres, este grupo oferece santuário para as fãs e autoras de conteúdo pop. Couchsurfing das Minas – grupo de hospedagem entre mulheres. Evitam o assédio sexual/estupro em viagens sozinhas. Usado para viagens das artistas a 43


eventos, atos políticos e feiras, possibilitou a mobilidade a nível estadual. É frequente nos SLAMs e convenções de quadrinhos a presença de visitantes de outros estados inclusive na plateia e estandes. Núcleo de mães Vítimas de Violência – aqui um elo importantíssimo que amarra na pauta da política de segurança pública, notoriamente descompromissada com o bem estar dos grupos sociais excluídos, especialmente as pobres e negras.

Este capítulo porém, está longe de poder esgotar as listas dos grupos e das páginas das redes feministas. O que é importante perceber é que estamos diante de uma nova dimensão de publicidade das pautas antes sufocadas pelo não acesso aos meios de comunicação, de modo que tinha-se a falsa impressão de que “não existiam”, o que facilitava seu controle e a imposição de um padrão único a delimitar das narrativas. O SLAM das MINAS é uma roda de desafio poético itinerante que junta a poesia, os fanzines, exposições de artes, grafites, stencils e lambes. Interferências estéticas nos corpos como tatuagens, piercings e cortes estilizados de cabelo, também costumam participar. A predileção é por tatuagens que simbolizam a pauta: o espelho de Vênus que simboliza o feminismo, solitário ou em dupla representando o relacionamento lésbico, flores cujo desenho lembra a forma da vagina, o machado de dois fios – outro símbolo lésbico, o punho dentro do espelho de Vênus evocando o ativismo negro, a borboleta significando a transformação de gênero etc. O SLAM das MINAS circula pela cidade buscando integração de uma urbe que foi fragmentada pelos discursos de poder que tornam dificultosa a mobilidade urbana sobretudo dos corpos femininos. Estes são alvos de assédio nos meios de transporte, do medo em ruas pouco iluminadas, de abusos de todas sorte das que ousam se valer de seu direito básico de estar e circular. Assim sendo, em sua terceira edição, ainda em agosto de 2017, as organizadoras optaram por apoiar a pauta da visibilidade lésbica, escolhendo como palco o Morro da Providência, junto ao coletivo Favela Cineclube, sendo este iniciativa da produtora, lésbica, Fatinha Lima. O evento abriu com um grafitato pela visibilidade lésbica.

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2.3 – Mulheres Maravilhas

Por que tem tão pouca mulher nessas áreas? Eu tenho respondido assim: porque os homens tomam conta de tudo! Tomam conta e expulsam as mulheres pra longe das áreas de decisão ou poder. Produção cultural é poder. (Laerte Coutinho, n’As Periquitas, entrevista, pág. 3)

Alison Bechdel quadrinista lésbica norte americana, registrou em uma de suas histórias, o diálogo entre duas mulheres que se tornou um marco na avaliação do sexismo presente em obras cinematográficas. Diante de um cinema, uma pergunta: “Você já viu esse filme?”, e a outra retruca, “Hum… ele não satisfez o ​meu índice​, não.” Ao que a primeira, curiosa prossegue: “Que ​índice​?”. “Eu tenho três demandas para um filme...” – explica a companheira, detalhando o seguinte critério para a avaliação positiva de um filme no que diz respeito a representatividade feminina:

1 – tem de ter duas personagens femininas; 2 – elas têm de ter nome, não pode ser: “mãe de fulano”, “namorada de sicrano”; 3 – as duas conversam entre si; 4 – o assunto da conversa não pode ser “homem”.

Aplica-se, segundo a proposta, essas perguntas para as obras artísticas em geral. Este ficou como o conhecido “Índice Bechdel” ou “Teste Bechdel-Wallace”19, para avaliar a participação feminina significativa nas artes.

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Alison Bechdel (​Lock Haven, EUA, 10 de Setembro de 1960​), apresentou este teste numa cena de seu álbum de histórias em quadrinhos ​Dykes to Watch Out For​ (Sapatonas a ficar de olho) de 1985. Ela atribui a ideia a sua amiga Liz Wallace e aos escritos de Virgínia Woolf. Desde então autores e cineastas têm proposto variantes deste teste para avaliar representatividade em produtos culturais.

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Reprodução da cena onde aparece pela primeira vez a proposta do "�ndice" de Bechdel.

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2.4 – As Periquitas

O Coletivo de quadrinistas feministas As Periquitas, surgiu como uma brincadeira num meio que insiste em ignorar a existência de artistas mulheres. “A ideia da obra foi uma homenagem a revista de humor O Papagaio, que existiu no começo do século 20. Era feita por desenhistas homens. Quando perguntavam porque não existiam mulheres cartunistas, eu sabia que existia, então surgiu a ideia deste projeto. Cheguei a pensar em A Arara, mas havia o Pau-de-arara, da ditadura. Então optei por A Periquita. No singular. Isso foi no milênio passado. Foram chegando mais artistas, e agora virou As Periquitas. A conotação maliciosa está na cabeça das pessoas. É uma revista feita por mulheres de humor e opinião” Cláudia França, a cartunista Crau da Ilha Bela, editora da revista.

Reuniu o time de mulheres e convidou Laerte Coutinho, então recentemente assumida de sua identidade feminina, para uma entrevista de abertura da publicação, onde se debate sobre a participação feminina nas artes e em especial as fronteiras do dito feminino e masculino traçadas pela sociedade, o machismo histórico nas curadorias brasileiras e o futuro das artes. Até hoje, ainda é difícil fazer com que os homens nos meios de quadrinhos compreendam que sua arte não é “normal” no sentido em que se produz contaminada por pontos de vista limitantes. O dito “mainstream” dos quadrinhos é, na realidade, arte masculina.

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Revista As Periquitas. Foto de Crau da Ilha.

Por outro lado, o dito “quadrinhos femininos” é tão mainstream quanto se queira qualquer outra vertente. Apenas faltava o reconhecimento de que não há de se limitar narrativas. E que estas são pautadas por demandas bem mais amplas que a de poucos editores homens brancos heterossexuais. Uma queixa recorrente das quadrinistas é o papel de “cota” que ainda cumprem em certos festivais tradicionais de quadrinhos e afins. São chamadas não para expor suas produções, mesmo sendo estas reconhecidas internacionalmente, com milhares de fãs e boa vendagem, mas para compor mesas sobre “o quadrinho feminino”, como que expostas por sua arte de “criatura exótica”. Os meio masculinizado, predominantemente heterossexual e branco das histórias em quadrinhos ainda não foi capaz de se reconhecer sua produção como nicho, tanto quanto consideram ser de nicho a arte das mulheres, negra ou queer. 48


Donde levanta-se o quão pertinentes são as críticas aos espaços exclusivos femininos como segregadores ou formadores de guetos ou novas limitações de padrões. A presença de curadorias fora do padrão branco-homem-hétero, com real poder de decisão, é o caminho para mudar isso. Começando-se pelo acesso a editais não contaminados pelos mesmos velhos preconceitos. Porém as mulheres já se organizaram em grupos onde discutem trocam, expõem e comercializam suas artes em quadrinhos à margem dos que até então detêm o poder material e simbólico. Em respostas a constantes evasivas de que não havia quadrinhos feitos por mulheres sendo publicados por culpa de uma suposta falta de quadrinistas mulheres, artistas organizaram iniciativas de visibilizar as quadrinistas. Destaque para o coletivo Lady’s Comics, que criou o “BAMQ! O Banco de Mulheres Quadrinistas” e surgiu no mesmo período o “Mulheres nos Quadrinhos”, que são três coletâneas com artes de quadrinistas mulheres, editadas e produzidas via financiamento coletivo, pelo produtora e editora Roberta Araújo. Hoje, chamamentos para publicações independentes em diversos formatos, incluindo impressos de qualidade, são mais frequentes, e aqui é importantíssimo ressaltar que o acesso a ferramentas de financiamento coletivo, também chamados “crowdfundings” é vital para que se possibilite as publicações e apoio de material a eventos, incluindo os grafites urbanos, circulação das artistas em eventos fora do estado e manutenção de sites e casas coletivas de produção e acolhimento. Desde 2008 temos como impresso a Revista Vírus, criada por universitários do Rio de Janeiro da UFF, PUC-Rio, UFRJ e UERJ, então ainda usando o nome de Vírus Planetário, com uma proposta inclusiva e independente, não precisando se submeter a discursos de mercado e onde autoras e autores podem publicar pautas progressistas sem censura imposta por anunciantes. Sua equipe se desenvolveu diversificada, e possivelmente é um dos coletivos de comunicação impressa mais representativo para acolher narrativas LGBT e feministas. Quadrinhos, cultura, políticas e entrevistas, são enviados por colaboradores de vários estados.

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Revista Vírus, 2016. Foto de Caio Amorim.

Em 2017, Trina Robbins, possivelmente a maior teórica dos quadrinhos na atualidade, esteve no Brasil para um encontro com quadrinistas mulheres durante o SIQ! – Semana Internacional de Quadrinhos da Faculdade de Comunicação ECO-UFRJ. Uma iniciativa do núcleo da pós-graduação, mestrado em produção de Conteúdos Digitais, como então era conhecido o Programa de Pós-Graduação em Mídias Criativas da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trina Robbins foi pioneira em alertar para as questões de gênero nos quadrinhos e artes gráficas urbanas em geral. “A representação de homens e mulheres nos quadrinhos, particularmente nos primeiros gibis, difere consideravelmente. As mulheres jovens são bonitas; os homens são vistos, na melhor das hipóteses, grotescos. Essa tendência muda em meados do século 20, quando homens de traços caricatos se relacionam com mulheres de também de aparência engraçada, assim como homens de aparência realista a mulheres de aparência realista” – no conta Trina em seu artigo acadêmico “Diferenças de gênero nos quadrinhos”, publicado em setembro de 2002.

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A pesquisadora e autora de histórias em quadrinhos Trina Robbins encontra as quadrinistas brasileiras em 28 de setembro de 2017 na SIC – Semana Internacional de Quadrinhos da ECO/UFRJ.

2.5 – As Guerrilla Girls

As Guerrilla Girls é grupo fundado em 1985 como reação a uma exposição do Museu de Arte de Nova Iorque onde a curadoria selecionou 165 artistas das quais apenas 13 eram mulheres. O grupo então levantou o questionamento sobre o papel da mulher nas artes. É famoso o outdoor produzido pelas Guerrilla Girls em 1989, com o quadro do pintor Jean Auguste Dominique Ingres, “A Grande Odalisca” usando uma cabeça de gorila, onde lê-se: “A mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu Metropolitano(de Nova Iorque)? Elas são menos de 5% dos artistas na seção de arte moderna, mas 85% dos nus retratam mulheres”. 51


Outdoor com o protesto das Guerrilla Girls.

É do mesmo ano o manifesto “As vantagens de ser uma mulher artista”, reproduzido abaixo, onde podemos identificar a referência a algumas situações que envolveram artistas famosas. Como por exemplo, o reconhecimento tardio da arte de Louise Bourgeois, ou Margaret Keane, cuja arte fora assinada por seu esposo por anos antes que se descobrisse a verdadeira autoria.

As vantagens de ser uma mulher artista: Trabalhar sem a pressão pelo sucesso. Não necessitar estar nas exposições onde houver homens. Ter uma folga do mundo da arte em suas quatro encomendas. Saber que sua carreira poderá talvez decolar após seus 80 anos. Estar segura de que qualquer tipo de arte que você produzir será rotulada de “feminina”. Não ficar presa em uma posição de tutora. Ver suas artes florescerem através de outros. Ter a oportunidade de escolher entre carreira ou maternidade. Não precisar fumar charutos ou pintar com ternos italianos. Ter mais tempo livre para produzir quando seu parceiro a largar por uma mulher mais jovem. Ser incluída em versões revisionistas da História da Arte. Não precisar passar o constrangimento de ser chamada de “gênio”. Ter sua foto publicada em revistas sobre art usando uma roupa de gorila. ("The Advantages of Being a Woman Artist", 1988, Guerrilla Girls)

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Quando indagadas se a arte tem seu discurso próprio ou deve incluir as identificações de gênero, responderam que toda representação tem seus valores envolvidos, relacionadas às pessoas que decidem sobre o mérito, no caso: homens, brancos, ricos, o escopo se restringe a um único grupo, sendo portanto, excludente, onde não se está construindo uma narrativa sobre a Arte, mas sim do Poder Patriarcal. Atualmente as artes de protesto das Guerrilla Girls ocuparam as paredes das mesmas instituições que elas criticam, ainda que a desigualdade na representatividade feminina esteja longe de se considerar superada. Em 2017, elas estiveram expostas nos salões do MASP –Museu de Arte de São Paulo.

2.6 – Rede Nami

Fundada em 2000 por Panmela Castro, a Rede Nami promove os direitos das mulheres através de arte cultura e treinamento de lideranças. A proposta é ocupar as narrativas visuais através de painéis urbanos sofisticados. Panmela e suas alunas têm invadido um território eminentemente masculino: o grafite urbano. Duplamente transgressor, a imagem da mulher é retrabalhada sob o viés do protagonismo feminino, tornando sujeito aquela que tradicionalmente nas artes é feita objeto. Lembrando o reclame das Guerrilla Girls, que a mulher só entraria em museus como musa ou objeto de desejo, e não como autora de seu discurso, a Rede Nami coloca as tintas a serviço das meninas, numa rua que foi sempre território de assédio e perigo para as mulheres. A atuação das grafiteiras, muitas das quais também poetas, engloba a confecção coletiva de grandes painéis de arte urbana. Nos espaços onde só se viam artes criadas por homens, dentro de uma monotonia de traços, o grafite originalmente surge seguindo tendências vindas do exterior sobrepondo à pixação. Sobre esta cabe salientar que o “pixo” originalmente, junto ao seu caráter expressivo e transgressor (ao contrário do grafite, permanece considerado como crime de dano ao patrimônio) ele tem funções de “marcação de território”, com algo do comportamento do macho selvagem que urina para marcar sua área de caça. 53


Os “Grafitatos”, atos políticos unindo grafite, rodas poéticas, feiras grátis e oficina de arte-ativismo, invadem territórios vitimados pelo abandono do poder público, ressignificando o espaço como ocupação de narrativa feminista. A narrativa que riscava a cidade então, era sintoma do comportamento de afirmação machista, de domínio de território. Não cabia de nenhuma forma expressão feminina nos riscos que agrediam muros, portas e postes. Tomar para mulheres estes espaços promove o cenário de um novo imaginário a ser compartilhados por todas, meninas, mulheres, que circulam e passam a usufruir artisticamente este espaço. Essas trocas alimentam as narrativas poéticas para os embates do slam. Destaca-se o projeto Afrografiteiras, voltado especialmente, ainda que não excludente de outras, às meninas negras. No entendimento de que no sopé do sistema opressor, o machismo e o racismo se sobrepõe ameaçando-as ainda mais que outras. Exposições de artes gráficas acompanham as rodas. Em cordéis ou cangas estendidas no chão, pregadas às paredes por fitas, ajudam a divulgar projetos. Junto a isso as campanhas digitais, ativismo de rede (Internet), fomentam a organização de novos atos dentro de um cronograma das pautas. Algo que tem sido observado é que durante os SLAMs das Minas, não tem sido poucas as ocasiões em que homens interferem de forma invasiva. O fato do microfone ser exclusivo para as mulheres é desafiado ou com berros ou ainda com a tomada do equipamento, como ocorreu no SLAM das Minas na Casa Nem, casa de acolhimento da população LGBTT na região da Lapa, do centro do Rio de Janeiro, em julho de 2017. Um suposto “produtor cultural” confiscou o microfone e tomou para si o mérito pela apresentação da atriz transgênera Bianca, do coletivo Sertransnejas. Em outras três ocasiões, homens alcoolizados gritavam interrompendo a fala de Letícia Brito, organizadora do evento, tão logo ela anunciava o espaço como sendo de uso exclusivo das poetas. Tais interrupções não são observadas em eventos de organização mista ou masculina. O protagonismo feminino se mostra flagrantemente perturbador ao questionar o status quo das artes urbanas com espaço masculino, sobretudo quando este é definido como de competição e desafio.

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Trazendo novamente o foco no grafite urbano, as imagens que escalam as paredes para questionar a violência do patriarcado são alvos de apagamento por parte desta mesma violência. Um pixo feito em maio de 2017 na parede de uma banca de jornal no centro, onde se via uma vagina estilizada foi riscada e sobreposta com o pixo de um pênis. Os lambes da vagina floral “Deixa ela em Paz” são logo arrancados ou sobrepostos com alguma camada de tinta que desaparece com sua mensagem desafiadora onde se subentende: mulheres e sua sexualidade, não estão ao dispor dos machos para serem molestadas. Para as mais jovens, esse movimento de tomada das ruas prosseguirá se naturalizando, mas é importante termos em mente que num passado de menos de 200m anos, bizarrices jurídicas tais como a “proibição de rebolar as ancas” imposta às mulheres negras do período imediato da pós escravatura eram a realidade. O feminino não reprimido era considerado causa de “tumulto”, e ainda hoje se culpa o “comportamento lascivo” da vítima por agressões sexuais sofridas, ainda que esse “comportamento” seja uma peça de roupa um pouco mais decotada, ou o “vacilo” de ousar se locomover pela cidade sem a escolta de um homem.

Eu acho que o nosso corpo é produzido. Não há uma naturalidade, não somos naturais. Eu aposto em uma produção de subjetividade. Então todas as nossas práticas, os encontros ao longo da existência vão produzindo um certo modo de estar no mundo, uma certa maneira de sentir, de ver, de viver, de pensar, nada disso nasceu com a gente de fato. Há perspectivas que pensam isso, eu não penso, e a beleza de pensar assim é que a gente pode mudar, não há algo determinado, fechado em si. Então, nesse sentido, a produção do corpo da mulher é absolutamente tomada por machismo desde o início. se a gente começa a cavoucar, e acho que esse levante feminista está super forte, e a gente começa a conversar sobre isso, e a gente começa a pensar uma série de acordos tácitos que vão fazer com que nós mesmas nos causemos alguma espécie de repressão sem que isso precise ser dito. Você pega um relacionamento entre homem e mulher, por exemplo. Uma série de condutas que você toma sem ninguém ter te pedido para tomar, mas é adequado, é correto, é visto com bons olhos, é uma produção da sua família, é uma produção do bairro, é uma produção da novela, é uma produção do cinema, está em todo lugar. Como a gente vem disputando a cidade, quando você transgride algum desses acordos tácitos é que você percebe que ele é um acordo tácito. Nessa ocupação, nessa disputa pelo seu corpo, “meu corpo, minhas regras”, você vai, então, se defrontar com isso. (...) o Brasil é um dos países mais machistas do mundo, e a violência contra a mulher está muito longe de ser só de chegar às vias de fato, de chegar a ser estuprada, por exemplo. A violência está em não poder existir, não poder ocupar os lugares, ou quando pode ocupar, tem que ocupar na lógica masculina. Se eu sou arquiteta, eu sou arquiteta do concreto, eu uso roupas pretas, roupas específicas, sigo a linha de uma determinada arquitetura que garanta que as coisas reconheçam “ah, ela com certeza é arquiteta”. Mas vai você experimentar um modo singular de fazer as coisas.

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Porque eu acho que, quando a gente se coloca como minoria, e aí em um sentido deleuziano de se colocar contra o hegemônico, o menor é o que não está dado, é o que não é o modelo hegemônico, é o contra-hegemônico, só te resta a experimentação, e a experimentação vai sempre ser, de alguma maneira, desconfiada, errada. Duas mulheres andando na rua de mão dada, mulher saindo de maiô no Carnaval, que absurdo! (GUIZZO, Iazana, ​entrevista para a Agência pública sobre As Mulheres o Direito à Cidade)

Corpos femininos são constantemente expostos e abusados em nome do prazer e lucro masculino. Porém, se for usado como ferramenta de auto-afirmação ou sujeito de prazer pela mulher, a imagem é automaticamente rotulada de imoral, ofensiva pelo potencial destruidor dos símbolos visuais de poder. É o perigo mulher que se recusa a ser objeto e se coloca como sujeito. Como diria o escritor argentino Eduardo Galeano, trata-se do “medo das mulheres sem medo”. A iniciativa de Panmela Castro criando a rede Nami e suas oficinas, produziu uma legião de arte- ativistas que por sua vez são reprodutoras das pautas feministas e LGBT nas escolas de seus bairros, nos muros das vias públicas, em eventos de saraus e feiras. Em 2017 o maior grafite do mundo feito por uma mulher foi produzido no centro do Rio, por Luna Buschinelli então uma artista de apenas 17 anos, dentro de um projeto de arte urbana chamado Rio Big Walls da Secretaria Municipal de Cultura. A obra, intitulada “Contos”, cobre o prédio da Escola Municipal Rivadávia Corrêa na Av. Presidente Vargas entre a Igreja da Candelária e a Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Um dos desdobramentos do Afrografiteiras foi o coletivo de arte PPKrew (pronuncia-se ​pepéca criu)​ . Um movimento que atinge os simbolismos do poder nas narrativas sociais vigentes, não ficaria sem uma reação. Além da destruição ou censura das obras, dos ataques em blocos pelos “trolls” de Internet, agressões e assassinatos de mulheres são um perigo real. Em 14 de março de 2018, a execução encomendada da vereadora carioca do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) Marielle Franco, que vitimou também o motorista do carro onde estava, Anderson Gomes, foi o mais duro golpe já sofrido pela militância dos Direitos Humanos. Porém os assassinos certamente não esperavam a comoção que se alastrou em questão de poucas horas, já conflagrando a passeata que cobriria a Praça da 56


Cinelândia, palco histórico das manifestações políticas do país. No chão da praça, oficinas espontâneas de stencils, pichações, grafites, quadrinhos, adesivos, lambes, foram produzidos em menos de 48h. No momento em que esta dissertação é escrita, caminhamos para mais de dois anos após o crime ainda não solucionado, e as manifestações artísticas com a iconografia gerada a partir da imagem e pautas de Marielle continuam sendo reproduzidas em ampla escala tantos nas narrativas gráficas quanto saraus poéticos. O caso teve repercussões internacionais, e a imagem da jovem Marielle se transformou em ícone do luta por direitos humanos e especial das mulher negra e lésbica de periferia. Marielle era cria da Maré, complexo de favelas da periferia do Rio de Janeiro, onde violações de direitos humanos são prática sistemáticas dos poderes públicos. O rosto de Marielle agora se vê grafitado nos muros das capitais, “viralizou” no cenário urbano da mesma forma que a mensagem da vereadora viralizou nas redes e veículos de mídia, tanto comerciais quanto independentes.

Pixos recentes (2018) no banheiro do restaurante Amarelinho, Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro. Repare no caráter

incentivador

da

feminilidade

autônoma em oposição aos antigos pichos de banheiro que se resumiam a difamação de meninas ou declarações de amores platônicos a rapazes. Fotos: Thais Linhares.

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2.7 – Internet

A considerada “nova onda feminista” ocorre diretamente atrelada ao processo crescente de democratização de meios de produção e comunicação. Ao puxar o acesso aos meios para as bases populares, vemos uma reprodução muito mais legítima do recorte demográfico nas manifestações culturais. Mulheres são mais de 50% da população, trabalham na base da geração de bens, permeiam tanto o mundo do trabalho externo quanto o familiar e são maioria no campo da educação e estruturação social, referindo-se ao cuidado familiar e social. Compartilham com os grupos LGBT a rotina de se verem alvo de agressões e assédios quando expostas – apenas seus corpos como escudos. Assim, a oportunidade de se expressarem “protegidas” pela tela de um computador, abre a possibilidade de se expor enquanto pessoa de direitos. As agressões não diminuíram, e vemos ocasiões onde o SLAM das MINAS, foi impedido de se fazer presente na Ilha de Paquetá (2017), município do Rio de Janeiro, sob ameaças de ataques de agressores anônimos. Tentam calar suas vozes na redes, usando práticas de denúncia em massa o que gera resposta censora das redes sociais, em especial o mais usado, Facebook, e também no YouTube. Alguns destes recursos são:

Betânia, ou Beta, a robô feminista​ (https://www.beta.org.br/) programada para atualizar esse sistema feito por homens e para homens. Transmite alertas e ajuda a organizar ações. Vedetas, servidoras feministas​ (https://vedetas.org/), criada para garantir a independência das plataformas ativistas (incluindo outras que não feministas) dos servidores comerciais, que podem a qualquer momento ser derrubados ou invadidos. CiberAna​ (http://blogueirasnegras.org/C0sTB) é a plataforma EAD de formação em segurança digital e autocuidado nas redes, iniciativa do Gorda&sapatão em parceria com as Blogueiras Negras apoiada no edital LBT: Autonomia, Liderança e Direitos. 58


Sai Pra Lá, aplicativo de celular (https://www.facebook.com/appsaiprala/), permite que as usuárias marquem em um mapa, de forma anônima, o local exato em que o assédio aconteceu, e que classificam-no como “sonoro” (como assobios e gritos), “verbal’ (cantadas e xingamentos), “físico” (apalpadas e passadas de mão) ou “outros” (não especificados). O intuito é mapear o assédio e atuar na prevenção dele, mostrar para as mulheres quais são os locais onde mais ocorrem assédios e pressionar os órgãos responsáveis pela nossa segurança para que tomem atitudes.

Divulgação do então novo aplicativo de combate ao assédio sexual Sai Pra Lá​ na página do DDH. Arte: Thais Linhares, em 2016.

A reorganização do meio como forma de garantir o acesso e democratização obtidos primeiramente com as redes é essencial para dar continuidade a ações de educação, denúncia e apoio. A característica viral e de tessitura ativista das redes tem obtido sucesso em

revolucionar

antigos

paradigmas

da

cultura

até

então

exclusivamente

macho-hetero-normativa. 59


Mulheres e LGBTs se organizam para romper a barreira do medo e silêncio se apoiando em táticas coletivistas. Daí surgem as campanhas que se valem da tecnologia das hashtags (#) com intuito de compartilhar experiências pessoais de assédio, estupro – alertando e denunciando a opressão de gênero. Como por exemplo:

#MeToo​ – compartilhamento de casos de estupro e abuso sexual. #PorraMarido – sobre a inércia masculina no que tange à divisão das tarefas domésticas. #MeuAmigoOculto – denúncia do machismo, muitas vezes já configurando assédio, dos homens próximos, dos quais se esperaria maior empatia. Juntam-se aí as denúncias que apontaram comportamentos machistas e assediadores no mundo dos quadrinhos e ativismo. Todas essas iniciativas dialogam livremente entre si: grafite, quadrinhos, redes e saraus de rua, construindo uma atmosfera urbana acolhedora do feminino, algo como a Cidade das Mulheres, imaginada por Cristina de Pisano20.

2.8 – Recriando as narrativas

É ainda recente, mas estamos diante de movimentos que se comprometem a recriar sistemas e alterar a percepção geral que a cidade de tem sobre muitos dos códigos do imaginário sobre questões de gênero. Não à toa tem eclodido contrataques, como o “escola sem partido”, cujo nome camufla a única intenção de impedir que as pautas progressistas, que já ocupam as ruas, sejam debatidas na educação pública, ou o impulso neoconservador de candidatos a cargos políticos, com discursos que parecem cópias de velhos roteiros de filmes sem cor. Apesar de parecerem demandas progressistas, colocadas como grandes novidades, as questões de gênero na realidade sempre estiveram à espreita. Aguardavam um porta de entrada no debate público e esta veio com a popularização de meio de acesso à comunicação, à informação, à produção e sobretudo à articulação em rede e

​Cristina de Pisano, ​poetisa e filósofa italiana que viveu na França durante primeira metade do século XIV.​, primeira autora francesa a viver profissionalmente de sua escrita. Muito influente, criticava a misoginia e defendia o papel das mulheres na sociedade. 20

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financiamentos coletivos (onde se passa a gerir tempo e capital de forma horizontal, sem interferência dos donos do poder econômico). Acreditamos que dificilmente se poderá reverter o processo deflagrado de construção de uma sociedade mais inclusiva. Os saraus promovem a circulação de saberes políticos, a exposição dos corpos antes invisíveis e alianças de poder registradas nas artes. Mulheres, sobretudo as negras, ainda são as grandes vítimas do ódio enquanto aquelas mais objetificadas pelo sistema. O corpo que se nega a se deixar capitalizar é um corpo perigoso ao poder. Mas, agora, há um panorama de consciência e união, com um direcionamento cultural que prepara o discurso das políticas.

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CAPÍTULO 3: Metodologia, a observação participante

A metodologia tal como ela se desenvolve, com a inserção dentro do contexto representado. A presença da autora junto às personagens biografadas, participação nos eventos relatados.

3.1 – Observação participante e a autoficção

Para se desenvolver um álbum gráfico sobre as periferias poéticas cariocas, poderia-se ter optado por diversos caminhos a fim de formar uma base de informações para a elaboração dos roteiros, da cenografia, das personagens envolvidas nas histórias. Mas o que ocorreu que não foi uma escolha. Foi uma vivência. Desde antes de 2013 já existia o interesse em trabalhar memórias locais e biografias através de arte. Mas ainda não era especificamente arte-ativismo ligado a causas de direitos humanos. Com a aproximação junto a coletivos, como forma de integrar o trabalho dos advogados do DDH21 ao do campo da cultura e expressão, iniciou-se uma convivência dentro dos mesmos. Participando não apenas como quem registra e repassa as demandas, mas integrando enquanto parte criativa nas campanhas, publicações e eventos.

3.1.1 – Breve nota sobre o método

Poderia-se dizer que ao invés de optar por uma forma de pesquisa do objeto, a pesquisadora foi absorvida pelo próprio objeto, não raras vezes se tornando o próprio. Partindo-se do proposto pelo antropólogo Bronislaw Malinowski22, como técnica de

21

DDH, o Instituto dos Defensores de Direitos Humanos, ver cap 1 desta. ​ ronisław Kasper Malinowski (​Cracóvia​, ​7 de Abril​ de ​1884​ — ​New Haven​, ​16 de Maio​ de ​1942​) foi um B antropólogo​ de origem polonesa. É considerado um dos fundadores da ​antropologia social​. Atuando na London School of Economics​ (LSE), fundou a ​escola funcionalista​. Suas grandes influências incluem ​James Frazer​ e ​Ernst Mach​. (​https://pt.wikipedia.org/wiki/Bronis%C5%82aw_Malinowski​) 22

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pesquisa, sob o nome de "observação participante", podemos delinear o caminho seguido aqui. Malinowski revolucionou a antropologia ao se propor à convivência junto aos objetos de seu estudo. Na sua obra master (1922), o antropólogo se insere na comunidade dos nativos das ilhas Trobriand, no Pacífico, e chegando ao preciosismo de se educar no idioma nativo, coleta uma série de observações que seriam juntamente a pesquisas anteriores e posteriores, publicadas em um livro fundamental que revolucionaria os estudos de antropologia (MALINOWSKI, ​Argonauts of the Western Pacific,​ 1922).

A observação participante é uma das técnicas muito utilizada pelos pesquisadores que adotam a abordagem qualitativa e consiste na inserção do pesquisador no interior do grupo observado, tornando-se parte dele, interagindo por longos períodos com os sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano para sentir o que significa estar naquela situação. Na observação participante, tem-se a oportunidade de unir o objeto ao seu contexto, contrapondo-se ao princípio de isolamento no qual fomos formados. (QUEIROZ, Danille Teixeira, VALL, Janaina, SOUZA, Ângela Maria Alvez e, VIEIRA, Neiva Francenely Cunha, em Observação Participante na Pesquisa Qualitativa,R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2007 abr/jun: 15(2): 276-83, p. 278)

A abordagem, entretanto, não se coloca sob a luz de uma pesquisa antropológica, ou mesmo explicitamente sociológica. O foco é o registro e divulgação dos grupos que usam a arte como forma de resistência e transformação, e suas narrativas criadas no vácuo de um espaço que lhes foi sempre negado.

3.2. – O chamado à participação

A primeira aproximação com ações de cultura no campo dos direitos humanos ocorreu em meados de 2007. Pouco tempo antes, no dia 7 de fevereiro do mesmo ano, ocorrera o assassinado do menino de 6 anos durante um assalto à sua família. O caso comoveu a sociedade pelo alto nível de violência e desumanidade demonstrado pelos perpetradores dos crime, o que incluía um menor de idade, um adolescente de 16 anos.

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A presença de um menor entre os criminosos, acendeu um alerta: como explicar tal nível de indiferença à vida em alguém tão jovem? O que estava acontecendo com nossa juventude que já como principal vítima de grandes violências, por sua própria fragilidade, também se configurava como agente de tais violências? A resposta, apostava-se, poderia estar na cultura. Era preciso resgatar narrativas do que significava ser um cidadão, de garantir acesso à educação cidadã, e também de encontrar formas de tirar do crime aqueles que haviam sido a ele arrastados. Partiu da iniciativa da diretora e produtora de cinema Carla Camurati formar um grupo de interessados em colaborar de alguma forma nesta ideia. O grupo nasceu nas redes dentro do portal Yahoo! – ainda não existiam o Facebook, Whatsapp ou Instagram, hoje populares. Neste grupo reuniões presenciais foram combinadas, no espaço do Teatro do Jóquei, no bairro da Gávea, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Quem cedeu o espaço foi a diretora Karen Acioly, que logo seria a criadora e responsável por um importante marco da comunicação voltada ao público infantil, com forte viés de construção de um social mais justo, o FICI.23 O primeiro encontro reuniu diversos atores do meio cultural e uma importante participação do meio jurídico, Siro Darlan, então juiz da Vara da Infância e do Adolescente. Destacando-se dentre um caloroso debate, Siro fez uma proposta aos artistas: "entrem no sistema". O sistema, no caso, era o sistema penal, especificamente os locais onde menores infratores eram detidos por determinação legal. Ali, com artistas em contato com os menores, algo além do medo e desesperança, poderia, talvez, começar um processo de mudança. Esta aproximação com as áreas do direito e segurança pública que desaguaria neste projeto, começou ali. No mesmo ano, um segundo evento abalaria a sociedade. ​No primeiro dia de dezembro, o estudante Hugo Ronca Cavalcanti, de 12 anos, foi atingido por um tiro no pescoço enquanto jogava bola como goleiro durante uma festa de aniversário, na quadra do Clube Federal, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. Internado em estado grave, ele morreu uma semana depois de dar entrada na unidade Miguel Couto.

​FICI, o Festival Internacional de Cinema Infantil, que funcionou até 2017, quando a destruição das políticas de fomento impede sua continuidade. Ver mais em ​http://festivaldecinemainfantil.com.br/​ (último acesso em 4 de maio de 2020). 23

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A carta aberta de Sandra Ronca Cavalcanti, mãe de Hugo, escritora e ilustradora de livros para crianças, registra a memória desta tragédia, mais uma, numa cidade carente de direitos e repleta de insegurança enquanto cenário da infância. A seguir:

Por Sandra Ronca Cavalcanti Abrindo meu Coração… Não vou começar falando do Hugo. Hugo está mais do que escrito em nosso coração e uma só carta não bastaria. Poderia sim falar de que gostaria de que houvesse menos armas, menos disparos, isso inclui os irresponsáveis disparos para cima. Que gostaria que nossas crianças pudessem ser simplesmente crianças. Nesses dias todos em que passei no hospital e nos dias seguintes, pensamentos tomavam minha mente e Coração quando bem queriam, seja andando nos corredores do hospital, seja ao lado do Hugo, no meio da madrugada, na hora que ficava deitada ao acordar até ter forças de colocar o primeiro pé pra fora da cama ou mesmo debaixo do chuveiro. Pensamentos vêm como visitas inesperadas e mais inesperado ainda é o nosso destino. Como bem retrataram Vinícius e Toquinho, "... Não tem tempo nem piedade, nem tem hora de chegar. Sem pedir licença muda nossa vida e depois convida a rir ou chorar". Tento colocar aqui um pouco destes pensamentos, pois acho que pode ser um pouco da minha colaboração com um Mundo tão carente e desigual. Vi a Solidariedade das pessoas em gestos tão simples, como um copo d´água oferecido, um sorriso, um olhar que te pergunta "Como ele está agora?" e você por vezes só é capaz de dar um meio sorriso que o outro entende e vocês se abraçam. Vi guardas e médicos sensibilizados, olhos cheios de lágrimas, vontade de ajudar de alguma forma. Corações que têm que ser mais duros, para se proteger de tantas mazelas que há ali no hospital e, mais ainda no público, onde as dores são mais expostas e os recursos por vezes, limitados. Por vezes, os médicos me olhavam assustados como quem pergunta "Mas a senhora entendeu mesmo o que está se passando?" Entendi sim, mas o que eu poderia fazer? Me desesperar? Isto estaria ajudando de alguma forma? Até o último momento, enquanto me era permitido, eu tinha que acreditar num Milagre. Fui percebendo que tinha que ser um Enorme Milagre. Passei a orar pelo que fosse melhor para meu filho. A semana que ganhei para acariciar, beijar, massagear o Hugo e conversar, rezar e cantar para ele, me foi muito importante. Isso me encheu MUITO de Amor. Agradeço à turma do CTI por respeitar este momento. De onde veio e vem toda essa Força, que também me surpreende? Ela vem da Fé e desse Amor. E veio um pouco de cada um que orou, torceu e acreditou. Foram muitas orações, correntes de Fé e Esperança se formando e crescendo. Sem dúvida, isso foi muito Bom para o Hugo e nos deu Força também. Ver todas as crenças, idades e cantos de dentro e fora deste País, reunidos numa grande corrente, esse foi o Nosso Milagre.

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É muito estranho, você de repente é ator de um filme, do qual não sabe o enredo, que é te passado no momento exato em que está acontecendo. Me assustei ao perceber, no meio da semana, que o filme que estava acontecendo era "A Corrente do Bem." Um filme que me emocionou há cinco anos atrás, mais do que todos que já assisti. Pessoas do passado, de quando eu tinha os 12 anos do Hugo, surgiram. Professoras dele de escola, o pediatra que participou de sua chegada neste mundo, vizinhos, amigos, colegas, parentes distantes, anônimos até chegarmos nos esperados amigos e familiares próximos. Tanta gente, difícil enumerar... Dentre tantas lindas correntes de que tomei conhecimento, uma que me tocou o coração foi de seus amigos e coleguinhas de Itaipu que se reuniam em orações todos os dias e confeccionavam tsurus (origamis) pela sua recuperação e um rolo de mensagens. No dia do meu aniversário, 11 de dezembro, me prestaram uma linda homenagem. Recebi, entre pequenas lembranças, o rolo de mensagens, já com quase 25 metros, que começou a ser escrito ainda pela melhora do Hugo e, depois foi se estendo com mensagens para mim. A União dessas crianças é a coisa mais linda. E conviveram muito conosco em nossa casa. Sinto-me, sem pedir licença, meio mãe de todos eles. Recebi também, de presente, uma poesia de Bia Câmara em homenagem ao pequeno grande Hugo, a qual transcrevo abaixo. Vi de forma bem nítida no hospital que, todos ali têm suas dores, maiores ou menores, assim como a capacidade de lidar com elas. Um repórter pediu-me que descrevesse a Dor. Creio que a dor não se descreve, a dor se sente. E, ao mesmo tempo que a Dor é algo que se tem, pode ser algo que nos falta. Todos os dias pessoas queridas se vão, por vezes de maneiras inexplicáveis, todos os dias muitos precisam do nosso apoio. Na verdade, somos todos irmãos. Sabemos que o caso do Hugo foi conhecido pela forma trágica que aconteceu, uma Vida tão nova e tão viva, interrompida num instante, por milímetros, difícil de absorver, compreender... Vi, na realidade de um hospital público que acredito ser um dos que se encontram em melhor estado, pais sem dinheiro de passagem para visitarem seus filhos, diversas talas improvisadas com papelão, pessoas caminhando segurando seu próprio soro, empurrando as macas de seus amigos, banheiros sem papel higiênico, papel toalha ou mesmo tranca (Não foi o caso do CTI infantil, graças a Deus, bem aparelhado) entre tantas coisas que até não tomei ciência. E, me perguntava, o que leva pessoas que estão em cargos públicos com altos salários, a desviar dinheiro da Saúde, da Educação ou o que quer que seja e tirar o mínimo de dignidade a qual estas pessoas têm direito e que, em momentos tão difíceis, minimizaria um pouco tanta dor. Me perguntava qual a função de acumular tanto dinheiro e ainda por cima, roubado desta gente tão sofrida. A pergunta que ecoa é: Pra que? O que pensam os corruptos, como raciocinam ou mesmo se chegam a fazê-lo. Uma semana num Hospital Público em piores condições, faria-lhes bem, seria uma verdadeira lição de vida. Espero que alguns estejam lendo esta carta. A bala que atingiu meu filho veio de cima e é de cima que a Sociedade gostaria de ver os melhores exemplos. As equipes médicas foram excelentes. O patrimônio humano do Hospital Municipal Miguel Couto foi maravilhoso. Quero agradecer a todos dali, incluindo guardas e o pessoal da limpeza, dos quais muitos sei os nomes, e só não os cito para não ser injusta com os demais. Gostaria de agradecer a todos conhecidos, desconhecidos, anônimos, às pessoas da Paróquia São Sebastião de Itaipu, Famílias Salesiana e Inaciana. Aos queridos amigos e vizinhos de todos os lugares por onde passamos, pediatra, professoras e funcionários das antigas escolas, amigos, clientes e colegas de trabalho e profissão. Todos que surgiram, do tempo presente e passado, os que oraram, os que escreveram mensagens, os que de alguma forma se mobilizaram, ao Dr. Paulo Niemeyer Filho. Ao Clube Botafogo e Colégio Gay

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Lussac pela homenagem. Agradeço à imprensa que respeitou nosso silêncio. Aos amigos próximos e familiares tão juntinhos nessa hora. Aos amiguinhos do Hugo por todo o carinho que nos foi dado. Agradeço aos que nos doze anos de existência do Hugo, alimentaram também sua Alma. Agradeço a Deus por existirem e por nos ter colocado no caminho pessoas tão maravilhosas; pela Natureza tão linda e tão presente no Parque da Colina; pelos mais de treze anos abençoados que convivemos com nosso Hugo. Como eu disse à mãe do pequeno Renan, coleguinha do Hugo na UTI: "O tempo de Deus não é igual ao tempo dos homens". E nós, frágeis mortais, é que temos que tentar entender... Agradeço e parabenizo você que leu até aqui. Só que ainda não acabei... Natal: Acordei sobressaltada numa madrugada desta semana, lembrava de ter visto antes da nossa ida ao Leblon, um comercial Natalino que quando acabou eu pensei "Caramba! Eles só falaram nos presentes!" Isso me assusta, vivemos num mundo que além de desigual, a mídia leva a todos a vontade de possuir, o consumismo. O que agrava este relacionamento entre as camadas da Sociedade. O Ser é esquecido em detrimento do ter. Não se vê que o verdadeiro presente está no abraço amigo, na flor que desabrocha, na borboleta saindo de seu casulo, no sorriso de uma criança, nos olhinhos curiosos, no beijo melado e sincero? A todo dia inúmeros pequenos milagres acontecem e o homem na sua correria do ganhar para ter, não vê. Simplesmente, o milagre da Visão e da Percepção fica despercebido num canto do Coração. O que é o Natal? O essencial do que necessitamos e que alimenta a Alma e nos dá estrutura está mais próximo do que pensamos. Filhos são presentes de Deus, verdadeiras Bênçãos (Fico feliz de sempre ter dito isso para eles), que recebemos para dar o Melhor do que temos a eles. O Melhor de Espiritual, não de material. Agora citando, Saint Exupéry, "o Essencial é invisível aos olhos." e não está à venda. Falando um pouco do Hugo, Hugo sempre foi muito tudo. Muito guloso, muito teimoso, muito carinhoso, muito amigo, muito solidário, muito teatral, muito justo e muito agregador. Agregador... me peguei também pensando sobre isso... Na união de todos que foi formada. Precisamos, mais do que nunca, dar continuidade a essa energia de Fé e Amor, não deixando que ela se dissipe no ar sem um propósito. Uma Corrente que devemos propagar. Cada pessoa tocada e cada pequena mudança que ocorra em cada uma, será sem dúvida uma Grande Mudança para nosso Mundo tão necessitado de Fé e Solidariedade. Por ironia ou ênfase do destino, este é o tema deste ano da Árvore de Natal da Lagoa, a qual iríamos visitar, a pedido do Hugo, após a festa do Leblon. Que a Oração de São Francisco toque a todos os Corações e possa estar presente em nossas atitudes. Creiamos e façamos. Obrigada a todos vocês. (Sandra Ronca Cavalcanti, 19 de dezembro de 2007)

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E o citado poema de Beatrix Câmara: Ao pequeno grande Hugo... "Pessoas são anjos! Assim como você! Um anjo que veio ao mundo... caído do ceú... Jogar bola na Terra. Sua missão? Mostrar a todos o quão profundo é o valor da existência. Lembrar que o tempo, precioso tempo que se tem, vai e se esvai no instante de um "piscar de olhos"... No "bater de asas" da bela borboleta... Num suspiro de amor! Um anjo veio ao mundo e partiu. No "ipi,ipi,urra" de um imponente pássaro. Deixando o céu em festa e a Terra em luto! Esperando que um dia, o luto vire exemplo, lembrança, lição! Vire transformação! Que transcenda a dor... Na vivência do amor! (Beatriz Câmara)

Aqui peço uma licença para me colocar de forma pessoal nesta apresentação. A mãe de Hugo, Sandra, é minha amiga e colega de associação, a AEILIJ24. Eu tinha um encontro a marcar com Hugo, para desenharmos juntos. Ele queria me mostrar seus desenhos. Já me enviara alguns de presente, pequeno fã declarado de meus livros. Tenho em mente que esse encontro acontece a cada vez que atuo pela causa de uma infância 24

AEILIJ, a Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil, congrega autores de todo o país, com pautas de democratização da literatura. Ver em: ​http://aeilij.org.br/​ (útlimo acesso em 4 de maio de 2020).

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segura. A partir daí a inserção deu-se progressivamente, até ao ponto em que torna-se fortemente participante, enquanto que observadora. Um dos problemas identificados foi justamente a hegemonia nos grandes meios de comunicação de um discurso de criminalização da pobreza, da juventude e de forte viés racista, homofóbico e misógino. O senso comum que pauta a sociedade brasileira era então e ainda o é fortemente, de uma cruel narrativa punitivista e excludente. Era preciso porém a busca de informação, formação e contatos para poder agir de forma mais densa e eficaz nesta tarefa de ajudar e rever narrativas. Uma inserção no universo daqueles que são a maiores vítimas deste discurso, os moradores de periferias, as mães negras e suas crianças. Dentro deste caminho, busquei formação em comunicação, pedagogia, direitos humanos e justiça de transição, segurança em comunicação digital, cultura das periferias e movimentos sociais.

3.3. – A trajetória de uma observadora participativa

Os ambientes e atores apresentados fazem parte de circuitos culturais onde atuei como observadora e ora como ativista, ora como artista. As fotos são originais e os relatos, quando não extraídos da literatura pertinente, foram colhidos de forma direta com os atores observados. Trata-se aqui da apresentação de narrativas onde tenho contribuição ativa, como ativista, poeta e artista gráfica. Desde 2014 venho acompanhando os diversos cenários da cultura dos saraus de periferia, eventos institucionais que abraçam a integração da periferia com o centro, coletivos de comunicação e arte, sobretudo no viés da cultura dos direitos humanos. Também atuei produzindo publicações para web na pauta abordada. Fui uma das editoras das páginas de Facebook “As Sarauzeiras Oníricas” e DDH – O Instituto de Defensores de Direitos Humanos, ONG de caráter voluntário e independente que atende vítimas de violações de direitos por parte de agentes do Estado. O primeiro projeto planejado foi uma série de "cards" colecionáveis, onde são retratadas crianças que foram assassinadas por policiais de forma acidental, ou não, durante 69


incursões policiais feitas dentro de uma lógica de guerra urbana – ações amplamente apoiados pelos programas ditos policiais das redes de maior audiência. Nos cards as crianças conversam com o leitor, contando algo sobre elas de forma a dar um rosto à quem foi tornado estatística. Esse projeto, inicialmente chamado de Hamelin (2014), será melhor apresentado mais adiante no capítulo 6.

Painel "Colecionáveis", com algumas das artes da galeria que retrata crianças e adolescentes vitimadas por violência policia. Vencedora do edital de 2019-20 promovido pela ONG Artigo 1925.

Na medida em que me tornava ponte de ligação entre grupos que atuam em diferentes áreas dos direitos humanos (com foco em justiça, cultura, educação e memória), naturalmente surgiam ideias para novas ações, fruto das trocas colaborativas com estes grupos. Assim, junto aos Saraus, tornei-me sarauzeira, ao apresentar poemas autorais nos palcos, ou repórter, ao acompanhar e redigir matérias para veículos de jornalismo independente, ou produtora, ao destrinchar e ajudar a preencher editais para colegas dos coletivos e educadora, na medida em que produzia material didático e completava minha

​Artigo 19 ​é uma organização não-governamental de direitos humanos nascida em 1987, em Londres, com a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo. Seu nome advém da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (Wikipedia, acesso em 22 junho de 2020). 25

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formação como professora com estágios nas áreas de favelas onde atuava ou pretendia atuar culturalmente. E me reinventei como pesquisadora que foi transformada pelo objeto que observou. Mais que atividade de campo, o que eu pesquisava era então em parte a minha própria vida social que acontecia dentro do recorte de sociedade que escolhera.

Hoje existem inúmeros bons estudos sobre comunidades ou organizações, mas em geral os relatórios publicados conferem pouca atenção ao processo efetivo de realização da pesquisa. Também têm aparecido alguns trabalhos úteis sobre métodos de pesquisa, porém, com poucas exceções, situam toda a discussões num nível puramente lógico-intelectual. Falham quando deixam de levar em conta que, assim como seus informantes, o pesquisador é um animal social. Tem um papel a desempenhar, e as demandas de sua própria personalidade devem ser satisfeitas em alguma medida, para que ele possa atuar com sucesso. Quando o pesquisador está instalado numa universidade, indo ao campo apenas por poucas horas de cada vez, pode manter sua vida social separada da atividade de campo. Lidar com seus diferentes papéis não é tão complicado. Contudo, se viver por um longo período na comunidade que é seu objeto de estudo, sua vida pessoal estará inexplicavelmente associada à sua pesquisa. Assim, uma explicação real de como a pesquisa foi feita necessariamente envolve um relato bastante pessoal do modo como o pesquisador viveu durante o tempo de realização do estudo. (WHYTE, William Foote, 2005, pg.283)

Tomando como referência os "Dez mandamentos da observação participante", tais como destacados pela professora Licia Valladares26 em sua resenha da obra fundamental de William Foote Whyte, "Sociedade de Esquina [Street Corner Society] A Estrutura Social de Uma Área Urbana Pobre e Degradada", proponho uma releitura quando em atenção a uma pesquisa visando a criação de obras criativas a partir do universo das periferias cariocas. São estes portanto os "Dez Mandamentos originais e sua releitura Quebradeira": 1 – ​A observação participante, implica, necessariamente, um processo longo. Muitas vezes

o pesquisador passa inúmeros meses para "negociar" sua entrada na área. Uma fase exploratória é, assim, essencial para o desenrolar ulterior da pesquisa. O tempo é também um pré-requisito para os estudos que envolvem o comportamento e a ação de grupos: para se compreender a evolução do comportamento de pessoas e de grupos é necessário observá-los por um longo período e não num único momento (p. 320).

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​Licia Valladares é professora de Sociologia da Universidade de Lille 1 e membro do Laboratório Clerse/CNRS. No Brasil é pesquisadora associada do Iuperj.

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A imersão junto às periferias se deu em vários níveis. Uma vez que é preciso compreender a forma como ela é afetada pela ação legal e cultural dos poderes instituídos. De 2007 a 2020 foram 13 anos de envolvimentos práticos e pessoais, com os grupos cujas histórias são representadas.

2 – O pesquisador não sabe de antemão onde está "aterrissando", caindo geralmente de "pára-quedas" no território a ser pesquisado. Não é esperado pelo grupo, desconhecendo muitas vezes as teias de relações que marcam a hierarquia de poder e a estrutura social local. Equivoca-se ao pressupor que dispõe do controle da situação.

Ao longo da imersão, os objetivos iniciais de formação de rede legal e cultural se ampliaram ao compreender novas demandas e desejos das pessoas envolvidas. Amizades formadas, histórias vividas em conjunto no dia a dia do campo, apontavam ao desdobramentos em novos caminhos e seus projetos. Como foi no caso do livro coletânea de poesias das Sarauzeiras27 e na sequência os livros solo de cada uma das três.

3 – A observação participante supõe a interação pesquisador/pesquisado. As informações que obtém, as respostas que são dadas às suas indagações, dependerão, ao final das contas, do seu comportamento e das relações que desenvolve com o grupo estudado. Uma auto-análise faz-se, portanto, necessária e convém ser inserida na própria história da pesquisa. A presença do pesquisador tem que ser justificada (p. 301) e sua transformação em "nativo" não se verificará, ou seja, por mais que se pense inserido, sobre ele paira sempre a "curiosidade" quando não a desconfiança.

Não demorou-se a se estabelecer relações de confiança e amizade, possibilitadas sobretudo pela chancela do nome do DDH – o Instituto de Defensores de Direitos Humanos, que é muito respeitado nas comunidades e coletivos de favelas, e mais ainda pela atuação retratando poetas e amigos em eventos e ações. Num segundo momento quem subiu ao palco declamando com microfone na mão não foi mais pesquisadora, e sim a poeta, "a quarta Sarauzeira Onírica". Declamando poemas de autoria própria e de novas amigas e amigos. Circular, habitar, criar projetos de apoio dentro das comunidades, foram

​O livro "O Encontro Poético das Sarauzeiras Oníricas" lançado em 2019, inicialmente planejado por nós como fanzine, e então livro independente com financiamento coletivo que por fim foi publicado através da Editora Malê com patrocínio direto da FLUP. 27

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momentos que aconteceram independente da ideia inicial de redes ou registros de pessoas e memórias. 4 – Por isso mesmo o pesquisador deve mostrar-se diferente do grupo pesquisado. Seu papel de pessoa de fora terá que ser afirmado e reafirmado. Não deve enganar os outros, nem a si próprio. "Aprendi que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a elas. Na realidade estavam interessadas em mim e satisfeitas comigo porque viam que eu era diferente. Abandonei, portanto, meus esforços de imersão total" (p. 304).

Mais do que não camuflar a origem, a ideia de uma pessoa de fora, e portanto com contatos e acessos diferentes, foi colocada como um potencializador para aquelas pessoas de talento e propósito cidadão. Em paralelo ao processo de imersão desenvolveu-se material de comunicação como colunista de publicações, membro da diretoria de Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (neste período como vice-presidente da Associação) e busca de divulgar e expor a arte sarauzeira, como veremos mais adiante na parte 6 com desdobramento do projeto durante a Residência na França em 2020.

Seminário AEILIJ sobre "a proposta de redução da maioridade penal, o que nós (autores de literatura para crianças e jovens) temos a ver com isso?". A ideia era criar um alerta na área de cultura de como questões de amparo a infância e juventude devem sensibilizar aqueles que se propõe a se comunicar com estas. Os debatedores: Simone Monteiro (gerente de Mídia Educação da SME-RJ), desembargador Siro Darlan de Oliveira, Jô Ventura (arte-educador social e coordenador da ONG Se Essa Rua Fosse Minha), juiz Leonardo Gomes (do Centro de Estudos e Debates do TJRJ). Mediadora: Rosa Amanda Strausz, autora renomada de livros para jovens leitores. Em 17 de setembro de 2015, foto de Edna Bueno, escritora.

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5 – Uma observação participante não se faz sem um "Doc"28, intermediário que "abre as portas" e dissipa as dúvidas junto às pessoas da localidade. Com o tempo, de informante-chave, passa a colaborador da pesquisa: é com ele que o pesquisador esclarece algumas das incertezas que permanecerão ao longo da investigação. Pode mesmo chegar a influir nas interpretações do pesquisador, desempenhando, além de mediador, a função de "assistente informal".

Não apenas um, mas vários intermediários, destacando-se o colega de Instituto Thiago Melo, o produtor da FLUP Julio Ludemir, as companheiras de artes e importantes figuras culturais da Cidade de Deus, a Rosalina Brito e Valéria Barbosa, o fotógrafo, poeta e professor da Fiocruz de Manguinhos, Davi Marcos, ativo no núcleo cultural do Complexo da Maré.

6 – O pesquisador quase sempre desconhece sua própria imagem junto ao grupo pesquisado. Seus passos durante o trabalho de campo são conhecidos e muitas vezes controlados por membros da população local. O pesquisador é um observador que está sendo todo o tempo observado.

A única apresentação feita foi uma formal, como diretora adjunta do DDH, e a partir daí a observadora se acomodava com seu bloco de desenho e iniciava as artes: retratando os participantes em suas atividades de palco ou reuniões de coletivos sociais, fossem políticos ou de entretenimento. Em poucos minutos já se estabelecia,, através da curiosidade sobre as artes, as conversas, as trocas, a apresentações e novas amizades. Esse simples movimento de sentar e desenhar alguém, e em se perceber retratado, abria uma porta de contato que nenhum questionário, friamente lançado, poderia obter.

7 – A observação participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como que perguntas fazer na hora certa (p. 303). As entrevistas formais são muitas vezes desnecessárias (p. 304), devendo a coleta de informações não se restringir a isso. Com o tempo os dados podem vir ao pesquisador sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los.

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"Doc", liderança da "gang" de Cornerville apresentada por Whyte como seu guia em seu processo de observação participativa.

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A conexão criada através das artes, abria um fluxo de informações espontâneas e carregadas de demandas emotivas, pacotes de memórias, estabelecimento de novos planos e possíveis projetos em conjunto. Cito em especial a ação gerada junto a usuários de crack na favela do Lins e o Ato-Retrato levado à ruas cariocas.

Na favela do Lins, Rio de Janeiro, em projeto junto à produtora cultural Samara Tanaka, a colaboradora Rosimeire e ao poeta Guga Caldwell. Um café da manhã com usuários de crack. De nossas conversas foram produzidos desenhos e poesias, e assim os participantes podiam se servir do prazer de se verem representados e escutados. Histórias dolorosas revelavam o abandono emocional que gera a segregação social. Dezembro de 2016, foto de Guga Caldwell.

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A performance do ATO-RETRATO consiste em transformar uma conversa sobre como as questões da atual política afetam a vida pessoal do retratado. As palavras passam a integrar a arte como registro de uma sessão que é descrita pelos participantes como um momento de terapia através da arte. Fotos de Yolanda Soares no vão do Museu de Arte do Rio MAR, no primeiro semestre de 2019.

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Mais uma edição do ATO-RETRATO dentro da UQ-Universidade das Quebradas / UFRJ. Fotos de Yolanda Soares na sala de reunião do Museu de Arte do Rio MAR, no segundo semestre de 2019.

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8 – Desenvolver uma rotina de trabalho é fundamental. O pesquisador não deve recuar em face de um cotidiano que muitas vezes se mostra repetitivo e de dedicação intensa. Mediante notas e manutenção do diário de campo ( ​field notes ), o pesquisador se autodisciplina a observar e anotar sistematicamente. Sua presença constante contribui, por sua vez, para gerar confiança na população estudada.

O que ocorre é que, longe de rotineiro, o campo pesquisado apresenta-se dinâmico e envolvente. Estamos falando de periferias cariocas. É samba com feijoada em louvor aos Pretos Velhos, é tarde de grafitagem em corredores que formam grandes galerias a céu aberto, são alguns episódios onde se procura abrigo por conta de conflitos armados – ainda que a verdadeira rotina na favela é de boa vizinhança, prosa e busca de fortalecimento de uma identidade que garanta uma vida digna. A rotina era se deixar envolver pelo universo e então deixar vazar para o papel as personagens.

9 – O pesquisador aprende com os erros que comete durante o trabalho de campo e deve tirar proveito deles, na medida em que os passos em falso fazem parte do aprendizado da pesquisa. Deve, assim, refletir sobre o porquê de uma recusa, o porquê de um desacerto, o porquê de um silêncio.

Ao se acessar memórias, sonhos e medos através de arte, o material é basicamente emocional. São pessoas expostas em sua intimidade, ao mesmo tempo frágil e forte. Muito do que foi registrado, conhecido, revelado, jamais será apresentado. Em resguardo aquilo que estas pessoas desejam revelar a mais ninguém que não a artista.

10 – O pesquisador é, em geral, "cobrado", sendo esperada uma "devolução" dos resultados do seu trabalho. "Para que serve esta pesquisa?" "Que benefícios ela trará para o grupo ou para mim?" Mas só uns poucos consultam e se servem do resultado final da observação. O que fica são as relações de amizade pessoal desenvolvidas ao longo do trabalho de campo.

Há a cobrança acadêmica, de registro e construção de memória cultural, mas principalmente a ideia primordial de publicizar essas narrativas poéticas de periferias cidadãs, politicamente engajadas e berço de transformações. Sendo este um mestrado profissional, encaixou-se perfeitamente no objetivo de se gerar um produto com o material 78


trabalhado. Melhor de isso, a proposta inicial desviou-se inúmeras vezes quando das imersões feitas a fim de se buscar maior compreensão do campo estudado. O álbum gráfico é o produto proposto. Ao longo do processo, porém, outros produtos, dentro do mesmo campo, com as mesmas personagens, foram criados. Como podemos ver mais adiante no capítulo 7.

Fazendo ato-retratos na Ação Socioeducativa Dia das Crianças na favela da Rocinha, Rio de Janeiro. Produção de Alfreda Froid (palhacinha e agitadora cultural). Foto de Ana Fellows na Quadra da Roupa Suja, 12 de outubro de 2017. Esta ação foi organizada como forma de apoio emocional e material às crianças da Rocinha que dias antes tiveram suas vidas atravessadas por um massacre dentro da comunidade.

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Na página seguinte a postagem de Ana Fellows em seu mural de Facebook descrevendo o evento disparador da ação. Acesso em 24 de junho de 2020.

Com essa releitura de Os Dez Mandamentos, podemos avançar para a segunda via importante no desenvolvimento dos produtos aqui apresentados, que foi a de se utilizar do gênero, ou subgênero literário, da autoficção literária.

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3.4 – Autoras que são personagens

Numa breve nota sobre a autoficção, podemos apresentá-la como um subgênero que se consagrou em tempos recentes. Em 1977 o termo "autoficção" foi colocado por Serge Doubrovsky referindo-se ao romance de sua autoria "Fils", onde combinaram-se a autobiografia e a ficção, dois estilos que a princípio seriam antagônicos. Assim o autor lança mão de um narrador em "off" para narrar fatos autobiográficos, e também se permitindo moldar fatos e personagens de forma significativa de forma a obter uma aproximação ideal com verdades procuradas. O gênero se associou inicialmente a autores franceses, a citar: Christine Angot, Marguerite Duras, Guillaume Dustan, Alice Ferney, Annie Ernaux, Hervé Guibert, Olivia Rosenthal, Anne Wiazemsky, Catherine Millet e Vassilis Alexakis. Interessante notar a apropriação pelo gênero por autoras em busca de uma narrativa feminina desveladora de desejos focalizando na mulher como objeto desejante – algumas destas obras de teor sexualizado, mas não na forma do entretenimento ao olhar masculino, mas em seu oposto, o questionamento da exploração do corpo de mulher como ser objetificado, domesticado em oposição ao seu real desejo erótico. Dois exemplos nacionais atuais a citar é o livro de Raquel Pacheco, Bruna Surfistinha, "O Doce Veneno do Escorpião" e Lovelove6, autora da revolucionária "Garota Siririca".

A ideia da Garota Siririca surgiu a partir das minhas experiências com a minha sexualidade. Tenho umas reflexões a respeito do feminismo e, quando comecei a me explorar mais sexualmente, cheguei à conclusão que eu devia tentar me masturbar para ter um orgasmo, que, aos 22 anos, eu nunca tinha tido. Foi muito chocante perceber que o problema não era comigo e comecei a questionar isso como um problema social e cultural. Percebi que há uma ausência muito grande de diálogo sobre o assunto e não achei nenhum quadrinho que falasse de masturbação ou um trabalho nacional que tivesse uma abordagem feminina dos temas. Resolvi fazer, achei que estava faltando (Lovelove6 no artigo de Juliana Contaifer "Mulheres se destacam como leitoras, autoras e desenhistas de quadrinhos" – CB Revista online, 28 de agosto de 2016).

Para o desenvolvimento de nosso produto, avançamos pelo menos uma geração a frente, quando o gênero transborda sobre as páginas de álbuns de histórias em quadrinhos através das artes de jovens autoras que enxergam ali um espaço de afirmação de direitos, 81


de protagonismo feminino e releituras sobre o papel das mulheres dentro do universo visual das comics, numa rejeição escandaloso do papel secundário, ou quando muito, objetificado, visando quase que exclusivamente o male gaze29, salvo algumas poucas publicações em que, de forma ainda mais opressora, reforçaram o papel de domesticadas das meninas e mulheres na sociedade – ver 2.3 e 2.5 desta.

Somos mal representadas. A produção de HQs era majoritariamente masculina — homens brancos e heterossexuais contando histórias sobre diferentes pessoas. Quando a gente lê, não consegue se identificar. As pessoas têm mania de dizer que quadrinhos é para menino, mas é porque as histórias são sempre contadas por eles. Quando a gente vê que existem mulheres falando do ponto de vista delas, a gente se reconhece. (Marianna Fonseca, fundadora do site Lady Comic's, no artigo de Juliana Contaifer "Mulheres se destacam como leitoras, autoras e desenhistas de quadrinhos" – CB Revista online, 28 de agosto de 2016). Enquanto isso, na produção norte americana de quadrinhos de heróis dos grandes estúdios, mulheres leitoras são raras, e mulheres contratadas para trabalhar nestas produções podem ser contadas nos dedos de uma mão. Péssimo para os autores destas empresas, que precisarão sair de seus estúdios para verem como são mulheres no mundo real! E até que chegue o dia, o que os artistas dos quadrinhos de super-heróis continuarão a expor no papel será a representação de suas próprias fantasias sexuais. ("Meanwhile, in American mainstream superhero comics, women readers are rare and working women artists can be counted on the fingers of one hand. Too bad for the mainstream artists, who may have to leave their studios and comic stores if they want to look at real women! And until that day happens, mainstream superhero artists will continue to expose their personal sex fantasies on paper."– ​ROBBINS, Trina. ​Gender differences in comics. In Image & Narrative, Online Magazine of the Visual Narrative, setembro de 2002).

Obras como as premiadas ​Fun Home (BECHDEL, Alison – ​Houghton Mifflin​, 2006), ​Persépolis (SATRAPI, Marjane – Editora L'Association, 2000) e mais recentemente ​Le Grand Espaces (MEURISSE, Catherine, Editora Dargaud, 2020), elevaram a um alto grau de excelência gráfica os diversos níveis de narrativa que a mídia dos quadrinhos é capaz de comportar quando tratando de temas autobiográficos. Recursos poderosos da mídia permitem usar estilos gráficos diversos, recortes de imagem, formatos de balão de diálogos, flash-backs, para ficcionalizar essas narrativas que partiram de

Da teoria feminista, ​male gaze​ (olhar do macho) é o ato de descrever a mulher e o mundo, nas artes visuais e literatura, a partir de uma perspectviva masculina e heterosexxual, que apresenta e representa a mulher como objeto sexual destinado ao prazer do observador masculino. (Wiki). 29

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memórias, desejos e até fantasias sobre o real nas vidas destas autoras que são personagens.

A maneira de construir e encarar as categorias de autobiografia e ficção sofreu grandes transformações nos últimos 30 anos, e hoje as fronteiras entre elas se desvaneceram. A autoficção é um gênero que embaralha as categorias de autobiografia e ficção de maneira paradoxal ao juntar, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se excluir. Apesar de todos saberem que o escritor sempre se inspirou (também) em sua própria vida, a ficção foi o caminho trilhado pelo romance ocidental para se firmar ao longo da História. Como o romance autobiográfico foi, tradicionalmente, considerado um filho bastardo, um híbrido, que quase sempre mereceu o desprezo da crítica, a autoficção acabou por ocupar esse lugar, embora com formatos inovadores. A contemporaneidade assiste, assim, ao surgimento do novos tipos de escritas de si, descentradas, fragmentadas, com sujeito instáveis que dizem “eu”sem que se saiba exatamente a qual instância enunciativa ele corresponde. (FIGUEIREDO, ​Autoficção

feminina: a mulher nua diante do espelho, Revista Criação & Crítica n.4, abr/2010)

Ao incorporar a autoficção no álbum das Sarauzeiras, permite-se que a narrativa se amplifique e abrigue informações tais como elas foram vivenciadas no campo do emocional. A memória e a realidade convivem como espelhos colocados ângulos que se movem – ali age o poder de romper a linearidade do espaço e tempo da narrativa sequencial, onde tanto texto como imagem podem recorrer a iconografias personalíssimas e/ou universais, recortes entre passado e futuro, e polifonia de vozes narrativas. Tal liberdade potencializa o envolvimento com o leitor, que se sente em conversa com a obra. E ainda: a autoficção não se refere unicamente a autora da tese, mas também àquelas que são objeto e personagens, as mulheres (auto)biografadas: as Sarauzeiras Oníricas. Elas foram a primeiras narradoras de si mesmas –nos recordando de que toda autobiografia é um auto-ficção declarada quando apresentada como obra de arte.

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3.5 – Memórias Quebradas

Nossa era se caracteriza sobretudo por essas ditaduras: a ditadura da informação e a ditadura do dinheiro, e ditadura do dinheiro não seria possível sem a ditadura da informação. O dinheiro em estado puro nutre-se da informação impura, tornada possível quando imaginávamos que ela seria cristalina. Curiosamente, este formidável sistema ideológico acaba por ter um papel na produção da materialidade e na conformação da existência das pessoas. (SANTOS, Milton. O Papel do Sistema Ideológico, pg 13)

Quebrar a ditadura da informação, tal como enunciada por Santos, através da arte e se aproveitando de mídias de baixo custo – quadrinhos, fanzines, redes abertas de Internet – tal como se propõe este projeto, não poderia ir tão longe sem ao menos contar com redes sociais nas mesmas áreas que pretende afetar. Já apresentou-se aqui a FLUP, a Festa Literária Internacional das Periferias, como sendo importante para a formação destas redes unindo setores da cultura e na revelação de atores que passam a protagonizar essas ações onde se criam pontes de entendimento entre partes de uma sociedade, e cidade, fragmentada. São ele autores, poetas, cineastas, quadrinistas, puxados para ganhar o mundo a partir de suas vivências como moradores de favelas e periferias. Em 2016 a Flup criou pela primeira vez uma Flup-Pensa com foco na produção de quadrinhos que resgatasse as memórias dos primeiros moradores da Cidade de Deus (Rio de Janeiro). Participei no processo, auxiliando na produção das gravações de depoimentos dos moradores e captação de candidatos a participar das oficinas. Mais tarde prestei apoio técnico (roteiro, letraragem e arte) a quadrinistas participantes. Foram especialmente valiosos esses registros das memórias originárias do bairro, a grande Cidade de Deus, que em realidade incorpora diferentes zonas residenciais cada uma com suas características específicas de aproveitamento do espaço.

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Em julho de 2016, os antigos moradores da Cidade de Deus se reuniram no Cine Joia do Shopping Rio na Freguesia (Rio de Janeiro) com os quadrinistas da Flup-Pensa para compartilhar suas memórias e casos interessantes sobre a vizinhança. Aqui Cilene conta sobre sua mãe, matriarca espiritual da comunidade, Dona Benta. Esta imagem é um frame do vídeo completo situado em: ​https://www.youtube.com/watch?v=IiovXE-WSwk (filmagem e upload: Thais Linhares). No mesmo canal é possível acessar mais alguns dos vídeos memoriais da Cidade de Deus.

As memórias de Cilene viraram uma das histórias em quadrinhos publicadas no álbum dos 50 anos da Cidade de Deus lançado pela Flup. Sua autora, Roberta Nunes, mulher, negra e lésbica, ganhou prêmio oferecido pelo Consulado Francês, de uma viagem a França para participar do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, um dos mais importantes eventos da área. Na Mediateca do Consulado, o centro do Rio de Janeiro, também nasceria no ano seguinte o Grupo de Estudos de Quadrinhos, com objetivo de compartilhar produções de conhecimentos na área, com toda infraestrutura de estudos e reunião oferecidas gratuitamente pelo local. Ali, além de sala de reuniões, o grupo dispôs de gibiteca, viodeoteca, biblioteca, facilidades e cafeteria, na Bibliomaison.

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A tarde da entrega do prêmio à Roberta Nunes (visível abraçada a sua esposa, de óculos) logo atrás de Mc Mingau (que usa a camiseta "FA-VE-LA"). Nesta tarde também combinamos a criação do Grupo de estudos: eu, Roberta, Rosalina e Hanna23. Em uma semana agrupamos mais de 100 interessados online e 30 presenciais. O grupo atualmente beira 500 inscritos que acompanham estudos sobre a arte das HQs.

3.6 – As Protagonistas

As Sarauzeiras Oníricas surgiram no ano de 2013 a partir da reunião de um grupo de poetas sugerida por Márcio Januário, morador e produtor cultural do morro do Vidigal, zona sul do Rio de Janeiro. O grupo original era formado por Raquel Oliveira e Lindacy Fidélis de Meneses (ambas moradoras da favela da Rocinha), Maria Inez (moradora da favela da Vila Vintém) e Yolanda Soares (atualmente moradora de um conjunto popular no bairro Engenho da Rainha, antes moradora da favela da Maré). Posteriormente Raquel saiu do grupo, Márcio se mudou para o nordeste brasileiro, permanecendo o grupo ativo com as três remanescentes. Em 2020, Lindacy se desligaria deixando as Sarauzeiras uma dupla. Mas isso é outra (interessante) história…

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3.6.1 – Memórias Sarauzeiras

Ali na sala de reuniões da Bibliomaison, as Sarauzeiras Oníricas se juntaram ao Grupo de Estudos de Quadrinhos, para ensinar, aprender e curtir. Ali foram feitos os primeiros vídeos e áudios que foram a base para os roteiros do álbum produto deste estudo. Dentro da Mediateca, ou mesmo fora, na pausa para almoço e lanche, em restaurantes próximos, as poetas narraram suas vivências, e pensamentos filosóficos sobre vida, arte e sociedade. Eram nossos audio-retratos!

A Mediateca. A sala de reunião do Grupo de Estudos de Quadrinhos. O almoço que era extensão dos estudos e fértil campo para ideias.

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3.6.2 – Memórias de Maria e a favela de Vila Vintém

María Inez da Silva Moraes, mais conhecida como Mery Onírica, teve uma infância muito difícil, com abusos e exploração. Pai violento, mãe com deficiência física, eles precisaram dormir na rua algumas vezes, rua que era assombrada e perigosa para uma menina. Nos livros, Inez se encontrou com a poesia e a escrita. Tornou-se assistente social, hoje está casada, tem filhos e netos. Tem seus poemas publicados em diversas coletâneas e prepara para breve sua autobiografia “Paus e Terra”. A favela onde mora, Vila Vintém fica em Padre Miguel em área que pertencia ao Exército, que permitiu que os primeiros moradores ali fizessem suas casas em estuque e sapê, ainda sem esgoto nem água encanada. Com a construção em 1939 da estação ferroviária de Moça Bonita, os trabalhadores da estação começaram a povoar aquela região, que por ser tão pobre e desamparada, diziam que não valia “nem um vintém”. O saneamento básico chegaria depois dos anos 60, é hoje é uma região mais urbanizada, ainda que, como a Maré e a Rocinha, ainda sofra com o domínio de facções criminosas.

Maria Inez, durante a gravação de suas memórias. Foto de Thais Linhares. 2017.

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3.6.3 – Memórias de Lindacy e a favela da Rocinha

A Rocinha começou nos anos 30 na região de uma comunidade ainda mais antiga da fazenda chamada Quebra-Cangalha. É a maior favela brasileira, onde se estipula morarem 200.000 pessoas. Fica no topo de uma montanha que une dois bairros ricos da zona sul carioca. Muitos de seus moradores também são nordestinos vindos ao Rio de Janeiro em busca de trabalho. Assim foi com Lindacy Fidelis Menezes, nascida no estado do nordeste Pernambuco, que chegou nos anos 70, muito jovem, mas já com filhos, que criou sozinha até se casar com Francisco. Além de poesia, compõe música, e é a sarauzeira mais espevitada. É doméstica, mãe de cinco filhos, nove netos e um bisneto e mora na Rocinha há 41 anos. Publicou seus poemas em diversas coleções e se prepara para lançar suas memórias no livro “Destino...”.

Lindacy, durante a gravação de suas memórias. Foto de Thais Linhares. 2017.

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3.6.4 – Memórias de Yolanda Soares e a favela da Maré

O Complexo da Maré abrange um conjunto de 16 favelas na Zona Norte do Rio, o maior complexo de favelas da cidade, onde moram por volta de 130.000 pessoas, muitos dos quais descendentes de famílias que fugiram de uma grande seca no nordeste do Brasil. As primeiras casas foram construídas no morro do Timbau e depois foram se espalhando sobre a área pantanosa ao redor, com casas construídas sobre palafitas. A família de Yolanda mudou-se para a Maré como parte de um programa de remoção de favelas das áreas nobres da cidade. Quando pequena, Yolanda e seus irmãos se alimentavam de rãs colhidas na lama. Yolanda começou a trabalhar com dezesseis anos, numa fábrica de roupas. Hoje Yolanda Soares é poeta, tem três filhos, nove netos, mora num conjunto habitacional em Engenho da Rainha. Lançou suas obras em diversas antologias poéticas, tem contos seus publicados na França, no livro “Je suis Rio” da editora Anacaoma, e prepara para lançar um livro individual com sua biografia de poemas.

Yolanda, durante a gravação de suas memórias. Foto de Thais Linhares. 2017.

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O primeiro evento catalisador para esta futura reunião de poetas foi o encontro promovido pela Festa Literária Internacional das Periferias – a FLUP, na época ainda nomeada de Flupp: Festa Literária Internacional das UPPs. Em especial, junto aos Márcio Januário, criador intelectual do grupo, foi Écio Salles, fundador e produtor da Flup e também Julio Ludemir, quem conseguiu segurar uma arredia Maria Inez para as artes. Écio, infelizmente partiu pouco depois de lançado o livro da coletânea das poesias que produzi junto às Sarauzeiras. O álbum que traz as memórias das Sarauzieras também mostrará esse importante papel cumprido pela grande Festa, Júlio e com especial homenagem a nosso "menino" Écio. que assim como as quebradas, cuidaram de promover a ocupação estratégica de um novo ciberespaço. ​Em uma sociedade de convergências, o público e privado se misturam com facilidade nas redes onde as plataformas de publicado compartilham o cotidiano de seus usuários, pensamentos soltos, intimidade familiar, poesia e militância. Abrindo possibilidade que ao mesmo tempo assustam e fascinam. São plataformas de publicação do Instagram, Facebook, Youtube. Um contínuo com o que faz a poesia, que de certa forma, já desvelava o íntimo autoficcionado do artista que é ativista, como veremos no próximo capítulo.

Captura da imagem da tela do mural do Facebook do dia 22 de julho de 2020 da produtora de Santa Cruz, Elizabeth Manja (Movimento Territórios Diversos) no dia do falecimento de Écio Salles, em decorrência de tumor cerebral.30 Écio está no meio, à frente da família Flup, com o microfone na mão.

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Ver em:

https://www.facebook.com/search/top/?q=Ecio%20Salles&epa=FILTERS&filters=eyJycF9hdXRob3IiOiJ7XCJu YW1lXCI6XCJhdXRob3JfZnJpZW5kc19mZWVkXCIsXCJhcmdzXCI6XCJcIn0ifQ%3D%3D

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CAPÍTULO 4: ​CIBERQUEBRADAS a convergência das periferias Neste capítulo serão analisados os cenários e as personagens representadas nas narrativas. Mostras de suas artes, o contexto onde atuam e os recortes de representação.

A periferia por si só já é uma pessoa. Uma pessoa dentro de muitas outras. A periferia é um ser humano-bicho. Generosa e esquecida. Violada e destemida. Selvagem. Mas a periferia também tem compromisso, acorda cedo e faz tudo que qualquer pessoa normal faz. Para mais ou para menos. A periferia é um mundo à parte. Uma colônia esquecida lá no canto da cidade. A periferia não tem opção, adapta-se ao seu próprio estilo de vida. E, quando ela opta por ousar, é mal vista pela própria família e amigos. (Mário Câmara, em Études Lusophones)

As periferias semeiam a vanguarda da arte e também a tal arte que se rebela, a politicamente engajada, a sedenta por dar continuidade às transformações que principiaram nos anos de governos progressistas, caminhando na direção da redução das desigualdades através de uma política de social-democracia com os temperos dos trópicos. Este capítulo pretende mostrar de como as militantes das artes das periferias avançam de forma orgânica sobre as ágoras digitais, sobretudo as redes sociais mais permeáveis como o Facebook, o WhatsApp, o Youtube e o Instagram. Despontam figuras a ser reconhecidas como articuladoras de propostas políticas através da arte no engajamento digital. Tomando como referência a pesquisa de construção de cenários e personagens a partir das movimentações das poetas Sarauzeiras Oníricas que circulam por todas a redes, colhendo ora aplausos, ora “likes". Optou-se pelo estudo da utilização de recursos das principais redes sociais: Facebook, WhatsApp, Instagram e Youtube. Com recorte nas manifestações do grupo poéticos As Sarauzeiras Oníricas, atravessando essas mídias diversas na convergência que caracteriza os movimentos da arte e expressão popular e política atual.

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4.1 – Sarauzeiras no Instagram

4.1.1 – #Lindacy

A poeta Lindacy, esteve até recentemente com pouco acesso ao ambiente digital. Primeiramente através do celular, e raramente com acesso via terminal de computador. Em seu celular, foi de forma espontânea aprendendo como se incluir nas comunidades virtuais. Segundo declara: “Eu ainda não sei usar, vou dando ‘like' em tudo e adicionando todos!” Entretanto, através deste recurso, ela pode tanto acompanhar os eventos dos quais participa como notificar seu público de suas apresentações artísticas.

Perfil do Instagram de Lindacy (acessado no dia 26 de junho de 2020). Visível em https://www.instagram.com/lindacyfidelismenezes/

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4.2.2 – #Yolanda

Yolanda Soares, utiliza pouco o Instagram, mantendo a maior parte das interações em sua página de Facebook. Mas a mesma paixão pela captura da paisagem enquanto veículo poético é compartilhado aqui:

Perfil do Instagram de Yolanda (acessado no dia 26 de junho de 2020). Visível em https://www.instagram.com/soaresyolanda/

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4.1.3 – #Maria Inez Maria Inez, nossa Mery Onírica, usa o Instagram para criar a narrativa do dia a dia. O cotidiano onde a protagonista, divide um pouco da vida da poeta com seus seguidores. Sua índole generosa e maternal, estabelece um clima de intimidade familiar cujo apoio e amor pauta palavras de gratidão que permeiam sua poesia. Uma mulher de periferia, negra, cujo força de caráter se moldou literalmente através de intensas dores e perdas, Inez é uma figura de nosso tempo que carrega os questionamentos urgentes de uma sociedade que clama por paz social e igualdade de direitos. Um teto sobre a cabeça uma família acolhedora, comida na mesa – declarar isso, de novo e de novo é um ato de resistência numa quebrada onde comer, morar e paz é direito negado a muitos. Mery mescla a potência das coisas simples a sutileza cortante das violências mais cruéis em suas poesias e crônicas.

Imagem de abertura do Instagram de Maria Inez (Mery Onírica) em https:// www.instagram.com/meryonirica/ Imagens: Instagram de Maria Inez (Mery Onírica) em ​https://www.instagram.com/meryonirica/

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4.2 – POETA ou POETISA? Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. (Cecília Meireles, em “Motivo”)

Não há consenso sobre como se declaram as artistas autoras e/ou declamadoras dos poemas dos saraus da periferia. Grande parte, entretanto, justifica o uso do termo “poeta" como mais igualitário, indicando uma abolição quanto à hierarquia dos gêneros, assumindo aqui essa palavra como neutra, ou ainda, unissex. Tal escolha coaduna com a proposta de uso da poesia como ferramenta política na luta por direitos. Assim sendo, a poeta e slammer31 Roberta Estrela Dalva32 aplica o chamamento: poetas, ou ainda: “poetes”, tanto para mulheres, como para homens, implicando que ali são respeitadas todas e suas orientações de gênero de forma inclusiva: mulheres e homens transsexuais.

4.3 – As crias e as quebradas O meme "diz que é cria" é uma curadoria de contos populares. Tá bonito! Muita história irada sendo contada. Estamos em tempo de intervenção e ter orgulho de nossa história também é fazer resistência! Diz que é cria da militância mas quer que os crias fiquem quietos e não se divirtam com suas lembranças. (Thainã de Medeiros, coletivo Papo Reto, Complexo do Alemão, Rio de Janeiro).

Em 2018 um viral de postagens com memes que iniciavam com os dizeres “Diz que é cria mas...” e completados com anedotas tiradas das memórias de áreas de periferia e favelas, provocava com questionamentos sobre questões sociais a partir da história dos

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Slammer, quem participa do Slam de Poesia: aqui referente à competição entre poetas que segue uma série de normas específicas, com rodadas regionais, nacionais e internacionais. 32 Roberta Estrela Dalva: criadora do ZAP – Zona Autônoma da Palavra – a primeira competição de slam do país, apresentadora do programa Manos e Minas, curadora do Rio Poetry Slam, professora, pesquisadora, que lançou neste ano o documentário Slam – voz de levante, sobre o surgimento e crescimento da cena do slam no Brasil.

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locais, àqueles que embarcaram na onda de uma apropriação de valores das quebradas, mercantilizando-as ao mesmo tempo em que as despiram de suas demandas políticas. Cria é quem nasceu na quebrada. Nascido de certidão ou adoção, naquela periferia onde os enfrentamentos aos poderes de repressão das instituições de Estado se fazem constantes. Quebrada é onde falta acesso aos direitos que fazem digno o cidadão, mas sobra o “esculacho”, que é como os moradores chamam as constantes humilhações sofridas nas mãos de uma polícia militar cronicamente corrupta, a que ao invés de garantir direitos, os viola sistematicamente. As quebradas do Rio de Janeiro são as favelas, as periferias e a região conhecida como Pequena África no Cais do Porto do centro do Rio, região que recebeu o maior impacto das obras de “revitalização" impostas pelos megaeventos que assumiram o comando da cidade em 2014 e 2016. O mapa a seguir, produzido por Lucas Faulhaber em seu trabalho de final de curso da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF, mostra o processo de realocação dos pobres na cidade na tentativa de invisibilizá-los, e liberar os territórios à especulação imobiliária feito pelo poder público atendendo ao lucro de poucos às custas de milhares de moradores expulsos de suas casas.

Mapa de reassentamentos de 2013 Disponível em https://comitepopulario.files.wordpress.com/2013/05/mapa_reassentamentos_lucas_faulha ber.jpg Acesso em 26 jun. 2020.

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Manuel Castells nos explica de como a pressão sobre os excluídos procura sempre válvulas de escape, que pode ocorrer na forma de violência urbana, migrações ou fortes confrontos no plano do simbólico, construídos através do ativismo cultural: Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. (...) Mas foi basicamente a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural. (Castells, Manuel, em “Redes de Indignação e Esperança, Movimentos sociais na era da internet”)

A própria forma como a cidade do Rio de Janeiro se desenvolveu, segue a lógica da exclusão e o desinteresse em formar bases sociais sólidas. Um forte movimento eugenista, logo na sequência da Abolição da Escravatura em 1888 buscou o apagamento da herança africana. Toda uma literatura de criação de estigmas, criminalização e punitivismo se volta contra os negros a quem restam as terras impróprias para cultivo ou moradia. São ou os morros, ou a distância exaustiva dos futuros subúrbios, mais tarde ligados pelo trem que de lá traria a mão de obra barata ao centro. Sobre a exploração da classe pobre para a construção da cidade, o escritor carioca do séc XIX, Lima Barreto testemunha:

A obsessão de Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas. A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto, meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, num país de três ou quatro grandes cidades, precisa ter um milhão; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos. E com semelhantes raciocínios foram perturbar a vida da pobre gente que vivia a sua medíocre vida aí por fora, para satisfazer obsoletas concepções sociais, tolas competições patrióticas, transformando-lhes os horizontes e dando-lhes inexeqüíveis esperanças. Voltam agora; voltam, um a um, aos casais, às famílias para a terra, para a roça, donde nunca deviam ter ido para atender tolas vaidades de taumaturgos políticos e encher de misérias uma cidade cercada de terras abandonadas que nenhum dos nossos consumados estadistas soube ainda torná-las produtivas e úteis. (O Rio civiliza-se! – trecho de “A Volta”, de Lima Barreto, publicado em Vida urbana, 26-1-1915)

Lima Barreto era negro e viveu ele mesmo os pesados custos desta exclusão eugenista. Suas fortes críticas sociais lhe renderam o apagamento de sua obra nos anos após sua morte. É revelador que seu renascimento e consagração tardia tenha se dado junto 98


a esse levante das periferias e minorias que passam a ocupar as redes. Foi justamente a Flup o primeiro festival a lhe homenagear logo na estreia no morro da Providência, centro da capital carioca, e pouco depois, a elitista Flip assumiria o mesmo resgate de Lima Barreto – a negritude saía da periferia e impunha a releitura de séculos de literatura burguesa e branca. Como seria a atuação de Lima, caso estivesse vivo hoje, com acesso as comunidades virtuais? Teria um Blog? Um canal de Youtube? Estaria presente num sarau lançando livros? Entenderia sua depressão ou alcoolismo como doença e sem os estigmas eugenistas atrelados a isso? Os “Limas Barretos” deste princípio de século encontraram canais para o escape da violência exercida como política de estado, onde o apagamento de sua vozes não será mais possível: as crias migraram para os meios digitais.

Releitura

de

Lima

Barreto,

altivo, na capa da revista Papo da

UQ

(Universidade

Quebradas

disponível

das online

para 2019) – 1º semestre de 2018 – PACC/Letras – UFRJ. Arte:

Thais

Linhares,

foto:

Adilene.

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Em 28 de julho de 2016 um movimento unificado de ativistas, produtores e artistas, criou o Frente Favela Brasil, unificando pautas específicas dos moradores das favelas cariocas. O depoimento de Jessé Andarilho durante a entrevista que fizemos para o coletivo Vírus Planetário, dá uma ideia do tipo de articulação e a quais demandas buscavam atender: Fiquei sabendo por um e por outro que o pessoal tinha a ideia de fundar um partido com a galera da favela, e os pretos tomando conta na diretoria, na fundação, essa ideia me animou muito porque uns falam de direita, outros de esquerda, e eu não me via representado por nenhum dos dois lados. A favela sempre foi vítima da truculência da polícia, da truculência do sistema, que sempre nos viu em segundo, terceiro plano, e eu achei essa ideia super interessante, desde o momento em que eu fiquei sabendo que ia ter uma reunião em Madureira, participei... E desde então eu estou discutindo com a galera nos grupos e tal, por email... E tô muito feliz em ver que a galera realmente tá unida e que a frente tomou corpo de verdade! A ideia de não ficar mais brigando por direito e lutar pelo Poder, porque a partir de quando você tem o Poder, você consegue conquistar os direitos, foi o que me motivou, o que me animou mais, a fazer parte deste movimento. (Jessé Andarilho, escritor, produtor do Sarau Tá no Ponto e da Batalha Marginow, morador da Favela de Antares, zona oeste do Rio de Janeiro)

As Sarauzeiras Oníricas são crias legítimas das quebradas. São elas: Maria Inez, moradora de Vila-Vintém, que se viu moradora de rua ainda menina quando uma enchente arrastou o barracão onde morava com a mãe e um irmão paraplégico. A Lindacy Fidelis que veio da Paraíba, ainda bebê adotada pela dona de um bordel, é hoje a melhor boleira da Rocinha, favela que faceia o mar de São Conrado entre a zona sul e zona oeste carioca. E a Yolanda Soares que cresceu junto com seus irmãos no que foi a primeira tentativa de urbanização da Favela da Maré, na região de Manguinhos.

4.4 – Facebook

É a principal plataforma de atuação dos coletivos. Aqui os eventos são divulgados, memes são criados para a divulgação das causas políticas defendidas, marcam-se encontros e apresentações em saraus e atos de protesto. Há ainda uma forte rede de solidariedade, com arrecadação de alimentos, roupas, e até mesmo equipamentos como caixa de som ou ítens para famílias despejadas por remoções forçadas e mulheres com filhos que precisaram fugir de seus lares devido violência dos companheiros. 100


A página das Sarauzeiras Oníricas publica semanalmente suas apresentações na Biblioteca João do Rio e suas participações frequentes na web-rádio Os Xexelentos da Peri, do poeta e produtor Bruno Black, que merece um parágrafo à parte mais adiante neste artigo. O engajamento com o público é direto, em tempo real.

Estatísticas da página de Facebook das Sarauzeiras Oníricas em julho-agosto de 2018. Montagem: Thais Linhares (editora).

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4.6 – A Vingança da Poesia O terceiro eixo da cultura de convergência descrita por Henry Jenkins33, é a persistência através da releitura de função, dos suportes tradicionais analógicos: o livro impresso, a fotografia e filmes de película, o disco de vinil. Aqui na periferias entram ainda o grafite, a cultura dos “lambes” e a essência de toda esta estrutura convergente: as rodas de rima, sarau poético, jongo, jogral, GTs (grupos de trabalho). Em sua obra “A Vingança dos Analógicos”, David Sax nos relata como em diferente localidades, os livros impressos, ao contrário de desaparecerem sob a novas ofertas dos ebooks e streaming de conteúdo online, vieram a ressurgir como uma forma de relacionamento com o conteúdo mais envolvente para o leitor. A demanda por leitura nunca acabará. As redes digitais ao contrário de ameaçar a cultura do livro, possibilitam articulações que formaram novos públicos e geram outras demandas. Para os autores de periferia, em especial, o livro impresso sempre foi visto como um luxo. Somente autores da “panelinha" tinham acesso ao mercado das editoras tradicionais. Ter sua obra que estava inicialmente online, sedimentada nas páginas de um impresso, é garantia de posteridade, de formação de base perene de memória. Com a quebra dos monopólios de distribuição e produção proporcionados pela difusão via redes, múltiplos pólos surgem, e os saraus são o ponto onde digital e analógico convergem. Ali se vende os livros “on demand” dos poetas, postais, fanzines poéticos, se produz grafite militante, camisetas e até venda de cervejas artesanais e doces caseiros com objetivo único de possibilitar novos saraus. Até as “vaquinhas" virtuais se misturam a propostas de financiamentos coletivos para que poetas possam se deslocar em viagens e participar de saraus em outros estados, como competições de desafios poéticos premiados.

"Henry Jenkins​ ​é um norte-americano estudioso dos meios de comunicação. Ele é considerado "um dos pesquisadores da mídia mais influentes da atualidade". Durante os anos de 1993 e 2009 ele esteve à frente do programa de Estudos de Mídia Comparada do Instituto de Tecnologia de Massachusetts."(Wikipedia) 33

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4.6 – FLUP –A Festa Literária na Convergência Vocês me desculpem, sou uma desaletrada34, mas agora tomei gosto por dizer as coisas, por contar a minha história. (poeta sarauzeira Lindacy Fidelis de Menezes, cria da FLUP)

Idealizada por Écio Salles e Julio Ludemir, a FLUP foi criada em 2012 com o objetivo de ser um espaço de formação de novos leitores e autores na periferia das grandes cidades brasileiras. Já em seu primeiro ano, a FLUP ganhou o Faz Diferença do jornal O Globo e, em 2016, o Excellence Awards da London Book Fair e Retratos da Leitura do Instituto Pró-Livro. Principal vitrine das vanguardas, a FLUP busca juntar as pontas das tecnologias virtuais e tradicionais. Em 2016, na edição Flup Cidade de Deus, levou através de recursos de realidade virtual, seus visitantes a mergulharem nas narrativas de moradores de favelas cujos filhos foram assassinados em ações policiais mal planejadas. Era a “Machine to Be Another” ( A Máquina de ser o outro ). Sentado numa cadeira, e usando o óculos de VR, o usuário escolhia dentre algumas histórias selecionadas. Todas reais. A voz gravada da mãe, ou do pai da criança, narrava sobre o dia a dia da criança, o que gostava, como vivia. Objetos reais eram entregues nas mãos do usuário reproduzindo aqueles vistos na filmagem. Um chinelo de criança, uma bola de futebol. Quando finalmente terminava o “passeio" e retirava o óculo, ele se via com os objetos reais na mão: o chinelo e a bola eram as que de fato pertenciam à criança assassinada. Muitas vezes os familiares estavam por perto. Não raro os visitantes, profundamente comovidos, choravam e pediam para conhecer e abraçar aquelas mães. As mães, e um pai, participaram de uma mesa redonda sobre o tema. A articulação para esta ação e demais mesas de direitos humanos foi auxiliada pela autora deste artigo, enquanto representante do DDH.

​ "Dicionário de Lindacy", obra ainda inédita, compila uma série de neologismos criados a guisa de poesia O pela poeta. 34

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Apresentação da tecnologia da Máquina de ser o Outro para o coletivo de mães de vítimas de violência institucional. Na sede da Flup, Rio de Janeiro. foto: Thais Linhares, pelo DDH, 2016.

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Em 2017 a FLUP se instalou na Favela do Vidigal, seguindo sua tradição de circular e criar redes nos territórios. Em meio a uma situação explosiva de conflitos oriunda do colapso da política de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), a FLUP cumpriu mais uma vez sua missão, levando ao morro artistas internacionais e revelando autores locais. A decoração do pavilhão de eventos foi feita com a colagem de imensos “lambes" produzidos num caminhão na ladeira do morro, onde os moradores podiam entrar, ser fotografados, e ter sua imagem ampliada em imensos painéis em efeito digital numa estética bem vanguardista, que dialogava de forma grandiosa com a cultura dos “selfies" dos seus celulares. Em 2018, a festa chegou a sua 7ª edição com temas que fizeram a ocupação da grande Biblioteca Pública Estadual na Av. Presidente Vargas: a negritude brasileira – com as imprescindíveis lembranças da Diáspora Negra35 e o esperançoso olhar para o futuro proporcionado pela geração de negras e negros a chegar ao mercado de trabalho, depois de graduados pelas universidades em áreas onde até então se via quase que exclusivamente a elite branca urbana. Mais um processo do que um evento, a Festa Literária das Periferias de 2018 iniciou suas atividades em maio, com uma sequência de encontros que se estenderam até setembro, culminando com a edição de um livro de poesias da jovem poeta negra Maria Eduarda, autora revelação escolhida por concurso, mais a publicação uma coletânea de narrativas curtas e a repetição do vitorioso processo do Laboratório de Narrativas Negras para Audiovisual, dividido entre produção para ficção e documentário. Em 2019, já sob o impacto do corte radical de verbas de patrocínio, a FLUP se abriga na região da Pequena África no MAR (Museu de Arte do Rio). Nesta edição onde a autora homenageada foi a romancista Maria Firmina dos Reis,36 dá continuidade, ainda que de forma mais limitada, a criação de narrativas protagonizadas e escritas por autores negros. Em especial: todas as mesas são formadas esse ano por intelectuais negras. Através de novo processo de seleção de textos é publicado a coletânea em homenagem ao Marcelo 35

Diáspora Negra, ou Africana: ​fenômeno sociocultural e histórico que ocorreu em países além do continente africano devido à imigração forçada, por fins escravagistas mercantis que penduraram da Idade Moderna ao final do século XIX, de africanos (ver em: ​https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1spora_africana​) 36 Maria Firmina dos Reis ​(​São Luís​, Maranhão, ​11 de março​ de ​1822​ — ​Guimarães​, ​11 de novembro​ de 1917​) foi uma ​escritora​ da época, considerada a primeira ​romancista​ negra brasileira ​(Ver em https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Firmina_dos_Reis​).

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Yuka, falecido não muito tempo antes. Também se fez um concurso de artes visuais, onde se escolheu uma imagem que fosse representativa da autora homenageada, visto que não há uma iconografia consolidada sobre Maria Firmina dos Reis em nossa literatura. Esta edição se mostraria fortemente dolorosa, pois em meio às atividades o criador e produtor Écio Salles descobre-se portador de câncer cerebral. Em pouco mais de um mês ele veio a falecer. A edição mais recente da FLUP, acontece ao mesmo tempo em que esta dissertação é finalizada. O ano de 2020 entrará para a história da humanidade como o ano da deflagração da Pandemia do Coronavírus (e da Covid-19, referente à doença). Encontramo-nos em isolamento social, os eventos presenciais em sua totalidade cancelados. Dentre os que buscaram alternativas, a FLUP, sempre inovadora e convergente, iniciou em 12 de maio sua primeira atividade. As mesas de debates agora são em formato de LIVEs online na página de Facebook da FLUP. "Revolução Carolina" é o nome desta edição que homenageia a escritora Carolina Maria de Jesus, autora do mundialmente famoso best-seller "O Quarto de Despejo". A primeira mesa trouxe Conceição Evaristo, nossa premiada autora, Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina Maria de Jesus, professora e estudiosa da obra da mãe, com a mediação da jornalista Flávia Oliveira. No lugar de Écio Salles, sua viúva, Daniele Bernardino, fez a abertura como mestre de cerimônias. Com a proposta de propor sempre novos caminhos, com a flexibilidade própria de quem é cria das quebradas, a FLUP converge seu público para um movimento nas redes já a marcar a história da literatura e domínio de narrativas. Fui chamada para criar uma série de pequenas animações em time-lapse que apresenta visualmente as debatedoras e temas chave ligados à luta anti-racista. A ideia é criar destaque e valorizar este espaço das narrativas periféricas, negras e revolucionárias em sua proposta de confrontar uma sociedade excludente. Junto ao ciclo de mesas, foram convocadas novas autoras para oficinas literárias. No processo de seleção as candidatas, mulheres, negras, deveriam escrever uma carta para Carolina Maria de Jesus. As duzentas melhores cartas prosseguem agora aprimorando seus textos cujos melhores serão publicados em papel e ebook até 2021.

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Flávia, Daniele e Conceição Evaristo na mesa de abertura da Flup 2020: A Revolução Carolina. Exibido em 12 mai. 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/FlupRJ/videos/3785476181522631/?v=3785476181522 631​. Acesso em: 25 jun. 2020. Um dos objetivos das redes sociais é a interatividade. Essas plataformas possibilitam o "estar junto" mesmo que longe. E é possível fazer quase tudo, como ontem quando reunimos Conceição Evaristo, Vera Eunice de Jesus, Flávia Oliveira e Daniele Bernardino para falar de Carolina Maria de Jesus. Foi possível ouvir mulheres incríveis falando sobre outra mulher incrível. Foi possível fazer pergunta e deixar comentários. Foi possível tirar fotos e postar nas redes sociais, compartilhar com os amigos. Foi possível assistir da TV junto com a família. Teve gente que até tomou uma cervejinha. Só não foi possível agradecer a elas com um abraço, mas esse encontro foi tão forte que uns juram ter sentindo o abraço fisicamente. Cá entre nós, depois desse encontro acho que é possível interagir de todas as formas por essas plataformas, pelo menos por enquanto. (FLUP, primeira mesa virtual em 12 de maio de 2020, A Revolução Carolina)

A FLUP é a nossa protagonista oculta da saga das Sarauzeiras oníricas. Esta festa que é ao mesmo tempo modesta em recursos, mas grandiosa em propostas, é a catalisadora de incontáveis transformações nas vidas de pessoas e territórios até então excluídos do poder de decisão sobre as narrativas de sua própria história. O "efeito FLUP" como chamamos, é a transformação pessoal experimentada por cada um que ao se ver encantado para dentro da "família quebradeira" passa a ver o Brasil sem os antolhos das narrativas de dominação, ao fazer parte também da construção de novas narrativas libertadoras. A FLUP foi e prossegue em meio ao pior dos tempos como a catalisadora de incontáveis transformações. O nosso produto, o álbum "Sarau Estação 67, as Sarauseiras Oníricas", é uma dessas histórias. 107


4.7 – As ​Sarauzeiras Convergentes 4.7.1 – “A mídia tornou-se suspeita” – piscinas do tráfico

Matéria do jornal O Dia cria uma narrativa sobre um evento ocorrido na favela, baseando-se em elementos que entendem a favela como lugar de bandido e conivência dos moradores com o crime, sem que exista de fato nenhuma prova que sustente sua argumentação. Justificando desta forma qualquer tipo de violência estatal praticada contra os mesmos, ainda que em aberta violação de direitos garantidos. Do lado direito alguns do comentários dos leitores do jornal, convencidos das ideias preconceituosas colocadas no texto do jornalista. Publicado em 21 de janeiro de 2018.

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O jornal O Dia, sem sequer o cuidado de entrevistar os moradores retratados, pautou um editorial em que criminaliza a diversão das crianças da Favela Maré na sua primeira página.. No texto, era passada a informação de que as piscinas montadas para aliviar o calor do verão carioca, eram doadas por traficantes. O que não era verdade. Mais do que simples difamação, como consequência direta desta narrativa, as piscinas foram destruídas por policiais militares da área, que as atropelaram com um blindado, o famigerado "caveirão", cuja atuação se restringe às favelas como forma repressiva e jamais preventiva, procedimento criminoso e que colocou em risco as vidas e patrimônio dos moradores. Esse tipo de deformação da realidade, onde a mídia comercial pinta a vida na favela como se ali só existissem criminosos e 'vagabundos', como se não fosse sequer uma área legítima da cidade onde se abrigam cidadãs e cidadãos com iguais direitos como em todos os bairros, é que vemos, majoritariamente, sendo repetido exaustivamente nos impressos, nos telejornais, nos portais dos principais noticiários brasileiros. Os coletivos comunicadores do Complexo Maré e Complexo do Alemão imediatamente convocaram um “Piscinato" na porta da editora do jornal, como forma de rebater as informações falsas veiculadas: a piscinas destruídas pelo blindado da polícia jamais pertenceram nem foram pagas por traficantes. O dono legítimo se apresentou e denunciaram que como esta, eram frequentes as violações feitas por agentes do Estado que envolviam destruição de patrimônio e intimidação dos moradores. Que a vítima de bala perdida na favela é submetido à morte dupla: morto pela PM e depois tendo a reputação assassinada quando criminalizado pela mídia comercial. Todo cidadão pobre da periferia é descrito como o “inimigo”, na construção de um personagem que atende a interesses nada democráticos. O perigo interno a ser combatido numa lógica de guerra que se inicia com a exclusão de direitos. O discurso de defesa social, voltado para legitimar ações letais praticadas a partir de intervenções policiais, encontra amparo não só nas palavras dos promotores de justiça criminal. Uma cultura punitiva se estabelece como forma de sociabilidade, na qual a criação e manutenção da ordem se indeterminam não apenas a partir do chamado monopólio do uso da força pela polícia, mas principalmente pelos discursos punitivos, presentes em outras inúmeras agências de controle social, com destaque para os discursos midiáticos. (ZACCONE, 2014)

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Há uma questão a se salientar, na franja da sociedade, onde terminam os direitos e se inicia a mais pura opressão, nas favelas, e periferias, a desconfiança contra o Sistema sempre permeou. Ali o poder paralelo do tráfico ou das igrejas neopentecostais sequestrou a cidadania dos moradores, mas que agora, através das redes, podem se unir sem se expor nem a criminalização nem ao crime organizado. E a sua união os ajudou a superar o medo, essa emoção paralisante em que os poderes constituídos se sustentam para prosperar e se reproduzir, por intimidação ou desestímulo – e quando necessário, pela violência pura e simples, seja ela disfarçada ou institucionalmente aplicada. (Castells, Manuel, em “Redes de Indignação e Esperança, Movimentos sociais na era da internet”)

Ainda segundo a dinâmica descrita por Castells, a urgência destas redes são: – criar significado: busca do real sentido da vida, valores próprios, resgate da dignidade e autonomia moral, intelectual através da arte e cultura popular; – contestar o poder: subverter o sistema que massacra de tira sangue , literalmente, se recusar a submissão, recolher em si o poder de reestruturar. Os coletivos de poesias e saraus que tomaram as favelas e periferias, assim como nossas Sarauzeiras Oníricas são exemplos de ativistas que estavam adormecidos em suas potências artísticas e militantes até que o suporte de redes orgânicas, digitais e analógicas, começassem a se formar e oferecer o caminho para que seu discurso saíssem de suas bolhas de informação. Esperemos para descobrir até onde esses movimentos serão capazes de reverter processos de apagamento e opressão históricos, ou ainda de moldar novas narrativas mais inclusivas e criativas. A periferia por si só já é uma pessoa. Uma pessoa dentro de muitas outras. E agora estas pessoas estão se articulando e não mais permitindo que falem (mal) dela nem tampouco no lugar de fala ela.

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Postagens de moradores na rede social Facebook rebatendo a matĂŠria do jornal.

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Usufruindo dos canais das redes sociais do jornal, alguns dos moradores corrigem o discurso criminalizante do editorial. Além de O Dia, o Meia Hora também reproduziu a narrativa e ganhou como resposta um "Piscinato", manifestação pacífica realizada pelos coletivos de comunicação do Complexo da Maré. São eles os comunicadores das Redes Maré. Diferentemente da destruição das piscinas dos moradores perpetrada pelo caveirão da polícia, o ato dos moradores foi ignorado pela mídia alinhada à política de segurança que menospreza os direitos de moradores de área mapeadas pelo poder político como áreas de exclusão e exploração populista. Mas, mais uma vez, graças ao acesso ao meio da Internet, a notícia chegou à ciberesfera graças a jornais online publicados por jornalistas e outros comunicadores crias das favelas. Abrindo assim uma brecha através do paredão da mídia comercial viciada em discursos que distorcem a realidade a favor da exclusão social.

O Piscinato na frente da redação do Jornal Meia Hora / O Dia.

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CAPÍTULO 5: Descrição do produto – Álbum em quadrinhos O último capítulo abordará a análise do processo de criação artística e produção gráfica das narrativas. Partindo do estado atual da arte, evoluindo para as soluções escolhidas para materializar o álbum de histórias quadrinhos.

5.1 – Histórias são melhor contadas em quadrinhos A partir de uma proposta de elaboração de narrativas que registrem memórias de locais e seus moradores, as histórias em quadrinhos, tão ricas em recursos, exploram o alcance das redes sociais e plataformas difusoras de conteúdo na Internet, quando ocupam o espaço virtual como webcomics e a perenidade do imaginário ao se solidificarem em suporte de novela gráfica de papel em álbuns impressos. Comumente associadas ao público infantojuvenil no Brasil, onde por muito tempo apenas os chamados “gibis” dominavam as bancas, nas últimas décadas vimos surgir aqui uma tendência já consolidada em mercados mais tradicionais de histórias em quadrinhos, como Japão e Europa, a novela gráfica. Um formato que cuida de narrar histórias mais complexas, com experimentos estéticos mais ousados e voltados para o público maduro e versado em códigos de comunicação visuais (EISNER, 2012). Elas se utilizam da arte sequencial das histórias em quadrinhos para se aprofundar em histórias de biografias, adaptações de clássicos, ou mesmo buscar abordagens mais profundas de personagens históricas, filosofia ou mesmo de ficção com enredos complexos. Dentro deste campo, o romance gráfico autobiográfico permite a diferentes pessoas refletirem sobre um determinado tema comum a todos, independente dos detalhes particulares que individualmente todos carregam consigo (CARVALHO, SANTOS, 2018). Em seu artigo Diferença Cultural na Novela Gráfica: análise do acervo do PNBE. Wanderson Cruz dos Santos e Rosângela Tenório de Carvalho, ainda observam como é possível lançar mão de narrativas para contrapor práticas de subalternização de determinados grupos humanos. Aqui, a atenção especial foi lançar uma visão ampla e transparente do que é a vida nas chamadas “quebradas”, tais como são conhecidas as periferias sociais das cidades grandes brasileiras, optando-se pelo recorte nos cenários por onde circulam as três poetas do grupo Sarauzeiras Oníricas. Tendo como base a adaptação 113


de suas biografias aliadas à memória cultural e movimentos sociais de defesa de direitos humanos abrigados em tais locais, comumente tratados pelo poder público numa rotina que inclui constante violação dos direitos constitucionais mais básicos de seus moradores, tratados aqui como cidadãos de segunda classe. A questão de uma narrativa de ruptura de estereótipos limitantes sobre as periferias encontra ao seu dispor nas histórias em quadrinhos uma série de ferramentas de comunicação visual. Começando pela disposição das molduras: o que é ressaltado, o que é colocado abaixo. A luz e sombra como indicador de focos. Para o olhar que lê a imagem, o uso de cores (ou não), que traduzam o espaço tal como ele se construiu a partir do improviso característicos de regiões de tão poucos recursos materiais, abandonadas pelo poder público mas unidas em redes colaborativas. Aspectos estruturais podem ser usados como recursos de metalinguagem (MCCLOUD, 1995, Desvendando Quadrinhos), de forma que um requadro de imagem pode simbolizar a arquitetura “quebradeira" de uma favela que cresce de forma aparentemente desordenada, sem, no entanto, deixar de resolver demandas de carência de moradia não cumpridas pelo poder oficial. Pode-se ainda lançar mão de recursos de rede digital para que o leitor possa acessar com facilidade materiais já existentes nas redes que exibem a produção poética das personagens, tornando possível a convergência digital (CASTLES, 2000) onde se conecta redes de fãs, vídeo-poemas, fanpages de poetas e mídias independentes abrigadas no interior dos territórios representados nas webcomics. Todos estes recursos linguagem apontaram para esta mídia como ideal para abrigar as narrativas do projeto HQuebradas.

5.2 – O Estado da Questão

A seguir lançaremos um olhar sobre exemplos atuais que apreciam temáticas que relacionam memórias e direitos humanos. Juntas formam uma base de referência para o projeto HQuebradas, ao tratar visualmente com respostas dinâmicas dadas pelos seus autores a relatos de pessoas comuns como protagonistas de dramas sociais e, ou, históricos.

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5.2.1 – MAUS de Art Spiegelman

Narrativas de grupos sociais e suas lutas por direitos é um gênero nas histórias em quadrinhos de grande apelo ao leitor. Mas nem sempre foi assim. Quando Maus, de Art Spiegelman procurou pela primeira vez seu espaço nas prateleiras, os livreiros sequer sabiam em que seção colocar o título. Uma narrativa poderosa e violenta sobre o Holocausto Judeu, porém representada em formato de fábula, com ratos, gatos, cães e porcos, representando os grupos humanos em conflito de guerra. Mas em pouco tempo a obra virou sucesso de vendas e febre mundial. Abria-se ali um nicho de mercado para as artes gráficas: biografias em cenários de relevância social e histórica contadas na forma de histórias em quadrinhos. Maus é até hoje considerada a melhor novela gráfica baseada em memória já produzida. Seu autor levou treze anos e muitos redesenhos para produzi-la. Publicada originalmente com o título de Maus: A Survivor's Tale" e Maus II (1990, Maus, a história de um sobrevivente e Maus II), nestas, o ganhador do prêmio Pulitzer, Spiegelman, relata sobre a luta de sobrevivência de seus próprios pais no Holocausto, promovendo uma melhor compreensão sobre a história de sua geração. As imagens traçadas nos pequeninos quadrinhos de Maus utilizam de personagens antropomórficas para demonstrar a guerra dos nazistas contra os judeus como uma caçada de “gato e rato”. Para Spiegelman a unidade básica da HQ não é o quadro, mas a página completa, e a dinâmica interativa que acontece quando você captura os vários quadros em uma só vez. De uma forma que é única nos quadrinhos onde o “tempo” vira “espaço”, por sobre a superfície bidimensional, e podemos ver como passado e futuro se afetam mutuamente. O olhar do leitor monta como um móbile estas conexões, num moto contínuo, que é visto e revisto sem que termine até, após a condução neste tempo-espaço de ressignificação, se feche a narrativa na última página. Assim o projeto gráfico é uma parte essencial, com a decupagem triangulando com o roteiro e o desenho.

As ‘palavras e imagens’ que constroem a linguagem dos quadrinhos são por vezes descritas como prosa e ilustração combinadas. É uma metáfora ruim: ‘poesia e desenho gráfico’ seriam os termos mais apropriados. Poesia para o ritmo e condensação; desenho gráfico porque quadrinizar é mais sobre movimentação das formas no espaço – compondo – do que é sobre o desenho em si. (Seth, Gregory Gallant)

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​5.2.2 – Days of Destruction, Days of Revolt de Hedges e Sacco O álbum gráfico Days of Destruction, Days of Revolt (2012, Dias de Destruição, Dias de Revolta) de Chris Hedges e Joe Sacco, resolve de forma integral a missão da representação de narrativas colocadas em contexto sócio-político. A obra foca na evolução dos abismos sociais entre as classes econômicas nos EUA através de cinco focos narrativos. Procura revelar o massacre social promovido por um Capitalismo desenfreado que trata pessoas como recursos descartáveis, às deslocando de seus territórios, sem poupar o uso da força mesmo que envolva a eliminação sumária dos indivíduos. Chris Hedges, jornalista estadunidense, foi correspondente do jornal New York Times por quinze anos, cobrindo conflitos na América Central, África, Oriente Médio e região dos Balcãs. Vencedor do prêmio Pulitzer na categoria Jornalismo e Reportagem sobre terrorismo global, e premiado pela Anistia Internacional com o prêmio de Jornalismo em Direitos Humanos, Joe Sacco, jornalista e cartunista, vive em Seattle (EUA) nasceu em Malta em 1960, é reconhecido internacionalmente como um cronista de espaços e momentos políticos. São de sua autoria Safe Area Gorazde (2000) sobre a guerra na Bósnia e Palestine (1993) pelo qual ele ganhou o American Book Award de 1996. No Brasil, ambas foram publicadas pela Conrad editora com os nomes de Área de Segurança Gorazde, Palestina (1ª parte): Uma nação ocupada e Palestina (2ª parte): Na faixa de Gaza. Na obra Days of Destruction, Days of Revolt os autores aliam a narrativa jornalística ao impacto visual de imagem que vão além da mera função ilustrativa, se tornando ela mesma narrativa contextualizada e rica em informações sobre o meio social e econômico. Dividido em uma introdução e cinco capítulos, a novela gráfica abrange aspectos formativos da cultura e sociedade americana. A utilização do textual e visual permite saltos narrativos capazes de tecer memória, ações de tempo presente, dados estatísticos e percepção geográfica. Em sua resenha crítica sobre a obra, Carl Root, pesquisador da University of South Florida, EUA, ressalta a caráter do “imaginário sociológico” da obra tal como descrito por C. Wright Mills (1959). Uma narrativa resultante dos relatos individuais das biografias de moradores reais, aliada ao processo

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histórico, é o que se pretende obter em nosso projeto das HQuebradas. Root reproduz o relato de Hedges sobre o processo utilizado para tal desenvolvimento: Joe Sacco é eu nos dispusemos há dois anos atrás a lançar olhos sobre as áreas afetadas, estas áreas do país que foram entregues à exploração em nome do lucro, progresso, e avanço tecnológico. Nós queríamos mostrar em palavras e desenhos como a vida se desenrola quando as regras do mercado atuam sem rédeas, onde seres humanos e o ambiente natural são usados e então descartados a fim de maximizar os lucros. Queríamos revelar como a ideologia de um capitalismo sem limites afeta as famílias, comunidades, trabalhadores e o ecossistema.(Chris Hedges, completar DADOS, ver fontes)

Arte interna de Days of Destruction, Days of Revolt. Fonte: http://www.frackcheckwv.net/wp-content/uploads/2012/12/Days-of-destruction-sac co.jpg

5.2.3 – Vírus Tropical de Power Paola

Um primoroso exemplo do imaginário sociológico narrado pelo método gráfico, encontra suporte em outra obra: Vírus Tropical (2016, ed. Nemo - SP, originalmente publicada pela La Editorial Común – Colômbia) da quadrinista equatoriana-colombiana Power Paola. Aqui o tratamento é bem mais intimista se tratando de uma autobiografia com contornos dramáticos sobre descoberta da sexualidade e amadurecimento. Um estilo que teve seu sucesso graças inicialmente a autoras feministas que como Paola abriram ao 117


público detalhes da socialização conflituosa reservada à educação das meninas. A novela gráfica de Power Paola se alinha à demandas feministas por lugar de fala e releitura das narrativas impostas pelo senso comum às mulheres e seu papel social.

Vírus Tropical é uma saga familiar divertida e descolada, repleta de personagens cômicas e alopradas: um pai sacerdote que dá missas clandestinas em casa, uma mãe que lê o futuro nos dominós, uma irmã mais velha depravada, outra totalmente beata. No meio dessa trupe, a caçula Paola tenta encontrar seu espaço e sua identidade. Com um traço fino, expressivo e cheio de detalhes, Power Paola nos mergulha no âmago dessa singular família colombiana. Dividido em capítulos curtos e temáticos, e escrito num estilo ritmado e com muitos diálogos, Vírus Tropical consegue emocionar e entreter associando o melodrama ao humor – editora Nemo em https://www.virustropical.com/nemo-brasil/.

Páginas de Vírus Tropical, de Power Paola. Fonte: https://www.virustropical.com/nemo-brasil/

5.2.4 – Couro de Gato: uma história do samba de Patati e Sánchez

Carlos Patati e João Sánchez elaboraram uma novela gráfica na forma de galeria de cordel. Diferente das decupagens tradicionais do universo dos quadrinhos, aqui a narrativa verga sob a estética característica da xilogravura. Sem tons de cinza, trabalhando com preto e branco em contraste absoluto e com linhas grossas, muitas vezes rudes e mal acabadas, 118


Sánchez, autor dos desenhos, procura assim conduzir o imaginário do leitor para dentro das histórias de origem do samba brasileiro, utilizando uma arte que tenha familiaridade com o popular do tempo e espaço onde se desenvolve a saga dos personagens, todos ele reais, figuras históricas da região conhecida como “Pequena África” na Gamboa, região do centro do Rio de Janeiro onde se dava a recepção do tráfico de pessoas escravizadas oriundas do continente africano. A história do Samba mescla as biografias destas figuras que fazendo música e rezando aos Orixás, eram resistência contra o sistema escravocrata e mais tarde, após a abolição da escravatura, os eugenistas que aplicavam políticas higienistas para a supressão da cultura afro-descendente, criminalizando sua música, sua religião, sua cultura e mesmo buscando alinhar traços físicos a “doenças morais”. Tais políticas nunca desapareceram, e se ontem o samba era crime, hoje já se tentou tornar crime o som do funk carioca. E também hoje, a “guerra às drogas” em nada contribui para reduzir os crimes associados a traficantes e a corrupção institucional do sistema penal, atingindo sempre os corpos negros, pobres e sobretudo favelados. A estética em linhas agressivas e espontânea da obra traduz com a agilidade do samba cuja história pretende contar de forma crítica e engajada, obtendo um efeito que valoriza em muito a escolha de se utilizar as histórias em quadrinhos como suporte de narrativas em direitos humanos e memória social.

Capa do álbum "Couro de Gato" de Carlos Patati e João Sanchéz. Editora Veneta, 2017.

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5.3 – Formato

Usei como base o retângulo vertical. A intenção é garantir a portabilidade da imagem entre o tradicional impresso e a publicada online para leitura em tablets – a graphic novel HQuebradas terá quatro narrativas de origem abrigadas dentro de uma narrativa condutora.. Estas terão o mesmo formato, mantendo uma hierarquia a partir da composição visual. As HQs menores que possam surgir, desdobramentos das quatro maiores, poderão ter formatos diferentes, porém sempre cuidando da portabilidade, isto é, são facilmente usufruídas tanto no suporte de papel impresso de um álbum de quadrinhos quando nas pranchas da webcomic. Os originais das artes são traçados ou no papel ou numa mesa digitalizadora. Pessoalmente não me furto ao uso do papel. Complementando com recursos de arte digital as pranchas. Usei formato 24 cm de altura por 16,5 cm de largura. Para colocar os balões de texto e demais textos utilizei o software de editoração InDesign® (Adobe). Por que um livro? Por que imprimir? Porque é real. Porque podemos segurar este mesmo livro nas mãos e depois de impresso, ver o nome dos autores na capa e saber que todo o trabalho foi válido, independentemente de quantas cópias serão vendidas, (SAX, 2017), tal como foi apontado em sua obra recente A Vingança dos Analógicos, David Sax nos conta como os livros impressos, ao contrário do preconizado quando do advento dos livros digitais, não só não desapareceram, como em certos casos ampliaram seu alcance exatamente por causa do apoio das plataformas digitais. Dentro da cultura dos saraus de poesia das periferias urbanas, a publicação de um livro impresso com a coletânea dos poemas declamados pelo autor nos saraus, é considerada a consagração da carreira artística. O reconhecimento do papel de poeta e artista como caracterização principal de sua persona social. A professora, a ambulante, a doméstica, o trocador de ônibus, o soldado, profissões as quais são dadas pouco poder de influência na estrutura política e econômica da cidade, são sobrepujados pela da, ou do, poeta, que se coloca como porta voz capaz de redesenhar a estrutura do poder através da perspectiva da cultura, visto que o capital econômico permanece inatingível.

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Assim sendo, a forma do livro, do papel, é a forma que abriga em si o significado de uma subversão das narrativas dominantes pelas ocupações promovidas pela cultura quebradeira. É a ocupação de um suporte que é tradicionalmente associado a elite cultural.

5.4 – Estilo Gráfico

5.4.1 – Relatos do tempo presente

A história condutora que abriga os quatro relatos de origem, conta em tempo presente (da época do ocorrido da aventura) a ida das Sarauzeiras Oníricas à distante barra de Sepetiba, extremo do município do Rio de Janeiro, para se apresentarem no Sarau Estação 67 – foco de resistência cultural da região onde o poder se divide entre pastores fundamentalistas e milícias extremamente violentas. Nesta buscou-se um estilo mais figurativo, com menos distorções. Entretanto, quadros especiais podem entrar como recurso de linguagem, em flagrantes específicos à semelhança de como as distorções são usadas no mangá japonês, que por sua vez os herdaram dos cartuns e caricaturas. Uma referência importante que será incorporada aqui é a série em capítulos do mangá "Gen Pés Descalços"37, onde o autor se baseia em suas memórias de infância enquanto sobrevivente da explosão da bomba atômica lançada pelos estadunidenses que destruiu a cidade japonesa de Hiroshima, perto do final da Segunda Grande Guerra Mundial.

Arte interna de "Gen Pés Descalços"

série de mangá criada por Keiji Nakazawa, inicialmente publicado pela Weekly Shōnen Jump em 1973.

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はだしのゲン, Hadashi no Gen, 1973-1985, Keiji Nakazawa. O mangá foi publicado em várias revistas, incluindo a Weekly Shōnen Jump.

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Estudos para as protagonistas Mery OnĂ­rica (poeta Maria Inez), Lindacy e Yolanda (aos 16 anos de idade, abaixo). Optou-se por um estilo que permita agilidade e realismo.

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Painel do Google Drive com os rascunhos das páginas de "Sarau 67". Acessível em: https://drive.google.com/drive/folders/1ogSZ4lW6Fyh5m5wFhBT0FdhBClEp2OU5?usp=sharing

Rascunhos das páginas internas do álbum "Sarau 67".

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Painel do Google Drive com as páginas arte-finalizadas de "Sarau 67". Acessível em: https://drive.google.com/drive/folders/1JGqsrQ-yt0n79iZf-b9gCVw7RqVVX_nh?usp=sharing

Páginas internas do álbum "Sarau 67".

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A proximidade da narrativa com o mundo natural das sarauzeiras é constante e proposital, de forma a navegar com facilidade do meio artístico para os percursos diários dos que estão personificados, tais como os saraus. O material de utilizado inclui técnicas analógicas: pincel, tinta nanquim, papel, canetas esferográficas, grafite; bem como técnicas de desenho e pintura digitais que se utilizam de softwares específicos e mesas digitalizadoras. Escolhi para tanto usar o software Procreate38 para a tablet Ipad.

5.4.2 – Relatos memoriais

Dentro da narrativa sobre a ida ao Sarau 67, temos quatro histórias curtas onde se apresenta ao leitor as histórias de origem de cada uma das três sarauzeiras e uma que explica o nascimento do grupo. Cada um destes relatos recebeu um estilo gráfico particular. Assim, a história de origem da sarauzeira Lindacy é apresentada como se fossem xilogravuras de cordéis nordestinos produzindo uma ligação visual com as origens regionais dela. O traçado lembra a referência do anteriormente aqui citado "Couro de Gato" (ver item 5.2.4). Inserido como memória pela voz narradora, o relato gráfico mostra a chegada de Lindacy a cidade do Rio de Janeiro como retirante, ainda analfabeta, seu encontro com Francisco, o seu atual esposo, e estabelecimento como "cria" da Rocinha, local onde mora e desenvolve seus talentos poéticos. De índole mais lírica, as memórias de Yolanda Soares são apresentadas pela narradora gráfica como um Shonen que busca inspiração na obra "Honey e Clover" de Chica Umino, uma celebrada autora japonesa cuja obra dialoga dramaticamente com as notas da biografia da poeta que é da Maré assim como é do mar, esposa de marinheiro, deslocada pelas águas e que se alimentava de rãs apanhadas no lodo para saciar a fome crônica. A história de Yolanda emerge em meio a aplausos no Sarau 67, quando seus poemas capturam o encantamento de um morador local.

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Aplicativo comercial para criação visual da​ empresa Savage Interactive Pty Ltd. ​Acessível em: https://procreate.art/ipad​ – Último acesso em: 27 de maio de 2020.

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Pรกginas que contam a histรณria de origem da poeta nordestina Lindacy.

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Páginas que contam a história de origem da poeta Yolanda em estilo shojo manga39.

A grande saga da então pequenina Maria Inez, se encontra com traços mais fortes em figuras com suas características exageradas. Os olhos grandes e assustados da protagonista em meio ao horror de uma infância destroçada, os contornos sardônicos da antagonista e seu filho, o traço acolhedor do policial que surge como opção de salvação. Esta arte foi inspirada pelas animações dos anos 30, como os da personagem Betty Boop. O quarto e último relato memorial que fecha a saga das Sarauzeiras, busca um estilo mais solto e diferentemente dos anteriores, é todo produzido digitalmente, com o uso do programa comercial Procreate para Ipad. Segue o estilo mais pessoal da narradora.

39

"​Shōjo​, ​shojo​, ou ​shoujo manga​ (少女漫画 ​shōjo manga​?​) é um tipo de ​mangá​ comercializado para o

público ​adolescente​ feminino (normalmente entre as idades de 12 a 18 anos). O nome latinizado de ​少女 (​shōjo​), literalmente significa "pequena garota". O mangá ​shojo​ abrange muitos assuntos em uma variedade de estilos narrativos e gráficos, desde dramas históricos a ​ficção científica​ — muitas vezes com um forte foco em ​relacionamentos românticos​ e emoções humanas. Estritamente falando, shojo mangá não compreende um estilo ou um gênero em ​si,​ mas sim indica um ​público-alvo​." (Wiki)

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Transição da narrativa em tempo presente com a imagem, abaixo à esquerda, de Maria Inez em traços realistas para a narrativa de história de origem dela em traços à la Betty Boop. O formato da trança de cabelo como era trançada por seu pai harmoniza com o arranjo feito com o turbante.

Além dos vídeos e áudios gravados com as sarauzeiras contando suas memórias, antigos álbuns de fotografia, pensamentos registrados no papel, material colhido nas redes sociais, os depoimentos de amigos e produtores forneceram mais recursos para formar a base de referências para os quadrinhos. Pesquisa histórica e artigos de jornais foram a segunda base de referência para os roteiros do "Sarauverso"40.

40

Sarauverso = universo sarauzeiro. Neologismo surgido neste projeto.

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Acima, página da história de origem da poeta Yolanda. Abaixo a referência fotográfica usada para retratar sua família durante sua infância na favela. Foto de arquivo pessoal de Yolanda Soares.

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CAPÍTULO 6: Residência na França

O desdobramento da ideia original em um novo produto realizado durante a recente Residência Artística obtida por meio de edital do governo francês.

6.1 – Edital Odyssée

Em final de 2018 enviei um projeto de performance envolvendo narrativas gráficas para o processo de seleção do edital de cultura do governo da França para artistas estrangeiros, o chamado Odyssée. Neste edital o candidato deve enviar seu projeto diretamente para os escritórios culturais de cada município. Escolhi dez cidades, porém destas, nove privilegiam performances musicais, apenas uma apresentava um festival chamado La Cité du Mot (A Cidade da Palavra) que parecia poder se interessar por um projeto que dialogasse com integração entre imagem e memória, as bases de minha proposta. O meu projeto original consistia em uma séries de ações performáticas que eu já vinha desenvolvendo em espaços de encontro no Rio de Janeiro, e que então eu chamei de Ato-Retrato, fazendo um jogo de palavras com "Ato político" e "auto-retratos"onde a pessoa se desenhasse a partir de testemunhos de sua memória pessoal. A proposta enviada à França consistia então em entrevistas com moradoras da cidade abrigo do edital, numa conversa pessoal, onde uma série de perguntas disparadoras estimulavam as entrevistadas a puxar memórias, desejos e vivências do que significava ser cidadã em determinada cidade e época. Os temas buscavam propositalmente tangenciar questões de pautas políticas, sociais, econômicas. A entrevista se daria enquanto a artista desenhava um retrato da entrevistada, em uma ação que durava de meia a duas horas (é imprevisível saber o quanto a pessoa se sentiria compelida a dividir de si). E foi a Cité du Mot que escolheu o projeto, ou melhor especificando, a pequenina cidade de La Charité-sur-Loire, no Vale do Loire, há poucas horas de trem ao sul de Paris.

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Apresentação gráfica criada para explicar o projeto aos patronos de Charité. Arte: Thais Linhares usando elementos iconográficos das ruas da cidade.

Dentre anúncio do aceite de Charité, em março de 2019 e a ida à França, em janeiro de 2020 (final do inverno na Europa), o projeto do álbum gráfico das Sarauzeiras Oníricas se desenvolveu, assim como outros produtos correlatos das HQuebradas, ou ainda o nosso "Sarauverso". Percebi que seria interessante integrar o produto gerado na residência artística em Charité ao produto do mestrado. Assim sendo, propus aos patronos franceses uma nova abordagem que incluísse um diálogo distante com as três poetas das favelas cariocas com as mulheres de Charité-sur-Loire. A nova proposta agradou bastante aos meus anfitriões. Assim, o novo Ato-retrato se transformou numa proposta de um álbum gráfico de quadrinhos gerado a partir das perguntas catalisadoras formuladas pela Sarauzeiras Oníricas a suas "parceiras criativas" em Charité-sur-Loire, que por sua vez, também enviaram suas dúvidas sobre a vida das três poetas das favelas, como referência para a segunda parte do álbum. "Charité de las Favelas" é um álbum onde duas cidades/quebradas conversam através da sensibilidade de suas mulheres com o tempo e lugar em que vivem. 131


Apresentação da nova proposta que incluiu as Sarauzeiras Oníricas. Arte: Thais Linhares usando elementos iconográficos das ruas da cidade.

6.2 – Paris

Um relato breve sobre o que foi a chegada a Paris, capital europeia de cultura e debates cidadãos, precisa revelar o acolhimento que senti nesta cidade. Minha primeira vez em Paris, visitei museus, cemitérios, andei a pé por dezenas de ruas, conheci a impressionante e democrática BPI41, as periferias (com suas "bocas" de entorpecentes e pequenos quiosques de comida asiática) e até mesmo visitei os corredores da Sorbonne. Buscando informações sobre possíveis doutorados em nossa área. BPI, ​la Bibliothèque publique d'information ​(Biblioteca Pública de Informação) localizada no Centre Pompidou em Paris. Conheça navegando por ​https://www.bpi.fr/bpi​. 41

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Conhecer a capital das artes, dos famosos museus – com a bande dessinée, histórias em quadrinhos por todo lado! – até suas quebradas cobertas de artes de rua, foi uma experiência que superou qualquer expectativa desta mestranda. Desde a adolescência sonhava em conhecer a cidade de meus ídolos da 9ª arte. Cheguei na França em janeiro de 2020. Havia então apenas um relato de um casal de turistas chineses internado com diagnóstico de Covid-19, um primeiro alerta do que seria a pandemia causada pelo novo coronavírus.

Do alto para baixo: espaço gibiteca da BPI, estante dos romances biográficos e cartaz com os personagens de Uderzo e Goscinny: Abracurcix e Asterix no metrô. 2020 foi declarado ano dos quadrinhos na França (expandido para 2021 devido a Pandemia). Em toda a capital a decoração urbana e eventos remetem ao tema das Bandes Dessinées.

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Do alto para baixo, do lado esquerdo: placa em homenagem aos cartunistas executados no atentado terrorista na sede da publicação de humor político Charlie Hebdo42. Galeria PORTRAITS DE CETTE HISTOIRE com retratos de refugiados realizados por ​Guillaume Bruère ​expostos no centro cultural Le CentQuatre43. Placa em lembrança dos alunos (crianças e jovens) judeus deportados para campos de concentração durante a ocupação nazista na França, em consonância com uma Justiça de Transição44 bem elaborada. Do lado direito, estátua recém inaugurada em homenagem ao autor de Asterix, o Gaulês, um dos mais conhecidos heróis dos quadrinhos franceses, Renné Goscinny45. Fotos: Thais Linhares.

42

"​Massacre do Charlie Hebdo foi um atentado terrorista que atingiu o jornal satírico francês Charlie Hebdo em 7 de janeiro de 2015, em Paris, resultando em doze pessoas mortas e cinco feridas gravemente. (...) na sede do semanário no 11º arrondissement de Paris, supostamente como forma de protesto contra a edição Charia Hebdo, que ocasionou polêmica no mundo islâmico e foi recebida como um insulto aos muçulmanos." (​Wikipedia​). 43 ​Disponível em: ​https://www.104.fr/fiche-evenement/guillaume-bruere-portraits-de-cette-histoire.html​ Acesso em: 27 jun. 2020. 44 ​"​Justiça de transição se refere aos conjunto de medidas políticas e judiciais utilizadas como reparação das violações de direitos humanos Dessa forma, confronta os abusos dos direitos humanos de sociedades fraturadas como componente estratégico de una política de transformação para a restauração da justiça, a reconciliação e manutenção da paz."(Wikipedia). 45 ​Assista a inauguração e ao discurso de Anne, filha do autor disponível em https://www.youtube.com/watch?v=aGNiaKxYIjE​ Acesso em 27 jun. 2020.

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6.3 – Angoulême, capital dos quadrinhos

Desde 1974 realiza-se na cidade de Angoulême, mais ao sul de Paris, o grande festival internacional anual das histórias em quadrinhos na França. Autores de diversos paíse, grandes editoras e independentes, apresentação de cursos de formação, exposições de autores homenageados e prêmios. Angoulême também abriga uma residência profissional para autores e uma escola de mangá. Já em Angoulême tive minha primeira reunião com Philippe de Moine, da Cité du Mot, para conversarmos sobre como desenvolver meu projeto de residência em Charité-sur-Loire.

Pavilhão das editoras em Angoulême, 2020. Foto: Thais Linhares.

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6.4 – Recepção e estrutura em Charité

Eu organizei minha ida à França estrategicamente de forma a poder conhecer os museus e pontos de cultura da capital e participar do grande festival de Angoulême, então especialmente inflado por conta de ser Ano dos Quadrinhos da França, o que levou o presidente Macron a discursar em homenagem à arte dos quadrinhos na abertura do evento. Após o festival fui para a cidade de Charité-sur-Loire e iniciei a residência da Cidade da Palavra. Lá fui recebida pelos organizadores e instalada em uma casa na ilha do Faubourg, junto ao santuário dos pássaros migratórios do Loire, com vista frontal para a bela cidade. Uma vez instalada dei início aos meus estudos sobre a cidade e formação de redes com os moradores locais. Em especial as mulheres.

Vista de Charité-sur-Loire a partir da ilha Faubourg. Foto: Thais Linhares, fevereiro de 2020.

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Registro da primeira reunião do Círculo das Mulheres de Charité-sur-Loire, que ocorre desde então a cada Lua cheia. Arte de Thais Linhares, fevereiro de 2020.

Aos poucos fui tornando-me figura comum nas ruas. Conforme Philippe me falara: "em uma semana terá conhecido todos seus moradores!" A cidade é pequena. Em oito horas de caminhada desbravei suas ruas e arredores. Fiz registros de sua arquitetura, suas festas, seus moradores e palavras. Participei de reuniões institucionais e ajudei na restauração da muralha medieval da cidade.46 Reunião para planejamento da nova mediateca da Cidade da palavra. Foto de Thais Linhares.

46

Les Rempart de Charité, é uma grande muralha remanescente da fortaleza original da cidade, que remonta a épocas medievais. Uma associação local de moradores assumiu recentemente como projeto a limpeza e restauro do sítio histórico para abrir à visitação turística.

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Fiz três entrevistas usando a dinâmica do ato-retrato. Foram com Eva Kaddour, taberneira e andarilha, chocolateira e artista de bonecos em papel maché; Patrícia Muller, calígrafa, editora e ilustradora e Claire Franciscone, estoquista do mercadinho da praça da prefeitura, o único dentro cidade.

Da esquerda pra direita: Eva Kaddour, Patrícia Muller e Claire Francesconi.

Charité-sur-Loire vista do alto da muralha. Ao fundo o vale do rio Loire.

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6.5. – La Charité das Favelas, o produto da residência francesa

Similar ao que foi o processo de criação do Sarau 67, álbum de histórias em quadrinhos das Sarauzeiras Oníricas. Não os apresentei em detalhes aqui, por não ser este o produto principal deste mestrado. Fica, contudo, a promessa de em algum tempo futuro retomar esses arquivos de forma mais aprofundada. Há para tanto extenso material em milhares de fotos, gravações e anotações desta passagem pela França no ano em que comemorou ostensivamente a cultura das histórias em quadrinhos. Também foram coletados elementos para referências, vídeos e áudios desta passagem da cidadela. O produto completo pode ser apreciado no anexo B.

Base dos ato-retratos em pastel óleo de Eva, Patrícia e Claire. Reparem na máscara que Claire usa. Sua entrevista ocorreu no segundo dia da Quarentena decretada pelo presidente Emmanuel Macron quando a pandemia do coronavírus já havia a parte norte da França. Ainda não havia casos em Charité nem na grande região onde se localiza, dominada pela cidade de Nevers (Vale do Loire). Nesta edição da performance optei por fazer um trabalho mais detalhado com uma base em material e aplicar as narrativas gravadas durante a entrevista na pós-produção, usando o Procreate no Ipad.

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CAPÍTULO 7 : Outros produtos do "Sarauverso"

Histórias curtas e exposições desdobradas a partir da criação do produto principal.

7.1. – Café, sorvete e um cadáver

A HQ “Café, sorvete e um cadáver” foi desenvolvida a partir de uma das memórias de infância da sarauzeira Maria Inez em uma praça na zona norte. Ex-moradora de rua, Maria tem memórias potentes do que é a crueza da vivência de uma menina nas ruas do Rio de Janeiro. A história se passa em Padre Miguel, anos 60-70. Na época havia um Parque de Diversões instalado na praça onde todos se reuniam para os festejos de Carnaval, shows de MP e passeios em família. O gênero é terror. Buscando uma identificação de memória local, infância e medo, optei por um grafismo que remetesse aos antigos cartuns preto e branco dos anos 30, como já explicado em capítulo anterior, da sensual melindrosa Betty Boop. A personagem caracterizada como uma dançarina e cantora de bar do submundo dos cabarés dos anos 20 e 30, evoca ainda uma sensualidade que condiz com o desenvolvimento da trama que nos conta sobre um abusador de crianças. A deformação dos olhos, colocados bem grandes, evoca o terror nos olhar arregalado de quem “viu um fantasma”. Os fundos, mais pesados, buscam o clima caótico da cidade que acolhe ferindo. A técnica, é caneta esferográfica preta sobre papel sulfite. As personagens de Café, sorvete e um cadáver, prima e Maria Inez criança, são retratadas em estilo bem diferenciado. Um recurso interessante é a justaposição de recursos visuais com textuais. A textura de fundo dos quadros, além de formar um destaque necessário para a leitura do olhar segmentando os planos de representação das personagens do fundo é formado por palavras que também conectam os significados tratados na história. Essa obra completa pode ser apreciada adiante no ANEXO C.

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Página final da narrativa. Textura da parede em sombras e coberta por palavras que remetem ao que ocorre na cena: "velhos, morto, segredo".

Inicialmente o corpo disposto no caixão seria de um senhor. Esta cena representa um dos inúmeros enterros que a Maria Inez criança frequentava para poder se alimentar do café e bolos de chuva oferecidos aos visitantes. A arte finalizada traz o enterro de duas crianças. Essa opção aproxima semioticamente a narrativa visual do tema que permeia a história: a morte da inocência de duas meninas em uma cidade que expõe crianças a senhores pedófilos que oferecem alimento em troca de sexo com as meninas. A morte simbólica das garotas pela perda da inocência é refletida graficamente na morte factual de duas meninas colocadas em seus pequenos caixões na cena do enterro. A imagem preconiza o desfecho da narrativa, inserindo o leitor no tema sem antecipar a virada dramática do roteiro que se dará apenas na página final.

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7.2 – MenorCidade Inicialmente batizado de Hamelin, eis o projeto de apelos feitos no formato de cards. Neles são representadas as crianças e jovens vítimas de violência ou corrupção das forças policiais urbanas. Esta mostra além de ganhar as redes sociais foi exposta em formato grande (30x40cm) durante a FLUP de 2018 na Biblioteca Parque Estadual do centro do Rio de Janeiro, na UFRJ em 2019 no encontro das Pós e nos circuito de expo da BlackArt Biennal em Florianópolis, Curitiba e Porto Alegre (seleção especial).

A montagem apresentada a partir de uma seleção de parte dos cards ganhou um prêmio promovido pela ONG Artigo 19 (como visto anteriormente) e parte dos painéis ampliados foi doado à Cité du Mot, o festival organizador de minha residência na França.

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7.3 – Poetas das Quebradas

Vídeo performance apresentada na mostra de Arte das Quebradas no Centro Cultural Hélio Oiticica em 2018, centro do Rio. Uma série de painéis onde os poetas retratados interagem visualmente com seus bordões artísticos. O vídeo pode ser visto completo em https://www.youtube.com/watch?v=TNLHADLWxwU​ (Último acesso 27 de junho de 2020).

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CONCLUSÃO (em três atos)

I – Eu nada sabia... Ter cumprido essa jornada em busca de saberes das periferias, tendo como guia três senhoras de grande vivência nas quebradas do mundo, foi um ponto de virada em minha vida pessoal e profissional. Ao buscar aliados que atendessem a meu próprio espanto diante do mundo assustador e injusto, encontrei tutoras, amigas, modelos admiráveis de conduta e sobrevivência. Pude conhecer a alma da cidade, tantas vezes perversa, mas sempre generosa em oferecer caminhos e alimento pras artes. Entrei em favelas, em tribunais, em reuniões de aflitas, segui cortejos fúnebres e outros festivos, corri nas manifestações, hora para capturar um registro, hora para escapar de violentas repressões. Juntei minhas dores e alegrias às de todos nós, enquanto sujeitos passivos ou ativos de nossa história que não para. Talvez ainda me falte material, e sem dúvida aprendizado, não vejo a entrega deste projeto como a estação final de Santa Cruz, mas talvez a Mangueira, estação primeira, onde há mais aventuras a colocar em forma de arte, porque há muito dessas quebradas o que ser contado e dividido com o mundo. Cheguei a entrar na academia! Um antigo sonho e que veio na hora certa do jeito ideal. As peças quebradas encaixando e formando a grande imagem. Sinto plenamente satisfeita quanto ao meu objetivo inicial ao me candidatar ao ingresso neste mestrado, que era buscar na academia suporte e caminhos para realizar minha proposta e também as futuras que daqui despontam. Eu pude conectar minha atuação no campo com o estudo de pesquisa e a produção das obras gráficas enquanto ganhava campo nas redes digitais. Foi possível mesmo desenvolver a ideia pra dentro de propostas a concorrer nos editais e conseguir emplacar uma residência internacional. A ida a França me abriu os olhos para a estratégia de se investir e valorizar a linguagem das histórias em quadrinhos. Meu projeto encaixou-se estrategicamente para ações referentes ao Ano do Quadrinho na França, podendo portanto desdobrar-se em outros produtos. Procurei aproveitar a estadia para estudar sobre os autores locais e internacionais apresentados no Festival de Angoulême e no Museu da Ilustração (que visitei em Moulins, cidade próxima a onde eu fiz minha residência artística – Charité-sur-Loire). Os museus de 144


Paris, as ruas medievais de Nevers, as ruínas romanas de Narbonne, tudo que pude absorver eu busquei. Também travei contato com artistas locais. Entender um país onde a cultura é colocada em primeiro plano, e em especial a arte dos quadrinhos ajuda a ter uma visão "de fora" do meio nacional do mercado das revistas e livros das HQs. Numa feliz coincidência fiquei abrigada durante a Pandemia na casa de um editor de fanzine de quadrinhos, a Bouche du Monde, que originalmente se chamou A Boca do Mundo. Seu criador, o franco-paraense Eduardo Pinto Barbier, nasceu em Belém do Pará. Sendo filho de ex-legionário francês, pediu cidadania quando completou a maioridade e desde então mora na França onde se dedica a traduzir e publicar autores brasileiros. É uma importante ponte que vale a pena registrar. Feito esse registro, quero ressaltar a imensa importância que foi a ECO-UFRJ construir uma pós em mídias, e dentre elas as histórias em quadrinhos e web comics. Dentro deste curso eu pude ter acesso a pensamento crítico acadêmico que me auxiliou na construção dos produtos e propostas. Um valioso corpo de docentes e, claro, a companhia de colegas que são destaque em seus campos de atuação foi não apenas enriquecedor em termos de conhecimento e preparação, mas foram também inspiradores!

II – ...destas GRANDES MULHERES... Como resultado trago a produção de um álbum gráfico com relatos biográficos da Sarauzeiras Oníricas. Durante o processo de pesquisa e produção nasceram algumas exposições, uma micro história biográfica da infância de Maria Inez – e isto me estimulou a criar outras no mesmo formato com as memórias de todas as três – e a coleção da ato-retratos feitos com as senhoras francesas de Charité-sur-Loire. Esse são os produtos visíveis. Junto a isso tenho horas de áudios, vídeos, retratos de dezenas de poetas e ativistas sociais feitos ao vivo durante as performances ou reuniões de organização política. Anotações ilustradas e uma série de produções que ocuparam espaço importantes. É destas mulheres do mundo que falo nestes trabalhos. E a principal conclusão deste projeto de mestrado e perceber que falar de mulheres trabalhadoras nas periferias do mundo é como receber o presente de Pandora com instruções de como lidar com todos esses perigos e violações que atingem mais a elas, e ao tem sua existência registrada no feminino, do que a outros grupos sociais. Elas são alvo preferencial, são mais cobradas, 145


esperam mais também em retorno por seus sacrifícios, aprendem com profundidade, se transformam, e quando isso acontece, e só então a sociedade se transforma também. O que acontece no destino de uma menina impacta toda a sociedade. A violação dos direitos de uma jovem mulher, não lhe permitindo acesso a educação, autonomia sobre seus próprio corpo, meios de sustento dignos, moradia em lugar salubre, é destrutivo para toda a sociedade. Quando uma menina é potencializada, a sociedade se transforma. É preciso ouvir mais e mais alto a voz destas mulheres e conhecer bem suas vidas e aprender com elas as mudanças necessárias. É imprescindível contar suas histórias.

III – … e suas Histórias. Chego ao final deste mestrado com mais conteúdo do que esperava, com uma série de produções que não haviam sido planejadas e que enriquecem ainda mais o Sarauverso. Fiz amigos no caminho, alguns deles infelizmente partiram cedo demais. Como a produtora da Cilene Regina, cujo coração parou de susto, quando um caveirão da polícia invadiu a praça defronte o centro cultural onde ela atendia crianças e adolescentes na Cidade de Deus. Ou o dramaturgo Zemerso, que decidiu não mais viver num país onde artistas são chamados de vagabundos. Nosso querido João Carpalhau que junto a Luciana Asada e Arthur eram a inspiradora tríade do Capa Comics a construir estruturas de promoção da arte dos quadrinhos nos subúrbios. Foi-se também o grande Patati, articulador, autor e amigo de todos nós. E teve a poeta Elaine Freitas, que lutava pelas vidas negras, mas cujo coração também não conseguiu mais bater depois de tantas perdas, e ela tão jovem. E, claro, o "menino" Écio, cujo sorriso blindado por um aparelho dental que lhe dava aparência da criança que tinha no coração, que levou um pouco de nós quando partiu, ainda que tenha se deixado todo em nossa lembrança. O abate deles por tempos de violência simbólica e explícita

– repare, eles

combatiam no campo das narrativas – apenas reforça a urgência de ocuparmos cada vez mais espaço nos meios e mentes, com narrativas de resgate, resistência, salvamento e promoção de direitos e vidas. Sozinhos somos como peixes perdidos numa tempestade, juntos somos cardume. Somos parte desse cardume. 146


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