[Monografia] Robert Capa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

THAMIRES RODRIGUES DE OLIVEIRA

FOTOGRAFIA ENTRE A ESTÉTICA E A POLÍTICA: UMA ANÁLISE DA COBERTURA DE ROBERT CAPA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

FORTALEZA 2014


THAMIRES RODRIGUES DE OLIVEIRA

FOTOGRAFIA ENTRE A ESTÉTICA E A POLÍTICA: UMA ANÁLISE DA COBERTURA DE ROBERT CAPA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social – Jornalismo do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Osmar Gonçalves dos Reis Filho.

FORTALEZA 2014


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca de Ciências Humanas

O52f

Oliveira, Thamires Rodrigues de. Fotografia entre a estética e a política: uma análise da cobertura de Robert Capa na Segunda Guerra Mundial. / Thamires Rodrigues de Oliveira. – 2014. 80 f. : il. color., enc. ; 30 cm. Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Curso de Comunicação Social, Habilitação em Jornalismo, 2014. Orientação: Prof. Dr. Osmar Gonçalves dos Reis Filho. 1. Fotografia de guerra – Guerra Mundial, 1939-1945. 2. Guerra Mundial, 1939-1945. 3. Robert Capa, 1913-1954. I. Título. II. Friedmann, Andrei, 1913-1954. CDD 778.9935502


THAMIRES RODRIGUES DE OLIVEIRA

FOTOGRAFIA ENTRE A ESTÉTICA E A POLÍTICA: UMA ANÁLISE DA COBERTURA DE ROBERT CAPA NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social – Jornalismo do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Osmar Gonçalves dos Reis Filho.

Aprovada em: ___/___/_____.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Osmar Gonçalves dos Reis Filho (Orientador) Universidade Federal do Ceará

________________________________________ Prof. Dr. Silas José de Paula (Membro) Universidade Federal do Ceará

________________________________________ Prof. Fernando Maia da Cunha (Membro) Universidade Federal do Ceará


Aos meus pais, Socorro e Evaldo, pelo amor imensurรกvel que recebo todos os dias.


AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por ter me dado força, paciência, serenidade e paz em todas as circunstâncias em que mais precisei; Ao meu pai, Evaldo, por incentivar meus sonhos e ser o melhor companheiro de batalhas cotidianas; À minha mãe, Socorro, pelo apoio incondicional e por estar ao meu lado todos os dias, não importando a distância; Aos incríveis amigos que conheci na universidade, com os quais vivi alguns dos melhores anos da minha vida e que seguem comigo no coração, em cada memória compartilhada e em cada abraço de saudade; Às duas melhores amigas que tive a sorte de conquistar, Lidiane e Rebeca, por me ensinarem, nos últimos dez anos, que amizade é permanência, amor e cumplicidade; Ao Gabriel, por me ensinar a voar, a amar e a mudar as coisas; Aos professores do Curso de Comunicação Social, por terem sido essenciais não apenas na minha formação como jornalista, mas por me inspirarem em cada passo do percurso que começarei a trilhar; Ao professor Osmar Gonçalves, por ter aceitado o desafio de orientar este trabalho, e aos professores Silas de Paula e Fernando Maia, pela contribuição fundamental neste processo.


“A fotografia é uma lição de amor e ódio ao mesmo tempo. É uma metralhadora, mas também é o divã do analista. Uma interrogação e uma afirmação, um sim e um não ao mesmo tempo. Mas é sobretudo um beijo muito cálido.” (Henri Cartier-Bresson)


RESUMO

Esta monografia apresenta uma análise da cobertura fotográfica de Robert Capa durante a Segunda Guerra Mundial, um dos conflitos bélicos mais importantes do século XX. Para analisar as imagens levando em consideração fatores externos à própria foto – mas essenciais à compreensão do contexto no qual elas foram tiradas –, o trabalho busca recuperar elementos da biografia de Robert Capa para entender as características de sua personalidade, que determinam de forma categórica o modo como ele retratou as batalhas que presenciou. Para um estudo bem fundamentado, a pesquisa trabalha com um aporte teórico que problematiza o lugar da fotografia documental e suas intersecções com a arte, além de trazer conceitos que nos ajudam a entender o sofrimento em imagens e de questionar o regime de verdade ao qual é submetido o fotojornalismo. Com uma abordagem que leva em consideração os elementos biográficos, estéticos, sentimentais e políticos que nortearam a postura fotográfica de Robert Capa, a pesquisa conclui que os ângulos e as perspectivas escolhidas por ele refletem um olhar engajado em meio a um mundo em conflito.

PALAVRAS-CHAVE: Robert Capa; fotografia; Segunda Guerra Mundial.


ABSTRACT

This monograph presents an analysis of Robert Capa’s photographic cover during the World War Two, one of the most important wars of the twentieth century. In order to analyze the pictures under consideration of the external factors, which are essential to comprehend the context in which it were taken, this work tries to recover elements of Capa’s biography to understand some characteristics of his personality, which determines the way he showed the battles he was in. For a soundly based study, the research uses a theoretical contribution that discuss the place where the documental pictures belong and it’s intersections with art, also bringing some concepts that help to comprehend the suffering in these images and to question the regime of truth which the photojournalism is submitted. With an approach that considers the biographical, aesthetical, sentimental and political elements which guided Robert Capa’s photographical posture, the research concludes that the angles and the perspectives chosen by him reflects an engaged sight beyond a conflicted world.

KEY WORDS: Robert Capa; photography; World War Two.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. “The Falling Soldier”, ou “Morte de um Miliciano Legalista”, de Robert Capa. Córdoba, 1936 ................................................................................................................ 26 Figura 2. Soldados republicanos fotografados por Capa em cerimônia de despedida dos voluntários. Barcelona, 1938 .......................................................................................... 31 Figura 3. Discurso de Trotsky em universidade da Dinamarca. Essa foi a primeira cobertura de André Friedmann publicada em página inteira, na revista alemã Der Welt Spiegel. Copenhagen, 1932 ............................................................................................ 36 Figura 4. Gerda Taro e Robert Capa fotografados por Fred Stain. Paris, 1936 ............. 37 Figura 5. "Jure sobre estas letras, irmão. Antes morrer que consentir um tirano" dizia a inscrição no trem que levava os soldados para o front. Barcelona, 1936 ....................... 39 Figura 6. Vida dos cowboys no Novo México, 1939 ..................................................... 40 Figura 7. “O começo da vitória”, dizia a matéria da Collier's Weekly, publicada em 19 de junho de 1943 ............................................................................................................ 42 Figura 8. Robert Capa e George Rodger. Nápoles, 1943 ............................................... 43 Figura 9. Dez das onze fotos remanescentes dos negativos de Capa. Normandia, 1944 ............................................................................................................ 45 Figura 10. Paraquedistas com corte moicano, feito para dar sorte na missão de invadir a Alemanha. Arras, 1945 ................................................................................................... 46 Figura 11. Chim, Capa e Bischof em reunião da Magnum. Paris, 1947 ........................ 48 Figura 12. Capa e Steinbeck antes de viajar para a URSS e no hotel em Moscou, 1947 ................................................................................................................. 50 Figura 13. Última foto em preto e branco tirada por Robert Capa. Nos passos seguintes, ele pisaria em uma mina terrestre. Estrada entre Namdinh e Thaibinh, Indochina, 1954 .............................................................................................................. 54 Figura 14. A tristeza do luto estampada nos rostos das mães, que seguravam pequenas fotos dos filhos mortos. Nápoles, 1943 .......................................................................... 56 Figura 15. Mulheres punidas por ajudar os nazistas e civis dando boas-vindas às tropas aliadas. Chartres / Paris, 1944 ........................................................................................ 57 Figura 16. Fazendeiros alemães fugindo de sua casa em chamas. Wesel, 1945 ............ 58


Figura 17. Nas fotos acima, percebemos o quão perto Capa esteve dos soldados. Normandia, 1944 ............................................................................................................ 60 Figura 18. Um médico estadunidense trata um soldado alemão capturado. Sicília, 1943 .................................................................................................................... 61 Figura 19. O cotidiano dos soldados de baixa patente também passou pelas lentes de Capa. Tunísia, 1943 ........................................................................................................ 62 Figura 20. Soldado na batalha de El Guettar, a primeira vitória decisiva sobre os alemães. Tunísia, 1943 ................................................................................................... 63 Figura 21. Soldado nazista capturado pelas forças aliadas. Bastogne, 1944 .................. 66 Figura 22. Segundo o próprio fotógrafo, essa foi uma das cenas que mais marcaram sua memória. Leipzig, 1945 .................................................................................................. 67 Figura 23. Exército aliado chegando à Alemanha por via aérea. Wesel, 1945 .............. 68


SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 12 1. A FOTOGRAFIA-DOCUMENTO ............................................................................ 14 1.1 Verdades fotográficas ........................................................................................... 14 1.2 Caminhos teóricos................................................................................................. 15 1.3 Sofrimento em imagens ........................................................................................ 22 1.4 Agência Magnum: uma introdução ....................................................................... 27 1.5 Humanismo x Humanitário: estética e política na cultura visual ......................... 29 2. ROBERT CAPA ......................................................................................................... 34 2.1 O início em Budapeste: primeiras fugas e primeiros cliques ................................ 34 2.2 Gerda Taro e a Guerra Civil Espanhola: nasce Robert Capa ................................ 37 2.3 Segunda Guerra Mundial: “Es una cosa muy seria” ........................................... 41 2.4 Criação da Agência Magnum: revolução no mercado fotográfico ....................... 47 2.5 Últimas batalhas .................................................................................................... 49 3. IMAGENS DE GUERRA: UMA ANÁLISE DA COBERTURA DE CAPA ........... 55 3.1 Olhar para os civis: diante da emoção e da dor dos outros ................................... 55 3.2 Adrenalina, sangue e política: o lado dos militares .............................................. 59 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 71 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................... 74 ANEXOS ........................................................................................................................ 77


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INTRODUÇÃO

Desde as primeiras reflexões sobre possíveis temas para um trabalho de conclusão de curso, decidi que deveria pensar em algo que unisse fotografia e história. As muitas horas que passei lendo artigos e livros sobre os grandes conflitos do século XX trouxeram a vontade de voltar a estudar episódios históricos marcantes, dessa vez através da fotografia, paixão descoberta nos primeiros semestres da faculdade. Após uma breve pesquisa sobre alguns nomes do fotojornalismo, cheguei a Robert Capa. A partir de então, as primeiras leituras sobre o fotógrafo já não me deixaram considerar qualquer outro nome. A importância do trabalho de Capa no Dia D e na Segunda Guerra Mundial como um todo, além dos escritos do próprio fotógrafo – que narrou suas experiências nas batalhas em um livro –, foram os principais motivos que me levaram a escolher esse período para a análise. Entretanto, se a história foi o ponto de partida para a definição do tema, não seria através dela que meus questionamentos seriam solucionados. Objeto escolhido, voltei o olhar para aquilo que me intrigava na fotografia documental: um fotojornalista deve ser mesmo neutro diante da cena? Uma imagem, mesmo tendo intuitos documentais, pode estar totalmente isenta da intervenção do fotógrafo? As primeiras leituras que fiz sobre o assunto traziam teorias que influenciaram os estudos da imagem por muitos anos: Barthes (1984), que fala da transparência das fotos em “A Câmara Clara”, e Dubois (1993), que trabalhou a questão indicial em “O ato fotográfico”, ofereceram as referências iniciais do estudo. Depois de conhecer essas teorias, os ensaios de André Rouillé (2009) contribuíram para uma visão mais ampla do processo fotográfico, numa concepção que vai além da noção de “recorte do real”. O primeiro capítulo trata do regime de verdade no qual a fotografia é colocada. O trabalho parte das noções de índice e espelho do real, problematizando essa questão ao considerar a fotografia como um elemento visual que não apenas registra, mas produz realidades. As questões estéticas que diferenciam humanismo e humanitário, a postura política exercida pelos correspondentes de guerra e o sofrimento em imagens também são tópicos trabalhados na primeira parte da monografia. O segundo capítulo traz um panorama da vida de Robert Capa. As experiências em várias batalhas, o lado emocional e a postura ideológica de Robert são apresentados através de relatos do próprio fotó-


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grafo, além de livros, entrevistas, documentários e depoimentos reunidos em torno de sua biografia. O terceiro capítulo trata das fotografias tiradas por ele durante a Segunda Guerra Mundial, em uma análise que busca compreender a complexidade ideológica e estética dos cliques de Capa. Ao delimitar o recorte do objeto, optei por apresentar 15 fotografias de Robert Capa, que retratam alguns dos principais acontecimentos do período: o desembarque dos aliados na Normandia, a liberação de Leipzig, o desembarque aéreo dos soldados na cidade alemã de Wesel, o cerco de Bastogne, a chegada das tropas aliadas em Nápoles, Paris, Tunísia, Sicília e outros momentos decisivos da Segunda Grande Guerra. O critério de seleção das fotos foi baseado na relevância desses acontecimentos no contexto do período, na intensidade dos relatos do próprio Capa sobre essas batalhas e nos elementos visuais distintos que a cobertura de Robert levou às páginas dos jornais e revistas. Assim, o trabalho propõe estudar imagens que mostram tanto civis quanto militares, que têm como protagonistas as tropas aliadas e os soldados nazistas, que evidenciam o primor das técnicas fotográficas, mas também trazem enquadramentos tortos e imagens fora de foco. O objetivo geral da pesquisa é, portanto, construir uma análise que transcenda o status cristalizado da fotografia documental como mero registro, considerando os elementos estéticos, históricos, políticos e poéticos envolvidos nas fotografias de Robert Capa. Os objetivos específicos são: estabelecer um debate entre autores, entrelaçando teorias que discorram sobre realidade, transparência, subjetividade e outros aspectos que envolvem a fotografia, buscando alcançar uma perspectiva mais ampla para dar suporte à análise; oferecer uma visão aprofundada da vida de Capa, através do estudo de sua biografia; e investigar os elementos visuais, ideológicos e emocionais presentes nas fotografias tiradas por ele na Segunda Guerra Mundial. Mesmo tendo acompanhado o exército aliado, Capa mostrou os infortúnios da guerra através de uma postura que ultrapassou o limite das polarizações ideológicas. É essa visão geral sobre a Segunda Guerra que a pesquisa busca contemplar, propondo uma análise que vai além dos termos técnicos e da investigação pautada somente em elementos visuais, como composição ou exposição. Ao explorar essas questões, o trabalho contribui para as discussões acerca das novas maneiras de produzir e interpretar os regimes de visualidade.


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1. A FOTOGRAFIA-DOCUMENTO 1.1 Verdades fotográficas Quando ouvimos falar de um acontecimento que suscita dúvidas, uma fotografia pode funcionar como prova de que aquilo realmente aconteceu. A premeditação ou acaso da cena, a escolha da composição e iluminação que compõem o momento e outras nuances do fotografável são aspectos que rendem uma série de discussões sobre a relação da fotografia com o real. Apesar de todos os questionamentos, o que se pode afirmar é: o momento captado pela câmera transmite aquilo que necessariamente estava na frente da lente. Sobre o ideal de verdade que se busca alcançar com as imagens, é interessante observar o pensamento de André Rouillé, que considera a fotografia um mecanismo de recriação da realidade, não um mero recorte. O processo fotográfico é concebido como um meio de liberar – por eliminação, corte e simplificação – a verdade, que está oculta, da realidade visível. (...) Mas isso traz a desvantagem de considerar a imagem fotográfica como um simples recorte de um real existente, enquanto fotografar consiste em transformar o real em um real fotográfico. Não recortar-registrar, mas transformar, converter. A fotografia reproduz menos do que produz; ou melhor, ela não reproduz sem produzir, sem inventar, sem criar, artisticamente ou não, uma parte do real – nunca o real em si (ROUILLÉ, 2009, p. 132, grifo do autor).

O valor utilitário das imagens se deve a uma série de fatores. Reprodutibilidade, mobilidade, rapidez de produção e credibilidade1 aproximaram a fotografia das massas e transformaram-na em mediadora entre os homens e a realidade. No entanto, é interessante que a ideia de realidade seja acompanhada por algumas ressalvas: por mais que a reprodução das imagens seja perfeita, o lugar em que a cena acontece não pode ser transportado em sua totalidade. É o vestígio do real que aparece na fotografia, e esse vestígio pode ressaltar alguns aspectos que nem sempre são acessíveis ao olhar humano no exato momento em que a cena acontece. Segundo Walter Benjamin (2012), Em primeiro lugar, relativamente ao original, a reprodução técnica tem mais autonomia que a reprodução manual. Ela pode, por exemplo, pela fotografia, acentuar certos aspectos do original, acessíveis à objetiva – ajustável e capaz de selecionar arbitrariamente o seu ângulo de observação –, mas não acessíveis ao olhar humano. Ela pode, também, graças a procedimentos como a ampliação ou a câmara lenta, fixar imagens que fogem inteiramente à ótica natural. Em segundo lugar, a reprodução técnica pode colocar a cópia do original em situações inatingíveis para o próprio original. Ela pode, principal-

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ROUILLÉ, 2009, p. 50.


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mente, aproximar do receptor a obra, seja sob a forma da fotografia, seja do disco (BENJAMIN, 2012, p. 182).

Ainda sobre a ideia de compreensão visual da realidade, Susan Sontag nos oferece outro ponto de vista interessante sobre o lugar da fotografia numa perspectiva que coloca documento e arte em lugares opostos. Segundo ela, os termos comumente empregados pelos fotógrafos e estudiosos da área diferenciam a foto entendida como verdadeira expressão do indivíduo e a foto entendida como um registro fiel do real: A fotografia é vista como uma aguda manifestação do “eu” individualizado, o eu recolhido a si mesmo e desabrigado, perdido em um mundo avassalador – que domina a realidade mediante uma rápida compilação visual dessa realidade. Ou a fotografia é vista como um meio de encontrar um lugar no mundo (ainda vivenciado como avassalador, alheio), ao ser capaz de relacionar-se com ele de modo distanciado – desviando-se das insolentes e inoportunas pretensões do eu. Mas, entre a defesa da fotografia como um meio superior de autoexpressão e o louvor da fotografia como um meio superior de pôr o eu a serviço da realidade, não há tanta diferença como pode parecer. Ambos supõem que a fotografia proporciona um sistema especial de revelação: que nos mostra a realidade como não a víamos antes (SONTAG, 2004, p. 135).

Sontag fala que fotografar é apropriar-se da coisa fotografada2. Essa relação imagética com a realidade funciona como uma interpretação do mundo, assim como a pintura e o desenho: manifestações visuais podem ser vistas como miniaturas da realidade que são feitas por todos e para todos. Uma das novidades desse mundo visual está na transformação da sensibilidade dos habitantes das grandes cidades industriais através do gosto artístico. A fotografia introduz um conjunto de valores que aproximam a lógica da indústria e a dinâmica comercial da percepção artística, numa adaptação das imagens aos princípios da nova realidade social. O papel de documento assumido pela fotografia decorre desse processo.

1.2 Caminhos teóricos Tirar uma foto é mais que registrar um evento. Além de significar um encontro entre a lente e o que passa por ela, o ato de fotografar pode invadir ou ignorar determinadas perspectivas: tudo depende do que o fotógrafo escolhe capturar. Essa escolha pode ser feita para que apenas o momento principal seja extraído da cena ou para fins de manipulação e edição posterior da imagem. A proliferação de câmeras nos eventos coti2

SONTAG, 2004, p. 14.


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dianos sugere que o tempo consiste de acontecimentos que merecem ser fotografados. Esses eventos, portanto, devem completar-se, para que a foto seja criada e o acontecimento, agora eternizado, ganhe uma espécie de importância que de outro modo não desfrutaria. A realidade eternizada na imagem nos faz pensar que o fotógrafo tem necessidade de estar fora da ação para aprisioná-la. Essa ideia compactua com a prática do fotojornalismo, que estabelece a câmera como um fator de isolamento do fotógrafo na cena. Segundo Susan Sontag, Fotografar é, em essência, um ato de não-intervenção. Parte do horror de lances memoráveis do fotojornalismo contemporâneo, como a foto do monge vietnamita que segura uma lata de gasolina, a de um guerrilheiro bengali no instante em que golpeia com a baioneta um traidor amarrado, decorre da consciência de que se tornou aceitável, em situações em que o fotógrafo tem de escolher entre uma foto e uma vida, opta pela foto. A pessoa que interfere não pode registrar; a pessoa que registra não pode interferir (SONTAG, 2004, p. 22).

Mesmo que a câmera seja uma espécie de barreira entre o observador e a realidade, o ato de fotografar não é meramente passivo. Tirar uma foto é manifestar interesse pelo que acontece e, de certa forma, estimular a continuidade da ação, para que a imagem seja devidamente eternizada e o próprio valor da cena seja alterado. Outra questão a ser considerada é a imparcialidade relativa da imagem, uma vez que as fotos são interpretações da realidade tanto quanto os desenhos e as pinturas. A visão fotográfica aprisiona o vestígio de uma fatia do tempo e o transforma em um objeto que pode ser guardado e olhado inúmeras vezes. O caminho percorrido pela cena desde o momento em que é vista pela lente até chegar ao produto final, a fotografia, possui várias sinuosidades. O momento do clique confronta coisa e imagem em uma relação física – a superfície da foto, quando revelada –, e essa fotografia pode significar tanto um produto do dispositivo fotográfico (ou seja, puramente técnico) quanto um efeito estético do processo fotográfico (construído pelas escolhas de enquadramento, perspectiva e iluminação feitas pelo fotógrafo). Partindo do ponto de vista estético sem descartar o aspecto técnico, temos em Rouillé: A imagem constrói-se no decorrer de uma sucessão estabelecida de etapas (o ponto de vista, o enquadramento, a tomada, o negativo, a tiragem, etc.), através de um conjunto de códigos de transcrição da realidade empírica: códigos ópticos (a perspectiva), códigos técnicos (inscritos nos produtos e nos aparelhos), códigos estéticos (o plano e os enquadramentos, o ponto de vista, a luz, etc.), códigos ideológicos, etc. Muitas sinuosidades que vêm perturbar as premissas tão sumárias dos enunciados do verdadeiro fotográfico (ROUILLÉ, 2009, p. 79).


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A nitidez e a precisão não são características exclusivas da imagem fotográfica. A semelhança entre as representações do mundo feitas pela pintura e pela fotografia ocasionou uma série de discussões que colocaram arte e documento em polos opostos. Ao contrário de uma pintura ou de uma escultura, a foto não se assemelha a algo inteiramente criado pelas intenções do artista. Como diz Sontag (2004), as fotos “devem, antes, sua existência a uma vaga cooperação (quase mágica, quase acidental) entre o fotógrafo e o tema” (p. 67). A chamada fotografia documental oferece um vestígio da realidade bruta e a contraposição dessa característica à liberdade criativa de um artista que faz nascer um quadro a partir de uma tela em branco impulsiona os questionamentos sobre as diferenças entre as duas visões. A legitimidade artística da fotografia foi reconhecida depois de um novo olhar direcionado aos crescentes usos e estudos de procedimentos fotográficos. Consideradas como uma mera ferramenta útil por bastante tempo, as fotos ganharam espaço em galerias e departamentos universitários, sendo, aos poucos, apreciadas pelo valor próprio e não pelos propósitos a que servem. Não se pode negar a importância do utilitário na fotografia, uma vez que ela fundamentou uma maneira moderna de observar o que nem sempre era visível no passado: monumentos longínguos, sintomas de uma rara doença de pele, o planeta terra visto de longe, perspectivas diferenciadas de grandes construções e o cotidiano de uma celebridade são exemplos de realidades supostamente distantes que chegaram às grandes massas por meio de imagens. Fica clara, portanto, a relação dessas funções documentais com o desenvolvimento da sociedade industrial. No decorrer da história, a tecnologia foi peça fundamental no trabalho de desenhistas, pintores e escultores, mas os vários dispositivos de impressão e outros periféricos nunca haviam substituído a mão do homem no processo artístico. Esse limiar entre arte e tecnologia foi transposto com a fotografia, que anunciou uma categoria diferente das imagens conhecidas até então. O vídeo, o cinema e a televisão também representam o progressivo – mas nunca definitivo – abandono dos métodos artísticos completamente manuais. Ainda segundo Rouillé, “enquanto os antimodernos lamentam que, assim, a imagem é privada da habilidade da mão, os modernos veem na mecanização o meio para incrementar a eficácia da representação” (2009, p. 33). Em se tratando do processo fotográfico, o autor aponta um erro nas duas vertentes: idealizar ou desprezar a técnica é


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recusar-se a encarar uma visão intermediária, que reconhece a aliança entre homem e máquina e considera arte e fotografia como dois segmentos conciliáveis. François Soulages traz uma citação interessante de Jean-Claude Lemagny, que complementa esse pensamento na discussão sobre fotografia documental. Em uma conferência3, Lemagny afirmou que “toda fotografia pode ser considerada sob o ângulo do documento ou sob o ângulo da obra de arte. Não se trata de duas espécies de foto. É o olhar de quem a considera que decide” (LEMAGNY apud SOULAGES, 2010, p. 159). Soulages explica que a postura do observador cria determinada expectativa que conduz a foto à esfera do documento ou da arte, e essa expectativa é diferente de uma declaração categórica que diz “isto é uma obra de arte” ou “isto é um documento”. Mesmo em fotos produzidas sem intuitos artísticos, por exemplo, o receptor pode legitimá-las como obras de arte através do aproveitamento de suas potencialidades. Deixar de considerar uma foto isoladamente e inseri-la em um conjunto é um dos passos que categoriza essa transformação e libera uma intensidade estética que pode estar presente na cena. Como afirma Deleuze (2012), “o que conta na imagem não é o pobre conteúdo, mas a louca energia captada prestes a eclodir”. É interessante observar os caminhos que levaram a ideia de sacralização do instante até a ampliação do momento do clique ao se considerar aspectos memorialistas envolvidos no processo fotográfico. Esses caminhos teóricos nos ajudam a perceber a importância do instante decisivo e as razões para que hoje se busque transcendê-lo. A objetividade da fotografia foi legitimada por muitas teorias ao longo do tempo. A substituição do olho humano pelo olho fotográfico – a lente – nos leva a uma citação de André Bazin (1945 apud ROUILLÉ, 2009, p.189), que diz: “Pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação, nada se interpõe, apenas um outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente sem intervenção criativa do homem, conforme um determinismo rigoroso”. Esses argumentos estão associados à teoria de Peirce4 e particularmente ligados à ideia de índice. Não se pode 3

Segundo François Soulages, a conferência Enrichir, conserver, communiquer foi realizada no VI Rencontres Photographiques en Bretagne, em 15-11-1987. O texto completo da conferência não foi publicado, mas podemos ter acesso a esse trecho no livro “Estética da Fotografia”, cuja referência é apontada na citação. 4

Charles Sanders Peirce foi um dos fundadores da doutrina semiótica. Ofereceu contribuições valiosas a muitos campos da ciência, incluindo química, matemática, física, astronomia, lógica, linguística e


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negar o mérito da noção indicial na classificação da fotografia em meio a outros signos: o conceito estabelece que a imagem fotográfica torna-se inseparável da sua experiência referencial. Esse pensamento foi defendido por Roland Barthes (1948), Rosalind Krauss (2012), Phillippe Dubois (1993) e outros teóricos que até hoje exercem papel fundamental nos discursos acerca da imagem. A teoria do índice suscitou a construção de um paradigma da fotografia a partir de seu aspecto técnico, que considera o instante do clique como elemento principal. É o funcionamento do dispositivo, a impressão luminosa e o mecanismo de registro que estão relacionados ao caráter indicial da foto. Muitos outros estudos aplicaram a lógica Peirceana à fotografia, mas é interessante perceber a desconstrução de alguns aspectos da teoria do índice no pensamento de André Rouillé. Na verdade, seria errado refutar totalmente a ideia de similaridade e contato que rege a relação entre a fotografia e o objeto fotografado, mas é válido observar certas nuances que enxergam o processo fotográfico de forma reducionista ao descartar contextos e dar atenção exclusiva ao instante do registro. Encontramos em Rouillé um pensamento interessante: Tais noções de marca, de impressão ou de índice tiveram evidentemente o mérito de distinguir, e bem, o status semiótico da fotografia em relação ao das imagens manuais, pois mostraram que a relação entre as coisas e as provas com sais de prata é tanto de contiguidade quanto de semelhança – e situaram a fotografia na conjunção de uma semelhança óptica com uma semelhança por contato. Mas tiveram a enorme desvantagem de relacionar as imagens à uma preexistência de coisas, das quais essas imagens, passivamente, só registrariam o vestígio (ROUILLÉ, 2009, p. 190).

A partir dessa noção que considera o instante do registro como elemento principal, é interessante observar uma vertente que analisa o processo fotográfico – e não o ato fotográfico, reduzido ao clique – de forma mais abrangente. Tendo como base os estudos de Bergson e Deleuze sobre percepção e memória, Rouillé continua a desenvolver a ideia de que a fotografia captura um vestígio da realidade, mas esse vestígio é acompanhado de outra realidade subjetiva, que está relacionada às lembranças e conhe-

filosofia. Na semiótica, Peirce vê o signo como um complexo de tríades. As categorias definidas por ele representam as três formas pelas quais os fenômenos surgem na consciência, são os modos de processamento sígnico que o pensamento desempenha na mente. A partir da maneira como esses signos se relacionam com seus objetos, Peirce classificou-os em ícone, índice e símbolo, que estão ligados à primeiridade, segundidade e terceiridade, respectivamente. À fotografia foi vinculada uma noção de rastro e de registro que está ligada ao índice, para distinguir, em essência, o que se verifica na pintura e no desenho, estes mais ligados à representação e ao ícone.


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cimentos prévios do fotógrafo. Temos, então, duas realidades que dialogam e resultam na imagem capturada pelo dispositivo. A maneira como a foto é interpretada por quem não estava presente no momento do clique também pode ser analisada sob essa perspectiva subjetiva, uma vez que a percepção de cada um também decorre da memória, e as imagens atuais podem despertar uma projeção do passado. A atualização em face da lembrança e o diálogo entre percepção e captação – ambas contendo inúmeras nuances – rende uma reflexão interessante sobre o instante de transposição do passado para o presente: “A captação, mesmo instantânea e às pressas, é um momento terrivelmente complexo de realização e de atualização simultâneas” (ROUILLÉ, 2009, p. 224). Além dos aspectos técnicos de escolha entre iluminações e enquadramentos distintos, a memória do fotógrafo intervém na imagem. Sobre essa dualidade entre as interpretações objetiva e subjetiva, temos: Quanto às imagens fotográficas, também elas acontecem no cruzamento de duas grandes vias divergentes: a via direta e objetiva da impressão material, e, simultaneamente, o percurso subjetivo, tortuoso, até mesmo inverso, da memória. O primeiro percurso causa uma realização; o segundo, uma atualização. Um é da ordem da repetição, da duplicação; o outro é diferença e criação (ROUILLÉ, 2009, p. 223).

Roland Barthes tornou-se, ironicamente, um dos principais autores lidos por aqueles que estudam a arte fotográfica. Segundo Rouillé (2009), mesmo que “A Câmara Clara” pretenda demonstrar justamente que a fotografia não é uma arte, o valor da obra está no vínculo entre a noção indicial da imagem e o modo pelo qual ela nos afeta sensitivamente. Ao diferenciar o punctum (o acaso que marca) do studium (interesse despertado pela significação da imagem), Barthes nos apresenta elementos que nos motivam a investigar aquilo que chama atenção na cena. A ideia de Barthes de que a fotografia é uma “mensagem sem código” repercute a busca pela essência da imagem. Ele reconhece que os códigos podem influenciar na leitura da foto5, mas prioriza a autenticação, o caráter de ligação com a realidade, o “isso-foi”. O problema desse conceito, segundo Rouillé, é deduzir que essa característica da fotografia define o seu aspecto fundamental. É fato que a imagem mostra o que estava na frente da câmera, mas isso constitui apenas o suporte material e temporal sobre o qual ela se estrutura. A fotografia deve ir além do instante que congela e eterniza as 5

BARTHES, 1984, p. 132.


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cenas, ela deve ser vista levando em consideração uma série de sinuosidades que conectam o clichê do presente a um salto no passado memorialista, que não separam a escolha de perspectiva do fotógrafo do conhecimento prévio que o levou a congelar aquele momento de uma maneira específica. Quando pensamos em analisar uma fotografia de acordo com a relação entre o referente e a imagem, considerando apenas o funcionamento do dispositivo, deixamos escapar inúmeras interpretações que nos ajudariam a entendê-la de forma mais completa. François Soulages problematiza a pergunta “o que torna específica a fotografia?” considerando a estética das escolhas, das recepções, das possibilidades. O autor reconhece a subjetividade envolvida nas condições de recepção de um sujeito, além de considerar também as inúmeras possibilidades de intervenção no momento de revelar um negativo, por exemplo. Assim, para uma análise mais sólida da questão, Soulages diz: Essa relação [entre o resultado e a matriz] é uma das características da fotograficidade: notemos que essa característica não remete a uma matéria qualquer, nem a um tipo qualquer de formas, nem a um ser qualquer, mas a uma relação que contém infinitas possibilidades; essa relação, em sua realização concreta, nunca provém de uma necessidade, mas de uma escolha que faz passar dos possíveis a um real, isto é, a determinada foto particular (SOULAGES, 2010, p. 129).

Outra questão interessante aparece no trabalho de Jacques Rancière. Em “O destino das imagens”, o filósofo apresenta o conceito de arquissemelhança, que dispensa a ideia de espelho e favorece “a relação imediata do genitor com o engendrado” (RANCIÈRE, 2012, p. 17). Rancière detecta um regime particular entre o visível e o dizível, concluindo que Barthes se apoiou numa equivalência entre o mutismo e a fala das imagens para compor a noção de referente. Estabelecendo uma objeção à ideia de que a fotografia seria “transparente”, temos: A fotografia não se tornou uma arte porque aciona um dispositivo opondo a marca do corpo à sua cópia. Ela tornou-se arte explorando uma dupla poética da imagem, fazendo de suas imagens, simultânea ou separadamente, duas coisas: os testemunhos legíveis de uma história escrita nos rostos ou nos objetos e puros blocos de visibilidade, impermeáveis a toda narrativização, a qualquer travessia do sentido (RANCIÈRE, 2012, p. 20).

É possível estabelecer diálogos e contrapontos entre autores que defendam ou subvertam a teoria do índice. A partir das leituras dos teóricos partidários do referente, da indicialidade e do “instante decisivo”, podemos problematizar as questões confrontando-as com pontos de vista que considerem outros elementos do processo fotográfico,


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rompendo as amarras do dispositivo fotográfico como um mero mecanismo de registro para expressar outras formas de interação entre fotógrafo e cena. Entretanto, sabemos que a teoria do índice serve de base para a maioria das reflexões sobre o processo fotográfico e não é difícil entender as razões disso. Não podermos negar que a ideia de “instante decisivo” é um dos nortes da fotografia-documento. O ato de capturar o essencial de um acontecimento em uma só imagem reafirma constantemente uma estética de transparência que é conveniente à reportagem, tanto por transmitir um vestígio do real como por chamar a atenção do leitor devido ao elemento marcante da cena. É interessante observar, também, que a preocupação com a composição é um elemento importante na sacralização do instante: a geometria do enquadramento correto, quando capturada no espaço temporal preciso, rende uma boa foto.

1.3 Sofrimento em imagens Sobre o vínculo do repórter fotográfico com o mundo, pode-se afirmar que a precisão das imagens serviu para retratar cenas de extrema miséria e dor. Com o objetivo de recuperar a essência dos acontecimentos sem correr riscos de sofrer acusações de exagero, muitos fotógrafos retrataram episódios que chocaram inúmeros leitores. Capturar essas imagens era, ao mesmo tempo, expressar a compreensão do sofrimento do outro e usar esse trabalho como mecanismo de denúncia, numa tentativa de transformação da realidade. Em “Sobre fotografia”, Susan Sontag fala sobre o horror de uma guerra na perspectiva do espectador: O primeiro contato de uma pessoa com o inventário fotográfico do horror supremo é uma espécie de revelação, a revelação prototipicamente moderna: uma epifania negativa. [...] Que bem me fez ver essas fotos? Eram apenas fotos – de um evento do qual eu pouco ouvira falar e no qual eu não podia interferir, fotos de um sofrimento que eu mal conseguia imaginar e que eu não podia aliviar de maneira alguma. Quando olhei para essas fotos, algo se partiu. Algum limite foi atingido, e não só o do horror: senti-me irremediavelmente aflita, ferida, mas uma parte de meus sentimentos começou a se retesar; algo morreu; algo ainda está chorando (SONTAG, 2004, p. 30).

A citação descreve a universalidade do sofrimento humano. Mesmo que não se tenha o poder de interferir em uma determinada situação de dor, o sentimento de solidariedade se manifesta devido ao apelo emocional dessas imagens. Por mais que haja um sentimento de impotência, seja por fatores geográficos ou políticos, uma foto de guerra


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consegue despertar a vontade de mudança através de um testemunho de horror. Essa mistura de voyeurismo e perigo que o repórter fotográfico vivencia ao estar em um campo de batalha munido apenas da câmera, e não de armas, faz com que ele se aproprie da dor dos outros e transfira essa dor para a imagem. Uma situação de guerra estabelece um mal-estar generalizado em uma sociedade. No entanto, o uso dessas imagens nos faz pensar em uma estetização da miséria. Essa abordagem do aterrorizante, muitas vezes contemplada pela arte, pode acabar modificando a moral em alguns aspectos. Em “Sobre Fotografia”, Susan Sontag discorreu sobre a possibilidade de uma imagem, ao ser repetida exaustivamente, deixar o observador impassível e acostumado ao grotesco, ao invés de causar comoção. A questão que se avalia não é apenas o transtorno provocado por uma imagem violenta, mas a capacidade de olhar as cenas aterrorizantes de modo naturalizado, devido à repetição. Posteriormente, em “Diante da dor dos outros”, Sontag muda de opinião, considerando que não levou em conta a subjetividade do observador e concluindo que nem todas as pessoas se tornam insensíveis diante da repetição de cenas de horror. A percepção do sofrimento em guerras que estão distantes do espectador é um processo construído por uma série de etapas. A explosão da cena trágica, a forma como a câmera registra o evento e o grau de compartilhamento da cena através da reprodutibilidade dessa fotografia são fatores determinantes para o impacto da imagem, seja no momento em que os combates acontecem, seja em contextos posteriores. Diferente dos relatos escritos, cujo alcance é restrito pela diversidade de idiomas, uma foto só possui a linguagem imagética. Assim, pode ser destinada a todos, sem prejuízos determinados na compreensão. O impacto dessas imagens pode determinar a visão da guerra entre pessoas que não presenciaram essas cenas: quando não acabam regidas pela apatia do observador, as fotografias podem motivar a opinião pública e a caçada de eventos dramáticos impulsiona ainda mais o duelo ideológico de uma situação desenhada por lados opostos. Ainda segundo Sontag, a quantidade de imagens produzidas pela televisão e pelo cinema é determinante no entendimento de um contexto de guerra, mas, quando se trata de fixar algo na memória, a fotografia exerce um apelo emocional maior. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma


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citação ou uma máxima ou provérbio. Cada um de nós estoca, na mente, centenas de fotos, que podem ser recuperadas instantaneamente (SONTAG, 2003, p. 23).

Esse ideal estético responsável pelo apelo visual de fotografias de guerra está diretamente relacionado aos valores mercantis alcançados pelas reportagens, uma vez que as imagens chocantes mobilizam uma quantidade maior de pessoas e, portanto, vendem mais exemplares de periódicos. É possível observar, também, a diferença entre a visualidade de uma imagem publicada em um jornal ou em uma revista. Quando veiculada para ilustrar uma grande reportagem de jornal, a cena de combate vem cercada de palavras que discorrem sobre o tema em questão, enquanto em uma revista há possibilidades maiores de a fotografia precisar dividir a atenção do leitor com algum anúncio chamativo na página vizinha. Em ambas as situações, o impacto da foto chega ao observador, mas é curioso pensar no nível de impacto alcançado pela fotografia dependendo do tipo de publicação. Mesmo assim, a questão do lucro não é a única envolvida no processo, uma vez que os fotógrafos também têm interesse em propagar seus valores políticos através das fotos. Tendo em vista a ininterrupta exposição cotidiana de imagens variadas, de que outra forma seria possível chamar atenção e provocar uma sensibilização mais profunda? A imagem chocante é o produto de dois aspectos que se aliam devido às circunstâncias: a conveniência do mercado e a necessidade de transmitir sentimentos impactantes em prol de uma causa política. Sobre o fator comprobatório de uma pretensa verdade através de imagens documentais, é interessante pensar em como as fotografias podem ou não atuar como argumento ou constatação de um fato. Sontag apresenta declarações da escritora Virginia Woolf sobre fotografia e complementa: Fotos, sustenta Woolf, “não são um argumento; são simplesmente a crua constatação de um fato, dirigida ao olho”. A verdade é que elas não são “simplesmente” coisa alguma e, sem dúvida, não são apenas encaradas como fatos, nem por Woolf nem por quem quer que seja. Pois, como ela acrescenta logo em seguida, “o olho está ligado ao cérebro; o cérebro, ao sistema nervoso. Esse sistema envia suas mensagens na velocidade de um raio através de toda a memória do passado e do sentimento do presente”. Esse truque de ilusionista permite que as fotos sejam um registro objetivo e também um testemunho pessoal, tanto uma cópia ou uma transcrição fiel de um momento da realidade como uma interpretação dessa realidade – um feito a que a literatura aspirou por muito tempo mas que nunca conseguiu alcançar, nesse sentido literal (SONTAG, 2003, p. 26).


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A questão da subjetividade inerente ao processo fotográfico desconstrói a ideia de imagem “vazia” e puramente indicial na medida em que considera aspectos memorialistas e interpretativos como definidores da fotografia a ser produzida. Quando se pensa em fotografia documental, é comum as pessoas preferirem imagens que não possuem, segundo Sontag (2003, p. 26), a “nódoa do talento artístico, tido como equivalente à insinceridade ou à mera trapaça”. Quanto mais distantes de preceitos artísticos, como uma iluminação melhor trabalhada ou uma composição criativa, maior autenticidade seria atribuída às fotos e, portanto, maior seria a coerência com os critérios documentais de objetividade e transparência. Outra característica importante a ser considerada é a dúvida sobre a autenticidade das fotos. Segundo Rouillé, a imagem verídica foi confundida com a fotografiadocumento por muito tempo. O filósofo afirma que o verdadeiro está na crença do verdadeiro, não no processo fotográfico. O verdadeiro não é uma segunda natureza da fotografia: é somente efeito de uma crença que, em um momento preciso da história do mundo e das imagens, se ancora em práticas e formas cujo suporte é um dispositivo. O verdadeiro da fotografia-documento se estabelece pela diferença na comparação, de um lado, com o verdadeiro da pintura ou do desenho, e, do outro, com o da fotografia artística. As formas fotográficas do verdadeiro tendem a confundir-se com as formas do útil (ROUILLÉ, 2009, p. 83).

Segundo a interpretação que prioriza a “verdade dos fatos”, a manipulação das fotos é outro fator diretamente ligado aos termos artísticos: acreditava-se que as imagens “cruas” seriam menos passíveis de fraude e de montagem, obtendo um tipo especial de autenticidade devido à ausência de elementos que denunciassem as escolhas subjetivas do fotógrafo ao documentar a cena. Não é de se espantar que algumas das imagens mais famosas que tematizam a guerra e o sofrimento estiveram sob suspeita de manipulação. A famosa fotografia “Morte de um Soldado Legalista”, de Robert Capa6, é um dos grandes exemplos de imagem emblemática cuja autenticidade foi duramente questionada ao longo dos anos.

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Endre (ou André) Ernő Friedmann é seu nome verdadeiro. Judeu nascido em Budapeste, no dia 22 de outubro de 1913, cobriu alguns dos mais importantes conflitos da primeira metade do século XX: Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Sino-Japonesa, Segunda Guerra Mundial, Primeira Guerra ÁrabeIsraelense de 1948 e Primeira Guerra da Indochina. O segundo capítulo deste trabalho traz mais detalhes sobre a biografia do fotógrafo e sobre a questão da autenticidade de “Morte de um Soldado Legalista”.


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É curioso perceber que o caráter emblemático de uma fotografia pode ser transformado de acordo com as interpretações dadas a ela. A memória pode estabelecer outras significações de acordo com a necessidade de representar um evento de maiores proporções em uma imagem de um fato específico. A foto do Miliciano Legalista, por exemplo, foi tirada durante uma pequena batalha em Cerro Muriano, ao norte de Córdoba, na Espanha.

Figura 1. “The Falling Soldier”, ou “Morte de um Miliciano Legalista”, de Robert Capa. Córdoba, 1936

O evento em si não representa uma batalha decisiva, mas a imagem de um homem prestes a cair no chão no exato momento de sua morte era algo inédito na época e carregou todo o peso significativo da crueldade fascista, da luta dos milicianos e das inúmeras outras mortes na violenta Guerra Civil Espanhola. Se pensarmos no impacto que imagens de ação nos proporcionam hoje, é possível destacar que algumas fotos de soldados podem até parecer um estímulo para a guerra ao invés de coibir atos de violência. Outro fator a se considerar é o apreço por fotografias amadoras em cenas de desastre. Essas imagens podem tornar-se memoráveis justamente por transmitir o ponto de vista de alguém “comum”, com o qual o espectador se identifica imediatamente. Isso só é possível devido a uma característica pertencente à fotografia e não a outros tipos de arte: o aprimoramento da técnica, a bagagem profissional e o acúmulo de experiência não significam necessariamente uma vantagem insuperável sobre outros fotógrafos amadores. É possível que um fotógrafo inexperiente consiga produzir uma imagem mais significativa e memorável que a de outro profissional com décadas de experiência. A


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força do acaso e a preferência pelo inusitado e pelo imperfeito em ocasiões específicas são alguns motivos pelos quais isso pode acontecer. Mesmo com a proliferação de coberturas mais intensas e próximas da cena – mudança permitida pelos avanços tecnológicos, que continuam a transformar a maneira de fotografar –, ainda são poucos os casos de renúncia à guerra por parte da sociedade civil. Para que um conflito bélico se torne majoritariamente impopular, são necessárias situações políticas e econômicas muito específicas. Sobre a função da fotografia nesse caso, Sontag (2003, p. 36) esclarece: “Na ausência de um protesto desse tipo, a mesma foto antibelicista pode ser vista como uma demonstração do páthos, do heroísmo, do admirável heroísmo, numa luta inevitável que só pode ter fim com a vitória ou com a derrota”. Sabemos que o fotógrafo não tem controle sobre o significado da foto: por mais claras que sejam suas intenções no momento do clique, as interpretações seguem o curso de quem observa o produto final. Mesmo assim, quando algum tipo de contraposição ao combate acontece, o material produzido pelos fotógrafos é essencial na provocação de uma comoção necessária, tendo em vista a demonstração das atrocidades cometidas em nome de uma guerra. O sofrimento do outro, mesmo representado em caráter simbólico e distante da realidade de outras sociedades civis, transforma-se em motivação para que a consciência política aflore e desperte alternativas que não envolvam armas na resolução dos conflitos entre povos.

1.4 Agência Magnum: uma introdução A facilidade de reprodução das fotos viabilizou a difusão de imagens ao redor do mundo. Na virada do século XX, os aparatos tecnológicos possibilitaram que os fotógrafos captassem os momentos mais fugazes em câmeras de pequeno formato7, que utilizavam negativos mais sensíveis. Com isso, o profissional estava apto a capturar a informação fotográfica, que passou a integrar as reportagens feitas para serem lidas e 7

O pequeno formato das câmeras daquela época é diferente do referencial que temos das câmeras pequenas de hoje. Na virada do século XX, a grande revolução fotográfica era o surgimento das primeiras Leicas de 35mm, que permitiam uma mobilidade nunca vista até então. É fácil entender a empolgação com a novidade se compararmos com as antigas câmeras-caixote construídas em mogno, que exigiam tripé e pesavam cerca de 20kg.


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olhadas ao mesmo tempo. A relação entre texto e fotografia no espaço do jornal fez nascer o repórter fotográfico, que tem a câmera como um prolongamento do próprio corpo e a discrição como postura básica, com a moral da reportagem preservada pela não interferência na cena. Depois que o equipamento fotográfico não mais necessitava de um tripé, o alcance das fotos e as possibilidades de novos enquadramentos e perspectivas cresceram significativamente. Em decorrência da facilidade em transportar câmeras e acessórios portáteis, a proximidade com a cena aumentou e as fotografias passaram a ser vistas como portadoras de um tipo especial de autenticidade, diferente da credibilidade de um relato escrito ou falado, por exemplo. É interessante perceber também que, junto com a mobilidade trazida pela tecnologia (as câmeras Leica de lentes intercambiáveis e os flashs se tornaram muito populares na época), agravaram-se os problemas decorrentes da comercialização de imagens. Os anseios dessa geração de fotógrafos deram origem à Agência Magnum, uma associação fundada em Nova York por Robert Capa, Cartier-Bresson, Maria Eismer, David Seymour, George Rodger, William Vandivert e Rita Vandivert. Além da questão financeira, fotografar era uma forma de transmitir o que sentiam e pensavam. Desprezando montagens e valorizando flagrantes e “instantes decisivos” – conceito criado por Cartier-Bresson –, essa estética trabalhava uma construção muito particular de identidades sociais, políticas, étnicas e nacionais. Com a postura contrária à que era exigida pela imprensa moderna nas reportagens superficiais, a agência foi criada na intenção de realizar trabalhos mais profundos. Esse comprometimento permitia que o fotógrafo estabelecesse um relacionamento mais intenso de trocas com o fotografado, num esforço para entender melhor a realidade que se apresentava na frente da lente. O grupo só se reuniu no pós-guerra, mas essa interpretação do ato de fotografar vinha amadurecendo ao longo dos anos que precederam a criação da Magnum, que em 2014 completou 67 anos e tem reunido alguns dos fotógrafos mais influentes do mundo desde 1947. A agência priorizava as reportagens de maior profundidade, com total independência dos fotógrafos na escolha dos temas, o que contribuiu para a visão de que a quantidade ou atualidade do material não são aspectos tão importantes quanto a qualidade da produção. Susan Sontag (2003), discorre sobre as intenções primordiais da agência:


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O propósito imediato da Magnum – que rapidamente se tornou o consórcio de fotojornalistas mais prestigioso e mais influente –, era prático: representar fotógrafos autônomos e aventureiros perante as revistas fotográficas, que os enviavam em missões jornalísticas. Ao mesmo tempo, o regulamento da Magnum, moralista a exemplo de outros regulamentos de novas organizações e associações internacionais criadas no imediato pós-guerra, preconizava uma missão ampla e eticamente árdua para os fotojornalistas: fazer a crônica de seu tempo, fosse este de guerra ou de paz, como testemunhas honestas, livres de preconceitos chauvinistas (SONTAG, 2003, p. 33).

A posse dos negativos e a devida atribuição dos créditos ao fotógrafo foram dois aspectos levantados pela cooperativa, que deve sua importância ao anseio por liberar os fotógrafos da tirania da imprensa da época. François Soulages também faz uma análise interessante sobre algumas agências de fotografia, dentre as quais está a Magnum. Ele fala do contraponto entre quantidade e qualidade das imagens divulgadas por esses fotógrafos e complementa: Com frequência, essas agências e seus fotógrafos têm consciência de que são trabalhados por contradições que podem ser enunciadas nos pares nocionais seguintes: quantidade / qualidade, comunicação / criação. Por um lado, a quantidade das fotos não pode caminhar junto com a qualidade, que impõe, obrigatoriamente, uma escolha, uma seleção e uma restrição. Por outro lado, a coabitação dos projetos de comunicação com os de criação constitui um problema. A comunicação pode de fato, muito facilmente, desembocar – voluntariamente ou não – na manipulação, na propaganda, na degradação e na mentira (SOULAGES, 2010, p. 33).

Para a Magnum, fotografia era uma atividade mundial e a nacionalidade do fotógrafo era, portanto, irrelevante. A arena de atuação era o mundo inteiro, sem amarras de filiação jornalística e sem o propósito de divulgar imagens manipuladas. O fotógrafo poderia ser de qualquer parte do globo, desde que manifestasse interesse em cobrir acontecimentos de interesse incomum, estando disposto a escrever sua vivência no idioma das imagens. Veremos mais detalhes sobre o contexto da criação da Magnum no segundo capítulo, que trata da biografia de Robert Capa.

1.5 Humanismo x Humanitário: estética e política na cultura visual Não restam dúvidas sobre a potencialidade da fotografia que aborda temas sociais e políticos. A percepção crítica une a técnica fotográfica ao engajamento diante de uma questão polarizada, e uma imagem passa a denunciar, por exemplo, a truculência de um combate. Entretanto, essa postura fotográfica não existiu desde sempre. É interessante perceber que a evolução do modo de fotografar através dos tempos corresponde à pró-


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pria evolução da ideia de homem. Podemos observar essa mudança de perspectiva quando se pensa o humanismo em contraponto com o humanitário nas fotografias. O humanismo, apreciado por Henri Cartier-Bresson, Robert Doisneau e Sebastião Salgado, por exemplo, priorizava temas como o trabalho, o amor, a solidariedade, a infância. Em um sentido amplo, temos o homem como ator principal da história. As fotos da estética humanista mostravam, antes de tudo, a vida. Do cotidiano às cenas de guerra, as pessoas fotografadas estavam trabalhando, repousando, lutando, em plena relação com o mundo e com as outras pessoas. Já o humanitário reflete as falhas do projeto moderno. São os excluídos da sociedade de consumo, vítimas da desigualdade econômica: sem trabalho, sem moradia, sem esperanças. São retratados em sua essência vazia, paralisada, conformada com a palidez da realidade e desconectada do restante do mundo, como se vivessem à margem da própria existência (ROUILLÉ, 2009, p. 146). Uma maneira de perceber a diferença entre essas duas posturas fotográficas é observar a profundidade de campo da imagem. Segundo Rouillé, A profundidade do campo e a sobreposição dos planos situavam os atores humanistas em seu contexto social e humano, e, na imagem, incluíam um horizonte de esperança e um delineamento de futuro; a fotografia humanitária adota geralmente pontos de vista próximos (a pornografia do plano muito próximo), que esmagam a perspectiva, que reduzem o campo externo e fecham toda promessa de saída (ROUILLÉ, 2009, p. 147).

Essa perspectiva reduzida e achatada do humanitário recorta o indivíduo e o separa do coletivo. Quando isolado da cena histórica pelo enquadramento neutralizado, pela proximidade do plano e pela ausência de jogos entre luz e sombra, o objeto fotografado se aproxima do que é retratado na televisão. Mas, ainda segundo Rouillé, isso não significa um empobrecimento total do ato de fotografar, mas expressa uma imagem “diminuída pelo sistema das mídias, atormentada pelo horror das cenas representadas, e fragilizada pela insuficiência de esperança.”8 Já a fotografia humanista apresenta contraste entre claros e escuros, cenografia e profundidade de campo, o que contribui para uma heroicização dos personagens. Os elementos de iluminação e composição conectavam o objeto fotografado a uma cena e a

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ROUILLÉ, 2009, p 147.


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um contexto. Mesmo em situações intoleráveis de crueldade e de violência, a postura do personagem nas fotografias humanistas era de luta, não de impotência. É possível observar um exemplo claro do que significou a postura humanista na cobertura fotográfica da Guerra Civil Espanhola. A batalha contra o fascismo ganhou uma interpretação, através das lentes, que a transformou em uma luta da humanidade contra aquilo que era brutal e desumano. As imagens mostravam os rostos e os punhos levantados dos republicanos, enquanto denunciavam a truculência de um inimigo que permanecia anônimo, mas se revelava através da destruição que suas armas causavam (HÜPPAUF, 1993, p. 64).

Figura 2. Soldados republicanos fotografados por Capa em cerimônia de despedida dos voluntários. Barcelona, 1938

Walter Benjamin (2012, p. 210) explica que apenas a guerra permite oferecer um objetivo aos movimentos de massa sem modificar as relações de propriedade existentes, considerando que “todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra”. Ao falar da argumentação dos futuristas sobre o assunto, Benjamin cita um trecho de um manifesto sobre a guerra colonial da Etiópia, escrito por Marinetti: A guerra é bela, porque conjuga numa sinfonia os tiros de fuzil, os canhoneios, as pausas entre duas batalhas, os perfumes e os odores de decomposição. A guerra é bela, porque cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques, dos esquadrões aéreos em formação geométrica, das espirais de fumaça pairando sobre aldeias incendiadas, e muitas outras (MARINETTI apud BENJAMIN, 2012, p. 211).


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Para Robert Capa, David Chim e outros fotógrafos esquerdistas da época, essa exaltação das batalhas não apenas estava completamente equivocada como precisava ser combatida. A luta contra a guerra transformou-se em perspectiva estética. O humanismo buscava singularizar as pessoas, mostrá-las como indivíduos plenos, em contraposição a um inimigo representado pelas máquinas e pelas armas. Essa arte politizada encontrou espaço em várias publicações de linha editorial definida, que apoiavam claramente as ideologias de esquerda ou de direita. Os jornais e revistas contratavam repórteres por afinidades políticas e solicitavam abordagens específicas nas pautas, o que poderia dar origem a um material panfletário, deixando uma tênue margem de separação entre uma reportagem autêntica e uma encenação. A foto do miliciano legalista feita por Capa foi amplamente divulgada em publicações de esquerda. O que representava uma situação específica – um soldado republicano sendo atingido por uma bala – acabou tendo um significado muito maior: o homem transformou-se em um mártir que representava todos os republicanos derrotados pelo exército de Franco, a cena transformou-se em um símbolo da luta contra o fascismo. Além de representar a forte carga simbólica da crueldade daquele conflito, a fotografia nos oferece um rosto para aquela guerra. Robert Capa escolhia pessoas entre a multidão e as humanizava através das fotos. Essa característica está presente no trabalho do fotógrafo ao longo de toda a sua vida. Na estética humanista, mesmo a guerra, a morte e a dor ganham rostos. Um instante específico pode ganhar ares de uma narrativa que ultrapassa o momento do clique e representa todo um contexto político, contribuindo para a construção de uma memória coletiva sobre aquele acontecimento. Esse papel de testemunha desempenhado pelo fotógrafo – que não apenas presenciava os combates, mas deixava claro que lutava pela paz – é importante não apenas na riqueza criativa e nas possibilidades de obter imagens marcantes. As fotos traziam consigo um poder de combate, algo que consegue influenciar opiniões, provocar debates políticos e seguir um fluxo que culmina em um inventário fotográfico de representação das atitudes, relações, posturas e sentimentos humanos. Este capítulo abordou uma série de questões sobre a fotografia como modo de produzir uma realidade. Ao trazer o ideal de verdade numa perspectiva que vai além da noção do “recorte do real” executado no instante do clique, apresentam-se os primeiros


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meios para considerar elementos históricos, políticos e sentimentais ao analisar uma fotografia. Vimos também questões referentes às fotografias de sofrimento e de guerra, às diferenças entre as estéticas humanista e humanitária, além de uma breve apresentação da Agência Magnum, cujo contexto de criação do ponto de vista de Robert Capa será explicado no capítulo seguinte. Na próxima parte do trabalho, teremos uma visão aprofundada da vida de Capa, considerando o trabalho de biógrafos e documentaristas que oferecem relatos obtidos em entrevistas, declarações e arquivos sobre a vida do fotógrafo.


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2. ROBERT CAPA Em sua trajetória para recuperar informações e reconstruir a biografia de Robert Capa, Alex Kershaw procurou depoimentos não apenas de quem conheceu o fotógrafo. Também foram entrevistados vários veteranos de guerra, soldados ou jornalistas, que estiveram nas mesmas batalhas fotografadas por Capa e sequer ouviram falar nele. Essas conversas com veteranos nos ajudam a visualizar a potencialidade fotográfica de despertar comoção, pesar, revolta e saudade em pessoas que jamais conheceram o fotógrafo, mas são capazes de sentir o que ele quis dizer ao capturar aquelas imagens. Alguns comentaram que, para obter aquelas fotos tão próximas da cena, era preciso querer muito documentar exatamente aquilo. Outros afirmaram não ter visto no trabalho de Capa “uma única imagem de violência, apenas momentos de beleza e tristeza” (KERSHAW, 2013, p. 21). Esses depoimentos nos instigam a traçar um paralelo entre a biografia de Capa, o resultado estético alcançado por ele e as motivações políticas que ele tinha ao fotografar.

2.1 O início em Budapeste: primeiras fugas e primeiros cliques Robert Capa nasceu em 22 de outubro de 1913, na cidade de Budapeste, tendo como nome de batismo Andre Ernö Friedmann9. Como primeiras experiências de vida, presenciou uma guerra mundial e habituou-se desde cedo aos constantes conflitos entre seus pais. Quando a Hungria entrou para a Primeira Grande Guerra, ele ainda não havia completado um ano. Deixou o país como refugiado político em 1931, mas até então presenciava brigas intensas e frequentes em casa, geralmente causadas pelo vício do pai em jogos de azar e suas recorrentes mentiras. Filho do meio, entre três homens, de um casal de judeus não praticantes de origem pobre, Capa enfrentou pela primeira vez o antissemitismo na ocasião de um golpe de Estado, que pôs fim à experiência comunista que se desenrolava na Hungria e colocou o almirante Von Horthy no poder, em 1919. Em uma sucessão de execuções e prisões que logo ficou conhecida como Terror Branco, as ruas de Budapeste foram varridas por pogroms, espécie de gangues organizadas com o propósito de atacar o que chamavam de traidores judeus. Numa onda antissemita que se espalhou rapidamente pela Europa Ori9

Friedmann, curiosamente, tem origem germânica e significa “homem pacífico”.


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ental, o governo húngaro ordenava a expulsão de todos os judeus que houvessem chegado ao país depois de 1914 (KERSHAW, 2013, p. 28). Entre vários golpes sofridos pela população – a ditadura de Horthy e a derrota na Primeira Guerra – um dos piores foi a redução das fronteiras. Com o Tratado do Trianon, parte dos acordos de paz de Versalhes no pós-guerra, a Hungria teve de ceder 70% do território e 60% da população para os aliados das partes vitoriosas. Segundo Kershaw (2013, p. 29), “o amargo protesto patriótico dos húngaros, ‘Nem, nem, solia!’ (Não, não, nunca!) ecoou por toda a juventude de André”. Conflitos sociais sangrentos entre esquerda e direita irromperam na Hungria no fim da década de 1920, e ao completar 16 anos de idade Capa já era um veterano desses confrontos, relacionando-se a outros jovens radicais de esquerda. Em uma das manifestações, o jovem Friedmann foi preso e espancado por um chefe de polícia. Na manhã seguinte, sua mãe recebeu uma ligação dizendo que André seria poupado de perguntas caso deixasse a Hungria em, no máximo, 24 horas. Ele fugiu, então, para Berlim, onde encontrou a efervescência cultural e política da República de Weimar. Levando adiante o interesse em ciência política, estudou jornalismo na Deutsche Hochschule für Politik, buscando lutar contra o fascismo com palavras (MAKEPEACE, 2013). Os primeiros meses não foram difíceis, mas a economia mundial estava sendo afetada pela Grande Depressão de 29 e logo o salão de alfaiataria dos Friedmanns10 começou a perder clientes. Longe de casa e sem dinheiro, André passou fome e foi despejado da pensão barata em que se hospedava. Depois de considerar a carreira de repórter, ele passou a levar a sério a possibilidade de ser fotógrafo. Segundo o próprio Capa, que falava alemão ainda de forma limitada na época, a fotografia era “a melhor possibilidade jornalística para alguém que não tivesse o domínio da língua”11 (CAPA apud KERSHAW, p. 36).

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Depois de casados, Julia e Dezsö Friedmann montaram um pequeno salão na região de Balvaros, em Pest, área comercial da cidade. O pai de André apresentava-se como mestre alfaiate, mas acabou se revelando mais interessado em usar os ternos elegantes nas noitadas de bebedeira e jogos de azar do que em trabalhar para fazê-los. Julia, por outro lado, costurava até as primeiras horas da madrugada para impedir que os filhos passassem fome. Ver KERSHAW, 2013, p. 27. 11

A citação de Capa foi recolhida por Kershaw em um arquivo do FBI, em que consta uma declaração juramentada feita em 1953 pelo fotógrafo.


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Ajudado por Eva Besnyö, uma fotógrafa de Berlim que era sua amiga de infância, conseguiu emprego como assistente na câmara escura da famosa agência Dephot, onde teve acesso a uma Leica pela primeira vez. Trabalhou como fotógrafo em pequenos eventos locais e, tendo sua paixão reconhecida pelos chefes, recebeu sua primeira tarefa importante: fotografar um discurso de Leon Trotsky. Ele não era o único a portar uma Leica no local, mas suas fotos foram consideradas as mais dramáticas. Segundo Kershaw (2013, p. 40), “embora estivessem longe de ser perfeitas, do ponto de vista técnico, suas imagens já ostentavam uma espécie de intimidade e intensidade que haveriam de se transformar em sua marca registrada”.

Figura 3. Discurso de Trotsky em universidade da Dinamarca. Essa foi a primeira cobertura de André 12 Friedmann publicada em página inteira, na revista alemã Der Welt Spiegel . Copenhagen, 1932

Alguns meses depois do discurso de Trotsky, nascia o Terceiro Reich. Com a ascensão de Hitler, a própria sede da Dephot foi fechada, pois era esquerdista. André, sabiamente, deixou a Alemanha e estabeleceu residência em Paris. Mais uma vez sem dinheiro, penhorava sua Leica enquanto alugava quartos não muito maiores que uma cama. Passava os dias no Café du Dôme, em Montparnasse, onde viria a conhecer dois grandes amigos, também fotógrafos: um calmo judeu polonês com óculos de fundo de garrafa, David “Chim” Seymour, e um normando burguês cuja família possuía uma das mais bem-sucedidas empresas têxteis da França, Henri Cartier-Bresson (KERSHAW,

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A página inteira da publicação está nos anexos. É interessante observar o conjunto da diagramação e perceber a força expressiva de Leon Trotsky, que André conseguiu capturar mesmo em seus primeiros trabalhos fotográficos.


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2013, p. 44). Iniciada nos cafés franceses, a amizade dos três fotógrafos renderia frutos durante muitos anos. 2.2 Gerda Taro e a Guerra Civil Espanhola: nasce Robert Capa André também conheceu em Paris outra pessoa que teria enorme importância na sua vida pessoal e na sua trajetória profissional: Gerda Pohorylles, também refugiada da Alemanha nazista. Os dois se apaixonaram em uma viagem que fizeram para o sul da França com amigos, no verão de 1935. A moça reconhecia o talento fotográfico de André, mas também sabia que ele era boêmio, indisciplinado e por vezes arrogante. Passou a repreender o exagero com a bebida e o descuido com a aparência, além de criar uma nova estratégia para vender as fotos dele para as revistas (MAKEPEACE, 2013). A biografia escrita por Kershaw traz a declaração do jornalista John Hersey sobre o episódio: André e Gerda decidiram criar uma associação de três pessoas. Gerda, que trabalhava numa agência de imagens, atuaria como secretária e representante de vendas; André prestaria serviço na câmara escura; e os dois seriam empregados por um rico, famoso e talentoso (além de imaginário) fotógrafo americano chamado Robert Capa, que na época supostamente visitava a França (HERSEY apud KERSHAW, 2013, p. 50).

Figura 4. Gerda Taro e Robert Capa fotografados por Fred Stain. Paris, 1936

Com o “renascimento” de André Friedmann como Robert Capa, as fotos eram vendidas pelo dobro do preço. Mesmo depois que a farsa foi descoberta, o fotógrafo continuou a usar o nome inventado por ele e Gerda13. Não demorou muito até que ele 13

Na mesma época, Gerda também decidiu se reinventar e adotar o sobrenome Taro. Um dos critérios de escolha dos novos nomes era o fato de ambos serem marcantes, ágeis e pronunciáveis em praticamente todos os idiomas. Para Whelan (1994), Robert Capa era um nome perfeito para alguém sem pátria. Na tradução do original: “was a perfect name for a stateless person”.


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fosse contratado por revistas e conseguisse, finalmente, ganhar dinheiro suficiente para fazer refeições regulares. Nessa época, a Liga das Nações e os tratados de paz de Versalhes começaram a ser desafiados por Hitler e Mussolini. Começou-se a ouvir o nome de um Generalíssimo Franco, que pretendia derrubar a democracia na Espanha. Com a chegada dos legionários espanhóis chamados “mouros” e o derramamento de sangue que ocorreria em solo espanhol, Capa teve a primeira oportunidade de combater o fascismo nas trincheiras usando sua Leica. Assim que souberam do que acontecia na Espanha, Gerda e Capa decidiram entrar em contato com seus editores para conseguir fotografar o conflito. Enquanto voluntários do mundo inteiro foram defender a democracia espanhola, o casal de correspondentes se arriscava para fotografar as batalhas de perto. Segundo Kershaw (2013, p. 56), “Capa estava entusiasmado com a causa anarquista. A antiautoritária e decadente negação de toda tradição, das regras burguesas, das leis e dos códigos morais por parte do movimento deixou uma impressão indelével no jovem fotógrafo”. Ainda segundo o biógrafo, a Guerra Civil Espanhola foi uma das experiências mais marcantes na vida de Capa. Foi nessa ocasião que surgiu uma de suas fotos mais famosas e uma das imagens mais polêmicas da história do fotojornalismo, The Falling Soldier ou Morte de um Miliciano Legalista (Figura 1)14. A imagem marcou o momento em que André Friedmann passou a ser de fato lembrado como Robert Capa, e sua fama de fotógrafo audacioso e disposto a chegar o mais próximo possível do combate começou a se espalhar pelas editorias das revistas e jornais de vários países. Também foi na Guerra Civil Espanhola que Capa teve uma das maiores perdas de sua vida: Gerda Taro foi morta enquanto fotografava, atingida por um tanque que havia perdido o controle. Kershaw conta o acontecimento a partir do ponto de vista de Bresson: Aos olhos de Henri Cartier-Bresson, foi como se um véu tivesse caído sobre Capa. O homem que afinal saiu lá de baixo seria, na visão dos outros, completamente diferente: cínico, mais oportunista que nunca, às vezes profunda-

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A polêmica sobre a autenticidade da foto considera várias possibilidades: alguns estudiosos argumentam que não temos como saber se o homem escorregou acidentalmente, se foi convidado a simular a queda, se foi arremessado depois de morto ou se realmente encontrou a morte no momento do clique. Richard Whelan escreveu um relato sobre toda a sua investigação do caso, entre conversas com a família do soldado que aparece na foto até consulta com peritos que analisaram a posição dos dedos do miliciano. Para mais detalhes, consultar o artigo Proving that Robert Capa's "Falling Soldier" is authentic, disponível nas referências bibliográficas.


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mente niilista, com medo de vínculos afetivos, permanentemente de coração partido (KERSHAW, 2013, p. 88).

O fotógrafo passou a mergulhar em trabalho para esquecer o luto. Suas fotos capturaram o horror da Guerra Civil Espanhola. Pouco tempo depois, Picture Post teceria elogios a Robert Capa em uma reportagem que dizia: “Os leitores assíduos da Picture Post sabem que não costumamos louvar levianamente os trabalhos que publicamos. Apresentamos estas fotografias simplesmente como as melhores jamais tiradas numa linha de frente” (KERSHAW, 2013, p. 106).

Figura 5. "Jure sobre estas letras, irmão. Antes morrer que consentir um tirano" dizia a inscrição no trem que levava os soldados para o front. Barcelona, 1936

Ele tinha apenas 25 anos e apresentara ao mundo o terror e a carnificina de uma guerra em uma proximidade jamais alcançada anteriormente por outro fotógrafo. O reconhecimento da potencialidade fotográfica de Capa assegurou a continuidade de um trabalho impulsionado pela condição de exilado devido ao antissemitismo, pelo desejo de divulgar os horrores das batalhas e pela necessidade de afirmar seu posicionamento político em um contexto de conflito ideológico. Enquanto Hitler triunfava na Europa, Capa cobria os bombardeios nas cidades tomadas pelo totalitarismo. Cobriu a guerra sino-japonesa e, nessa época, tornou-se uma celebridade.


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Algumas vezes enviado por revistas como Life, Time ou Fortune, viajou fotografando bombardeios e batalhas, mas nem sempre esteve imerso em situações de guerra: também fez reportagens sobre o cotidiano de crianças e até sobre o estilo de vida dos cowboys do oeste dos EUA, pelos quais revelou ter grande admiração ao relatar: “Eles são grandes, durões e saudáveis e se divertem com qualquer coisa que estejam fazendo. Eles realmente não dão a mínima para o que está acontecendo na Europa” (CAPA, 2001, p. 264). Em cada uma dessas viagens, Capa fazia amigos com facilidade e durante sua estadia em Londres apaixonou-se por uma moça de cabelos castanhos rosados, que apelidou de Pinky.

Figura 6. Vida dos cowboys no Novo México, 1939

Segundo os mais próximos, uma característica marcante e cativante do fotógrafo era a capacidade de misturar sotaques. Havia quem dissesse que ele falava “Capanês” (MAKEPEACE, 2003). John Steinbeck fala dessa curiosidade no livro Um Diário Russo, escrito em parceria com o fotógrafo: “Ele fala cada língua com o sotaque de outra: espanhol com sotaque húngaro, francês com sotaque espanhol, alemão com sotaque francês, inglês com sotaque ainda não identificado” (STEINBECK, 2010, p. 25). Entediado com reportagens que considerava superficiais, mas nunca abrindo mão das festas e bebedeiras que sempre acompanhavam sua rotina, Capa ainda desejava voltar a fotografar as batalhas que aconteciam na Europa. Na primavera de 1943, diria até


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logo a uma chorosa Pinky e partiria para a África. Ali enfrentaria o primeiro front de muitos que estavam por vir na Segunda Grande Guerra. 2.3 Segunda Guerra Mundial: “Es una cosa muy seria” Na edição de 1947 de “Ligeiramente Fora de Foco”, já nos textos de apresentação, o leitor recebe um alerta do próprio autor: “Por ser evidentemente tão difícil escrever a verdade, eu às vezes me permiti, a bem dela, ir um pouco além ou ficar um pouco de lado. Todos os fatos e pessoas incluídos neste livro são casuais e têm alguma coisa a ver com a verdade” (CAPA, 1947, apud KERSHAW, 2013, p. 122). Com seu ímpeto de escritor, Capa esclareceu logo no início que sua autobiografia não deveria ser tomada como um documento histórico comprometido estritamente com a total veracidade dos fatos, mas sim para gerar um roteiro de cinema interessante. Segundo Whelan, “a maioria das histórias do livro era perfeitamente verdadeira, mas o autor mudou o nome de algumas personagens principais, acelerou a sequência de alguns acontecimentos e mudou certos detalhes” (WHELAN apud CAPA, 2010, p. 18). Sabendo que os relatos do fotógrafo possuem esse intuito literário/cinematográfico, este trabalho se apoia nas palavras de Capa, mas busca checar e cruzar informações com a biografia escrita por Alex Kershaw e com o documentário dirigido por Anne Makepiece. Ambos tiveram como base o extenso trabalho de Richard Whelan, principal biógrafo de Capa e autor de diversos livros e artigos sobre o fotógrafo. Se alguns relatos dele podem não oferecer total credibilidade de nomes e fatos, não se pode negar que as palavras deixam clara a intenção de suas fotografias. No auge da Segunda Guerra, Capa estava inconformado em fotografar apenas os rastros de destruição deixados pelos nazistas. Ele queria voltar ao front. Os EUA entraram na guerra durante a estadia do fotógrafo em Nova York, e sua nacionalidade húngara transformouo em inimigo. Diante da dificuldade em conseguir um visto, ele explicou a situação em uma carta entregue ao cônsul: Escrevi que meu nome era Robert Capa; nascido em Budapeste; que o almirante Von Horthy e o governo húngaro nunca gostaram de mim e que eu nunca gostara deles também; que o consulado húngaro, desde a anexação da Hungria por Hitler, se recusava a dizer se eu era húngaro ou não; que enquanto Hitler dominasse a Hungria eu me recusava terminantemente a dizer que era húngaro; que eu havia sido criado por avós judeus de ambos os lados; e que eu odiava os nazistas e sentia que minhas fotos podiam ser úteis como propaganda contra eles (CAPA, 2010, p. 33).


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Com o visto concedido, Capa foi para a Tunísia acompanhar a tropa estadunidense como correspondente da Collier’s Weekly. As fotos tiradas nos primeiros três dias de batalha já foram suficientes para uma matéria15 que declarava o início da vitória dos aliados.

Figura 7. “O começo da vitória”, dizia a matéria da Collier's Weekly, publicada em 19 de junho de 1943

Acompanhar os regimentos em ataques aéreos era arriscado, pois os aviadores sofriam as maiores baixas dos aliados durante a guerra. A média de missões que os soldados enfrentavam antes de voltar para casa era entre 30 e 35 bombardeios. De acordo com estimativas consultadas por Kershaw (2013, p. 135), a proporção de sobreviventes não chegava sequer a um quarto do número inicial. Depois de uma ausência de cinco anos, Capa voltou à Europa ainda em 1943. Ele seria o primeiro fotógrafo a documentar a liberação (embora não tenha presenciado a invasão) da primeira grande cidade europeia: Nápoles. Visitou também a ilha de Capri, um dos poucos lugares da região que permanecia praticamente intocado pela guerra. Ele 15

Ver matéria completa nos anexos. Disponível em: http://www.unz.org/Pub/Colliers-1943jun19-00012. Acesso em 27/06/2014.


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havia saído da Collier’s e trabalhava como correspondente da Life. A viagem foi feita em companhia de George Rodger, fotógrafo da equipe, e nessa ocasião os colegas trocaram queixas sobre os chefes. Capa falou da vontade de se livrar das interferências dos editores e trabalhar apenas com as pautas que desejasse (KERSHAW, 2013, p. 145).

Figura 8. Robert Capa e George Rodger. Nápoles, 1943

Ainda na Itália, Capa produziu fotos para uma matéria cuja manchete dizia “É uma guerra dura”. As imagens chocaram os leitores da Life nos EUA e, no final da campanha italiana, Capa estava deprimido e com fadiga de guerra. Mesmo aliviado por deixar aqueles horrores para trás e ter um tempo de folga para rever Pinky em Londres, ele ouvia boatos de uma futura invasão ambiciosa planejada pelos aliados e se preparava para atuar novamente no front. No dia 6 de junho de 1944, às 4 da manhã, dois mil homens estavam parados em um convés, em silêncio. Junto com eles, centenas de navios partiram para batalha mais decisiva da Segunda Guerra Mundial: a invasão da Normandia, posteriormente conhecida como Dia D. Capa havia escolhido a missão mais perigosa daqueles dias: ele seria o único fotógrafo a acompanhar o desembarque dos primeiros soldados na praia de Omaha. Segundo Kershaw (2013, p. 157), “o desembarque mobilizaria 176.475 homens, 20.111 veículos, 1.500 tanques e 12 mil aviões” em uma das praias mais fortemente defendidas de toda a história, com inúmeros obstáculos letais na água e na areia. Hitler


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designou um de seus generais mais astutos para atuar na batalha: Erwin Rommel, conhecido como Raposa do Deserto. O próprio general inventou uma estaca longa, que batia na altura da cintura de um soldado e ficava coberta pela água na maré alta, com uma mina presa. Outras minas aquáticas, presas a cruzes gigantescas, foram espalhadas por todo o litoral para impedir a passagem de veículos anfíbios e tanques. Os obstáculos para os planadores ficaram conhecidos como “aspargos de Rommel”, eram grandes estacas fincadas em vários pontos dos campos, para impedir a aterrissagem (KERSHAW, 2013, p. 156). Capa estava em um barco com trinta outros homens, muito jovens e aterrorizados em sua maioria, e recebeu a instrução de manter a cabeça abaixo das amuradas do navio a qualquer custo. Alguns rapazes estavam há mais de 24 horas sem dormir e começaram a entrar em colapso, com crises de enjoo. Quando o fogo alemão alcançou a embarcação, Capa pulou na água e sacou uma das câmeras Contax que levava em um saco impermeável. Centenas de homens morreram a poucos metros dele nos primeiros minutos do desembarque. Enquanto ouvia o barulho ensurdecedor das bombas, Capa repetia palavras aprendidas na Espanha. “Es una cosa muy seria”, murmurava repetidamente o fotógrafo, sentindo o rosto se contorcer de medo e a câmera tremer nas mãos (KERSHAW, 2013, p. 159-160). O fotógrafo clicou incessantemente durante os 90 minutos em que ficou na areia. Acabado o filme, procurou outro rolo e suas mãos molhadas e trêmulas estragaram-no antes que pudesse colocá-lo na câmera. Com a Contax vazia na mão, percebeu que ninguém ao seu redor se mexia, era provável que só ele estivesse vivo naquela parte da praia. Viu, então, um barco da infantaria com médicos da cruz vermelha e correu em direção deles. Tirou algumas fotos do convés e pôs-se a ajudar os médicos, carregando macas (CAPA, 2010, p. 197). A praia de Omaha estava coberta de embarcações esmagadas, bíblias flutuando em poças ensanguentadas e incontáveis corpos de jovens estadunidenses. Depois de passar algum tempo ajudando os médicos e fotografando o que podia do barco, Capa desmaiou. Acordou nu, debaixo de um cobertor grosseiro, com uma etiqueta que dizia: “Caso de exaustão. Sem identificação” (KERSHAW, 2013, p. 163). O fotógrafo conta que, ainda na maca, conversou com um rapaz que também havia desmaiado. Aqui, percebemos como o sentimento de culpa se manifestava nos sobreviventes:


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No catre ao lado, havia outro jovem nu, os olhos fixos no teto. A etiqueta em seu pescoço dizia: “Caso de exaustão”. Ele disse: “Sou um covarde”. Era o único sobrevivente de dez tanques anfíbios que tinham desembarcado antes das primeiras levas da infantaria. Todos os tanques haviam afundado no mar agitado. Ele disse que devia ter ficado na praia. Eu disse que também devia ter ficado na praia. (...) Durante a noite, o homem do tanque e eu batemos no peito, cada um insistindo que o outro era inocente e atribuindo toda a culpa a si mesmo (CAPA, 2010, p. 197).

Horas depois, Capa ficaria sabendo que o único outro correspondente que conseguira permissão para fotografar Omaha tinha voltado duas horas antes, sem sequer ter saído do barco (CAPA, 2010, p. 198). Depois de enviar os filmes para a Life, recebeu uma notícia boa e outra péssima: suas fotografias tinham sido as melhores da invasão, mas o apressado assistente de laboratório, Dennis Banks, havia exposto os negativos ao calor por tempo demais e a emulsão dos filmes derreteu. O editor da revista, John Morris, estava em completo desespero quando analisava os contatos e concluía que apenas 11 fotos poderiam ser impressas e, entre elas, nove valiam a pena ser divulgadas (KERSHAW, 2013, p. 165). Ao todo, 6116 imagens foram destruídas, a maior parte daquele único registro dos piores momentos da invasão. Posteriormente, esse trabalho de Capa ficaria conhecido como “Os onze magníficos”.

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Figura 9. Dez das onze fotos remanescentes dos negativos de Capa . Normandia, 1944

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Há divergências sobre o número de fotos que foram perdidas. Em “Ligeiramente fora de foco”, Capa diz que, de um total de 106 fotos, apenas 8 se salvaram (CAPA, 2010, p. 198). No documentário dirigido por Makepeace, o número de 134 imagens é mencionado. Já Richard Whelan, na coleção definitiva de fotografias selecionadas em conjunto com Cornell Capa, escreveu que 11 imagens foram salvas e 9 publicadas, das 72 tiradas em situação de extremo risco (WHELAN apud CAPA, 2001, p. 362). O número dado por Whelan é reproduzido na biografia “Sangue e Champanhe”, de Alex Kershaw. Por confiar nos critérios de investigação de Richard Whelan, que foi acompanhado de perto pelo próprio irmão do fotógrafo e estudado por vários biógrafos posteriores, este trabalho segue os dados fornecidos pelos livros de Kershaw e Whelan. 17

Mais detalhes sobre as imagens de “Os onze magníficos” serão analisados no terceiro capítulo.


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Depois de Omaha, Capa poderia ter voltado para Londres em um avião, mas ele recusou a oferta e permaneceu com as tropas desde a invasão da Normandia até a entrada do exército aliado em Paris. Sobre a festa que viu na cidade-luz, o relato de Capa não escondia sua felicidade: Eu sentia que essa entrada em Paris havia sido feita especialmente para mim. Num tanque feito pelos americanos, que tinham me aceitado, rodando com os republicanos espanhóis, com quem eu havia lutado contra o fascismo tantos anos antes, eu estava voltando a Paris, a bela cidade onde eu aprendera a comer, beber e amar. Os milhares de rostos no visor de minha câmera foram ficando mais e mais borrados; aquele visor estava muito, muito, muito molhado (CAPA, 2010, p. 238).

Após a liberação de Paris, Capa retornou a Londres por um breve período e logo estaria de volta às batalhas. Dessa vez, as tropas lutavam dentro da Alemanha. Nos filmes que resultaram daqueles combates, havia imagens comoventes de soldados sendo cuidados à beira da morte e paraquedistas usando o mesmo corte de cabelo (em estilo “moicano”) antes de uma missão.

Figura 10. Paraquedistas com corte moicano, feito para dar sorte na missão de invadir a Alemanha. Arras, 1945

Durante o avanço dos aliados pela Alemanha, na fase final da guerra, Capa não queria cobrir a liberação de Leipzig – a cidade natal de Gerda Taro – nem a descoberta dos campos de concentração. Mesmo relutante, acabou acompanhando a infantaria em Leipzig “para ver se a última foto dos homens da infantaria agachados e avançando se-


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ria a última foto de guerra da minha câmera” (CAPA, 2001, p. 436) 18. Ele explicou a razão para não cobrir os campos de concentração: Os [campos] estavam coalhados de fotógrafos e cada nova foto daqueles horrores servia apenas para abrandar o efeito global. Agora, durante um dia ou dois, todo mundo verá o que aconteceu com aqueles pobres coitados nos campos; amanhã, muito poucos se importarão com o que lhes acontecer no futuro (CAPA apud KERSHAW, 2013, p. 194).

No dia 7 de maio de 1945, a rendição alemã foi assinada. No dia seguinte, a Europa comemorava a vitória dos aliados. A Segunda Guerra Mundial tinha sido o maior “palco” em que Capa atuara, já tendo combatido o fascismo por vários anos na Espanha, na China, na África e em praticamente toda a Europa. Com 32 anos, o fotógrafo despediu-se por um tempo dos conflitos armados e passou a trabalhar em Hollywood, quando teve um caso conturbado com a atriz Ingrid Bergman. Em questão de semanas, ficou extremamente entediado com a indústria cinematográfica. Cansado do ambiente social hollywoodiano e fugindo da possibilidade de casar-se com Ingrid – que já era casada com outro homem na época –, pôs fim ao romance em termos amigáveis e começou um projeto em conjunto com o escritor John Steinbeck. Dias antes do início efetivo dos planos, Steinbeck quebrou a rótula em um acidente doméstico e a viagem dos dois teve de ser adiada por várias semanas. Enquanto esperava, Capa resolveu finalmente montar a agência que planejava desde 1930.

2.4 Criação da Agência Magnum: revolução no mercado fotográfico Um dos maiores motivadores de Capa para a criação da agência era a convicção de que os freelancers precisavam se proteger de medidas exploratórias de empresas como a Life, “que não só havia posto a perder sua reportagem [a cobertura do Dia D] como tentara em seguida fugir à própria responsabilidade, botando a culpa nele” (KERSHAW, 2013, p. 223). Para isso, os fotógrafos deveriam obter os direitos de reprodução das imagens em caráter perpétuo, principalmente daquelas que poderiam ter valor muito

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A citação dessa declaração de Capa está no texto explicativo de Richard Whelan, que acompanha as imagens de Leipzig na coletânea definitiva de fotos lançada pela Phaidon Press. Livre tradução do original: “to see if the last picture of crouching and advancing infantrymen could be the last picture of the war for my camera”.


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significativo no futuro. Tendo a devida posse dos negativos e dos direitos de imagem, a relação de poder entre os fotógrafos e as revistas mudaria completamente. Em 1947, o anfitrião Capa promoveu um almoço – com champanhe à vontade – no segundo andar do Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York. Na reunião estavam presentes os fotógrafos George Rodger, David Seymour (Chim), CartierBresson, Maria Eisner, Rita Vandivert e Bill Vandivert. Vários profissionais de países, históricos e experiências diferentes estavam reunidos ali para assinalar o lançamento de uma cooperativa independente de fotógrafos, batizada de Magnum.

Figura 11. Chim, Capa e Bischof em reunião da Magnum. Paris, 1947

Segundo Kershaw (2013), o nome surgiu espontaneamente, quando uma garrafa magnum de champanhe foi aberta em uma reunião e alguém gritou “Magnum!”. Sobre a área em que cada fotógrafo iria atuar nas reportagens, o biógrafo explica que “Chim cobriria a Europa, Cartier-Bresson percorreria a Índia e o Extremo Oriente, Rodger se concentraria em sua querida África e no Oriente Médio e Vandivert atuaria nos Estados Unidos. Capa iria aonde quisesse” (KERSHAW, 2013, p. 224). As obrigações administrativas foram divididas entre os fundadores. A agência ficaria com uma porcentagem da remuneração das reportagens de seus membros, recebendo valores maiores ou menores de acordo com o tipo de venda. Outras agências já existiam na época, mas o diferencial da Magnum era a pretensão de reter os direitos autorais e dos negativos dos fotógrafos, além de assegurar que as imagens seriam publi-


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cadas com respeito ao contexto das imagens, levando os devidos créditos. Isso dava aos fotojornalistas a possibilidade de vender seu trabalho para mais de uma revista, por exemplo. Essa ousada exigência revolucionou a maneira como os fotojornalistas lidavam com grandes publicações. Capa agia como um garoto-propaganda cheio de carisma, seduzindo editores para vender as imagens da Magnum e estabelecendo contatos onde quer que fosse, para assegurar a renda que a agência precisaria para se manter (KERSHAW, 2013, p. 226). No documentário de Makepeace (2013), Cartier-Bresson relata: “controlar nosso trabalho é uma forma de ser respeitado. E não ser empregado ou uma ferramenta de grandes revistas. Isso era o principal da Magnum”. O primeiro grande cliente foi John Morris, que saíra da Life e trabalhava como editor de fotografia no Ladies’ Home Journal. Junto com Morris, os fotógrafos desenvolveram reportagens que percorreram vários países do mundo. Um dos trabalhos significativos de Capa no início da Magnum foi acompanhar o cotidiano de Pablo Picasso. Ele também percorreu a Europa fotografando estrelas de cinema e fazendo reportagens sobre a vida em resorts para revistas de férias (MAKEPEACE, 2013). Por representar os melhores fotojornalistas com trabalhos de alta qualidade, a reputação da Magnum aumentava consideravelmente com o passar do tempo. A partir de então, Capa foi reconhecido não apenas como um “lendário fotógrafo de guerra”, mas como um homem renomado e bem-relacionado na cidade (MAKEPEACE, 2013).

2.5 Últimas batalhas A tensão da Guerra Fria estava começando a se desenhar entre EUA e URSS quando Robert Capa e John Steinbeck se encontraram em um bar e decidiram, nas palavras de Capa, iniciar “uma antiquada investida à maneira de Dom Quixote e Sancho Pança – escondendo-se por trás da ‘cortina de ferro’ e voltando nossas lanças e penas contra os moinhos de vento de hoje” (CAPA apud KERSHAW, 2013, p. 222). A ideia seria escrever um livro sobre a verdadeira URSS, com atenção concentrada nas pessoas comuns, sem cair em análises políticas da situação do país. Mesmo sabendo que seria complicado percorrer a Rússia em um momento tão delicado, os dois conseguiram permissão para entrar no país, embora fossem acompanha-


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dos de perto por oficiais russos. Relatórios da Sociedade Ucraniana de Relações Culturais (UOKS) diziam que Capa deveria ser observado, “para impedi-lo de fotografar o que não deve” (KERSHAW, 2013, p. 223). Algumas fotos da reportagem também tiveram sua publicação impedida, inclusive pela própria KGB (SHILLINGLAW apud STEINBECK, 2010, p. 321). No livro, Steinbeck fala sobre como o fotógrafo se sentia ao sofrer censura: Sempre que se vê impedido de fazer suas fotos, Capa não consegue deixar de se lamuriar, e ali ele reclamou ainda mais, pois por toda parte distinguia contrastes e ângulos, e imagens impregnadas de um sentido mais amplo que o literal. ‘Aqui, com duas fotos, eu teria mostrado mais do que se poderia dizer com milhares de palavras’, lamentou (STEINBECK, 2010, p. 180).

Figura 12. Capa e Steinbeck antes de viajar para a URSS e no hotel em Moscou, 1947

Apesar do risco de expor a ditadura stalinista para olhos externos, a ideia de Steinbeck foi recebida com entusiasmo pela URSS: aquela era a oportunidade para os soviéticos apresentarem a Rússia como um país com produtividade e paz. “Um diário russo” foi lançado em abril de 1948 e recebeu inúmeras críticas, acusando Steinbeck de tratar um assunto sério de maneira superficial, já que o escritor não mencionou o racionamento nem o surto de fome que matou milhões de soviéticos em 1946 (KERSHAW, 2013, p. 234).


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Depois de relatar os últimos acontecimentos da viagem, Steinbeck termina o livro dizendo ter consciência de que “este diário de viagem não irá satisfazer nem a esquerda eclesiástica nem a direita rastaquera. [...] Não há dúvida de que é superficial, mas como poderia ser de outro modo?” (STEINBECK, 2010, p. 296). No posfácio do livro, a professora de literatura Susan Shillinglaw valoriza o trabalho de Capa e Steinbeck, enfatizando a importância de registrar com sensibilidade e bom humor aquele momento da história soviética, e propondo que o livro seja lido “pelo que é, e não pelo que poderia ser” (SHILLINGLAW apud Steinbeck, 2010, p. 322). Depois de deixar a URSS, Capa continuou trabalhando em reportagens para a Magnum. Apesar das várias críticas negativas, conseguiu vender algumas fotos em cores que fez na Rússia pelo alto valor de 20.000 dólares. O negócio foi intermediado por John Morris, que teve todo e qualquer ressentimento devido ao Dia D apagado por Capa a partir desse dia (KERSHAW, 2013, p. 240). Outra consequência da viagem foi o considerável crescimento do relatório sobre Capa nos arquivos do FBI. Em entrevista ao Herald Tribune em 1947, Capa declarou: “Essas pessoas haviam sido destruídas e feridas muito mais do que quaisquer outras que eu tenha encontrado em meus dez anos de campos de batalha, e odeiam a guerra mais que qualquer outra com quem eu tenha falado” (CAPA apud KERSHAW, 2013, p. 241). A repercussão das declarações do fotógrafo daria origem a vários outros relatórios que investigavam sua relação com o comunismo desde a década de 30. No início de 1948, Capa soube que um Estado judaico seria criado na Palestina. Ele estava bem próximo de Ben-Gurion, primeiro chefe de governo de Israel, quando ele se preparava para ler a Declaração de Independência israelense. Segundo Kershaw (2013, p. 248), “a guerra de independência de Israel era a guerra mais pessoal de Capa”. Entre desobediências ao cessar-fogo acertado pelas Nações Unidas e desentendimentos entre os próprios judeus sobre um carregamento de armas que chegava dos EUA, Capa viu uma batalha que lhe parecia inacreditável. “Judeus começaram a matar judeus à queima-roupa, em combates confusos e anárquicos. Todos os homens estavam vestidos de maneira idêntica, e nenhum estranho seria capaz de dizer quem estava atirando em quem” (BILBY apud KERSHAW, 2013, p. 254). Nessa batalha, pela primeira vez, Capa foi atingido por uma bala, que passou de raspão em sua virilha. Mais tarde, ele faria piada do acontecido: “Seria mesmo o insulto


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dos insultos: ser morto pelos judeus!” (CAPA apud Kershaw, 2013, p. 254). Depois disso, o fotógrafo declarou que ele e os outros integrantes da Magnum não cobririam mais guerras. “Eles foram longe demais, ou melhor, chegaram perto demais na Palestina. Não vou continuar registrando para a posteridade esses caras que ficam nesse joguinho” (CAPA apud KERSHAW, 2013, p. 255). Em uma viagem posterior que fez à Polônia, Tchecoslováquia e Hungria, Capa chegou a visitar Auschwitz, que já se transformara em museu. Kershaw descreveu o peso que Capa sentiu ao estar naquele lugar: Não longe de Auschwitz encontravam-se muitas terras desérticas que muitos guias, alguns deles anteriormente internados no campo, temiam percorrer. Pelo fim da guerra, os nazistas tinham decidido que as câmaras de gás não eram suficientes para acabar com os judeus com a necessária rapidez. Era mais barato e muito mais rápido simplesmente jogar cadáveres em gigantescas covas para em seguida queimá-los [...]. Os nazistas tinham entrado em tamanho pânico na fuga ante o avanço do Exército Vermelho, em 1945, que deixaram aberto um par dessas covas. Capa as encontrou cobertas de água. “Os corpos semicarbonizados ainda estão lá e a água continua borbulhando”, informava White [companheiro de Capa na viagem], “numa lenta fermentação. Quando nos debruçamos bem perto da água [...] podemos ouvi-la” (KERSHAW, 2013, p. 256).

O biógrafo de Capa acreditava que ele trabalhava em relatos superficiais de turismo e acontecimentos cotidianos por motivos emocionais: talvez não suportasse contar aos leitores que centenas de anos da cultura judaica foram eliminados e que não restava praticamente nada reconhecível de sua outrora encantadora Budapeste (KERSHAW, 2013, p. 257). Vale ressaltar que, embora extremamente sensibilizado com o holocausto, Capa não deixava de reconhecer o sofrimento dos palestinos com a criação do Estado sionista. Segundo Kershaw (2013), ele fez questão de entrar na parte de Jerusalém que ainda era comandada pelos árabes e pensou inclusive em um disfarce, mas foi impedido. Ao ser advertido que provavelmente seria morto se descobrissem que era um judeu disfarçado, concordou em conseguir fotos do setor árabe com um fotógrafo árabe para completar a reportagem que desenvolvia. Após a reportagem de Israel, Capa trabalhou em diversas histórias para a Magnum. Segundo os relatos dos colaboradores da agência, ele era um mentor que inspirava os fotógrafos e fazia o trabalho de alguém ligeiramente inseguro parecer “a mais glamourosa das missões” (KERSHAW, 2013, p. 263). Sempre generoso com o tempo de que dispunha, Capa orientava seus recrutas e conseguia extrair o melhor deles.


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Sem vontade de cobrir outra guerra, ele continuava escapando de ter uma vida normal e se fixar em algum lugar. Teve inúmeras namoradas, mas viu-se cansado de lidar com os problemas da Magnum e de precisar cultivar sempre a imagem lendária que criou ao longo dos anos. A depressão decorrente de todas aquelas batalhas lhe acompanhava, mas ele raramente dizia o que sentia. Suzy Marquis, a camareira de um dos hotéis em que ele costumava se hospedar, era uma das poucas pessoas que sabiam o quanto ele estava triste. “No fim, Bob não queria mais ir para guerras. Fora terrivelmente afetado, do ponto de vista psicológico, pelo que tinha visto – ele nunca falava disso com os outros, mas falava comigo” (MARQUIS apud KERSHAW, 2013, p. 289). Na última reunião da Magnum em que compareceu, Capa mostrou-se empolgado com imagens em movimento. Dizia que a televisão substituiria as fotografias e sugeriu que os colegas começassem a usar câmeras de filmagem (KERSHAW, 2013, p. 287). Antes que pudesse se encantar ainda mais com a ideia, ofereceram-lhe um trabalho no Japão. Após algumas semanas fotografando crianças e templos budistas em Tóquio, ele recebeu a proposta de substituir um correspondente que desistiu de cobrir a guerra francesa na Indochina. Apesar dos protestos do irmão Cornell e de John Morris, ele precisava do dinheiro e resolveu aceitar a oferta. Seria a primeira vez que Capa estaria do lado contrário ao que sustentou em todas as guerras que cobriu. Os editores da Life esperavam receber fotos da vitória francesa contra os integrantes do Vietminh (Liga pela Independência do Vietnã), ou seja, ele estava trabalhando em conjunto com quem se opunha fortemente à expansão comunista no Extremo Oriente (KERSHAW, 2013, p. 298). Mesmo trabalhando no lado francês, um dos fotojornalistas que esteve com Capa na Indochina relatou que “ele estava muito feliz pelos vietnamitas estarem vencendo. Muito feliz, assim como eu. Era uma sensação forte que tínhamos” (MAKEPEACE, 2003). Em 25 de maio de 1954, ele estava em um comboio com correspondentes para uma missão de última hora no Delta do Rio Vermelho, quando resolveu sair do carro e avançar um pouco pela estrada. Cinco minutos depois, ouviu-se uma explosão: Capa havia pisado em uma mina. Sua perna esquerda estava mutilada, ele tinha um ferimento no peito e segurava sua câmera Contax com a mão esquerda. Aquela região tinha estradas e rios minados em ambos os lados. Robert Capa foi o primeiro correspondente dos EUA a morrer naquela que viria a se tornar a guerra do Vietnã.


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Julia, Cornell, John Morris e os amigos mais próximos organizaram uma cerimônia simples em Nova York para enterrar Robert Capa. Julia não permitiu que o filho fosse enterrado pelo exército ao lado de militares, dizendo que ele “não era um soldado, mas um homem de paz” (MAKEPEACE, 2013). Após a morte do irmão, Cornell largou seu emprego na Life para cuidar da Magnum e da reputação de Robert. Bob Capa produziu mais de 70 mil negativos em incontáveis batalhas e cobriu cinco guerras em dez países diferentes. Sobre o legado do irmão, Cornell escreveu: “O que ele deixou foi a história de sua viagem sem igual e um testemunho visual afirmando sua fé na capacidade da humanidade de suportar e em última análise superar” (CAPA apud KERSHAW, 2013, p. 307).

Figura 13. Última foto em preto e branco tirada por Robert Capa. Nos passos seguintes, ele pisaria em uma mina terrestre. Estrada entre Namdinh e Thaibinh, Indochina, 1954

Neste capítulo, buscou-se uma imersão à biografia de Robert Capa tendo como fontes principais vários livros e um documentário sobre a vida do fotógrafo. Com todos os depoimentos, entrevistas e descrições de quem conviveu com Capa, pudemos traçar um panorama do que foi sua vida e observar de forma melhor fundamentada os motivos que ele tinha ao fotografar. Essas referências aos acontecimentos e sentimentos do fotógrafo serão essenciais ao próximo capítulo, que traz uma análise mais direcionada a algumas fotos tiradas por ele durante a Segunda Guerra Mundial.


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3. IMAGENS DE GUERRA: UMA ANÁLISE DA COBERTURA DE CAPA Ao dizer a célebre frase “Se suas fotos ainda não estão boas o suficiente, é porque você ainda não está perto o suficiente”19, Robert Capa evidenciou uma característica marcante de seu trabalho: inúmeras expressões apaixonadas e cenas fortes de vários combates foram capturadas em fotografias que documentaram acontecimentos cruciais e provações individuais. Para cumprir as exigências desse trabalho, era preciso estar perto da cena. Ao contrário de muitas expressões famosas ditas sem a pretensão de serem cumpridas, a máxima do fotógrafo foi levada muito a sério e influenciou a produção de muitos fotojornalistas que o sucederam, reforçando uma estética da proximidade ao fotografar com humanismo e envolvimento, estando o mais perto possível da ação. Neste capítulo, traremos 15 fotos tiradas por Capa durante a Segunda Guerra Mundial. Todas as imagens foram analisadas individualmente, mas algumas delas estão organizadas em pares – por motivos de comparação ou diferenciação de um mesmo aspecto – e outras estão unidas em um quarteto, pois mostram uma sequência da mesma ação. O recorte foi feito de modo a contemplar o registro dos civis e dos militares, em situações variadas, dos dois lados da guerra. Assim, busca-se alcançar um panorama não apenas sobre a cobertura do fotógrafo em termos técnicos, mas ter uma visão geral sobre o conflito, levando em consideração que o trabalho de Capa transmitia de forma marcante os sentimentos das pessoas que padeceram nas batalhas. Todas as legendas e informações sobre as fotos foram retiradas do livro “Robert Capa, the definitive collection”, organizado por Cornell Capa e Richard Whelan.

3.1 Olhar para os civis: diante da emoção e da dor dos outros Um dos registros importantes da Segunda Guerra foi feito em Nápoles, na Itália. Capa entrou na cidade no dia 1º de outubro de 1943, tendo como primeira visão uma infinidade de corpos caídos em ruas e praças. Em meio aos escombros e cadáveres, ele presenciou uma das cenas mais marcantes de sua trajetória: ao entrar numa escola, avistou o funeral de vinte crianças “com idade suficiente para combater os alemães e serem mortas, mas um pouco crescidas demais para caber em caixões infantis” (CAPA, 2010, 19

CAPA, 2010, p. 15. A frase foi citada na introdução (escrita pelo irmão, Cornell Capa) de sua autobiografia, que explicou muito de sua postura como correspondente de guerra.


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p. 147). Em uma situação de luto, Capa preferiu pensar na coragem das crianças, que haviam roubado rifles para combater alemães durante 14 dias. Os pés dessas crianças eram o meu verdadeiro comitê de recepção à Europa, para mim, que tinha nascido ali. Muito mais real do que as multidões que encontrei pela estrada gritando histericamente as boas-vindas (...). Apontei a lente para o rosto das mulheres prostradas, que carregavam pequenas fotos de seus filhos mortos, até os caixões serem finalmente levados embora. Aquelas eram as minhas fotos de vitória mais verdadeiras, as que tirei naquele simples funeral numa escola (CAPA, 2010, p. 149).

Na foto a seguir, as feições desesperadas das mães nos trazem um cenário de profunda tristeza e dor. No enquadramento feito por Capa, é possível distinguir 16 pessoas, que aparecem total ou parcialmente na imagem. Em todos os rostos, olhares tristes e sobrancelhas franzidas evidenciam o luto por garotos tão jovens.

Figura 14. A tristeza do luto estampada nos rostos das mães, que seguravam pequenas fotos dos filhos mortos. Nápoles, 1943

Capturar a essência de um acontecimento pelo viés emotivo é uma característica marcante no trabalho de Capa. Seja em casos de sofrimento ou de perseverança, vemos pessoas que nos despertam imediata empatia pela força no olhar, pelos gestos significativos. No posfácio de “Um Diário Russo”, Susan Shillinglaw cita Whelan e o próprio Capa para falar sobre o apelo emocional existente nessas fotos: “Longe de ser um voyeur impassível e comodamente entrincheirado em uma posição segura”, comenta seu biógrafo [Whelan], “ele se importava profundamente com o resultado da guerra contra o fascismo e estava sempre pronto a arriscar a vida para obter as melhores fotos”. “O que faz de Capa um grande fotojornalista?” indagou um repórter que cobriu, em 1998, a retrospectiva de sua obra. “Para nós, é patente seu apetite pela vida, sua mescla de urgência e


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compaixão [...] o impulso artístico de suas fotos sempre teve mais a ver com seu apelo emocional, sempre genuíno e profundamente sentido”. Ou, nas próprias palavras de Capa, uma grande foto “é um recorte de todo o evento que, para alguém que não estava presente, revela mais a verdade efetiva da questão do que o próprio evento como um todo”. (SHILLINGLAW apud STEINBECK, 2010, p. 311).

O vínculo do espectador com aquelas mães em luto acontece imediatamente. Seja pelas feições de raiva ou de tristeza profunda, é difícil permanecer imune à sensibilidade provocada pela imagem, mesmo que não se conheça as famílias e nunca se tenha passado por uma situação parecida. Capa tinha a capacidade de revelar essa potência emotiva da cena, obtendo como resultado uma imagem tocante, e a verdade contida nela não é uma pessoa ou um acontecimento, mas um sentimento. Ele conseguiu captar, em uma só imagem, a intensidade de uma dor sentida em qualquer guerra, por qualquer mãe que perde seu filho jovem. Outra parte importante da cobertura de Robert foi a liberação das cidades conforme o avanço do exército aliado. Após a vitória no Dia D, a entrada das tropas era recebida com a comemoração dos civis e a fuga ou prisão dos alemães que restavam.

Figura 15. Mulheres punidas por ajudar os nazistas e civis dando boas-vindas às tropas aliadas. Chartres / Paris, 1944

Logo que os aliados expulsaram os nazistas da pequena cidade de Chartres, na França, os civis fizeram o mesmo que os compatriotas em todo o país ao vivenciarem circunstâncias parecidas: reuniram e puniram todas as pessoas suspeitas de dar qualquer


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tipo de ajuda ou conforto aos nazistas. Mulheres tiveram o cabelo raspado e homens foram presos ou fuzilados (WHELAN apud CAPA, 2001, p. 392). Acima, na foto à esquerda, uma jovem francesa que tinha dado à luz a um filho de soldado alemão encara a câmera. Mesmo humilhada, ela não evita aparecer nem desvia o rosto, tampouco o faz a mulher que está ao seu lado. O olhar desafiador pode ter origem tanto na ideologia firmemente propagada pelos nazistas ou pela compreensível justificativa de alguém que fez o possível para sobreviver20. Já na foto à direita, um menino e um senhor participam de uma parada de recepção aos aliados, realizada na Champs-Elysées, em Paris. O deslumbramento do menino e a emoção do senhor diante da festa são claramente transmitidos pelo olhar dos dois. Capa tirou fotos da multidão, mas a alegria pelo fim da guerra também está nos sorrisos que aparecem nos retratos de poucas pessoas. Estejam do lado vencedor ou perdedor do conflito, as imagens mostram expressões fortes. Os civis não aparecem na condição de vítimas da miséria ou da violência, não perderam a vontade de viver, a essência que os faz humanos: são indivíduos que passaram por inúmeras provações e, apesar de tudo, sobreviveram para viver o início dos tempos de paz.

Figura 16. Fazendeiros alemães fugindo de sua casa em chamas. Wesel, 1945

Na imagem acima, vemos civis alemães fugindo da casa incendiada após a invasão do exército aliado. É interessante perceber que, embora tenha fotografado os dois 20

Também é possível que a moça da foto tenha sido estuprada pelos alemães, já que esse é um crime comum em tempos de guerra. Mesmo assim, o fato de ter tido um filho com um nazista parecia, nesse contexto, justificar a punição dos antifascistas.


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lados da guerra, Capa acompanhou de perto o exército invasor e vencedor, não esteve do lado que perdeu e foi invadido. Não se pode negar que as regalias e possibilidades de escolha do fotógrafo também tiveram como fator essencial a posição favorável do exército aliado nas batalhas, mas não convém, entretanto, prender-se a suposições de como seria um registro feito do ponto de vista de quem perdeu a guerra. Mesmo assim, é importante considerar o lugar do correspondente nas oposições de um conflito ao analisar seu trabalho. Com a chegada dos aliados na Alemanha, nas últimas batalhas da guerra, Capa fotografou centenas de soldados rendidos e inúmeros civis fugindo das próprias casas para escapar da captura. Não faltariam cenas comoventes para as lentes de Capa, mas os lugares mais terríveis daquela guerra não seriam clicados por ele: Robert recusou-se a cobrir os campos de concentração. Em entrevista para Kershaw, Judy Freiburg, que trabalhou como pesquisadora da Magnum na década de 40, descreveu a relação dos irmãos Capa e de Chim com o holocausto: Capa e Seymour [Chim] tinham escapado de Hitler e sabiam perfeitamente do que tinham escapado. Diariamente agradeciam a Deus por estarem vivos [...]. Eles tentaram superar de maneiras diferentes. Chim foi lá ver [o que acontecera aos seus, voltando à sua antiga casa no gueto de Varsóvia], mas Bob e seu irmão Cornell tentavam evitar. Não queriam se lembrar. Já que tinham sobrevivido, não queriam que seu nariz fosse esfregado naquela realidade (FREIBURG apud KERSHAW, 2013, p. 238).

Mesmo que consideremos o contexto histórico e acabemos caindo no maniqueísmo de considerar os alemães automaticamente como vilões, a foto acima vai além de julgamentos morais e mostra que a dor da perda chegou para ambos os lados do combate. Assim como o fotógrafo, mesmo sendo judeu, não deixou de se importar com o sofrimento dos palestinos com a criação do Estado de Israel, ele também não fechou os olhos para o sofrimento dos civis alemães, ainda que estivesse extremamente comovido com os horrores do holocausto.

3.2 Adrenalina, sangue e política: o lado dos militares Outra parte importante do trabalho de Capa aconteceu durante a ação das batalhas. No famoso Dia D, temos as fotos conhecidas como “Os Onze Magníficos”, consideradas um marco do fotojornalismo mundial. As legendas que acompanharam as fotos pu-


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blicadas falavam das mãos trêmulas de Robert Capa e de um resultado “ligeiramente fora de foco”.

Figura 17. Nas fotos acima, percebemos o quão perto Capa esteve dos soldados. Normandia, 1944

Das onze fotos existentes, quatro foram escolhidas neste recorte, levando em consideração diferentes momentos que nos oferecem uma visão geral da ação: na primeira imagem, o fotógrafo está logo atrás dos soldados, que correm em direção à praia. A ausência de um foco perfeitamente ajustado nos leva a pensar no movimento da câmera, na sensação de estar correndo, nas mãos trêmulas de medo. Essa perspectiva permanece na segunda imagem, que mostra um soldado avançando em meio a bombas e estilhaços na água. Na terceira foto, podemos perceber que Capa tinha mais estabilidade e que houve certa preocupação com a composição dos elementos, que aparecem mais nítidos. A quarta imagem está ligeiramente mais tremida que a anterior e o enquadramento não mostra elementos alinhados ou simetricamente distribuídos, percebemos que Robert não tinha tanta estabilidade. Neste momento, ele já estava mais próximo da areia, fotografando soldados que se protegiam enquanto tentavam avançar. É interessante pensar em como as imagens ligeiramente borradas acabam nos aproximando da perspectiva da cena. Em uma situação de extremo risco de morte, fotografias tremidas e fora de foco transmitem uma sensação de adrenalina mais real que imagens perfeitamente enquadradas e focadas. Essas fotos poderiam até ser considera-


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das ruins, se analisadas apenas na perspectiva de composição, foco e outros aspectos técnicos. O reconhecimento de “Os Onze Magníficos” como um trabalho grandioso vem através de vários elementos além das imagens: o momento histórico, a coragem do fotógrafo, a capacidade de nos transportar sensitivamente para a cena. É justamente a ausência de uma composição perfeita que nos aproxima da realidade de presenciar, por exemplo, uma bomba explodindo. Ernst Haas, um dos recrutas de Capa na Magnum, descreve um ponto de vista interessante sobre as fotos de seu mentor na biografia escrita por Alex Kershaw: Haas revelou-se particularmente perceptivo a respeito de Capa, observando que o fundador da Magnum buscava em seu trabalho gerar uma “poesia de guerra – uma poesia trágica”. Ele “se considerava antiartístico, antirreligioso, antipoético, antissentimental, mas eram suas mãos [que] realmente revelavam seu temperamento. Eram suaves e femininas, o oposto de sua aparência global, de sua voz, e assim por diante [...]”. Capa queria dizer simplesmente “eu estava lá”, e queria fazê-lo sem qualquer ideia de composição visual, para que realmente sentíssemos a realidade do acontecido. E não dá realmente para compor imagens quando se está saltando de paraquedas. É uma sensação, e ele criava esse tipo de sensação (HAAS apud KERSHAW, 2013, p. 264).

Ao nos oferecer uma aproximação com o medo e a adrenalina sentidos pelos soldados, as imagens do Dia D transmitem a bravura dos aliados em uma das missões mais marcantes da Segunda Guerra Mundial. Mas não foi apenas em cenas de combate que os recrutas apareceram, outra característica da cobertura de Capa era fotografar os soldados de baixas patentes, enfermeiros, médicos do exército. Generais e capitães também passaram pelas lentes de Robert, mas os chamados “praças” foram os que mais apareceram em suas fotos.

Figura 18. Um médico estadunidense trata um soldado alemão capturado. Sicília, 1943


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Um fato que determinou a postura de aproximação de Robert com os soldados aconteceu no campo de pouso de Chelveston, em 1942. Aviões do exército partiram para uma missão e Capa ficou em terra, esperando na torre de controle até que os aeroplanos retornassem. Um deles tinha feridos a bordo e, terminada a aterrissagem de emergência, Capa viu a cabine se abrir e um rapaz com ferimentos graves ser entregue aos cuidados dos médicos. Além dele, havia dois mortos e o piloto, que tinha sofrido apenas um corte na testa. Em seus relatos Capa conta que, no momento em que se aproximou para fotografá-lo, o piloto gritou: “− Eram essas fotos que você estava esperando, fotógrafo?”. Fechei minha câmera e voltei para Londres sem me despedir. No trem para Londres, com aqueles bem-sucedidos rolos de filme, senti ódio de mim mesmo e de minha profissão. Esse tipo de fotografia era para agentes funerários, e eu não gostava de ser um deles. Se eu tinha de participar do funeral, jurei, teria de participar da procissão (CAPA, 2010, p. 65).

Mais tarde, em sua autobiografia21, Ingrid Bergman diria que Capa era um homem “obcecado com imagens de morte” e com essa acusação do piloto. Insinuar que Robert não passava de um abutre insensível foi um insulto que deixou uma ferida em sua autoestima, algo que o acompanharia até o fim da vida (KERSHAW, 2013, p. 205). A decisão de acompanhar os combatentes mais de perto rendeu muitas partidas de pôquer, drinks compartilhados e fotos que mostravam os soldados descansando, procurando alguma maneira de esquecer a guerra, demonstrando humanidade além da bravura do front.

Figura 19. O cotidiano dos soldados de baixa patente também passou pelas lentes de Capa. Tunísia, 1943 21

BERGMAN, Ingrid; BURGESS, Alan. My Story. New York: Delacorte, 1980.


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Nas fotos acima, os pracinhas são vistos fumando tranquilamente um cigarro em uma trincheira e jogando pôquer. Capa esteve por perto durante os poucos momentos de descanso dos soldados e fotografou, além da coragem daqueles homens nas batalhas, a cordialidade existente entre os companheiros. Essas fotografias, quando publicadas em reportagens, contribuem para despertar a empatia da população com os soldados. A saudade de casa, o resgate momentâneo de pequenos hábitos dos tempos de paz e o desejo pelo fim da guerra são fatores que se unem à corajosa postura de arriscar a própria vida para derrotar o inimigo, considerado por muitos o mais nobre dos atos em tempos conflituosos. Segundo o próprio fotógrafo, um correspondente de guerra tem pagamento melhor e mais liberdade que os soldados, mas “nesse estágio do jogo, ter a liberdade de escolher com quem seguirá e ter permissão de ser um covarde sem ser executado por isso é a sua tortura” (CAPA, 2010, p. 183). Enquanto ainda cobria os combates, Capa já apresentava traços de estresse pós-traumático: niilismo, insônia, irritabilidade, alcoolismo, culpa de sobrevivente e depressão (KERSHAW apud NETO; RAMIREZ, 2009). Talvez influenciado pelo tormento da acusação daquele piloto e pela culpa que sentia, Robert escolheu não fotografar sob o ângulo da carnificina, mesmo presenciando inúmeros horrores nas batalhas. Inclusive em sua autobiografia, Capa não narrou episódios de forma sangrenta. Fossem civis ou militares, quem passou pelas lentes do fotógrafo não foi retratado de forma indigna.

Figura 20. Soldado na batalha de El Guettar, a primeira vitória decisiva sobre os alemães. Tunísia, 1943


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Na imagem acima, vemos um combatente solitário olhando o campo de batalha. Na composição, o descampado ocupa grande parte da foto. Mesmo diante da fumaça, que oculta parte do caminho, o soldado não apresenta postura de recuo e parece avançar. A foto transmite o ideal de coragem do exército, ferramenta frequentemente utilizada em propagandas, quando descontextualizada da realidade de terror que os jovens enfrentavam. Esse tipo de cobertura jornalística, que evidenciava os grandes feitos dos militares sem mostrar a real violência das batalhas, era criticado pelas próprias tropas. Robert não foi o único correspondente a ouvir acusações dos soldados. Em “Sangue e Champanhe”, Kershaw narra uma conversa que aconteceu entre um jornalista que trabalhou com Capa em Omaha, Ernie Pyle, e um praça depois de uma batalha: “Por que você não conta ao pessoal lá em casa como é isto aqui?”, perguntou um soldado, com raiva na voz. “Eles só ficam ouvindo histórias sobre vitórias e coisas gloriosas. Não sabem que a cada 100 metros que avançamos alguém morre. Por que não conta a eles como é dura esta vida?” (KERSHAW, 2013, p. 174).

Ernie explicou ao pracinha que tentava, sim, mostrar aos estadunidenses como a guerra era difícil em todas as colunas que escrevia. Colega de Pyle e Capa, Charles Wertenbaker também descreveu o horror dos combates: A guerra é solidão, e sozinho o homem pode ser uma criatura digna. Mas a guerra é medo, e a sujeira de tal maneira destrói essa dignidade que ele perde até a chance de ter uma morte digna. A morte em batalha raramente é aquela bala limpa e inesperada que mata um homem antes de seu rosto ficar distorcido de medo (...). É geralmente uma bomba ou uma rajada de balas de metralhadora se aproximando de criaturas vivas contraídas de terror no solo, e quando a morte passa não resta dignidade alguma nas maçarocas ensanguentadas na sujeira (WERTENBAKER apud KERSHAW, 2013, p. 176).

Diante de uma realidade extrema, podemos pensar na dificuldade de conseguir imagens e descrições que possuam intensidade sem tirar a dignidade das pessoas que padeciam nos combates, sem optar por registros detalhados de crueldade e violência. Analisando as fotos tiradas por Capa em diferentes momentos dos soldados na guerra, percebemos que o terror e o medo são transmitidos pela câmera trêmula que gera imagens fora de foco, a necessária distração e o companheirismo entre colegas está nos jogos de pôquer e nos cigarros compartilhados, a preocupação com os ferimentos está no olhar concentrado do médico que cuida de um combatente machucado. Kershaw fala dos artifícios narrativos usados por Capa para atenuar a realidade da guerra:


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Em suas memórias, Capa não faz menção a essas carnificinas. Em Slightly Out of Focus, ele apenas sugere os verdadeiros horrores da guerra. A franqueza dava lugar ao humor. A ironia mascarava críticas às táticas erradas. Na qualidade de não combatente, dolorosamente consciente de que podia escolher quando arriscar a própria vida e quando se proteger numa trincheira, ele tinha o direito apenas, segundo diria mais tarde a amigos, de sorrir ante uma fatalidade, dar de ombros a uma perda e seguir em frente para a próxima batalha ou o jogo de pôquer seguinte (KERSHAW, 2013, p. 189).

Capa acreditava que suas fotos poderiam influenciar um pacifismo na comunidade internacional e, já que seu trabalho era cobrir um conflito armado, definir seu posicionamento político nessa situação poderia inspirar a sociedade em favor da justiça. A luta de Robert contra o fascismo acontecia através das fotos, mesmo que ele não interviesse nas cenas que presenciava. Esse modelo de resistência de Capa estabelecia que a foto precisava ser apreciada como manifestação de repulsa a uma situação condenável pelo fotógrafo. Mesmo assim, ele raramente capturava imagens de mortos, pessoas com membros quebrados ou cenas sangrentas comuns nas batalhas. Como apontamos no tópico 1.5 deste trabalho, a postura de Robert Capa evidencia claramente uma ligação com o humanismo, que revela o cotidiano através de personalidades com pleno desejo de viver. Ao destacar um rosto entre a multidão da guerra e humanizá-lo, o fotógrafo cria uma aura de aproximação e de solidariedade, transmitindo uma atitude de luta e persistência que possui certo tom heroico, que transcende polarizações ideológicas e que independe de lados vencedores ou perdedores. Mesmo com olhares sofridos ou ferimentos aparentes, a tragédia não é colocada numa aura de conformismo: o que se sobressai no trabalho de Robert Capa, mesmo através do horror das batalhas, é o anseio pela paz. O cerne das fotografias estava em quem sofria com a guerra e sobrevivia aos combates, numa aproximação que permitia a cumplicidade e, pelo fato de retratar a vida em um cenário de morte, trazia maior apelo emocional aos leitores. Ao focalizar rostos e gestos, Capa permitia aos observadores experimentarem uma sensação de envolvimento, como se eles próprios estivessem subitamente presentes em plena guerra. Pode bem ter sido esse sentimento de urgência da situação que levou muitas das pessoas imunes aos argumentos ideológicos a contribuir com recursos para a causa ou tomar parte em manifestações políticas (WHELAN, 2000, p.11).


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Figura 21. Soldado nazista capturado pelas forças aliadas. Bastogne, 1944

O cerco de Bastogne foi lembrado como um dos momentos mais cruéis das últimas batalhas: foram semanas de luta intensa no frio lancinante da Bélgica. Na imagem, vemos de perto um soldado alemão rendido pelas tropas aliadas. Seu olhar e seriedade nos remetem ao desprezo que os nazistas sentiam pelos inimigos. Como analisa Whelan na citação acima, a sensação de envolvimento trazida pela foto desperta uma proximidade, nesse caso, com os soldados. Em um contexto de luta contra o fascismo, é possível sentir raiva do soldado alemão ou, no mínimo, intrigar-se com sua aparente perplexidade. Na fase final da Segunda Guerra, é interessante observar a relutância de Capa em cobrir Leipzig e sua recusa em fotografar os campos de concentração. No tópico 1.3 deste trabalho, fomos apresentados a uma ideia de Susan Sontag sobre o efeito de apatia desencadeado pela repetição excessiva de imagens. Em uma publicação posterior, a própria Sontag considera que nem toda repetição gera esse tipo de reação impassível, mas Capa pareceu compartilhar do pensamento contrário. Considerando que fotos excessivas de tragédias anestesiam o espectador, ele recusou-se a cobrir os campos por já estarem “coalhados de fotógrafos”22. Se a intenção de Capa era evitar o surgimento de uma paralisia política diante de tamanho sofrimento, as fotos de Leipzig foram consideradas “imagens sobre a inutilida22

Ver citação na página 47.


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de da guerra”. Em entrevista para uma rádio em 1947, o fotógrafo contou detalhes sobre o fato: Os alemães ofereceram alguma resistência, para nos impedir de atravessar. Havia um grande prédio de apartamentos de frente para a ponte. Então pensei: “Vou subir até o último andar e quem sabe consiga uma bela foto de Leipzig nos últimos momentos de combate”. Entrei num belo apartamento burguês em cuja varanda se encontrava um rapaz simpático – um jovem sargento que estava [preparando] uma metralhadora pesada. Tirei uma foto dele. Mas o fato é que a guerra acabara. Quem desejaria ver mais uma foto de alguém atirando? Estávamos há quatro anos tirando essa mesma foto, todo mundo queria ver coisas diferentes, e quando essa foto chegasse a Nova York a manchete provavelmente seria “paz”. De modo que não fazia o menor sentido. Mas ele parecia tão arrumadinho, como se fosse o primeiro dia da guerra, e muito sério. Eu então disse: “Muito bem, será minha última foto da guerra”. Levantei a câmera e tirei um retrato dele, e no momento em que o tirava ele foi morto por um franco-atirador. Foi uma morte limpa e de certa forma bela, e acho que é o que mais presente ficou em minha memória dessa guerra (CAPA apud KERSHAW, 2013, p. 195).

Figura 22. Segundo o próprio fotógrafo, essa foi uma das cenas que mais marcaram sua memória. Leipzig, 1945

O jovem soldado foi um dos últimos homens a serem mortos no batalhão que Capa acompanhava, um dos últimos aliados a padecerem naquele “louco e histérico desatino”23 da Segunda Guerra Mundial. O próprio fotógrafo considerava que, mesmo diante da repetição de cenas sangrentas, aquela era uma foto digna de ser lembrada. Como se 23

Essa definição “poética” da guerra foi dada por Steinbeck. Ver KERSHAW, 2013, p. 196.


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fosse o suspiro derradeiro antes do fim do horror, ali há o registro de uma morte limpa, de um rapaz concentrado em matar fascistas, de uma das últimas vidas a serem perdidas naquele conflito. Sobre a capacidade de marcar a memória dos civis e dos combatentes, Capa afirmou em sua autobiografia: ...consegui fazer algumas fotos muito boas. Fotos simples que mostravam o quanto o combate é de fato horrível e pouco espetacular. Furos dependem de sorte e de transmissão rápida, e a maior parte deles não significa mais nada no dia seguinte à publicação. Mas o soldado que olhar as fotos de Troina, daqui a dez anos, em sua casa em Ohio, vai poder dizer: “foi assim” (CAPA, 2010, p. 113).

Outra cena memorável vivida por Capa foi saltar de paraquedas com o exército aliado nas proximidades de Wesel, cidade alemã com potencial ferroviário estratégico. O avanço dos soldados estadunidenses em Wesel marcou o início da libertação da Alemanha e os passos seguintes culminaram na invasão de Berlim e na assinatura de rendição nazista. Naquele dia, Capa usou dois rolos de filme e capturou imagens tocantes, dentre as quais uma foto já mostrada no segundo capítulo deste trabalho, com vários paraquedistas usando o mesmo corte de cabelo no estilo moicano (Figura 10). Uma das mais marcantes mostra um campo árido e um céu coberto de paraquedas.

Figura 23. Exército aliado chegando à Alemanha por via aérea. Wesel, 1945


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Os militares que realizaram essa missão, batizada de “Operation Plunder”, enfrentaram fogo intenso ao pisar em solo alemão. Além do bombardeio e dos três mil aeroplanos que transportavam cerca de 900 recrutas aliados24, o ataque aéreo foi coordenado com o avanço por terra de infantarias britânicas e estadunidenses que atravessavam o rio Reno. Muitos dos soldados tiveram seus paraquedas presos em árvores, tornando-se alvos fáceis para os nazistas. A foto acima nos oferece uma perspectiva única, a mesma visão que os soldados tiveram ao aterrissar. Um céu cheio de paraquedas nos faz pensar sobre os segundos que antecedem o pouso e que abrigam os primeiros tiros ouvidos por alguém arrebatado pela adrenalina. Mesmo em situações assustadoras, Robert Capa demonstrava ter mais calma que os demais e chegava a tranquilizar os companheiros de batalha. Nos bombardeios, por exemplo, relatos dizem que ele ficava parado para fotografar enquanto as pessoas corriam. Em entrevista para Kershaw, Georges Soria descreve o comportamento de Robert em uma batalha da Guerra Civil Espanhola: Depois de um contra-ataque dos republicanos, Soria lembra-se de que Capa não se atirou ao chão para se proteger quando começaram a ser disparados tiros, mas ficou de pé “tirando fotos, como se nada estivesse acontecendo”, enquanto tanta gente ao seu redor era derrubada (KERSHAW, 2013, p. 68).

Capa se arriscou e esteve lado a lado com os soldados de cada companhia em todas as batalhas que presenciou. Seja participando de missões decisivas ou acompanhando os aliados na liberação de várias cidades da Europa, o fotógrafo fazia de tudo para estar o mais perto possível dos acontecimentos, mesmo que não pudesse atirar de volta em quem mirava em sua direção. Robert sabia o quanto a guerra é terrível e assumiu a tarefa de mostrar os efeitos dela em pessoas comuns. O resultado disso trouxe algumas das fotos mais marcantes da história do fotojornalismo, mas também agravou a depressão e a fadiga de guerra sentida por Capa. No final da Segunda Guerra, ele mostrava sinais cada vez mais frequentes de culpa e tristeza. Qualquer perda leva à introspecção. A certa altura da carreira de qualquer fotógrafo de guerra, sempre chega um momento de profundo autoexame. A bruma da cegueira é dissipada, seja pela perda da coragem ou pela constatação igualmente comum das probabilidades cada vez menores de sair ileso da 24

Ver mais detalhes na legenda escrita por Richard Whelan, que fala melhor sobre a operação em Wesel na coletânea de fotos de Capa (WHELAN apud CAPA, 2001, p. 426).


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próxima batalha. Pela primeira vez, talvez, desde a morte de Gerda, Capa começava agora a se preocupar com a própria vida. Tinha jogado carta após carta e sobrevivido, passando à rodada seguinte. Mas até onde poderia testar a própria sorte? (KERSHAW, 2013, p. 197).

Neste capítulo, buscamos enxergar em suas fotos os elementos que trazem à tona sua filosofia política, que era “democrática, igualitária, pacifista, semicoletivista, próoperária, antiautoritária e antifascista, com forte ênfase na dignidade humana e nos direitos individuais” (SHILLINGLAW apud STEINBECK, 2010, p. 301). Mesmo para quem nunca esteve em uma guerra, é fácil perceber essas questões motivadoras e compreender a angústia de Capa, que carregou sua culpa de sobrevivente e testou a própria sorte até o dia em que foi derrotado por uma mina terrestre.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Antes de se encantar pelas lentes, Capa queria ser escritor. Inicialmente frustrado, acabou conhecido como um dos mais importantes fotógrafos de guerra da história e presenciando a transição técnica e estética na fotografia dos maiores conflitos bélicos do século XX. Nesta monografia, conhecemos a conturbada biografia do fotógrafo e buscamos entender melhor os ideais políticos e os sentimentos que o levaram a construir essa narrativa fotográfica de grandes batalhas. Uma das principais questões que motivaram a definição do tema foi uma inquietação sobre a transparência na fotografia documental. Ela seria ou deveria ser isenta de qualquer interferência por parte do fotógrafo? Se não, como esse fotógrafo deixaria de ser “transparente” e passaria a transmitir sua identidade, seus sentimentos e sua opinião política através da foto? O caso de Robert Capa não permitia meios termos, as maiores guerras do século XX foram marcadas por intensas polarizações ideológicas e a postura dele diante da cena estava diretamente relacionada ao contexto político da época. Estudar o trabalho desse fotógrafo com o auxílio de declarações pessoais, documentário e biografias detalhadas me ajudou a entender a complexidade existente em cada clique. A condição de exilado por ter de fugir do fascismo, que se reflete inclusive no nome escolhido pelo fotógrafo25, e o claro posicionamento político definiram os passos de Capa. As características de sua personalidade determinam de forma decisiva o modo como ele retrata o que vê: os ângulos e as perspectivas escolhidas por ele refletem um olhar engajado em meio a um mundo em conflito. O clique enjaulado somente no aspecto documental, com foco e enquadramento previsíveis, foi explorado em outras possibilidades. As imagens tremidas e o olhar atento às expressões faciais de quem conhece a dor da perda foram resultado de uma interpretação política, poética e sensitiva da realidade. Essa visão que se compadece da aflição do outro – mesmo que esteja do lado oposto da guerra – somente se torna possível

25

O nome Robert Capa é pronunciável em praticamente todos os idiomas, perfeito para alguém que se considera sem pátria.


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em alguém que saiba reconhecer o sofrimento alheio e, além de senti-lo, tenha o desejo de acabar com ele. Capa sabia expressar a tragédia estampada no rosto de quem era ou não um partidário de Hitler, de quem simpatizava ou não com o comunismo, de quem estava apenas vivendo a própria vida, independentemente de ideais políticos. Ele concentrava-se no drama humano e fotografava primeiramente pessoas, não fatos. Com expressões extraordinárias em meio ao ordinário, a dor e a perplexidade ficam estampadas no rosto das pessoas em situações de caos e de extrema pressão. Vemos, no olhar de civis ou militares, indagações semelhantes: por que isso acontece comigo? O que eu fiz para causar essa dor que estou sentindo? Essas questões chegam até nós, observadores, por meio de uma linguagem universal, que independe de idiomas ou sotaques. A empatia que sentimos ao ver essas fotos nos faz pensar que o sofrimento é essencialmente humano: em tempos de guerra, a dor não escolhe partidos, classe social, idade ou sexo. Ao conhecer um pouco mais a biografia de Capa, percebemos que a carga emocional das fotos aumentava a cada combate, na medida em que as experiências com a guerra acumulavam: do adolescente rebelde que participava de protestos em Budapeste ao fotógrafo famoso por desembarcar na praia de Omaha com os aliados. Cada olhar marcante e cada braço estendido contam não apenas a história de quem carregou nas costas o fardo das batalhas, mas deixa transparecer os conflitos internos de um fotógrafo pacifista que soube transmitir a dor do outro com maestria. Em 2014, o Internacional Center of Photography (ICP) celebrou o centenário de nascimento de Robert Capa com exposições, publicação online de material exclusivo (incluindo uma entrevista radiofônica, único registro da voz de Capa26) e um site interativo, no qual fotógrafos do mundo inteiro poderiam recriar cenas fotografadas por ele27. Além disso, um longa-metragem intitulado “Close Enough”, que trará a vida de Capa ao cinema, está em fase de produção28. Através de todas essas iniciativas que continuam exibindo o trabalho de Robert, percebemos a relevância de suas fotografias, que permanecem como símbolos poderosos dos absurdos da guerra. 26

Disponível em: http://www.icp.org/robert-capa-100. Acesso em 13/09/2014.

27

Mais informações em: http://bit.ly/1v1LWZb. Acesso em 13/09/2014.

28

Ver notícia disponível em: http://glo.bo/1EzrPm4. Acesso em 05/07/2014.


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Mesmo depois de todas estas páginas, não podemos assegurar que a intenção de documentar a guerra para trazer a paz foi plenamente conquistada por Capa, uma vez que o mundo continua perdido em inúmeras batalhas que se arrastam ao longo dos anos. No entanto, não há dúvidas de que o resultado de seu trabalho transmite solidariedade e perseverança na luta pela vida, sentimentos essenciais em qualquer tempo e em qualquer guerra.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXOS ANEXO A – Primeira cobertura de Robert Capa (ainda mencionado como André Friedmann) em página inteira, publicada na revista Der Welt Spiegel, em 1932


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ANEXO B – Matéria publicada na revista Collier’s Weekly em 19/06/1943, que marcou o início da cobertura de Robert Capa na Segunda Guerra Mundial


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