Revista Entrevista nº 29

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ABRIL/2013

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Apresentação

Airton Barreto, Aurísio Gomes Cajazeiras, Gerardo Dimas Mateus, Francisco Everardo Oliveira Silva (Tiririca) e Andrea Rossati são os personagens desta edição da Revista Entrevista. A edição, a primeira do ano 2013, dá sequência ao projeto de entrevistas em profundidade iniciado em 1992 na disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso, sob minha responsabilidade. Ao todo, foram publicadas ao longo desse tempo 137 entrevistas, com um elenco de pessoas de vários campos de atuação. A primeira entrevista desta edição é com Airton Barreto, advogado com larga atuação no bairro Pirambu, área de pobreza acentuada em Fortaleza. Airton é respeitado pelo trabalho que faz em prol da erradicação da pobreza e em defesa dos Direitos Humanos. Trata-se de um ser humano da mais

alta respeitabilidade, conquistando aqueles com quem trava diálogo e impressionando pelo simples fato de ser a favor de vida digna para todas as pessoas. Já na segunda entrevista, o leitor se encontra com a história de Aurísio Cajazeiras, estudante de jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC) que lutou através da Lei de Anistia para ter o direito de conseguir concluir o curso após anos de afastamento devido à luta empreendida contra a ditadura militar de 1964\1985. É uma pessoa cuja personalidade impressiona e contagia a todos, principalmente pelo caráter ideológico com que enfrenta a vida. Gerardo Dimas Mateus é presidente da Associação dos Cantadores do Nordeste, 83 anos dos quais 50 foram dedicados à cantoria. Entusiasta da


cultura popular, ele não mede esforços para manter viva a cantoria e garantir melhores condições de vida e de trabalho aos cantadores. Simples e afetuoso ao receber quem visita a sede da associação, Dimas faz um balanço da vida, se emociona e provoca risos em função dos causos narrados. O deputado federal por São Paulo e palhaço Tiririca está na quarta entrevista da presente edição. Cearense de nascimento, Tiririca, que foi eleito de forma estrondosa nas eleições de 2010, já pensa em abandonar a política para se dedicar tão somente aos espetáculos de humor pelo Brasil. Inclusive, pretende voltar a morar no Ceará após cumprir o mandato. O leitor mergulhará na trajetória de vida dele, contada em detalhes entre risadas e ares circunspectos na entrevista realizada no Theatro José de Alencar.

A última entrevista é com Andréa Rossati, coordenadora da Diversidade Sexual de Fortaleza, cargo recentemente ocupado atendendo a um convite do prefeito Roberto Cláudio, do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Andrea faz um balanço da trajetória de vida dela e da luta levada a efeito para garantir a igualdade de direitos para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais no Estado do Ceará. Aos alunos e às alunas que participam deste número deixo o meu reconhecimento e a minha gratidão pelo envolvimento com o projeto e pela seriedade com que encararam a tarefa árdua de extrair dos entrevistados depoimentos ricos e relevantes sobre a vida de cada um. Ronaldo Salgado

Ronaldo Salgado é jornalista, professor e da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso. e idealizador da Revista Entrevista.


Expediente: Revista Entrevista é uma publicação da disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso, com edição e texto final dos alunos do sexto semestre do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará (UFC). Número: 29 Professor orientador: Ronaldo Salgado Projeto gráfico: Norton Falcão Edição de arte: Amanda Alboino Tiragem: 1.000 Impressão: Imprensa Universitária Fortaleza, abril de 2013 Avenida da Universidade, 2762, Benfica. CEP: 60020-180 Fone: (85) 3366 - 7708 e (85) 3366 - 7718 Site: http://www.dcs.ufc.br Email: coordcoms@ufc.br; publicidade@ufc.br


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AurĂ­sio Cajazeiras

Airton Barreto

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Tiririca

Dimas Mateus

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Andrea Rossati


Airton Barreto Advogado


// José Airton Paula Barreto

Quando o outro é prioridade: o tecelão de retalhos da existência que coleciona silêncios e alivia angústias Se não houvesse palavras, as próprias mãos se encarregariam sozinhas de construir os relatos. Os gestos de José Airton Paula Barreto denunciam o cuidado com quem está do lado, como quem toca o outro para se fazer presente a todo instante. As mãos do menino assustado com a quantidade de pessoas famintas na porta de casa são as mesmas que empunham os papéis que o permitem dizer ao mundo: “Sou advogado”. A fala enérgica se contrapõe ao olhar marejado, coisa de quem já percorreu diversos caminhos para descobrir que pertence ao lugar outrora desprezado. O adolescente envergonhado por morar na favela se transformou no homem que acumula conhecimento suficiente para ter uma vida confortável, mas abandona terno e gravata para oferecer tudo o que aprendeu no Direito sem ter nenhum retorno financeiro. Airton não aceita ter acesso aos privilégios que a profissão pode oferecer. Por que deveria ter bens luxuosos se existe gente passando fome? O advogado que não quis riqueza é o mes-mo religioso que não quis Igreja. Abandonou o seminário porque não conseguia rezar pelas almas famintas sabendo que estava de barriga cheia, vestia-se bem e ajoelhava-se num ambiente cheio de conforto. Para ele, enclausurar-se numa instituição religiosa não era suficiente. O ex-seminarista acredita em Deus, é inegavelmente um homem de fé. Mas quer agir ao invés de falar. Hoje o lar é o Pirambu – bairro pobre em Fortaleza –, a religião é a bondade, o amor é a partilha, o outro é maior que ele. Airton foi morar em casinha pequena para realizar atos grandes. O trabalho comunitário em defesa dos Direitos Humanos é um dos lados do combate à miséria da região. Não aponta o governo como culpado pela pobreza no Brasil, não faz discursos inflamados sobre a insuficiência de políticas públicas. Prefere doar-se, usar as próprias mãos para suprir as carências que não deveriam existir em um mundo de justiça e amor. As consequências da escolha trazem lágrimas, a violência sofrida nunca teria existido se o advogado tivesse

aceitado o estilo de vida que o anel de formatura lhe permitia, mas a tristeza fortalece o sentimento de estar no lugar certo. A força do pai, Hercílio, e a serenidade da mãe, Isa, resultaram na tenacidade de alguém que resiste às intempéries da vida por um propósito maior. Ele enfrentou a família e se envolveu numa aura de silêncios, porque calar também é falar. Através dos atos, Airton subverte nossa lógica cotidiana e estabelece valores que dilaceram uma infinidade de egoísmos e ambições inerentes à sociedade. Ainda assim, não gosta de ser visto como um herói. O “advogado no inferno do Pirambu” transparece como um personagem essencialmente humano, com toda a fragilidade e a beleza que a palavra pode trazer. Os sentimentos, assim como os conhecimentos jurídicos, são dados aos que precisam. Airton conta de Luiza e toma conta de uma infinidade de outros nomes, que recebem tanto carinho e atenção quanto a esposa, Jarlyne. A educação dos filhos é pautada pelos valores que compactuam com a igualdade, a partilha e a compreensão do drama do outro. Porque, se a realidade difícil é compartilhada, o amor também deve ser. Do futuro ninguém sabe. Os filhos podem permanecer no caminho do pai ou não, a vida no Pirambu pode mudar, a necessidade de migrar para outra comunidade pode aparecer, mas a grandeza que toca esses atos de generosidade plena é indubitável. Cada sofrimento aliviado muda um pouco de cada pessoa e faz Airton crescer, enquanto o mundo segue mais bonito pela marcha calma e decisiva do exército de um homem só. As mãos em gestos circulares tecem a colcha de retalhos da própria existência. Cada pedaço de tecido é uma angústia aliviada, um choro de agradecimento, uma pessoa ajudada. A linha de costura é guiada por silêncios e lágrimas, mas une cada pedacinho de gente num todo que é Airton. Se fragmentada fosse, a colcha deixaria de existir e a vida deixaria de significar. Mas temos sorte: Airton é um só, feito de vários.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Alissa Carvalho Camila Mont’Alverne Entrevistadores: Alissa Carvalho Beatriz Costa Camila Mont’Alverne Ed Borges Larissa Sousa Marcella Macena Marcello Soares Murilo Viana Thaís Brito Thamires Oliveira Fotografia: Raíssa Veloso Texto de abertura: Thamires Oliveira



Entrevista com Airton Barreto, no dia 29 de novembro de 2012.

Camila – Airton, na pré-entrevista, você falou da influência dos seus pais na sua formação e na sua opção de viver com os mais pobres. Queremos saber em relação à sua mãe, qual a influência dela na sua vida? Airton Barreto – A gente, às vezes, esquece das raízes, e elas são muito importantes. Da minha mãe, aprendi muito a coerência. Ela era uma pessoa muito coerente, simples, uma professora primária. E a gente só vai reconhecendo ou conhecendo melhor nossos pais quando o tempo vai passando, quando você vai amadurecendo determinados comportamentos... Eu acho que ela conduziu muito bem essa família. Então, minha mãe – nós somos filhos de Canindé, meus pais são de lá. Então, eu cresci vendo os dois lados da família. Do lado da minha mãe, os primos eram pobres, os pais dela moravam em casa de taipa, meu avô trabalhava nos Correios. A minha mãe era uma pessoa simples. Meu avô, por parte do meu pai, tinha o melhor hotel em Canindé (cidade do norte do Ceará, localizada a 115 km de Fortaleza. famosa pelas romarias dos devotos de São Francisco). Um dia, antes de eu morar na favela (em Fortaleza, experiência sobre a qual ele falará adiante), tive uma conversa com ela de filho para mãe e fiz algumas perguntas. “Mãe, o que fez a senhora conviver com meu pai a vida toda, um homem de um temperamento difícil?”. Meu pai era um homem muito amável, mas o que ele fazia com as mãos, era possível, em seguida, desmanchar com os pés. Ele não vivia dentro de casa, mas o pouco que vivia, a gente já percebia o temperamento dele. Amável, muito bom! Até diferente da minha mãe, era mais amável com a gente. Mas a gente sabia quando o temperamento dele podia mudar. Minha mãe convivia nessa família, com esse temperamento. Eu disse (na conversa): “Minha mãe, esse amor que a senhora tem pelo meu pai, o que foi que conservou (o amor) muito tempo? A senhora nunca demonstrou, em nenhum momento, querer correr com a carga”. E ela disse: “Meu filho, eu fui criada com muito amor. Meus pais eram pobres, nunca vi meu pai levantar a voz para minha mãe nem minha mãe levantar a voz para o meu pai. Eu fui muito amada, seu pai, não. Como é que seu pai

podia ser amável, se ele não teve amor dos seus avós (refere-se aos avós paternos de Airton)? Seu avô não tinha amor para dar ao seu pai. Ele era homem trabalhador”. Diz ela que, quando começou o namoro, na primeira semana, ele pegou uma cadeira e disse: “Sente aqui, que hoje eu vou dizer quem eu sou”. Eu imagino o que ele disse. “Meu filho, o seu pai me contou a história da vida dele. Me disse tanta coisa que se o que ele disse fosse dito por outra pessoa, eu não queria mais nem vê-lo. Mas quando você escuta uma pessoa com o coração, com dedicação, você cria um amor e um respeito por aquela pessoa. E, a partir daí, eu não tive dúvida de que era ele”. E eu pergunto: “E o temperamento dele já era assim?”. “Meu filho, eu fui para o casamento no cartório, fui chegando e ele disse: ‘Tenho certeza de que vou me casar porque estou no cartório, mas também tenho a mesma certeza de que ninguém é capaz de me amar’”. Isso é muito duro para um noivo ouvir, e ela ouviu bem jovem. E ela perguntou: “Por que, Hercílio?”. “Por causa do meu temperamento”. Ele já sabia disso. E ela disse: “Pois eu vou provar com a minha vida”. Ela disse que fez esse juramento na porta do cartório. Daí eu entender, no futuro, determinados comportamentos. Meu pai não bebia, mas no final de semana, com os amigos, bebia. Nunca tombava, mas quando ele bebia, ficava mais sereno. E eu lembro, num dia de domingo, que ele chegou (para o almoço), parou a moto, e eu vi que ele tinha tomado um pouquinho. Quando ele começou a comer, minha mãe disse: “Meu filho, por que você bebeu?”. Aí ele disse: “Vou voltar a beber de novo. Você sabe que eu não gosto que ninguém me repreenda”. Levantou-se em passos lentos e voltou para beber. Meus colegas, depois de grandes (diziam): “Dona Isa, quer dizer que, para um casamento dar certo, um tem que ficar submisso, é? Né, Dona Isa? Seu Hercílio vai cantar de galo e a senhora só aguentando as coisas”. E, às vezes, a gente não entendia. Tem pessoas que bombardeiam. E muitas respostas, ela dava no silêncio. Eu entendia a profundidade daquela mulher. Ela dizia: “O Hercílio, quando está zangado, é um avião desgovernado”. E ela sabia desses

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Quando Airton foi escolhido pela turma, Alissa e Camila logo se dispuseram a fazer a produção. No dia seguinte, Camila já tinha entrado em contato com o entrevistado, que topou na hora.

A pré-entrevista com Airton aconteceu no Centro Cultural Dragão do Mar. Depois, a equipe de produção entrevistou a família na casa dele e visitou a sede do Movimento Emaús Vila Vilha.


Airton foi tão solícito que ajudou a equipe de produção emprestando material sobre ele. Logo no primeiro encontro, ele levou livros e recortes de jornais, que foram repassados para o restante da turma.

Quando viu a equipe de produção na sede do Emaús Vila Vilha, conversando com Olga Ribeiro, uma das para-advogadas que formou, Airton falou, em tom de brincadeira: “Ah, vocês de novo!”.

comportamentos e como conduzir. Daí esse valor maior. Alissa – Você falou da principal influência da sua mãe, mas existe algum ensinamento, alguma lição que você tenha aprendido com seu pai? Airton Barreto – Com os dois. Meu pai trabalhava no DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Era homem trabalhador! Ele dizia que um homem sem ação não é homem. Eu me lembro que, em General Sampaio (município a 126 quilômetros de Fortaleza), com sete anos de idade, na seca de 1958, eu estava brincando com meus irmãos e chegaram de 40 a 60 homens. E um deles disse: “Vá chamar seu pai”. E eu fui o mensageiro e disse, acho que a expressão foi essa: “Papai, tem uma ruma de homem lá fora, querendo falar com o senhor”. E eu fiquei atento, querendo saber o que se passava. E ele vem. Quando ele chega, um deles toma a palavra e diz: “Seu Hercílio, estamos com fome. Queremos comida e trabalho”. Meu pai, na hora, não foi culpar o governo nem o Estado. Pediu calma, que sentassem e foi pra cozinha com minha mãe. E depois de uns 30 minutos, um pouco de tempo, me lembro de dois alguidares de barro com muito feijão com farinha, com torresmo, com rapadura e muitas colheres. Não tinha colher para todos, mas sei que um comia e passava para o outro. Era uma lição que eu aprendia com eles (os pais) e só vim entender mais na frente: que existem momentos na vida da gente que é mais grave fechar a boca que arriscar uma palavra. Precisa que ele diga alguma coisa, mas ele omite porque, se disser, vai se comprometer, vai se queimar. Mas se eu não me queimar, se tu não te queimares, se nós não nos queimarmos, quem é que vai ser luz pro mundo? A gente sente que tem

“Meu pai trabalhava no DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Era homem trabalhador. Ele dizia que um homem sem ação não é homem”

de fazer uma coisa. E ele mostrou, naquele momento, que, diante daquela realidade, era mais grave para ele ter fechado os braços e culpado alguém. Essa coisa me marcou. Camila – Airton, e como se deu a mudança para Fortaleza? Airton Barreto – Hoje eu faço uma retrospectiva: nasci em Canindé, fui para General Sampaio, para Cariús (na região do Cariri cearense, a 418 quilômetros da capital), voltei para General, e, por último, Canindé. Quando meus pais migraram para Fortaleza, foi para o Tirol (bairro que faz parte do Grande Pirambu), antes do quente do Pirambu. Eram umas casas do irmão dele (do pai), que tinha tido como herança e a gente ia ficar. Ele (o pai) ia continuar trabalhando no DNOCS, aqui no Centro. Só que quando eu abria a porta da minha casa, eu via o muro de uma fábrica. Foi um choque muito grande. Quem mora bem no interior, quando vem para Fortaleza, vai morar bem também. E para mim foi um choque. Eu já tinha uma pulga atrás da orelha porque, meus primos, que vieram para Fortaleza primeiro do que eu, quando voltavam, voltavam diferentes. Não queriam mais saber de grupo de jovens, de celebração... Essa coisa fica para os que estão. E eu pensava: “Que cidade é essa que muda as pessoas?”. Quando houve para mim essa mudança, foi muito duro. E eu escapei no seminário. Sempre digo que, se não tivesse ido para o seminário, talvez hoje fosse padre. Camila – Por que foi a desistência do seminário? Airton Barreto – Eu vi que não tinha vocação. Eu questionava muito as coisas. Minha mãe, às vezes, me chamava de profeta rabugento. Porque eu estava sempre procurando as coisas, procurava esclarecimento. Houve, então, essa mudança (para Fortaleza) por causa do trabalho do meu pai, e a gente tinha de acompanhar, claro. Mas houve esse choque. Thaís – Airton, você disse que se perguntava que cidade é essa que muda as pessoas. Avaliando hoje, como foi que Fortaleza lhe mudou? Airton Barreto – Ah, e muito. Eu fui acólito (membro da Igreja Católica que auxilia o sacerdote durante a celebração da missa), ajudava nas missas, coisa de Igreja. Tinha essa coisa muito presente em mim. A primeira coisa que eu comecei a sentir foi vergonha. Numa cidade como Canindé, todo mundo se conhece. Você tá lá jogando bola com os colegas e faz parte de um grupo. É comum, numa cidade pequena, as pessoas terem uma referência (da família). Então, o que me chocou na cidade, primeiro, foram

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os meus valores. Éticos, morais, religiosos. No interior, no mês de maio, minha mãe dizia assim: “Meu filho, vamos fazer as novenas”. E eu fazia, com as outras crianças. E a gente vai crescendo. Quando cheguei em Fortaleza, fizemos de novo as novenas. Pegamos dois cabos de vassoura, botamos uma caixinha de sapato, umas flores, Nossa Senhora e fomos para a favela do Pirambu cantar. Ave, ave, ave (canta). Rezar terço... E novena são nove dias, né? Do sexto pro sétimo, mamãe disse: “Agora vamos pro lado do Carlito (Pamplona, bairro de Fortaleza)”. Eu comecei a ficar estranho, porque o Carlito era onde a gente vivia o profano. Profano por quê? Porque lá tinham as tertúlias, as paqueras, as quermesses... Ia pra missa e depois da missa tinha o pátio, os flertes, essas coisas assim. Eu não ia dizer não para minha mãe e começamos a cantar no rumo do Carlito Pamplona. Quando eu olho, três amigos pra quem eu tinha contado uma anedota não fazia dois dias. Na minha cabeça tava: “Se esses três amigos me olharem aqui, vão dizer: esse cabra tá o quê? Contou aquela anedota ontem e hoje tá aqui? Ele é de Igreja?”. E isso me passava na cabeça muita coisa, e ainda bem que eu consegui escapar deles. Lá vem mais gente. E interessante. Na favela, você canta e não se toca... Mas, quando você chega em outro ambiente, isso lhe divide, e eu buscava essa coerência. Foi muito duro! Eu tive vergonha, e entreguei a ponta do andor pra outra pessoa. Saí de ponta de pé e deixei o barco passar. E isso me analisava: “Que tipo de pessoa era eu?”. Eu estava procurando minha identidade, eu não tinha minhas raízes? Nessa cidade grande, você corta, tufo (faz gesto de cortar algo), e começa tudo de diferente? Então, essa cidade grande me pegou pelo pé, pela fé. Essa cidade me mudou muito. Tem uma frase do Dom Helder Câmara (Ex-arcebispo de Olinda e Recife, nascido em Fortaleza, em 1909, e falecido em Recife, em 1999) que eu admiro, que diz: “Feliz da pessoa que entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo”. São interessantes essas mudanças. Porque, senão, você atropela, perde suas raízes, as suas origens, e isso vai distanciando você. Na cidade grande, você perde essa referência que eu falei no interior. Por exemplo: Você chega em Canindé e pergunta: “Quem é aquela menina tão bonita?”. E ninguém sabe quem é aquela beleza que está estudando fora, ninguém conhece. Mas se alguém disser: “É a filha do Getúlio, o homem que toca o sino...”. Então existem as referências. (Na cidade grande) se você mora num bairro

A casa de Airton fica em um local muito bonito, perto do calçadão do Projeto Vila do Mar, no Cristo Redentor. Ele tem vista para o mar sem precisar morar em um arranha-céu luxuoso.

pobre, é favelado. Na favela, é marginal. Aí você já é discriminado de vez. Alissa – Você disse, na pré-entrevista, que tinha vergonha de morar no Pirambu. Airton Barreto – Tive. Alissa – Teve. Por que essa vergonha e como foi o caminho até a aceitação? Airton Barreto – Por isso. Por que eu tive vergonha do Pirambu? Porque não conhecia sua história. Por que minha mãe amou meu pai? Porque conhecia sua história. Se alguém me convidasse para um aniversário, eu, jovem, ia. Às vezes, até dançava com a aniversariante. Mas se alguém me perguntasse: “Onde é que você mora?”. Eu ia dizer que era no Pirambu? Porque eu, como jovem, já descobri que os estereótipos são tão fortes que você se discrimina. Você começa a mentir. Eu dizia que morava no Monte Castelo, no Bairro de Fátima (bairros de classes sociais mais favorecidas em Fortaleza)... Onde eu tinha parente, que não era na favela... Para eu (me) sobressair. E essa vergonha veio porque eu não conhecia a história do bairro. Beatriz – Teve algum momento, alguma lembrança que lhe fez acordar para essa realidade? Airton Barreto – São muitas. Como eu sou muito de Igreja, eu acredito que parece que Deus brinca de esconde-esconde, nunca diz tudo de uma vez. Você tem uma missão, aquilo vai acontecendo, vai tecendo lentamente para você buscar essa coisa. Mas não era só não conhecer a história. Por-

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A equipe de produção conversou com o padre Henri, muito citado por Airton na entrevista. Infelizmente, o padre está com dificuldade para lembrar dos acontecimentos devido à idade.


Airton estava na sala ao lado enquanto a equipe de produção entrevistava Francisco das Chagas, outro para-advogado. Quando passou por eles, disse: “Chaguinhas, não vá mentir!”.

A sede do Movimento Emaús Vila Vilha fica próximo ao Rio Ceará. Do segundo andar, onde fica a parte administrativa e uma das salas do bazar, a vista é bonita, sendo possível ver o mangue e o mar.

que você pode conhecer uma história e se distanciar dela. Era, primeiro, a vergonha. Porque eu sentia na pele a discriminação. E isso era muito duro. Sentir que é discriminado. No seminário, eu percebia. “No final de semana, vamos pra casa do Ogeniz!”, um colega, lá não sei aonde. Quando eu chegava, era piscina, fazenda... Ia na casa de outro colega, o pai era dono de uma padaria... E eu me lembro quando o padre reitor ia na minha casa, era uma casa simples. Meu pai comprava um sapato pra gente, colocava uma meia sola para não gastar logo, e a gente ficava assim... Eu queria que meus colegas chegassem e vissem o que viam na casa deles. Ninguém quer ser discriminado. Você quer ser você. Eu vivia no seminário sem me abrir. Eu não me abro para eles, eles não se abriam para mim. Quando se abriam para mim, era contando vantagem ou coisas que eu via que era do mundo deles, e o meu era outro. Então, você se sente uma ovelha fora do pasto, e essa reflexão é muito forte. Por que eu me envergonhava dessa coisa? Porque não conhecia. Então, essa vergonha era muito forte. Foi só isso? Não. Eu dizia que não conhecia a história do Pirambu... Tudo quanto acontecia de ruim saía (nos jornais) nos finais de semana: “No Pirambu, três morreram numa gafieira”. E os estereótipos já nasceram daí. E dizem que o pessoal do Pirambu procurava a Igreja, a que fica na Marinha. Só que o Pirambu enchia a Igreja. E o Padre Hélio (Campos. Padre que, desde o final dos anos 50, assumiu a Paróquia do Pirambu) dizia: “O que é isso? Tem mais gente de fora do que da minha paróquia?”. “É o povo do Pirambu”. E ele foi lá, se tocou e foi morar no Pirambu. Ele foi conviver no Pirambu, e percebeu os problemas que aconteciam. E, em 1962, padre Hélio Campos e o Serviço Social (curso da Universidade Estadual do Ceará, UECE) fizeram uma passeata com 20 mil pessoas, trazendo o povo do Pirambu até o centro da catedral. É bom que até hoje eles cantam as músicas. “Vem ver, ó, Fortaleza,/ o Pirambu marchar./ Somos pessoas humanas, temos direitos que ninguém pode tirar./ Somos cristãos que não temem./ O Cristo é nosso ideal, e por ele,/ todos faremos a reforma social” (cantando). Quando disseram: “O Pirambu está no centro da cidade”, dizem que o comércio fechou – o jornal da época fala disso – temendo saques, com medo que fosse acontecer tanta coisa.... Houve uma articulação de transporte para conduzir o povo de volta. E uma comissão foi falar com o Governador (Parsifal Barroso, cujo mandato durou de 1959 a 1963). O pessoal entrou pela porta

da frente e o Governador saiu pela de trás. Na Prefeitura, do mesmo jeito. Retornaram ao Pirambu. No dia seguinte, o Governador mandou chamá-los. “Parabéns, que passeata! Que organização! Vinte mil pessoas! E o que vocês querem?”. “Nós queremos que o Pirambu seja olhado”. No mesmo ano, o Pirambu foi desapropriado por Decreto Lei, pela União Federal, para fins sociais. Houve uma intervenção federal no Pirambu. Desapropriaram e a União disse: “Já que a Igreja começou essa história, vamos dividir o Pirambu, e ficam duas organizações. Vamos chamar o Pirambu de Nossa Senhora das Graças, para tirar esse nome, e a desapropriação maior, de Cristo Redentor. Aí ficaram duas paróquias, e vocês vão assumir a responsabilidade do bairro”. Quando as migrações (da seca) chegavam, pessoas procuravam uma casa e iam procurar a Igreja. Tinha um setor da Igreja que fazia esse trabalho de alocar as famílias. Quando alguém ia vender uma casa, passava pelo conselho deliberativo. Só que o Pirambu, hoje, tem mais de 250 mil habitantes, uma superpopulação. Então a história é muito bonita. E eu não conhecia essa história. Essa história me ajudou? Ajudou. Mas foi o suficiente? Não. Quando eu comecei o trabalho nas pastorais, visitando as favelas, me toquei da miséria que vi. Jovem, filho do seu Hercílio – acho que isso tem muito a ver, porque como eu via as pessoas morrendo de fome, chegava em casa e a geladeira com tudo quanto é bom? Isso lhe toca! Você está com 60 reais no bolso e vê uma pessoa ali atrás de um real pra comprar um ovo para uma criança comer e você diz que não tem? Isso é duro! Acho que isso me tocou muito. Ia para a missa. Depois da comunhão, baixe a cabeça e fique em silêncio. Aí músicas... “Se ouvires a voz do vento,/ chamando sem cessar,/ a decisão é tua” (cantando). E eu pensava: “Que vento é esse?”. “O trigo já se perdeu,/ cresceu, ninguém colheu./ E o mundo passando fome/ passando fome de Deus” (cantando). E aquilo me tocava. Eu sentia que tinha de fazer minha parte. Aquilo me inquietava. Antes do casamento não tem o namoro? Eu, jovem, disse: “A gente toma um banho e vai assistir a um cinema. Você toma um banho e vai namorar... Por que não tomar um banho, vestir a roupa e ir visitar um pobre?”. E me deu na telha de eu fazer isso, não sei por quê. Lembro que tomei esse banho, coloquei a roupa e fui decretado: “Tenho de visitar um pobre”. Que pobre era esse, eu não sabia. Foi num dia de domingo, por volta de 15h30min, 16 horas. Gente, só o que não faltava, né? E eu

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fui andando, passando e subi num morro, o morro mais alto. Quando fui me aproximando, vi uma casa toda feita de lata e papelão. Não tinha piso, a cadeira era um toco, e fui bem acolhido por aquele pessoal. Disse: “Boa tarde”. Foi a história da Luiza. “Boa tarde”. Me acolheram. E perguntei: “Cadê sua mãe?”. “Minha mãe morreu”. “E seu pai?”. “Arranjou outra mulher”. “E quem é que cuida de vocês?”. “Somos nós”. “Nós quem?”. “Nós”. Aí eu fui contar e eram seis. E a líder, a que mais falava, era a Luiza. Pensei que ela tinha 11 anos, e tinha 18. Muito magrinha... Eu comecei a querer saber um pouco da história deles. Se fosse hoje, eu tinha mais perguntas mais profundas. Eram perguntas superficiais, mas com muita intensidade, porque eu queria saber. “Depois que meu pai arranjou outra mulher, minha vó cuidou de nós. E depois que ela morreu...”. “E os medos de vocês?”. E falavam sobre os medos. Ficou de noite. Perguntei se podia dormir lá. A visita foi mais, porque eu senti que tinha mais coisa. Em nenhum momento, eu vi eles dizerem não. “Mas, gente, o senhor vem?”. Fui em casa, peguei uma rede, disse para minha mãe que ia visitar uma amiga e voltei para essa casa. Eu mergulhei no abandono daquela família. E, não tenha dúvida, se não foi isso que me fez (morar na favela), contribuiu muito. Lembro que chorei, na época. Ouvi cada um deles. E a gente cantando nas Igrejas, dizendo que quando está o irmão morrendo, eu estou morrendo nele... Eu, que sempre fui esse profeta rabugento, via Deus como pai e aos outros como irmãos. E que irmão desunido é esse que eu tenho tudo e você não tem nada? Você ainda me chama de preguiçoso? E diz que eu não fiz por onde. Há uma coisa muito superficial em relação ao pobre (fala alterando o tom de voz). Uma vez, disseram ao padre Henrique (padre Henri Le Boursicaud. Padre redentorista francês, um dos fundadores do Movimento Emaús): “O senhor defende sempre o pobre, mas Jesus Cristo disse, no Evangelho, que pobre vai sempre existir”. “Mas não disse isso achando graça não. O pobre vai existir porque alguém vai tirar dele, de uma forma ou de outra. É um sistema que corrompe, que exclui”. Você quer estudar as árvores? Estude uma, que ela tem o conteúdo das demais. Eu não fui para tirar nota, eu não fui visitar aquela família para ganhar um dez. Era uma coisa minha de me descobrir no outro. Eu me vi naquela situação. E eu ainda tinha o direito de me envergonhar dessas pessoas? Eu tinha o direito de me envergonhar? “Onde você mora?” “Eu moro no lugar onde

as pessoas se mascaram. E eu não queria estar onde elas estão despidas, na realidade”. Essa noite me marcou profundamente. E criei um laço muito forte com essa família. Não era um laço de dar, era de aprender. Aprendi muito com Luiza. Quando você é de Igreja, é doidinho pra levar os outros à Igreja. Depois, a gente vai amadurecendo. Vi que tem pessoas de fora da religão que vivem melhor que quem vive na religião. E eu me lembro (que disse) uma vez: “Luiza, vamos pra Igreja! Vamos participar também”. Depois eu entendia que (ela não ia porque) era a roupa, não tinha o perfume... Até que ela foi, talvez, mais para me agradar. Depois de um mês, ela não foi mais. “Luiza, por que você não foi?”. E ela não dizia. “Pois escreva”. Ela escreveu, ainda hoje eu tenho. “Fui. Na hora do abraço da paz, só abraçavam os jovens cheirosos e bonitos. A mim, só pegavam na mão”. Ela era muito esquelética, muito magrinha, não tinha muita beleza. Porque a gente olha muito o superficial, não se aprofunda. E isso foi muito forte! Eu começava a questionar a minha Igreja também. E ela disse que sentiu que o lugar não era dela. Então, para mim, se não era dela, também não era meu, porque eu me sentia da família. Era meu, mas eu tinha acesso a como mudar alguma coisa. Pelo menos, me inquietar com eles por causa dessa situação. Se alguém me chamasse para um aniversário, ao final da festa, eu pedia para levar o bolo. Chegava lá, uma hora da madrugada, e não precisava nem abrir a porta porque a casa tinha muito buraco. E eles iam comer naquela hora. Lembro-me dos meus primeiros salários. Chegava lá (bate na mesa): “Luiza! Não precisa nem abrir a porta”. Pela brecha da porta, dava a partilha. Eu me comprometi com eles. E, um dia, eu tava passando na favela e Luiza disse: “Airton, vem

“Era uma lição que eu aprendia com eles (os pais) (...): que existem momentos na vida da gente que é mais grave fechar a boca que arriscar uma palavra”

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Uma semana antes da entrevista, a equipe de produção foi ao Passeio Público para saber se teria condições de realizá-la lá. Gentilmente, o Café Passeio emprestou mesas e cadeiras para usarmos.

Enquanto esperávamos a chegada de Airton, sob a copa das árvores do Passeio Público, uma das produtoras, Alissa, foi agraciada com um presente de um passarinho, que fez cocô na calça dela.


A esposa de Airton, Jarlyne, recebeu a equipe de produção em casa com muita simpatia. Disse que achava muito importante nos interessarmos pela história dele, porque, segundo ela, Airton é um homem fantástico, independentemente de ser marido dela.

De tantas idas ao Pirambu, que fica um pouco longe onde as meninas moram, no carro da Camila, até hoje Alissa deve um galão de gasolina para a colega de produção. Ela ainda jura que, um dia, vai pagar a dívida.

“Se eu não me queimar, se tu não te queimares, se nós não nos queimarmos, quem é que vai ser luz para o mundo?” cá!”. E eu: “Agora não, que eu tô liso. Depois passo aí!”. Depois de cinco, seis dias, eu chegava lá: “E aí, Luiza, tudo bem?”. E ela começava a chorar. “O que está acontecendo?”. E me fazia chorar também. Ela disse: “Sente aqui. Quando a gente chama você pra vir aqui em casa, não é só pra dar as coisas, não. É tão bom quando você dá aquelas coisas, Airton. Você não sabe como ajuda. Matar a fome quando a gente passou o dia sem comer nada. Mas a atenção que você nos dá, a sua atenção, a sua presença nos completa”. E eu: “Me desculpe, Luiza”. Esse aprendizado só acontece quando você se abre. Toda convicção é uma prisão. Se eu estou convicto de que sou um caridoso, a gente faz do outro um mito... Eu tava era me questionando. E a gente faz a defesa do outro. Eu fiquei atento à família. Chegou o menorzinho dizendo: “Airton, a Luiza tá se tremendo de febre”. Eu tinha de vestir uma roupa, arrumar o dinheiro do táxi para levá-la ao hospital. Uma vez, cheguei com ela ao Hospital das Clínicas e peguei a ficha número sete. E ela se tremendo de febre. Já estava com o pulmão contaminado (pela tuberculose), e eu não sabia. Eu não tive vergonha de pegar a Luiza. Talvez, antes, se eu não conhecesse a história, teria vergonha de segurar a pessoa enquanto o médico chega. Parou um carro do ano, duas mulheres bonitas e bem cheirosas, com perfume bom, ou era esposa ou irmã do médico. Chegou e disse: “Tem alguém com ele aí?”. Fulano disse: “Tem”. “Pois quando sair o paciente, vou entrar”. E eu pensei: “É família...”. Aquelas duas senhoras chamaram atenção dos sete que estavam na fila. Elas começaram a conversar. Eu me lembro que ela conversando, conversando, e fui vendo que a história dela era parecida com a minha, quando eu estava confuso. Aí ela conversava, conversava, e quando se virou, viu a Luiza, que chamava atenção. Quando viu a Luiza fez: “AAH! (tom de espanto). Minha

filha, você tá muito magra! Você tá tuberculosa?” A Luiza disse: “Não sei não, senhora”. E ela disse: “Meu Deus, você tá muito magra. Você já trabalhou em casa de família?”. “Não, senhora”. Olhou para a outra e disse: “Não querem trabalhar não. Minha filha, se você estivesse trabalhando numa casa de família, você estava gordinha. Você não acha, moço?”. E olhou que eu tava segurando ela. Eu disse: “Acho não, senhora. Eu prefiro que ela morra seca do que gordinha escrava na mão de vocês. Vocês querem as empregadas domésticas para fazer delas burro de carga. Não pagam salário que preste, colocam pra dormir num quarto lá no final, um quartinho pequeno, e o esposo de vocês, ou os filhos, vão abusar sexualmente delas. Não é assim que vocês fazem?”. Essa senhora pegou a bolsa dela e jogou (nele): “Você é muito do grosseiro! Mal educado!”. Quer dizer, grosseiro? Quem foi grosseiro ali? Ela jogou a bolsa em mim, eu coloquei a mão aqui (leva a mão ao rosto) e levei uma bolsada nas costas. Ela adentrou sem pedir licença. A Luiza começou a chorar, me pedindo calma. Eu estava na defesa dela. Eu disse: “Luiza, essas pessoas precisam respeitar os outros”. Essa coisa foi muito forte. Murilo – Como se deu sua ida para a favela? Airton Barreto – Imagina eu, bem jovem, visitando a favela. Quando era de noite, eu questionava o pessoal na Pastoral. O conselho era dividido em cinco ou seis. E, nas reuniões, cada um dizia que tinha um pouco de dinheiro em caixa. “Como é que vocês podem ter dinheiro no caixa, se tem gente passando fome na favela?”. E lembro que aquilo chocava muito. Eu achava que era impossível ter tanto sofrimento na favela e a paróquia ter um dinheirinho guardado no caixa para as necessidades emergenciais. Comecei a visitar a favela. E os pobres começaram a visitar a minha casa. Isso foi muito forte, porque meus pais não tinham feito a opção que eu fiz. Eu e minha mãe tínhamos muita sensibilidade para ouvir as pessoas. E o meu pai já não gostava. Meus irmãos diziam: “Ninguém pode nem estudar para vestibular. A gente tá estudando e chega esse pessoal falando alto”. E isso foi muito duro. Às vezes, eu tinha de falar baixo, e o pobre (fala) bem alto. E, nisso, meu pai dizia: “Ah, ninguém pode mais ter tranquilidade nessa casa. Olha a zoada!”. E você vai percebendo que é difícil. Custou-me aprofundar um pouco a realidade. Se eu já negava a coisa... Meu pai tava igual a mim. Se ele não tinha compreendido o que eu tava compreendendo... E era um homem bom! Ele dizia que era capaz

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de dar tudo. E eu me tocava que, quando eu ia na casa de um pobre, ia até a cozinha. E, quando um pobre chegava lá em casa, não passava da área. Porque não é normal. E como é que nós somos amigos e temos restrições? Depois de um dia intenso, (lembro que) eu disse: “Hoje eu não quero mais atender ninguém.” Tomei um banho e fui assistir novela. Deitei-me, e só vi, às 19 horas... (bate palma). “Meu filho, tem um senhor querendo falar com você”. E eu: “Mamãe, não dá pra falar com ele hoje não. Eu já fiz minha parte hoje. Já visitei o que tinha de visitar, já fiz tudo. Diga a ele que venha amanhã, que eu converso com ele”. E fiquei assistindo novela. Minha mãe vai e volta. E diz: “Meu filho, ele disse que só vai sair quando falar com você”. E eu digo: “Mamãe, D. Aloísio Lorscheider (Cardeal da Igreja Católica e ex-Arcebispo de Fortaleza, entre 1973 a 1995), quando se tranca no quarto para dormir, pode a casa cair, pode acontecer tudo, ele tá dormindo. Para, de manhãzinha, ter gás para continuar as coisas. Portanto, eu não vou. Por favor, diga a ele que venha amanhã”. Minha mãe foi. Demorou um pouquinho e voltou. Eu continuei assistindo novela, e ela ficou em pé, ao meu lado. A presença dela me incomodou. Eu já sabia que ela tinha algo para dizer, mas não perguntava. Eu disse: “Minha mãe, o homem já foi embora?”. “Você acha que eu vou botar ele à força?”. “A senhora, não. Mas eu, vou”. O ativismo é uma coisa muito séria. Se você estiver no ativismo, cuidado! Você vai machucar muita gente. Eu estava cansado, tinha feito a visita, tinha feito a minha parte. Agora pronto. (Isso) me dá o direito de eu gritar os outros? Quantas pessoas boas que eu conheço, meu Deus, às vezes perdem as estribeiras por falta de equilíbrio, de uma lágrima. Então, eu dei uma de meu pai. Calcei a chinela e disse: “A senhora não tem coragem, mas eu vou dizer”. E o que é que eu ia dizer para esse cidadão? Eu não tenho dúvida. Eu ia dizer: “O senhor não ouviu quando a minha mãe lhe falou não? Só vou atender o senhor amanhã, e passe bem”. Era assim que eu ia dizer. Mas, gente, quando eu calcei as chinelas e disse: “O senhor não viu quando a mam...”. E não consegui mais dizer. Por que isso? Gente, foi o gesto. Quando eu fui chegando, o homem começou a chorar, o velhinho. Com a mão na cabeça da neta. Foi se levantando e disse: “Eu sou aquele tuberculoso que o senhor levou ao hospital. Eu vim agradecer minha vida ao senhor (imita a voz comovida do homem)”. Aí eu fui chorar também. “Desculpe-me, senhor, eu estava muito cansado”. Chorava

eu, minha mãe, ele e a neta ficou encabulada. E ele foi contar a história dele. Que foi pro hospital, que defecou, as fezes ficaram secas... Ele não tinha força nem para fazer assim (mexe o braço). As baratas vinham... Ele era muito magrinho. Não tinha força, era só o osso. Ele disse que queria tirar a barata e não tinha força. E a enfermeira viu e disse: “Vixe!”. Levantou, colocou ele no chão, pegou um escovão para passar no bumbum dele, para tirar as fezes secas e disse: “Fique um pedacinho para quarar, para secar um pouquinho”. E se esqueceu. Ele disse que passou a noite todinha no chão, com o corpo gelado, tremendo. Quis se suicidar, mas não tinha força para se matar. Quis a morte. De manhãzinha, colocaram ele de volta. Ele foi melhorando, melhorando, até que, com quase um ano, retornou. Eu disse: “O senhor quer contar essa história na Igreja?”. Porque eu queria a conversão da Igreja, que aquele pessoal que está louvando a Deus, cantando, ouvisse essas histórias, para poder ser um cristão mais coerente. Era essa coisa que estava na minha cabeça. Eu levei o homem para a Igreja e ele, em vez de contar a história, só dizia: “Foi o senhor que me levou, o senhor que me levou”, e, às vezes, criava um mito. Hoje, eu entendo que eu tinha a reta intenção, mas a ação não era iluminada. Mas essas coisas me aconteceram muito. Quando você tá aberto, você aprende. Aí vem a tua colocação... Murilo – Como você foi morar na favela?

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Quando chegou ao Passeio Público, Airton foi logo se apresentando e cumprimentando a todos os alunos presentes. Apesar de fazer muito tempo que não encontrava o professor Ronaldo Salgado, lembrou-se prontamente dele.

Simpático, ele fez alguns comentários na hora da apresentação. Além de achar estranho o nome da Thamires, fez piada com a Bia, chamando-a de “Beatriz dos olhos verdes”.


Airton chegou meia hora antes do marcado. Quando ele chegou, nem todos os entrevistadores estavam presentes. Fica-mos, então, conversando. Ele contou algumas anedotas e falou sobre o padre Henri.

Airton falou, também, sobre como a universidade não prepara os alunos para lidarem com os desafios que o mundo apresenta. Usava da própria experiência com a Faculdade de Direito para exemplificar.

Airton Barreto – Ah, esse capítulo é muito forte. Somou todas essas histórias, eu já estava sensibilizado, percebia que minha família não podia acolher aquelas pessoas constantemente. Trabalhava na Arquidiocese, no Centro de Defesa de Direitos Humanos, eu já fazia Direito, e Dom Aloísio perguntou: “Algum de vocês gostaria de fazer uma formação com Leonardo Boff, com a Teologia da Libertação?”. Eu já ouvia falar do Leonardo Boff e queria conhecê-lo. Foi uma semana de curso. Eu pensava que ele era parecido com meu jeito de falar, de agir... (Ele) Era um homem tranquilo, passivo, mas muito profundo. Aí eu pensei: “Não pode. Esse homem, eu tenho de testar, pra saber se ele é o que eu tô ouvindo”. Quando terminou a formação, sexta-feira, ao final do dia, eu cheguei pra ele e disse – isso tá com 29, quase 30 anos: “Padre, o senhor não tem interesse

Ele disse: “Pois eu quero ser colaborador. E quero comprar essa casa”. Então, eu chamei dois amigos. Um fazia filosofia, o Rogério (Gomes), e outro fazia geologia, o (Edmar) Júnior. Perguntei aos dois se eles não topavam viver na favela. Agora, só um parêntese: Isso não depende de Igreja, mas tenho de contar do jeito que aconteceu. Numa noite de oração (em um grupo que Airton participava com mais três colegas), uma amiga, que faz muito anos que não vejo – isso faz uns 30 anos – fazia enfermagem e não morava no Pirambu, morava na Aldeota. Era uma jovem bonita, atraente, tinha seu namorado que fazia odontologia. E ela era muito profunda nas orações. Um dia, (ela) me chamou e disse: “Airton, vou te revelar uma coisa, mas, por favor, não conta para ninguém”. Foi aí que nasceu o desejo. Por que ela pedia segredo? Acho que porque era uma coisa muito dela.

em conhecer uma favela?”. Porque eu queria testá-lo. Saber se o que ele falava tinha fundamento na prática. “Por exemplo, (a favela) do Pirambu, onde eu faço um trabalho”. E no outro dia o conduzi ao Pirambu. E fiquei atento. Depois de uns dois meses, ele voltou novamente ao Pirambu. Fizemos essa visita. Vi os olhos dele encherem de lágrimas, porque eu levei para o foco da miséria. Vi, muitas vezes, ele chorar. Quando ia saindo, sem que eu percebesse, ele partilhava. O que ele levou de dinheiro, deixou na favela. Ele pensa que eu não percebi. E essa visita foi muito forte. Quando ele chegou na casa dos meus pais, lavou as mãos. Minha mãe deu a tolha para ele e perguntou: “E aí, padre, conheceu o Pirambu?”. Ele respondeu: “Seu filho me levou às profundezas do inferno”. Eu fiquei sem entender. Eu digo: “Pirambu, as profundezas do inferno? Mas os pobres são os preferidos de Deus. Por que estão no inferno?”. E, nesse contato, nessa amizade com ele, eu disse que tinha um sonho de viver na favela. De morar com os pobres, numa casa igual a deles. E ele disse: “Você tem esse desejo?”. E eu disse: “Tenho. Já passou pela minha cabeça algumas vezes”.

E ela disse: “Airton, eu tenho um sonho de viver na favela”. Quando ela disse isso, passou a dizer para mim desse meu desejo. “Mas eu queria viver na favela numa casa igual a dos pobres. Eu queria viver numa favela em que, o que os pobres tivessem na casa deles, eu tivesse na minha. Pegar o cimento para varrer o chão, fechar a porta devagarzinho. Igual a eles, que não mudasse nada”. Quando ela foi dizendo, foi nascendo um desejo de fazer aquilo. Não foi para ela, foi para mim. Mas também não disse nada para ninguém. Fiquei com aquele pensamento. Não contei nem para ela. Quando estava no último ano de Direito, no ponto do ônibus, lá vem a Valdeci. Parou o carro e disse: “Tu vais pra onde?”. “Pro Pirambu”. Ela disse: “Ia. Vamos lá para a irmã Angélica”. “Quem é Irmã Angélica?”. “É uma pentecostal”. Eu fui pra essa irmã Angélica com ela. Você sabe o que essa evangélica fez? Orou na cabeça de cada um. Quando chegou na minha vez, à distância, disse assim: “Ai de ti, jovem, se não cuidar dos meus pobres que sofrem a injustiça e a opressão. Se tu não assumires a missão que o Pai te confiou, seria melhor que não tivesses nascido”. Eu sempre achei os evangélicos alienados. Não lutam por justiça social, ou não

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lutavam, hoje já estão diferentes. Quando eu vi aquela evangélica falar em justiça e opressão, não são palavras de evangélicos. Por que aquela senhora foi dizer meu sonho? Eu digo pra vocês: não me senti culpado, não, me senti responsável. E isso foi muito forte, porque o que está acontecendo? Você não toma uma decisão da noite pro dia. É o somatório de tudo isso. Eu já tinha muitos elementos para viver essa experiência. Então, comprei a casa com o dinheiro do Leonardo Boff. Quem muda o mundo são os jovens, porque quem tem pouco quem tudo, e, quem não tem nada, tem a liberdade. (Pensamos:) Já que vamos morar na favela, vamos procurar o pior lugar. E encontramos uma casinha abandonada. A mãe morreu e a família abandonou a casa. E compramos a casa, acho que, se fosse hoje, por três notas de 100. Quatro metros por cinco,

E meus colegas diziam: “Rapaz, tu não vais não?”. “Calma, que meu pai não é igual ao de vocês, não”. Mas não tinha hora. Na hora da janta... E não saía. A voz não saía. Acho que tem pessoas que, quando estão em apuros, vão ao banheiro. Outros, ficam suando. O meu era a voz que não saía. Como é duro você romper com estruturas... Toda ruptura é dolorosa! E não era possível, nas horas que eu procurava. Um dia, entrei na casa umas 16 horas, e ele estava assistindo televisão numa rede de corda. Eu pensei: “É agora ou nunca”. Peguei minha cadeira, não quis ir só e levei a cadeira. Quando ele percebeu que eu me aproximava, foi se ajeitando para sentar na rede de corda. E cadê que a voz saía? Eu tinha de dizer alguma palavra (Pigarreia). Comecei com o anel de formatura. Eu disse: “Papai, eu queria agradecer esse anel que o senhor me deu” (Tira o anel que está usan-

O professor Ronaldo Salgado se emocionou durante a entrevista. Em alguns momentos, além de controlar o tempo atentamente, ele também enxugava os olhos na manga da camisa, discretamente.

“Eu questionava as coisas. Minha mãe, às vezes, me chamava de profeta rabugento. Porque eu estava sempre procurando as coisas, procurava esclarecimento” sem piso, uma janelinha na entrada, duas bandas de porta. E a gente sentiu que era ali. Havia um pouco de romantismo? Claro. O que levamos para essa casa: três colheres, porque era eu, Rogério e Júnior, três talheres, uma cama de campanha, duas redes, porque um colega não dormia de rede, um bujão (botijão de gás), um fogão, umas panelas, um pouco de livro e só. Eu trouxe numa carroça. Só que, pra sair de casa e viver na favela, eu tinha de dizer para o meu pai, para minha família. Minha mãe, tudo bem. Mas meu pai? Ele já tinha me dado o anel de formatura, e os pais se revelam muito nos filhos. Eu sabia que isso ia chocá-lo. Eu disse que ia falar com ele de manhã. Quando fui tomar café, não tive coragem. Eu dizia: “Na hora do almoço, quando ele estiver com a boca cheia, eu vou falar da minha opção”. E assim foi. Quatro dias. Toda opção traz angústia. Toda opção! É um pulo no escuro. A vida começa no escuro. Eu tinha aquela satisfação de que ia viver. Se eu fosse analisar muito, talvez não fosse... Quando nasce no fundo do seu coração um desejo, é seu. Seu temperamento, seu jeito de ser, seu caráter... Mas não totalmente seu. Tem uma coisa aí que é dele (do pai) também.

do). O diálogo com ele era um pouco difícil, aí comecei agradecendo. “Muito obrigado por esse anel, ele representa o esforço que o senhor teve para nos formar”. “Pois não, meu filho”. “Agora eu queria participar ao senhor uma decisão que eu tomei na minha vida”. “Pois não, meu filho. Fique à vontade”. Ele era muito acolhedor. (Pigarreia). “Papai, estou decidido...”. Primeiro citei meus amigos, que ele conhecia. “Estou decidido, eu, Rogério e Júnior, a viver com os mais pobres aqui do Pirambu”. Aí eu fui ver o que era um avião desgovernado. Ele se levantou da rede de corda, deu um safanão na rede, bateu a porta da frente que eu não sei como não quebrou, foi para a porta da frente, pá! Só ouvi os estrondos, pá, pá! E fiquei 45 minutos sentado, na mesma posição, porque eu não queria sair de casa rompido. Sei que é doloroso. Diz o padre Henrique que a palavra autoridade vem do latim augere, aquele que faz o outro crescer. E a turma tem autoridade como aquele que tem o poder de dominar e de desfazer! O que faz a gente crescer é estar aberto aos demais. Então, de repente, vejo a porta se abrir. Era ele de volta, e disse: “Nessa casa aqui, sou igual a laranja. Você chupa todo o líquido e quando não tem mais nada, me entrega o bago. Meu filho, você

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Ao final, depois de bater a foto com a turma, Airton começou a cantar. Mais cedo, depois de responder à última pergunta, ele pergunta para todos: “Posso fazer uma pergunta a vocês?”.


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“A favela é um resultado das nossas políticas públicas, é um resultado da nossa omissão, é um resultado do nosso sistema, é um resultado das nossas pregações.”

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No meio da entrevista, Airton olha para o Murilo, para de falar e diz: “Parecia com você quando comecei, também tinha essa barba”. Há quem diga que, atualmente, a careca dos dois é do mesmo tamanho.

come o milho que é uma beleza e quando não tem mais nada, me entrega o sabugo. Você quer ser palmatória do mundo? Eu conheço um advogado que foi morar com os pobres. Mataram ele. Vão lhe confundir com marginal, vão dar tiro. Eu vou ao túmulo com uma mancha. Ter um filho formado vivendo numa favela. O que vou dizer para os meus colegas de repartição?”. Aí eu disse: “Meu pai, eu tô indo para a favela como um bode vai para dentro d’água”. Eu não tava indo pra favela pra resolver problema de ninguém. Eu estava resolvendo o meu problema. Essa minha miopia de não querer compreender o outro, que a religião não fosse uma coisa em que eu me escondesse, mas fosse luz para os outros. Não tem nada de pieguice no que eu estou colocando. Eu queria mesmo era viver diferente. Tem uma realidade que me chama atenção, eu vou ser incoerente? Como eu vou passando pelo meio dos cadáveres e quero ir pra uma festa acolá? Isso foi uma coisa muito dura. Eu sabia que era difícil para ele como era difícil para mim. “Tô indo para a favela como bode vai para dentro d’água, não é lugar pra gente não”. Porque favela é o lugar das perdas. Quem vai pra favela, a primeira coisa que ele perde é a dignidade. Perde suas raízes. Perde sua identidade. Colegas meus de faculdade (diziam): “São Francisco, você foi chamado”. Eu dizia: “Tu não foste não, né?”. “Não, tu foste chamado, eu não fui”. Todos nós somos chamados a fazer alguma coisa. Eu sei que nem todo mundo tem de ir pra favela não. Vocês, como jornalistas, vão ter a vez de vocês. Cada um tem a sua função. Vocês um dia vão dizer: “Qual a minha missão?”. Faça bem feito, tente fazer. Caia, se levante. Marcello – Airton, você acha que seu pai chegou, um dia, a aceitar essa sua opção? Airton Barreto – Não. Os colegas de re-

partição dele me contavam: “Airton, seu pai lamenta muito sua ida para favela, e eu dizia assim: Hercílio, tem as coisas espirituais, ninguém sabe o que esse menino está fazendo, se vai servir para você na eternidade”. Eles diziam coisas assim para ele. Mas eu acho que não. Aí tu imaginas: eu, advogado, recém-formado, na favela, morando com meus dois amigos, não tinha coragem de levar o paletó para a favela, deixava no trabalho. A gente não foi lá (na favela) para dizer “cheguei, pessoal”, como os políticos. A gente chegou de mansinho e (foi) convivendo com eles. Claro que a favela deve ter ficado assim: “Quem são essas figuras?”. Alissa – Airton, você contou na pré-entrevista que, quando morou com seus amigos na favela, vocês passaram por invasões policiais e até ameaças de morte. Em algum momento, você se arrependeu ou pensou em voltar para a casa dos seus pais? Airton Barreto – A primeira coisa que eu percebia, como advogado, era a violência policial. Nos primeiros dias em que eu conversava com as pessoas, (alguns diziam:) “lá vem os home”, todo mundo corria. “Quem é os home?”. (Eles:) “É a polícia”. Às vezes, me dava a tentação de dizer: “Rapaz, eu sou advogado, vou enfrentar”. Mas eu digo: “Não, em terra de sapo, de cócoras com ele.” Entrava em casa e, pelo buraco da fechadura, observava algumas truculências da polícia. Comecei a me inteirar, da comunidade, sobre essa violência. Eles me diziam quem morreu, quem matava. Eu estou contando coisas de 28, 29 anos (atrás), então é uma polícia muito presente. A única instituição presente na favela era a polícia. E essa violência que eu passei foi (assim): como eu era elemento de Igreja, uma pessoa foi me visitar e disse: “Vai ter um retiro no Pirambu com padre Alfredinho (Pa-

Quando falou dos abusos policiais a que foi submetido e detalhou o episódio mais marcante, Airton ficou com lágrimas nos olhos e a voz trêmula, mas se recompôs pouco depois. Ele também se emocionou quando falou dos filhos.

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dre suíço que viveu com os mais pobres em vários locais do Brasil, como Crateús, no interior cearense)”. Eu fui e ele me convidou para um jejum de seis dias. Passei seis dias só bebendo água de coco. Esse jejum era em prol dos trabalhadores da seca de 1983, 1984, que foi muito grande. Era para sensibilizar as autoridades. Gandhi (Mohandas Karamchand Gandhi, popularmente conhecido como Mahatma Gandhi, fundador do moderno Estado indiano, 1869-1948) também tinha sua forma de atingir as pessoas com seus jejuns, não é? Terminados os seis dias de jejum, o médico disse: “Cuidado para não encher muito a barriga, coma um caldinho”, e eu fui para casa com esse caldinho. Quando era nove horas, acordei um pouco zonzo. Seis dias só com água de coco, a sua cabeça fica maior do que o corpo. Foi meu primeiro contato com a polícia. Abri a banda da porta. Quando eu abri a banda da porta – porque na favela ela tem duas bandas –, foi na hora em que dois políciais iam passando, e eram policiais jovens. Percebi que eram policiais porque estavam exibindo a arma. Quando esses policiais me viram... Porque a polícia conhece a favela. Eu percebi que eles ficaram, assim, atônitos. Eles olharam para mim e eu segurei a porta e disse: “Bom dia, senhores, tudo bem? Como é que vamos?” E olhei para os dois policiais. Eu percebi que um me fitou com olho de boi. Mas ele olhava tão forte, e eu olhei para ele também e ele olhou para mim, e eu disse (pensei): “Se eu continuo olhando para esse policial, ele vai achar que eu estou intimidando”. Tirei a vista. Eu advogado conhecendo meus direitos. Imagine um pobre desinformado em uma favela, ele vai botar a cabeça onde? Eu ouvi quando um disse assim: “Quem é esse cara?” (o outro respondeu): “Rapaz, eu não sei não”. Eu digo, “Meu Deus”, passou um filme, “vai ser uma violência”. Um deles se aproximou de mim e disse: “Saia do meio para eu entrar”. Eu disse: “Como entrar? Isso aqui é minha residência”. Ele disse: “Eu sou polícia”. Eu disse: “Então me mostre a ordem judicial por escrito que o senhor entra no meu domicílio”. Ele disse: “Você não é besta não, seu...” Me chamou um nome feio. “Ordem judicial em casa de vagabundo?” E me deu um tapa. Eu nunca tinha pegado uma pancada aqui (aponta para o rosto). Eu caí. Quando caí, ele forçou a porta, adentrou, e o outro também. Os meus dois colegas tinham saído. Esse que me bateu, assim que entrou, foi logo procurando o que não tinha perdido. Era pouca coisa que eu tinha, mas ele abria até as partes das coi-

sas, queria ver tudo, no chão, nas brechas. O outro se dirigiu a mim e disse: “Mão na cabeça, vagabundo!”. Eu disse: “O senhor está equivocado”. Por sinal, eu estava experimentando essa experiência do evangelho, que a carne é fraca e o espírito é forte. Depois do jejum você fica tranquilo. Eu estava manso. “Mão na cabeça, vagabundo!”. “O senhor está equivocado, essa daqui é a minha residência, o senhor adentrou na minha casa sem o meu consentimento.”. “Mão na cabeça!”. “Eu não vou por...”. “Cale sua boca!”. “Por que eu vou calar minha boca, senhor? Isso aqui é minha residência.”. “Mão na cabeça!”. E eu não obedecia. Quando ele percebeu que eu não obedecia, disse: “Seu documento!”. Eu tinha meus documentos sempre dentro de um livro. Eu fui lá na minha agenda, tirei e disse: “Sou advogado”. Quando eu me identifiquei, ele disse: “Tenha vergonha, seu...”. Outro nome feio. “Você é um traficante”. Me pegou por cima dos braços, levou para o canto da parede, encostou o joelho na boca do meu estômago, que não tinha nada, só o caldinho de ontem, e me puxou. Começou a doer, queimar. Quando eu estava sem fôlego, ele me soltou. “Por que você mora aqui na favela?”. Eu não conseguia nem falar, mas puxei a respiração (inspira fundo, demonstrando). Eu já tinha me identificado como advogado, tinha de falar à altura, não é? Eu digo: “Eu moro em todo território nacional, é um direito que me assiste como cidadão brasileiro, a morar onde eu quero e entendo”. Eu demorei para dizer isso, mas disse, segurando a barriga. Ele disse: “Você não pode ser advogado”, e me pegou pela segunda vez. Quando ele foi me levando, eu disse (pensei): “Eu não sei se vou aguentar a segunda”, e disse: “Eu sou seminarista”. Eu, na minha santa ingenuidade, achei que, se dissesse que era seminarista, ele ia pedir

“Eu estava procurando minha identidade, eu não tinha minhas raízes? (…) Então, essa cidade grande me pegou pelo pé, pela fé. Essa cidade me mudou muito”

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Ao final da entrevista, que durou duas horas e meia, a única mesa ocupada no Café Passeio era a da equipe da revista Entrevista. Os funcionários já tinham recolhido as outras mesas e cadeiras do local.

Com 1h15min de entrevista e ainda muitos pontos para abordar, Alissa recebe um bilhetinho de Ronaldo: “Meninas, já estamos na metade da entrevista!”. Pronto, quase que ela enlouquece, preocupada com o tempo.


A equipe de produção agradece a Raíssa Veloso pela disponibilidade de fotografar a entrevista. Ela se queixava de dores quando chegou ao Passeio, mas disse que a conversa estava tão boa que, ao final, a dor tinha passado.

Camila descobriu uma característica em comum com nosso entrevistado: ambos têm intolerância a glúten. A descoberta aconteceu na casa de Airton, na pré-entrevista, quando Jarlyne ofereceu bolo para o lanche e Camila teve de recusar.

“Eu queria que meus colegas chegassem (na casa dele) e vissem o que tinha na casa deles. Ninguém quer ser discriminado. Você quer ser você” desculpas. Mas pelo menos não me imprensou. “Você não pode ser advogado e morar aqui”. Eu disse: “Está aqui minha carteira funcional, trabalho na Arquidiocese de Fortaleza, no CDPDH (Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos)”. Mostrei para ele. Ele viu a minha carteira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), viu identidade, viu tudo, aí calou-se. Consegui convencê-lo, mas o que tinha me batido não gostou daquela postura do policial. Eu sempre digo, quem nutre a autoridade é a imaturidade do outro. Então, o policial chega na favela, a comunidade é imatura dos seus direitos. Ninguém está preocupado em fomentar esses direitos na comunidade. Uma andorinha só não faz verão, mas levanta voo. O policial que não gostou se aproximou de mim, me pegou aqui pelo colarinho, veio com a arma e colocou o revólver aqui na minha boca (encosta dois dedos no canto da boca, com a mão em formato de revólver). Quando eu vi aquele revólver na minha boca, e ele áspero... Eu lembro que eu levantava a cabeça, porque estava doendo, por dentro, cortando. Só veio um pensamento: “Eu vou morrer”. Quando eu vi a morte, veio um pensamento: Deus é tão bom que me fez fazer seis dias de jejum para me preparar para a vida eterna. E eu, ao invés de me alegrar, fiquei foi triste. A Sagrada Escritura diz que o Céu é lugar de glória, de felicidade, “olhos nunca viram, bocas nunca falaram. Quem quer ir para o Céu? Todo mundo. Quando? Quando me chamarem”. Ninguém quer ir agora. Na hora, comecei a (dizer) “Vou morrer, vou morrer, estou vivo, estou vivo, como é a outra vida? Como é que vai ser? Ele vai me dar um tiro, os miolos vão para a parede, acabou a minha vida”. Foi esse o meu pensamento. Esse policial só fazia olhar para a parede, eu via que ele estava procurando

um canto. Foi uma das maiores viagens que eu fiz, do centro da nossa casinha até a parede, ele me levou de costas. Eu me lembro, na hora eu dizia assim: “Tô vivo, tô vivo, vai ser agora, como é que vai ser?”. Gente, é um drama. Quando ele chegou no final, (com a voz embargada de choro) abriu o revólver, colocou aqui (aponta dois dedos ao canto da boca, novamente), aí eu vi que ia morrer, as pernas começaram a tremer e ele disse: “Ou você diz por que mora aqui ou eu estouro seus miolos agora”. Aí eu disse: “Policial, quando eu era criança, eu aprendi no catecismo que Jesus vivia no meio dos pobres, minha mãe me ensinou e eu acreditei, vim viver no meio dos pobres”. (Exaltado) Se mandasse comer merda, eu comia, se mandasse fazer qualquer coisa, eu fazia, porque eu queria viver. Eu não fui para a favela para morrer, não, eu fui para viver e acordar os que estão dormindo. Eu não sou herói de nada, não. Eu só não queria ver a miséria, ficar olhando para ela e usufruindo dela de uma forma ou de outra. Eu ia morrer. Não adiantava dizer que era advogado... Eu queria que morassem na favela juízes e promotores, os cristãos! Mas não, favela é lugar de pobre. A favela é um resultado das nossas políticas públicas, é um resultado da nossa omissão, é um resultado do nosso sistema, é um resultado das nossas pregações. É um resultado. Gente vai lá na favela para dar esmola, devia ser para repensar: “Por que é que existe a favela, o que é que eu faço para contribuir para que ela cresça?”. É nessa linha. Na hora, eu tinha de falar da minha opção, que eu vivia no meio dos pobres, foi assim que eu falei para poder viver. Ele sacou da arma e tirou: “Você é um louco, deixa a polícia trabalhar”, e foi embora. Eu fiquei sem força de me levantar porque eu estava em jejum. Ele foi embora e veio este pensamento: “Eu vou embora, o que é que eu vim fazer aqui? Meu Deus, eu vou morrer. Eu vou bater a poeira dos pés, vou me casar, ter minha família, viver minha vida e vou lá me preocupar com essa coisa. Quem devia se preocupar eram os padres, que estudaram Bíblia mais do que eu, são teólogos, são exegetas, aprofundaram mais. E por que eu estou fazendo isso? Meu Deus...”. Aí passa um filme na sua cabeça: “Meu pai tinha razão. O que eu vim fazer aqui? Vão me confundir com um marginal e vai acontecer mais na frente.” Camila – E o que lhe fez ficar? Airton Barreto – Eu acho que uma coisa que me segurou muito foram as crianças. Tem uma música do padre Zezinho (padre e cantor) na época, que eu gostava muito de

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ouvir. Ele dizia assim: “Crianças que eu encontro em meu caminho/me traduzem com carinho/que o amor me cativou” (cantando). Eram as crianças. Eu aproveitei os acontecimentos da favela para conscientizar a nossa comunidade dos direitos que eles tinham. Uma vez eu estava falando para um grupo de pessoas e um jovem disse assim: “Ele que é advogado, (a polícia) entra na casa dele, avalie na minha, que meu pai é carroceiro”. Como era que eu ia dizer para ele? Começaram três elementos (na Casinha da Praia, local onde eles moravam na favela), eu, Rogério e Júnior. Mas os amigos de Igreja, de outras comunidades, iam nos visitar e, quando chegavam, viam uma casinha de taipa, jovem querendo viver nessa comunidade de vida, como se fosse uma CEB (Comunidades Eclesiais de Base). “Eu posso morar com vocês?”, (perguntavam), e assim nossa comunidade cresceu. Eram sete rapazes e duas mulheres. Nós éramos nove jovens, tivemos de aumentar o quarto... E a gente passou a ser uma presença na comunidade (do Pirambu). Alissa – Você percebeu alguma mudança na comunidade por causa desse trabalho que vocês faziam? Airton Barreto – Toda. Para cada violência policial, nós tínhamos uma reação. Quando a gente percebeu que a coisa estava se multiplicando, escrevemos na parede assim: “Senhor policial, queremos o seu trabalho, não a sua truculência”. Aí botávamos uns artigos (da Constituição)... Criamos um CEPP (Centro de Educação e Pastoral Popular). Houve mudanças? Gente... O que falta muito nas comunidades são as informações. A gente começou a dizer para eles (os moradores da favela) que tem Corregedoria, existem as ouvidorias, o policial faz isso na favela, mas ele responde por aquilo que faz... A partir daí, nós começamos a formar os para-advogados. Os para-advogados eram pessoas da comunidade... Eu me lembro do Chagas (Francisco Chagas Filho, um dos para-advogados formados por Airton), magrinho... “O senhor é advogado?”. Eu digo: “Sou”. Ele: “E por que o senhor mora em uma favela?”. (Eu respondo): “Rapaz, é porque não tenho competência para concorrer com advogados maiores, então fico por aqui, escapando”. Eu brincava com ele. Eu dizia: “Você se interessa pelo Direito?”. E comecei a dar meus livros da faculdade. Hoje, ele (Chagas) é um rábula. Ele fala melhor do que eu. É um pesquisador. Fiz uma formação para alguns grupos, e outras pessoas começaram a se esclarecer. Quando acontecia uma violência policial,

Na transcrição da entrevista, a equipe de produção sofreu um pouquinho: Camila diz que quase ficou sem dedos. Já Alissa acha que desenvolveu LER.

levava para a imprensa, procurava a ouvidoria, a corregedoria. Uma vez eu levei para a Secretaria de Segurança, o secretário (disse): “Você quer ser herói?”. Eu disse: “Não, não quero ser é covarde”. “Você quer que a polícia não ande onde vocês estão morando?”. “Não, queremos que a polícia ande lá, mas trabalhe com dignidade”. Ninguém quis ser herói. Thamires – Airton, você disse que essas situações de ameaça provocavam alguns sentimentos ruins. Existe algum sentimento bom que ocorria nessas situações, que fazia, de alguma forma, você achar que aquilo estava certo? Airton Barreto – Sim. Uma das coisas mais fortes que aconteceram foi quando eles (a polícia) fizeram a minha prisão. Quando foi na Sexta-feira da Paixão, um soldado do Exército foi morto por um delegado de polícia. A gente foi para a imprensa e disse que a violência no Pirambu estava tão grande que um soldado do Exército foi morto por um delegado de polícia, e agora? Para a gente denunciar as outras mortes, nós bolamos uma Via Sacra. Primeira estação, Jesus cai pela primeira vez. No Pirambu também caiu um. A gente dizia o nome daquela pessoa que morreu, e todos mortos por violência policial. Eu pergunto, quem foi participar dessa Via Sacra? Só pobre mesmo lascado, aqueles que eram vitimados pela violência. A comunidade do Pirambu como um todo. Aqueles que vivem no bem bom, não. Na primeira Via Sacra que nós fizemos, eles me prenderam como cabeça do movimento. Fomos para a imprensa. Lembro que a gente estava cantando: “Virá o dia em que todos/ao levantar a vista/veremos nesta terra...” (cantando). Aí você não pode continuar, porque a polícia vem se aproximando. Quando a polícia foi chegando, foi na hora

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O trabalho de edição também foi puxado e feito, quase todo, na cantina do curso de Comunicação da UFC. Era uma barulheira só e muita fome. Haja concentração!


As diversas histórias contadas por Airton – e a maneira como ele as conta – durante a entrevista envolveram a turma, que se emocionou e riu em vários momentos.

A escolha do perfil que abre a entrevista foi bastante difícil. A equipe de produção recebeu textos de quase todos da turma, que captaram muito bem o espírito de Airton.

que o jornalista foi chegando. O cara (o policial) disse: “Você está preso!”. Aí eu disse: “Eu não me recuso a prisão, eu sou advogado. O senhor tem ordem judicial para me prender?”. Ele disse assim: “Eu tenho do, do, do, do, do, do, do (ele disse sete vezes)... meu superior”. Ninguém pode ser preso por ordem de superior. E saiu na imprensa. Uma pessoa disse assim: “Ele (Airton) não vai não, porque, se ele for, vai todo mundo”. Aí o policial: “Vai ele e vai você”. Quando ele se virou, houve um tumulto. Só que vinham os pobres e umas pessoas amigas da gente, para fortalecer. Eles me botaram no camburão. Mas me botaram sentado ali. Foram pegar um segundo e não conseguiram, foi aquele barulho danado. Levaram-me para a Secretaria de Segurança e, no meio do caminho, ele parou e disse: “O que foi que aconteceu?”. Aí eu disse: “Essa pergunta era para você ter feito lá, não aqui. Eu não te respondo”. Fui para a Secretaria. Os policiais me viam de manhã carregando água e, de tarde, de paletó e gravata. Eles ficavam sem entender, isso chocava muito eles. Eu passava, um tocava no outro e apontava (para mim). Eu ia para a Secretaria, falava com pessoas que eles viam que eu tinha acesso. Chegando lá, queriam saber por que eu estava lá. O delegado começa a se comunicar para saber o que houve. O doido do Rogério entrou na Secretaria de Segurança e

disse: “Airton, não podemos silenciar, porque a gente pode ser até preso, mas tem de haver mudanças”. Ele era assim. Eu fazia era acalmar ele: “Deixe que leve a gente para a prisão. Pode ser que, com a gente preso, eles acordem para o que está acontecendo na comunidade”. O delegado disse: “Não tem nada, o senhor está liberado”. Eu disse: “Como liberado?”. Porque ele viu que não tinha nada para me incriminar. Eu disse: “O senhor tem um transporte para mim voltar?”. Ele disse: “Tenho não”. Eu digo: “Vocês tem para trazer e não tem para voltar?”. Quando eu cheguei, a comunidade continuou a Via Sacra e terminou com uma missa na igreja Nossa Senhora das Graças, com o padre Haroldo (Coelho, padre cearense ligado a movimentos sociais e ao Movimento Familiar Cristão. Foi entrevistado na edição n° 15 da Revista Entrevista). Thamires – Como você encara hoje essa violência que você sofreu nessa época? Como você olha para trás e enxerga isso? Airton Barreto – Eu não me arrependi do que fiz. Não me arrependi. Também, a gente vai encontrando outras maneiras. Eu me lembro uma vez, eu jovem, fui entrevistar Dom Helder Câmara. Ele disse para mim: “Se você disser uma verdade numa feira e, quando você termina, lhe esquartejam, lhe matam, então não diga toda: vá dizendo e vá vivendo”. Então existem maneiras de você resolver, diminuir determinados conflitos, sem o confronto. Mas tem horas que você é possível dar até a vida, não tenho dúvidas não. Você vai até um limite. Por que a gente fez aquilo? Por que a gente acreditou? Não foi nem pela gente, foi mais por eles. Marcella – Qual foi a sua primeira impressão do Padre Henri? Como foi esse encontro? Camila – E o que representou conhecê-lo? Airton Barreto – É aquela coisa: você pensa que é louco e encontra um mais louco do que você. Encontrar a figura do padre Henrique é como você ver a extensão dos seus sonhos. Uma história parecida, um homem que vivia no convento, onde ele dizia que comia bem, dormia bem, rezava bem, falava bem, mas não via a vida do povo. Saiu do convento para viver com os pobres. Padre Henrique veio para o Brasil em 1985, 1986. Queria conhecer o Brasil a partir dos pobres, foi viver com os catadores de papelão em São Paulo. Um padre que vem para um país que não conhece e vai viver com os pobres dormindo no chão, ou ele é louco ou tem uma coisa parecida. Eu sempre dizia assim: “Se você deixa de comer

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uma comida gostosa para comer uma coisa que não é tão assim, ou você é louco ou tem uma razão para você estar fazendo isso”. Eu não ia morar na favela se não existissem pobres, eu ia viver procurando favela? Leve-me para um hospital, que eu estava louco! Mas eu estava apenas sendo presença onde já existe... A coisa já existia lá, não foi eu que criei essa situação. Ele veio para Crateús (município cearense a 354 quilômetros de Fortaleza), onde conviveu com os camponeses – porque ele queria conhecer o campo –, comprou uma enxada e trabalhava com os camponeses. Ele dizia que era bom misturar trabalho manual com intelectual. Esse padre chegou em Fortaleza em 1986 para trocar um dinheiro, só isso, e rever o passaporte. Primeiro banco, (ele disse:) “é possível cambiar um pouco de dinheiro?”. Não. Segundo banco, não. Terceiro banco, não. Quarto banco, não. Isso eu de paletó, lá na Arquidiocese, trabalhando, e ele querendo trocar o dinheiro nesses bancos. Ele dizia que não era teimoso, era persistente. E disse: “Por que não o último banco?”. Foi no Sudameris (Antigo banco brasileiro, com sede principal em São Paulo, o qual foi incorporado pelo Banco Real em 2007). Quando chegou, encontrou um amigo meu, o Jorge (Jorgeorne Diógenes Cabral). O padre disse: “É possível cambiar um pouco de dinheiro?”. Também não era possível, mas o Jorge é muito solidário e deu uma cadeira: “Sente aqui no meu birô, que eu vou trocar seu dinheiro”. Quando trocou o dinheiro, disse: “Está aqui, padre, seu dinheiro”. O padre disse assim: “Li seu poema, que estava em cima de seu birô”. Foi aí que eu conheci o padre Henrique. O padre disse que era muito curioso: “Li seu poema. É um poema muito bonito, mas falta uma palavra”. O Jorge disse: “Qual é a palavra? Deus?”. “Não!”. “Amor?”. Aí o padre fez: “Ah, bá, bá, bá, bá...” (resmungando). “Qual é a palavra que falta, padre?”. O Henri só falava batendo. Meteu a mão no birô do meu colega, quase quebra, e disse: “Falta a palavra justiça, no mundo tem de ter justiça!”. Quando ele gritou essa palavra, o Jorge disse: “Você quer conhecer um amigo meu, advogado que vive em uma favela? Você vai gostar dele” (risos dos entrevistadores). E Jorge levou o padre para o meu trabalho. Ele sabia que eu trabalhava na Arquidiocese, na Catedral, nos Direitos Humanos. Quando foi com meia-hora, eu vou andando na (Rua) Barão do Rio Branco, lá vem o Jorge em um bugre. Nós éramos amigos, e eu disse: “Rapaz, isso é hora de se trabalhar?”. E ele disse: “Rapaz, eu quero te apresentar um louco”, e me contou essa história: “Veio

trocar um dinheiro aqui e está lá no teu trabalho”. Voltei, ainda de paletó, gravata, só não tinha o anel de formatura porque eu tinha vergonha... Nem na favela eu usava. Aí eu disse: “O senhor é o Padre Henrique?”. Ele se levantou de uma vez, pegou na minha mão, soltou e me deu um tapa (encosta a mão aberta no rosto). Eu nunca tinha levado um tapa desse jeito, diferente dos tapas da polícia. A pergunta é essa: Por que ele me bateu no rosto e eu senti um tapa energético? Sabe o que foi? (bate no rosto) “Cheguei!” (bate no rosto, novamente) Ele não disse com palavras, “Tô contigo!” (bate no rosto, novamente). Eu senti uma energia de coisas assim, não foi de humilhação, não. Ele me disse: “Tu estás a viver em uma favela?”. E eu, ainda sentindo a dor da pancada, disse: “Estou”. “É possível estar convosco?”. Eu disse: “Um padre querer viver em uma favela?”. Eu já questionava as estruturas da nossa Igreja. Ele disse: “Sim, é possível”. Eu disse: “Vamos”. E quando eu cheguei na favela, a nossa casa ficava na beira da praia. Eu coloquei a mão no ombro (do padre) e, quando eu fui me aproximando da casa, cantei para ele uma canção da barca: “Tu te abeiraste na praia/não buscaste nem sábios nem ricos/somente queres que eu te siga...”. Comecei a cantar, e o padre chorou. Ele é duro na queda! Hoje tem 92 anos. No ano passado, eu perguntei: “Padre Henrique, por que o senhor chorou?”. Ele disse: “Pela sinceridade do tom”. Eu disse: “Aqui é nossa casa, pode entrar”. Ele tinha me visto de paletó, gravata, lá no meu trabalho, e depois já de camisa comum em uma casinha de taipa sem nada, não tinha geladeira, televisão, máquina de lavar, não tinha nada. Ele meteu a mão na mesa e disse: “O Espírito Santo não está no Vaticano. Ele está aqui no meio de vós. É muito fácil você acreditar na ressurreição de Jesus, o difícil é na ressurreição dos pobres, dos sofredores e dos marginalizados”. Ele conviveu comigo dois meses e foi embora. Foi ele que deu o nome ao Projeto

“Quem muda o mundo são os jovens, porque quem tem pouco tem tudo, e, quem não tem nada, tem a liberdade”

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Durante a avaliação da entrevista, algumas pessoas falaram sobre a emoção de ouvir as histórias de Airton, o que pode ter provocado a demora da turma em entrar no “clima” de entrevista.

Quando editava a entrevista, a equipe de produção ficou preocupada com o número de páginas, porque era difícil deixar de fora algumas histórias de Airton.


Quem quiser fazer doações ao Emaús pode ligar para o telefone 3282.1382. O Movimento tem uma equipe que vai buscar em casa as doações.

Quando achou que estava de férias de um semestre muito diferente, a equipe de produção ficou sabendo que ia precisar fazer mais janelinhas, por causa do tamanho da entrevista.

Quatro Varas (Projeto de apoio à população. São prestados serviços, como a terapia comunitária, e oferecidos cursos, como o de massoterapia). Padre Henrique veio para me mostrar uma coisa muito interessante. Porque não basta só morar na favela. Eu estava só morando na favela e trabalhando na Arquidiocese. Ele saía de manhã e voltava meio-dia todo sujo de terra, ajudando os pobres a construírem casas. A polícia derrubou uma casa em um lugar que não era possível construir. Porque era a Cimpelco, uma fábrica que faliu e os operários não puderam reaver seus direitos e adentraram na fábrica, tiraram o que tinha na fábrica. E a polícia vinha para interferir. Uma vez a polícia derrubou a casa dos pobres, quando a polícia saiu ele disse: “Resistência!”. A presença dele era sempre essa presença física e envolvente com a comunidade. Ele ajudava as viúvas, as famílias numerosas, os desempregados. Eu chegava do trabalho ainda cheirando a perfume, e ele todo sujo de terra, como quem diga: “Não basta só morar na favela, o buraco é mais na frente”. A presença do Henri comigo foi para mostrar que essas opções não param, elas continuam. Existem várias formas de ação. Porque nós temos uma tendência a nos acomodar. Você acha que está fazendo uma coisa e pronto, vira mito e pronto. E às vezes você está fazendo é papel de besta. Alissa – Você acha que o trabalho que o Emaús faz é assistencialista? Se não, o que diferencia? Airton Barreto – Eu tenho uma crítica muito grande das organizações não governamentais. Porque, às vezes, as ONGs se fecham muito, fazem o papel do Estado. Não são todas, claro! Tem a filantropia e a “pilantropia” também. O Movimento Emaús é uma organização não-governamental que nasceu na França, em 1949, hoje presente em 36 pa-

“Isso lhe toca! Você está com 60 reais no bolso e vê uma pessoa ali atrás de um real pra comprar um ovo para uma criança comer e você diz que não tem? Isso é duro!”

íses. Eu faço parte desse movimento porque na sua regra de vida tem assim: “Perante o sofrimento da humanidade, empenha-te em fazer alguma coisa”. E eu só me lembrava do meu Pirambu, das favelas do nosso país. “Perante o sofrimento da humanidade, empenha-te em fazer alguma coisa, diante das tuas possibilidades e dos teus limites. Não só aliviando a dor, mas lutando contra as causas da miséria. Também não só lutando contra as causas, aliviando o sofrimento. E quem faz só um lado é desonesto”. Essa honestidade do Emaús, em aliviar o sofrimento – porque nós trabalhamos recebendo coisas que a sociedade não quer mais. Aquilo que é possível um conserto, Emaús recebe. Lá, a gente restaura, vende, faz trabalhos sociais. Estou nesse movimento porque a gente faz a luta contra as causas da miséria, quando você desperta a consciência. Através da educação, nós temos um trabalho lá em Vila Velha, lá no mangue. Tem a escolinha com 55 crianças, que moram mesmo dentro da favela. É um sofrimento muito grande, aquele pessoal. A diferença é que a gente denuncia. O dinheiro do Emaús vem da venda dos objetos usados, que foi doado pela sociedade. A gente tem liberdade para denunciar, chamar atenção das autoridades. Por exemplo, lá em Vila Velha, a gente está lá para provocar políticas públicas, ninguém está para dizer não. O Emaús tem essa política de fazer denúncias, de apontar as saídas. Alissa – Airton, vindo agora para a sua vida familiar. A Jarlyne (esposa de Airton, 27 anos mais nova) contou para a gente que vocês se conhecem desde que ela era criança. Como você passou a vê-la com outros olhos? Como se apaixonou por ela? Airton Barreto – Quem era que queria se casar com um louco? Nesses dez anos de intensa vida comunitária, eu já tinha namorado antes, achava que não dava certo para o casamento, e com esses pensamentos e essas ações, encontrar uma louca era difícil. Eu só sei que, um dia... Sempre tem uma coisa assim que vai marcando, né? Um dia, eu cheguei na casa de Jarlyne e o pai dela disse: “Jarlyne, vá buscar aquele meu paletó que eu ganhei e dê para o doutor”. Ela tinha 14 anos, ia fazer 15 anos. É aquela história, né: diz que a beleza do interior, quando se junta com a beleza exterior, é muito bom, não é? As mulheres, normalmente, amadurecem mais cedo. E Jarlyne não foi diferente. Eu percebia alguma coisa no ar, por exemplo: quando eu falava, ela queria ouvir, fazia perguntas, coisas assim, a mãe dela foi algumas vezes na casinha onde a gente morava. Ela também já tinha alguma coisa diferente,

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dizia que não queria ser igual às coleguinhas dela. É como se abrisse um véu. O pai dela estava na posição que ele está aí (aponta para o Murilo, que estava na frente dele), ela me trouxe (o paletó). Eu peguei o paletó, tapei assim a visão do velho e disse: “Para a gente usar no dia do nosso casamento”, bem baixinho para que ele não escutasse. Eu percebi que ela ouviu aquilo com um sorriso. E foi acontecendo lentamente, eu não percebia que isso ia acontecer. Fui ensinar, fui ser professor dela em uma matéria lá. E a gente percebe que, além daquela matéria, algo te interessa (risos). Eu disse: “Jarlyne, você queria namorar comigo?”, e ela disse: “Mas tem de falar com o meu pai”. Eu disse: “É quem chegar primeiro? Então vou correndo”. E falei para o pai dela: “Jayme, queria participar uma coisa que está acontecendo”. E ele era muito aberto e disse: “Tudo bem, eu não vejo nenhuma restrição quanto a isso. Agora eu lhe peço uma atenção: você deixe ela estudar. E é bom, porque ela vai ficar do jeito que você quer”. Eu tive um zelo por isso. Às vezes, eu ia ao médico com a Jarlyne, e o médico dizia: “A sua filha tem de tomar uma injeção”. Eu digo: “Aplique a injeção nela!” (risos). Eu tive muitas (conversas)... Por exemplo: “Jarlyne, a gente vai se casar, mas eu quero morar em uma casa (de taipa)...”. Eu dizia, no começo: “Gente, eu só vou morar numa casa de alvenaria quando o Pirambu tiver todo de alvenaria, a última será a minha, e eu ainda vou procurar para saber se é”. Por quê? Era a busca da coerência. Vocês viram, pelas histórias que eu contei, era a vontade de ser coerente. Porque eu via tanta incoerência na humanidade – e eu ia ser mais um incoerente também? Não era aquela arapuca, você está ali para dizer: “Olha onde é que ele mora...”. Talvez até se eu morasse melhor, fizesse um trabalho melhor. E ela aceitou (morar na casa de taipa). Lembro-me, a gente perto de se casar, eu digo: “Minha filha, é aqui”. Porque eu morei em sete lugares no Pirambu, e o último é em Quatro Varas. (A gente morava) numa casinha de taipa, simples, aí nascem os meninos. O José Luís hoje tem 14, Júlia, que hoje tem oito, e Joana, que tem cinco, coisa mais linda do mundo! Quando você se casa com mais maturidade, lhe dá o direito de você amar mais, de você aprender com os colegas os erros deles. Pode até errar mais também, mas você é consciente de dizer que ama o filho, de ter momentos muito fortes com eles. A Jarlyne dizia: “Airton, eu aceito, mas as crianças não fizeram a opção da gente. Vão passar fim de semana na casa dos colegas, e aí?”. Dito e feito.

Airton e o irmão, Adalberto Barreto, fundaram no Pirambu um grupo de terapia comunitária, que acabou virando política pública e se espalhando por outros estados do Brasil.

Thamires – Airton, a relação com seus filhos é pautada por que valores? Airton Barreto – Muitas pessoas dizem assim: “Vocês não acham... Colocar os filhos de vocês em uma favela, eles amanhã não vão falar de você?”. Eu acho que deve se passar alguma coisa na cabeça deles. Ed – Eles já comentaram alguma coisa sobre isso? Airton Barreto – Já. O José Luís, quando tinha de três para quatro anos, dizia: “Papai, quem foi que ensinou o senhor a gostar dos pobres? Foi a vovó Isa?”. Ele conheceu a minha mãe também. “Papai, por que a nossa casa é de barro, não é igual a do tio Adalberto (o professor universitário e psiquiatra Adalberto Barreto, irmão de Airton)?”. Eu esperava, um dia, eles terem maturidade para eu contar a minha história como estou contando para vocês. Eu acho que isso um dia vai acontecer. Eu não queria colocar um peso muito forte. Acho que eu escapei contando algumas histórias, e o José Luís, que é mais velho, sabe um pouco. É tanto que aconteceram alguns episódios, que a Jarlyne deve ter dito (na pré-entrevista), por exemplo: eu, vivendo uma vida na favela e ainda botar o filho para estudar em uma favela, a gente tem medo do compromisso. Botei em uma escola particular, com abatimento. Um dia, o José Luis chegou, com seus quatro anos de idade, (e disse): “Papai, hoje na sala a professora disse assim: hoje é sobre bairro. E começaram a falar qual é seu bairro, e, quando chegou na minha, disse: qual é o seu bairro, José?”. O José Luís disse: “Eu moro em uma favela”. “Papai, quan-

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Na sua fala, Airton menciona frequentemente a preocupação em ser coerente com o que acredita e prega, e isso se reflete nas renúncias que ele fez na vida.


Como parte da comunidade Emaús, Airton e Jarlyne já visitaram vários países na Europa, sempre se hospedando na casa de colegas do movimento.

Airton chegou a usar, em algumas ocasiões, o paletó que ganhou do pai de Jarlyne, mas não no casamento com a moça. Airton e Jarlyne casaram em 1997.

do eu disse isso, o Vitor se levantou e disse: de hoje em diante, não fale mais comigo. Por que ele fez isso, papai?”. Eu imaginei: “Meu Deus, com quatro anos uma criança já é discriminada”. Fui lá no colégio e disse: “Eu queria que vocês entendessem, a gente mora ali perto de Quatro Varas, onde vocês já foram ver o projeto. Aconteceu esse constrangimento...”. “Não, Airton, eu percebi”. No outro dia, a professora disse: “José Luís, onde você mora tem plantas?”. “Tem, professora”. “Tem água?”. “Tem”. “Tem coqueiro?”. “Tem”. “O José Luís mora em uma chácara, gente”. Na outra semana, ele chegou e disse: “Mamãe, não fique chateada, porque o Vitor já me desculpou porque eu moro na favela”. O Vitor me desculpou. Os meus filhos presenciaram, por exemplo: chega uma pessoa pedindo esmola, uma coisa, eu faço questão que eles mesmos deem com as mãos deles, (fala com a voz embargada) para que eles percebam que eles podem ser o que quiserem. Eu vejo a sociedade muito fechada, cada um com seu patrimônio. Que eles aprendam a partilhar e, mais do que partilhar, partilhar a vida. Uma vez, eu tirei algumas pedras dos rins, eram bem 11. Eu estava lá deitado, chovendo, ainda na casa de taipa, e uma pessoa batendo palma para entrar. Era uma mulherzinha pobre, com a banda de um guarda-chuva e uma criancinha doente (nos braços). Ela disse: “Seu Airton, me dê um real para comprar Imosec (um remédio), porque o bixim está com diarreia”. Eu disse: “Eu não tenho um tostão. Você tem, Jarlyne?”. “Tenho não”. Eu disse (com a voz embargada, chorando): “Meu filho, Zé Luís, você tem algum dinheiro aí no cofre?”. “Tem, papai!”. A alegria que ele teve de pegar o dinheiro, abrir o cofre, e disse: “Papai, pode dar, é o dinheiro que eu estou juntando para o meu aniversário, mas pode dar todinho”. Quando eu olhei, tinha 65 centavos. Não foi a quantidade, foi o gesto que ele fez. Eu acho que

“(...) os pobres começaram a visitar a minha casa. Isso foi muito forte, porque meus pais não tinham feito a opção que eu fiz”

esse gesto que a gente faz dentro de casa, em vez de estar com medo... Essa vida na favela com meus filhos, eu não joguei peso em cima deles. Também não quero esconder. Uma vez, me disseram: “Não vai enlouquecer teus filhos, não?”. Prefiro louco do que alienado. Camila – A Jarlyne falou que você tinha uma resistência a ter filhos. O que mudou? Airton Barreto – Às vezes, ela dizia assim: “Teu amor é mais comunitário do que individual”. Ela sofreu muito. Por exemplo, se eu fosse para um aniversário, deixava minha mulher e conversava com os outros: “Porque você eu tenho toda vida, os outros...”. Essa coisa, talvez mais pela maturidade. Eu acho que ela sofria muito com isso. E os filhos? Eu dizia: “Não, já tem tanta gente no mundo, se a gente botar mais um...”. Mas, com o tempo... Aquela história: não me envergonho de mudar porque não me envergonho de pensar. Os filhos, a gente vai encontrando neles uma vida, uma história, que vai se concretizando. Eu não sei, se eu vivesse só, o que seria da minha vida. Não sei. Murilo – Airton, como você se sentiria se algum filho seu seguisse a mesma trajetória que você seguiu? Airton Barreto – Teria todo o meu apoio. Todo o meu apoio. Por exemplo, a Julinha, essa que tem oito anos, chegou para mim e disse: “Papai, eu quero continuar o seu trabalho. Quando o senhor for visitar os pobres, me chame”. Às vezes, ela diz assim algumas coisas. E, às vezes, eu sinto que tem coisas no ar, entre eles. Para mim, será um prazer reforçar, apoiá-los. Isso, também, se pegassem rumos diferentes. Seu papel, como pai, é criar para o mundo e deixar que eles façam o voo deles. Uma vez, eu fiz uma viagem para a Europa (porque o Movimento Emaús é um movimento internacional, e a gente viaja muito), e uma das últimas viagens que eu fiz foi muito boa, porque eu fiz uma retrospectiva de vida. Foi assim uma projeção: “Meu Deus!”. Cheguei em casa, a minha filha, a Júlia, hoje ela tem oito, acho que ela tinha de seis para sete, ela chegou e disse: “Papai, tem uma coisa que eu quero contar para o senhor”. E pegou nesse dedo aqui (segura o dedo indicador), mas assim com tanta força... Mas a gente, às vezes, a criança quer dizer uma coisa, você diz: “Que é, menino?!”, mas eu tinha consciência de que eu tinha de dar atenção a minha filha como se fosse uma adulta. E ela me levou para o quartinho dela, sentou na cama e disse: “(imita a voz da filha, como se estivesse chorando) Papai, eu descobri que, quando a pessoa vai

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Airton já recebeu homenagens por parte do Poder Legislativo, como a Medalha dos Direitos Humanos, concedida pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará. No discurso de agradecimento, ele fez uma fala dura em relação aos políticos.

ficando velha, o cabelo vai ficando branco, e fica bem branquinho, e morre, e eu não quero que o senhor morra”. Mas, gente, dito por uma criança, e ela se escanchou aqui (no ombro dele), e chorava eu e ela, porque eu sei que a morte existe. A gente perde os pais, vai perdendo as suas raízes. Eu fui dizer: “Minha filha, não chore não, que nós estamos aqui passando umas férias”. Eu disse o que a minha mãe dizia para a gente: “Nós estamos aqui passando umas férias”. “Como assim?”. Eu digo: “É um tempo. O padre (Henrique) está com 90 (anos), a vovó Isa não morreu com 86? O vovô Hercílio...”. Comecei a citar as pessoas que ela conhecia. “E vai chegar um dia, minha filha, que o papai vai, você vai também, vai ficar velhinha também”. “E vai para onde? O senhor está falando do Céu?”. Eu disse: “É”. “Pois fale do Céu”. Ah, se eu tivesse oito anos para falar com a minha filha, ah, seu eu acreditasse em tudo o que disse. Mas fui falar: “Minha filha, o Céu é um lugar de glória, de felicidade”, me lembrou até da história do policial, “Minha filha, pense num lugar bom, de alegria”. “A vovó Isa tá lá, não é, papai?”. Eu disse: “Sim”. E vi um brilho nos olhinhos dela. Pronto, terminou a conversa. Poucos dias (depois), viajamos para São Paulo, eu e a Jarlyne. Antes de sair, ela disse: “Papai, eu queria fazer uma pergunta. Quando eu tiver 20 anos, quantos anos o senhor vai ter?”. Eu fiz as contas e disse: “Setenta e três”. Ela disse: “A gente se encontra no Céu, não é, papai?” (risos da turma). Marcella – Existe, hoje, algum desafio na sua vida? Airton Barreto – Quando eu comecei a cuidar do padre Henrique... O desafio é a velhice. Meu Deus! Eu tenho para mim que esse encontro que eu tive com o Padre Henrique não foi por acaso. E na velhice a gente vê a solidão, você vê os seus sonhos não serem realizados. Você começa a sentir as

limitações do corpo. A gente sabe que é um verdadeiro desafio. Para mim, a presença dele foi mostrar que a gente vai envelhecer um dia. E todos nós passamos por essa fase, você começa a ver o mundo diferente. Se tivesse de começar, faria tudo de novo. O meu desafio é falar um pouco para as pessoas que vale a pena viver, que tem esperança. Para mim, também, me abrir muito às pessoas que têm mais maturidade. Hoje eu respeito as pessoas que fazem coisas diferentes. Mas começar a valorizar as pessoas, de olhar para o outro e ver o que está dentro daquela pessoa. Se colocar no lugar do outro, não para substituí-lo, mas para poder compreender. Isso é que essa coisa que mudou na minha vida. Parece que, quando você chega aos 60 anos, que você não apresenta bens à sociedade, é visto como um fracassado, é alguém que não lutou para ter nada, você não fez por onde. O padre Henrique tem duas calças, duas camisas, uma bengala e um salário de trezentos e poucos (euros). Ele fez uma opção de vida. Ele diziam assim: “Eu não sou contra o progresso, recuso quando só querem me botar dentro”. Por opção ele vive assim. Eu vinha com ele, no carro, assistindo a uma rádio evangélica, que o pastor dizia assim: “Eu prego o Deus da prosperidade. Se você, ao final da sua vida, não tem bens nenhum é porque Deus não lhe abençoou”. Eu digo: “Padre Henrique, você tá lascado!” (risos da turma). Agora, gente, não tenham dúvida: pessoas como o Henri, ou pessoas que vivem opções diferentes, são tidas como os doidinhos. O doidinho: “O Airton é um idealista!”. Eu digo: “Um idealista prático, idealista é quem fica só no ar”. Você recebe o nome de doidinho. Camila – Airton, uma coisa muito marcante é que você mudou de comunidades várias vezes. Por que você faz essa opção, de criar um movimento e depois se afastar?

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Algumas das figuras citadas por Airton na entrevista são personalidades conhecidas na capital cearense. Em geral, são padres ligados a movimentos sociais e comunidades carentes na cidade.


Padre Hélio Campos, por exemplo, mudou-se para o Pirambu ao ver a carência da região. Ele também foi um dos organizadores da Marcha do Pirambu até o Centro da cidade, nos anos 60.

Padre Haroldo Coelho, por sua vez, era ligado aos movimentos sociais, e militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). O padre faleceu no dia 11 de janeiro de 2013, pouco tempo depois da entrevista de Airton.

Airton Barreto – Para não criar raízes, não criar lodo. Era assim: viver um pouco em um canto, e, ele descobriu como é a forma, sair, para não ficar muito tempo como alvo. Às vezes, você até atrapalha a caminhada. Era mais nesse sentido. E, também, para escapar, porque, às vezes, tinha ciladas que a gente tinha de... Era uma estratégia. Alissa – Airton, o que você diria, hoje, para aquele adolescente que tinha vergonha do lugar onde morava e queria sair do Pirambu a qualquer custo? Airton Barreto – O que eu diria para ele... Uma vez, uma senhora, já de idade, disse: “Doutor, vim falar com o senhor, a minha filha tem vergonha do lugar onde mora, não leva o namorado para casa...”. Eu digo: “Olha eu aí...”. E a mulher contando... Eu digo: “O que a senhora tem dentro de casa?”. Ela disse: “Só é um quartinho, um banheirinho, uma coisinha muito pequena”. Eu digo: “Mas descreva o que você tem dentro de casa. O que a sua filha diz?”. “Mamãe, a gente não tem um sofá, uma televisão que preste”. Ela começou a dizer, e eu disse: “Meu Deus, como eu entendo esse quadro!”. Qual é o problema? Ela engravidou, porque não trazia o namorado para casa, e o pai não apareceu mais – por que, nem ela sabe. Eu fui fazer ela compreender que a filha tinha razão, mas só que não foi bem conduzida. A criança já cresceu, já tem 20 e tantos anos. Eu já vi a minha história na história dos outros. Eu queria dizer para essa menina, para essa pessoa que se envergonha, dizer: “Procure ouvir os seus vizinhos, se preocupe em compreender a história da sua comunidade, da sua família. Escute a história da sua família. E, de tudo que é dito ali, se orgulhe, não se envergonhe, porque aquela história é verdadeira. Você prefere uma história verdadeira que lhe fortalece ou uma mentirosa que lhe faz sorrir?”. Eu levava para esse lado. Eu ia mostrar para essa criança: “Escute a história da sua família, não se envergonhe, que beleza de história, que riqueza de história! Abra-se para a comunidade. Escute o outro, porque foi o que aconteceu comigo”. Se eu não tivesse feito essas visitas, se eu não tivesse aberto meu coração, meus olhos, não apenas como estudante, mas como curioso, que eu queria vivenciar essa realidade, eu não tenho dúvidas de que eu estaria alienado, por um lado, e, talvez, por outro lado, muito bem de vida. Essa resposta eu devo ter respondido nas entrelinhas.

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Mesmo com mais de duas horas de entrevista, Airton estava disposto a continuar. Logo antes da última pergunta, disse que a turma poderia fazer mais quantos questionamentos quisesse.

No Ceará, além do Emaús Amor e Justiça, que fica no Pirambu, e o Emaús Vila Velha, existe também o Emaús Amor e Vida, no município de Maracanaú.

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Aurísio Cajazeiras Estudante

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// Aurísio Cajazeiras Gomes

O canto da juventude que mora no peito do homem marcado por cicatrizes da opressão militar De início, a voz falha. As cordas do violão desafinam. As letras fogem. O cenho de Aurísio Cajazeiras Gomes se encrespa no resgate de canções engavetadas na memória. O tempo o fez senhor de poucos pelos, mas a música ressuscita-lhe a alma juvenil de cabelos fartos. Surge, aos poucos, o Aurísio jovem, entoando homenagens que tece para reviver figuras pertencentes a uma outrora de escuridão. A poeira do esquecimento se esvai da vista, os versos se insuflam de energia, e as palavras se tornam protestos pontiagudos. Os acordes impedem o domínio do mofo em realidades históricas que, se já não vivem mais, tampouco se permitem morrer. O timbre melancólico de hoje é filho do canto voraz e contestador de ontem. Um presente herdeiro dos espinhos de um passado impetuoso, em que rasgar a camuflagem da repressão militar era mais do que uma ideia, era um ideal. Era um fio de Ariadne que não deixava romper a esperança de vitória sobre minotauros biônicos, cuja missão de devorar Teseus subversivos ecoava em labirintos de tortura. O espírito comunista de Aurísio é onipresente nos comentários que faz sobre o cotidiano. Alimentado pela influência dos irmãos mais velhos, o pensamento esquerdista vingou a partir do berço fértil que foi o Liceu do Ceará de 1965. A lembrança traz à tona a imagem de um colégio saturado de mentes irrequietas do movimento estudantil secundarista, como a do antigo companheiro Parangaba. Foi lá que uma centelha, na forma de jornal, acendeu em Aurísio a vontade de lutar contra as Forças Armadas. Desejo logo convertido em chama, que, posto ser infinita enquanto durasse, inflamou-o de febre política sem se arrefecer jamais. As mãos calmas que dedilham o violão surpreendem ao rememorar o fato de que se dividiam entre ensaios musicais, treinamentos guerrilheiros e distribuição de

periódicos soviéticos. A guerrilha armada, para Aurísio, era a única solução capaz de dissolver uma ditadura fortalecida a cada parada militar de sete de setembro. Se a falta de armas impediu o envolvimento direto no combate, ficou a cargo da música o papel de ser a porta-voz da dissidência brotada numa mente de cajá e mel. A camiseta, que usa todos os dias para ir às aulas, expõe o nome da paixão que nunca conseguiu esquecer: a Universidade Federal do Ceará (UFC). A mesma que o acolheu como calouro em 1968 e o inspirou para ter participação mais incisiva no combate estudantil. A mesma na qual viveu sob a mira linha-dura de professores e coordenadores pró-golpe. A mesma que, junto ao Decreto 477, apelidado de “AI n° 5 das universidades”, exigiu-lhe a declaração de repúdio ao comunismo. A mesma que, contrariada, expulsouo pouco antes da formatura. Não mais estudante de bancada, mas de coração, decidiu rumar para São Paulo. Acabou engrossando a fila de nordestinos em busca de um emprego no Sul. A voz tentou se espraiar até a televisão, porém foi barrada antes mesmo de chegar ao destino. A melodia não saiu incólume do silêncio que as fardas forçavam pousar sobre a boca de artistas. Ainda hoje, arrepios abalam a pele, quando ele lembra a única vez que sofreu tortura física e sentiu, à distância de um palmo do rosto, o cheiro fúnebre do rio Tietê à espera do corpo inerte. Décadas depois, o filho pródigo retornou ao calorento seio da mãe e terra-natal. Anistiado, pôde regressar também à universidade e ao sonho de infância de ser jornalista. A voz já acha o timbre. As cordas do violão vibram com força. As letras reencarnam com a mesma firmeza dos anos idos, e a face se desanuvia. Intitulando-se cabra da peste, vaqueiro da vida, Aurísio reitera, veemente, aquilo que sempre cantou: “Agora eu sou guerrilheiro, vagabundo, violeiro”.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Larissa Sousa Marcella Macena Entrevistadores: Alissa Carvalho Beatriz Costa Camila Mont’Alverne Ed Borges Larissa Sousa Marcella Macena Marcello Soares Murilo Viana Thaís Brito Thamires Oliveira Fotografia: Diego Sombra Texto de abertura: Ed Borges



Entrevista com Aurísio Cajazeiras, dia 04 de janeiro de 2013.

Larissa – Aurísio, você nasceu em Quixeramobim, cresceu em Banabuiú e, pouco tempo depois do golpe (1964), veio morar em Fortaleza. Teve alguma relação o golpe com a sua mudança para a capital? (Quixeramobim e Banabuiú são municípios do interior cearense) Aurísio – Teve. Essa questão da relação com o golpe é porque eu tenho dois irmãos que eles eram da Marinha do Brasil. Um era primeira classe, o outro era cabo, o mais velho. Eles eram da Associação dos Marinheiros, a famosa associação que foi liderada pelo cabo Anselmo, que depois traiu o pessoal. Depois eles foram perseguidos para matar, porque na Marinha, pouca gente sabe, mas por consequência do golpe, muita gente à noite foi fuzilada. Muita gente morreu. E eles fugiram, conseguiram escapar. Já estavam presos dentro do navio, conseguiram pular na água e fugiram de noite. Ficou todo mundo de olho no golpe, lá (no interior) todo mundo sabia que a gente tinha um pensamento de esquerda, e um vereador denunciou os meus irmãos. Eles tiveram de fugir. Como eles fugiram e nós também ficamos queimados dentro da cidade... Eu já tinha 16, 17 anos. Eu chegava em um baile, o baile acabava. O pessoal tinha muito medo do comunismo. Eles diziam que comunistas comiam criancinhas. Meu pai resolveu vir para Fortaleza, ele era do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), ele conseguiu a transferência aqui para Fortaleza. Nós viemos embora para Fortaleza no finalzinho de 64. Outubro ou novembro mais ou menos. Foi assim. (Cabo Anselmo a que Aurísio se refere é José Anselmo dos Santos, que liderou o protesto dos marinheiros, em 1964, desencadeando a crise que culminou no golpe de 1964) Marcella – Como se deu essa influência dos teus irmãos na construção dos teus ideais socialistas? Aurísio – Na década de 60, com a implantação da Revolução Cubana na América Latina inteira, não existia a terceira via. Ou você era de direita ou você era de esquerda. Não tinha aquele negócio do cara ficar em cima do muro. Então a esquerda estava muito forte na América Latina. Por isso que o americano dizia na política externa americana que eles não admitiriam uma segunda Cuba. Porque eles achavam o seguinte: se a Revolução Socialista vencesse em um país como a Argentina ou Brasil era o fim. Entendeu? Para o americano

isso aqui estava liquidado. Eles não poderiam mais colocar indústria, vender os seus bens. A maioria das empresas aqui é de capital americano. Hoje o americano tem empresa em todas as partes do mundo. Então essa é a principal questão. Marcella – (interrompendo)... Mas a influência dos teus irmãos mesmo? Aurísio – Eles já eram comunistas e passavam para mim literatura marxista, aquelas coisas da esquerda. Primeiro de saber quem foi o maior partido comunista brasileiro, quem foi Luis Carlos Prestes (1898 – 1990), começar a ler os jornais panfletários. Eu lia o jornal Voz Operária. O meu irmão era do partido comunista, até hoje ele é filiado ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil), mas na época ele era do partidão (Partido Comunista Brasileiro – PCB), era assim chamado o partido comunista. E eu recebia o jornal e comecei a ler muito cedo, eu sempre fui um cara que gostei muito de ler e comecei muito cedo a ler as coisas do marxismo. Aquelas coisas da Revolução Cubana... Era a paixão da juventude! A Revolução Cubana (1959), do ponto de vista da publicidade, era uma coisa linda! As fotos do Fidel (Castro) e do (Che) Guevara, o verde-oliva. Aquela publicidade, aquela coisa. As canções cubanas revolucionárias também. Foi assim que eu fui me aprofundando e fui achando que era o correto aquele pensamento, embora depois passaram a divergir uma série de coisas, como por exemplo a maneira de se introduzir o socialismo na União Soviética, as questões dos bens de consumo, dos maus tratos ao operário. Eu achava que o operário deveria ter do bom e do melhor. Passei a ser uma pessoa rebelde dentro da própria esquerda. Camila – Quando você veio morar em Fortaleza, já foi estudar em um colégio tradicional, que tinha as grandes elites da cidade, que era o Liceu do Ceará. O que significou para você ter contato com essas pessoas e estar naquela escola? Aurísio – Olha foi muito importante. Dentro do Liceu eu conheci um dos maiores líderes estudantis daqui, que foi o Parangaba (Carlos Augusto Lima Paz), o cara que me influenciou mesmo dentro do Liceu. E o Liceu era um colégio de classe média. Primeiro que você tinha de fazer um teste para entrar lá. Você terminava o ginásio, para entrar no colegial do Liceu, você tinha de se submeter a uma prova para

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Aurísio Gomes Cajazeiras nasceu em 22 de maio de 1946 em Quixeramobim, no Ceará. Filho de operário José Gomes dos Santos e da costureira Maria Cajazeiras Gomes, cresceu na cidade de Banabuiú com os seis irmãos.

Marcella indicou Aurísio para ser entrevistado depois de ouvir algumas histórias da vida dele como militante da esquerda durante a ditadura militar. Esse momento ocorreu durante uma conversa com os alunos da disciplina de Jornalismo no Terceiro Setor, ministrada pela professora Márcia Vidal.


Entre os escolhidos para esta edição da Revista Entrevista, Aurísio foi o que recebeu a maior quantidade de votos. A maioria dos alunos do Laboratório de Jornalismo impresso já o conhecia de vista no curso ou sabia algo da história dele.

Na definição do fotógrafo da entrevista escolheu-se Diego Sombra, também aluno do curso no 5º semestre. O conhecimento da qualidade dos trabalhos de Diego foi decisivo na escolha.

fazer o colegial lá. Era muito cobiçado o colégio. E realmente o colégio era muito bom, tanto é que eu saí do Liceu, porque fiz vestibular. Naquela época não tinha cursinho. Eu fiz vestibular e passei da primeira vez. Por sinal com uma média muito boa, tanto que eu podia inclusive fazer até Geologia ou Arquitetura se eu quisesse fazer. Eu ainda fui para Geologia, mas como lá tudo era em francês, e eu não sabia francês, eu optei pelo Jornalismo, que era uma paixão antiga minha, sem dúvida, por causa dos ideais. Thaís – E lá no Liceu como era que você percebia esse ambiente, essa efervescência logo após o golpe, que foi quando você chegou? Aurísio – Na realidade, o Liceu do Ceará era como a UNE (União Nacional dos Estudantes). O Liceu era uma referência. Por exemplo, naquela época, a UNE era mais respeitada do que os partidos políticos, a UNE era uma vanguarda popular. Quando havia uma greve a gente ia para a rua brigar com o povo. Entendeu? Quebrava ônibus se fosse o caso e resistia ousadamente. Então o povo respeitava a UNE, essa questão do movimento estudantil. E o Liceu por quê? Porque havia uma politização muito grande dentro Liceu. As lideranças secundaristas eram mais radicais do que o pessoal da universidade. Tanto é que a defesa do movimento armado aqui no Ceará foi definida por mim, um líder secundarista. Por exemplo, o (José) Genoino Neto (cearense, várias vezes deputado federal por São Paulo, ex-presidente do partido dos trabalhadores – PT), que depois acabou indo para o Araguaia, ele foi voto vencido depois. Tanto é que foi para o lado errado, foi uma grande aventura que o PCdoB fez, o nosso grupo discordou profundamente. Você não pode enfrentar o Exército brasileiro armado de pistola. Eu tinha servido o Exército em 65 e sabia do poderio militar do Exército brasileiro. Por isso que nos divergimos de ir para lá. (Guerrilha do Araguaia, movimento guerrilheiro na região amazônica, entre os fins de 1960 e metade dos anos 1970, visando à luta contra a ditadura de 1964 – 1985 e à Re-

“A Revolução Cubana, do ponto de vista da publicidade, era uma coisa linda. As fotos do Fidel e do Guevara, o verdeoliva”

volução Socialista no Brasil) Marcella – A partir da tua experiência no Exército, como era o ambiente lá nessa época da ditadura? Aurísio – Dentro do Exército, eu só tive alguns problemas quando a gente tirava serviço, porque as torturas aconteciam à noite. E, quando a gente tirava serviço, a gente era obrigado a pernoitar no quartel. Quantas vezes eu estava aqui tirando plantão e ouvia os gritos, os berros: “Ai, ai, ai! Pelo amor de Deus! Faça isso não! Pare!”. Tanto voz de homem quanto voz de mulher, isso é um negócio horrível, torturante! Até hoje eu sofro. Torturar o ser humano é um negócio complicado. Forçavam o cara a dizer muita coisa, às vezes o cara nem sabe. Larissa – A sua opção pela luta armada foi influenciada pelo seu conhecimento adquirido no Exército durante esse período? Aurísio – Em tese, porque quando eu fui para o Exército eu já tinha um pensamento esquerdista. E dentro do Exército eu resolvi aprender tudo. Vou aprender tudo, porque se eu resolver ir para a guerrilha... Para vocês terem uma ideia, eu aprendi a desmontar até uma granada. Hoje a granada é digital, mas naquela época você tinha de saber manusear uma granada. Porque a granada tem dez segundos para explodir. Quando você descarta o pino dela, você tem de ir contando mentalmente 10 segundos, até com nove segundos você pode se salvar. Mas você tem de saber fazer o manuseio da granada. E eu aprendi tudo lá, aprendi a atirar de metralhadora, de fuzil, de pistola, de revólver, de (pistola) 45, que, por incrível que pareça, é o tiro mais complicado. Muita gente que vai atirar de 45, ele atira assim (mostra com as mãos a posição certa), porque o sopapo que ela dá na mão... Pode dar um tiro aqui e a bala ir para lá (como se atirasse para um lado e a bala fosse para outro). A bala faz um zigue-zague, porque ela é uma arma muito poderosa, apesar de ela ser pequena, tem quase o poder de uma metralhadora. Marcello – Aurísio, você disse que já era de esquerda quando chegou no Exército. Isso atrapalhou de alguma forma lá? Aurísio – Atrapalhou, porque eu cheguei a ser preso lá dentro do Exército por indisciplina. Nós formamos um grupo lá dentro. Naquela época, estava surgindo a Bossa Nova e tinha um menino lá dentro que tocava percussão, o outro tocava violão muito bem, era o Wilson Gomes, que foi meu parceiro. Inclusive ele chegou a ser músico de Elis Regina (1945 – 1982), para você ver como o cara era fera mesmo. E lá dentro do quartel existia uma série de coisa absurda. Uma vez nos saímos para fazer um treinamento de guerrilha dentro do (Rio)

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Cocó. A gente atravessava aquelas lamas. Era mês de outubro. Estava um calor danado e a gente era obrigado a atravessar aquela lama carregando fuzil e, às vezes, a gente topava cobra, topava caranguejo. E, quando a gente chegava ao quartel, chegava com muita fome. Às vezes eles iam fazer lanche para a gente. O Exército recebia um leite em pó americano, eram umas caixonas de leite. E nesses leites, eu não sei se eram os ratos que furavam as caixas por baixo de papelão, entrava barata. Um dia nós chegamos para tomar esse café e, quando demos fé, o rancheiro lá tirando as conchonas cheias de barata no leite e jogando lá. Eu disse: “Nós vamos beber esse café com barata, rapaz?”. Eu subi em um banco que tinha lá e fiz um discurso lá dentro. Daqui a pouco chegaram quatro soldados e me prenderam. Levaram presos eu e o Wilson, que é esse meu colega. E esse meu outro colega já tava preso por indisciplina também, o outro que tocava percussão. Levaram nós três para lá. Nós passamos uma semana em uma solitária. Eu me lembro que a minha irmã mais nova foi até levar um bolo para mim e não pôde, porque eu estava em uma solitária, preso. E, quando nós entramos em outro quarto lá, numa sala, o tenente estava com um chicotezão, batendo assim nas pernas, em um banquinho igual esse aqui e ele fazendo ameaça para a gente, dizendo que comunista merecia chibatada. Os outros meninos não sabiam negócio de esquerda não. Eu já sabia das coisas todinhas, sabia o que era tortura e tal. Sabia o que havia na Nicarágua, nas ditaduras da América do Sul. A gente recebia os informes de Cuba. Alissa – Aurísio, você disse que defendeu a luta armada. Qual foi efetivamente a sua participação nessa luta armada e na guerrilha aqui em Fortaleza? Aurísio – Na realidade, isso foi só uma defesa, porque na realidade não aconteceu nada. Por exemplo, no nosso grupo, nós tínhamos um cara que também era militar. O Edson Brasil fazia Jornalismo. Só quem defendia a luta armada dentro do curso era o Edson Brasil, a Maria Quintela e eu. Nos três éramos muito radicais. E o Edson Brasil foi da Associação dos Marinheiros, ele veio fugido também do Rio para cá. Ele era colega dos meus irmãos. Meu e dos meus irmãos. E ele foi escondido aqui no meio da nossa família, a gente que escondeu ele aqui. Ele conheceu uma menina aqui e se casou com essa menina. A mulher gostava muito dele e tudo. Comecei a estudar com ele e passamos nós dois juntos. E ele era militar, um cara fantástico! Acho que já está aposentado ele. Ele tem a minha idade, mais ou menos, não, ele é mais velho, porque já era militar na época. Na época do golpe, ele já

Durante a pré-entrevista, realizada com Aurísio, ele constantemente cantava músicas que compôs durante a juventude, como “Se Arrebenta”, “Meu Brasil, meu grande amor” e “Camuflagem”.

era da Marinha, ele já deve ter seus 70 anos. Mas ele é um cara fantástico, inclusive ele já foi acusado aqui de que era da turma do cabo Anselmo, mas nunca foi verdade isso não. Um cara muito conceituado. E ele só deu conselho: “Pessoal, nós não temos condições de ir para a guerrilha armados só de pistola. O que a gente deve fazer é... Eu tenho uns contatos para a gente ir para Cuba. Vamos tirar uns passaportes falsos e a gente vai para a Cuba, treina e vem armado. Que é o que está acontecendo agora na América Latina, a turma está indo para a Nicarágua, outra turma está indo para a Bolívia, outra turma está indo para o Panamá, uma série de países”. Naquela época a América Latina inteira tinha guerrilha. Camila – E vocês foram para Cuba? Aurísio – Não, nós não fomos porque nós fomos minoria. A turma do Araguaia foi quem venceu, liderada pelo Genoino. José Dirceu (ex-deputado federal e ex-ministro da Casa Civil do governo Lula – 2003/2005, quando foi cassado) chegou a vir aqui umas duas vezes organizar... Eu participei de reuniões em que o José Dirceu estava, porque ele era um cara que tinha dinheiro para financiar a guerrilha. O Genoino não era filiado ao PCdoB, mas ele foi um cara que, pela força da liderança que ele tinha aqui no Diretório Central dos Estudantes (DCE), quando ele foi presidente do DCE, ele foi candidato para presidente da UNE quando o AI-5 colocou tudo na ilegalidade. Então o Genoino expressivamente foi o maior líder estudantil aqui do Estado do Ceará. É uma expressão nacional praticamente, nordestina e nacional. O que aconteceu? A turma do Genoino foi a favor de ir para o Araguaia e a nossa turma de ir para Cuba. Eu era filiado na época ao Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), mas você sabe o que quer dizer

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A todo o momento, a produção se questionava sobre o material de leitura e o direcionamento da entrevista, sempre preocupada em manter o padrão de qualidade da Revista Entrevista. Nas conversas de bastidores, o assunto sempre era o dia da festa de lançamento.


No primeiro contato pelo telefone com Aurísio, ele logo topou conceder a entrevista. Entretanto, essa só poderia ser realizada às terças e sextas devido a um tratamento de saúde que fazia nos outros dias da semana.

MR-8? Por causa da morte do Che Guevara, 8 de outubro. Então o que aconteceu? O MR-8 era atrelado ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB, partido de oposição ao regime ditatorial, atual PMDB). O registro dele estava nas fichas do MDB que virou PMDB. A gente passou a ser mal visto. “Pô, vocês são do MDB, rapaz! Vocês não têm moral para nada”... Quando já tava iniciando a questão da guerra ideológica. O que destruiu na realidade a esquerda internacional como um todo não foram os americanos não, nós nos destruímos por si sós, porque passamos a brigar internamente por uma série de questões de ideias. Não havia um consenso das ideias. Existiam as questões das correntes: a linha cubana, a linha de Moscou, a linha chinesa, a linha do Vietnã, a linha albanesa, o pessoal do Guevara que era o meu caso, eu era a favor da luta armada. A coisa afunilou para isso. Foi isso que aconteceu. Ninguém foi para Cuba, uma turma foi para o Araguaia, aconteceu aquele desastre e tudo. E eu estou vivo aqui porque... Se eu fosse do PCdoB eu não estava aqui com vocês. Eu tinha ido. Beatriz – Aurísio, então por que você se filiou ao MR-8? Aurísio – Porque eu era um cara que idolatrava o Che. Eu era um cara apaixonado, naquela época, toda a juventude era apaixonada pelo Guevara. A própria imagem do Guevara, aquela semelhança com um cristo revolucionário, uma coisa verdadeira, uma coisa muito pura, e a gente sabia de uma série de coisa do Guevara que a gente... Ele chegava à fila do banco, ficava na fila para ser atendido. Chegou à Organização das Nações Unidas (ONU), tirou o sapato e disse: “Os Estados Unidos fedem mais que o meu chulé”. Então a juventude idolatrava. É um dos homens mais respeitados do mundo ideologicamente. Murilo – No MR-8, você chegou a aprender técnicas de guerrilha mesmo? Aurísio – Cheguei. Eu treinei. Eu tinha o

livro Guerras e Guerrilhas, do Guevara. E eu inclusive fui um cara que ensinei muita gente a atirar. O próprio Bergson Gurjão, que eu até fiz uma música para ele, foi um cara que eu ensinei a atirar. Eu ensinava ele a atirar e ele me ensinava a fazer os coquetéis (Molotov). Eu fazia Jornalismo e ele fazia Química. Ele era um cara grandão. Inclusive ele foi jogador de basquete também. Era um cara de classe média alta, era um cara muito fantástico, lia muito, mas ele queria realmente a questão da guerrilha imediata, a guerrilha urbana. É tanto que ele foi para o lugar errado, ele foi o primeiro cara que morreu no Araguaia. Tombou assim que chegou lá. Viu um comando do Exército, foi lá, partiu para cima dos caras que meteram bala nele. Foi o primeiro cara que morreu no Araguaia. Larissa – Como era o ambiente, o clima aqui dentro da universidade no período da ditadura? A sua relação com os amigos, com os professores... Aurísio – O clima estudantil vai ser e será sempre um clima de harmonia, mas uma coisa diferente. Tanto é que, quando a gente está no ginásio, é uma coisa, quando vai para o colegial é outra, quando vai para a universidade é outra. Às vezes tem professor que diz: “Rapaz, tu ainda não se libertou do colégio? Tu estás é na universidade”. Naquela época, a universidade era... O estudante estava predestinado a derrubar a ditadura. Nós não tínhamos acordo com a ditadura. Não havia diálogo mais com a ditadura. O que a gente queria? A gente queria a renúncia dos militares, mas os militares não iam renunciar, rapaz! A gente queria que eles convocassem eleições, e eles disseram que não iam convocar. Até eles derrubaram Castello Branco (1º presidente do regime ditatorial – 1964 – 1966) por causa disso. Castello Branco queria eleição, e eles não concordaram. A linha dura do Costa e Silva (sucessor de Castello, 1967 – 1969) não concordou com a eleição. E foi por isso que baixaram o Ato

Tamanha é a paixão de Aurísio pelo Jornalismo que ele frequentemente usa uma blusa de cor azul claro com o nome do curso nas costas. Essa é uma das suas marcas na faculdade, além, é claro, do violão.

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Institucional nº5 (13/12/1968). Tem até um fato interessante: o Gonzagão (Luis Gonzaga, o Rei do Baião), quando estourou a revolução, apoiou a revolução, por causa da igreja lá de Juazeiro (do Norte, interior cearense). O Gonzaguinha, filho dele... Eu cheguei a fazer várias aberturas de show com o Gonzaguinha, em São Paulo e também na Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), no Rio de Janeiro. O Gonzaguinha já era procurado pelo Exército, pela polícia. Ele era um esquerdista, um militante. Eles eram intrigados, o Gonzagão e o Gonzaguinha não se falavam. Quando foi dia 13 de dezembro de 68, a ditadura baixa o AI5, o Gonzagão soube dos negócios tudinho e disse: “Rapaz, esses caras fizeram isso logo no dia do meu aniversário? Eu não quero mais saber desses caras mais não, eu vou é telefonar para o Gonzaguinha e dizer que ele está certo, quem está certo é ele”. Ligou para o Gonzaguinha, foi quando eles fizeram aquela música: Minha vida é andar por esse país... Eles fizeram as pazes com essa música. É uma coisa que pouca gente sabe disso, mas é verdade essa história. Alissa – Aurísio, a gente sabe que alguns professores eram vistos como “dedos-duros” mesmo do movimento estudantil. Como era essa relação tão conturbada? Aurísio – Primeiro eu quero dizer que tudo que eu estou dizendo a vocês aqui é da mais funda verdade. Eu sou um cara que sou aposentado com um salário mínimo, entendeu? Sou uma cara que eu não tenho visão de pretensão de querer ter dinheiro. Eu sou um cara muito simples, uma pessoa simples. Eu não viria aqui para vocês para inventar as coisas. Então o que aconteceu na realidade foi o seguinte: só existiam aqui dentro uns dois ou três professores que eram do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), mas eram professores recrutados pela ditadura, pelo Governo Federal. Quem não era, ficava ali a redil. E tinha o coordenador que também era do CCC. Então existia uma cúpula aqui que vivia só monitorando a gente. Eu recebia a revista Tempos Novos, de Moscou, que era uma revista em português, recebia o jornal Grama, do Partido Comunista Cubano em português e recebia o jornal Voz Operária, do Partido Comunista. E nós fazíamos um jornal aqui também. Um jornal chamado A Centelha que a gente fazia lá no Liceu, que eram os secundaristas que faziam o jornal. Era no mimeógrafo. Uns artigos, umas coisas, uns negócios. Marcello – Teve algum caso concreto de desconforto entre você e algum professor na sala de aula ou no ambiente externo da universidade? Poderia citar? Aurísio – Teve, várias vezes. Eu não gostaria de dizer o nome dessas pessoas, até mes-

mo porque eu acho a classe dos professores tão injustiçada neste País... Não por esses caras terem me perseguido, sabe? Eu acho que não é correto (citar nome). O professor chegava na classe para dar aula, eu entrava na classe com uma sacola cheia de livro e o professor dizia assim: “Pessoal, eu só vou dar aula quando o senhor Aurísio Cajazeiras se ausentar”. Os impasses começaram assim. Inclusive, tinha um professor que foi um dos grandes radialistas aqui de Fortaleza, que ele não perseguia só aluno não, ele perseguia outros companheiros, como Xyco Theóphilo (jornalista e publicitário). Theóphilo já me disse: “Rapaz, eu fui muito perseguido por fulano de tal”. Eu disse: “Rapaz, eu não sabia que te perseguiam também não, porque você era um cara mais moderado”. Ele: “Não, mas é porque eles diziam que a gente escondia vocês, que a gente passava as notícias para vocês”. Quantas vezes eu ia chegar na faculdade tinha um cara lá no meio do quarteirão correndo e dizia: “Rapaz, não vai para lá não que a turma está lá para te pegar”. Isso aconteceu várias vezes de eu ter me esconder. Beatriz – Como você participou da difusão dos ideais socialistas, comunistas aqui no ambiente acadêmico? Aurísio – Aquilo que eu falei, eu recebia esses jornais. Qual era a minha função? A minha função era distribuir nos diretórios. Camila – (interrompendo)... Por que você era o encarregado de receber esses jornais? Aurísio – Como eu era filiado ao MR-8, o pessoal do MDB recebia esse material e morria de medo. A turma sabia: “Rapaz, dá para o Cajazeiras que ele é um cara que está na faculdade e tem coragem de distribuir”. A turma recebia o material e tinha medo de distribuir, e eu não tinha. A turma me dava o material e eu ia nos diretórios tudinho. Eu ia lá na faculdade de Medicina, ia na Engenharia, ia na Odontologia que era aqui na Praça José de Alencar, vizinho ao Theatro José de Alencar, aqui no pessoal da História. A turma sabia que eu fazia

“Você não pode enfrentar o Exército brasileiro armado de pistola. Eu tinha servido o Exército em 65 e sabia do poderio militar do Exército brasileiro”

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Hayanne Neves estudou com Aurísio na turma de Jornalismo de 2009.1 e contou em entrevista que Aurísio sempre dá um jeitinho de compor músicas homenageando os colegas de classe e os professores.

Além disso, Hayanne ainda relatou para a produção que Aurísio costumava contar muitas histórias sobre a vida dele. Dentre elas, estão algumas sobre o dia em que ele deixou o comunismo e de sua primeira viagem ao Rio de Janeiro após passar no vestibular.


Apesar do fácil acesso ao convidado, a produção teve dificuldades em marcar entrevistas com pessoas ligadas à vida de Aurísio devido à proximidade do final de ano. Muitas pessoas estavam de recesso. Rosa da Fonseca falou com a produção um dia após o Natal.

isso. Chegou no bico do coordenador e de alguns professores. Quando eu chegava lá, havia esse confronto achando que o perigo era comigo. A turma começou a me perseguir, do Comando de Caça aos Comunistas. Mas muitos outros também foram perseguidos aqui dentro. Beatriz – Além da distribuição dessas revistas, você participou de algum ato? Aurísio – Baseado nisso aí, a gente convocava muita reunião para debater. Como essa revista não poderia ser distribuída, sabe o que a gente fazia? A gente tirava os principais artigos, xerocava e ia distribuir nos ônibus. Quantos discursos eu fiz dentro dos ônibus aqui em Fortaleza? Eu ia dentro do ônibus, pedia um minuto de atenção do pessoal, fazia o discurso e distribuía os panfletos. O pessoal aplaudia assim (palmas). Agora era um ato de coragem, porque de repente podia ter um policial dentro do ônibus e você ser preso. Era bastante complicado. Thamires – Aurísio, quando você estava na UFC, você se recusou a assinar um termo para

a Globo ia dizer? Que os militares torturavam e matavam? Assis Chateaubriand (Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, empresário do grupo de Emissoras e Rádios Associados, a maior cadeia de Tv, rádio e jornais do país na época) ia dizer que os militares torturavam e matavam as pessoas? Ao contrário, eles estão dizendo hoje que a ditadura era branda. Larissa – Quando você estava na faculdade, chegou a se apresentar no programa do Paulo Limaverde (jornalista e radialista) na extinta Tv Ceará. Essa sua música era uma forma de representar a sua arte ou também era uma arma contra a ditadura? Aurísio – Era contra a ditadura também. Eu e o Wilson, nós fizemos uma Bossa Nova e se queimaram com a gente só porque a gente mostrava um pouquinho... Eu falei que estava sem emprego. A música era chamada Homenagem: “Canto minha homenagem para ela,/ mas não vou a casa dela/ nem a vejo no jardim,/ porque tenho uma vida vazia,/ sem emprego e todo dia/ eu espero o meu fim”

“A diferença de hoje para aquele tempo é que o estudante ele não é mais politizado, mas ele é mais bem informado por causa da tecnologia, os meios de informações”

As reuniões da equipe de produção para elaborar a pauta e outros trabalhos relacionados com a entrevista de Aurísio ocorreram na casa de Larissa. Inclusive, a mãe da estudante chegou a convidar Marcella para comemorar as festas do final do ano na casa da família.

se dizer anticomunista. Você acha que foi por isso que você foi expulso? Aurísio – Não, eu acho que principalmente foi por causa do negócio da panfletagem. A perseguição mesma, dura, começou comigo por causa da panfletagem. Os militares morriam de medo da esquerda. Eles tinham medo da esquerda tomar o poder, porque só quem tinha ideal para convencer a população era a esquerda. Qual é o ideal que tem a direita? Marcello – Você foi expulso da universidade com base no decreto 477. Não é isso? Aurísio – Foi não. O 477 foi quando eu me recusei a assinar a questão da matrícula em 1971. Eu fui expulso da universidade por causa do AI-5, que foi baixado em 13 de dezembro de 1968. A gente estudava, mas a gente era praticamente clandestino, porque nenhum estudante tinha garantia nenhuma nem de receber o diploma, porque o AI-5 podia cassar, a qualquer momento, qualquer estudante. Era um poder muito forte o que o Ato Institucional nº5 tinha de cassar a cidadania, e não era só a nossa não. Eles fecharam o Congresso, rapaz! Os militares não gostavam de estudante, porque eram os estudantes que diziam as bobagens que eles faziam, as coisas ruins que eles faziam. O que a imprensa ia dizer? O que

(cantando). O comando da 10ª região (militar) estava assistindo ao programa, porque só tinha o canal 2 aqui. Mandaram o pessoal lá, dois civis fichar a gente. Quando nós terminamos o programa, eles deram parabéns para a gente dizendo que eram da imprensa, nós fomos na onda. Eles pegaram o nosso endereço, só que os caras eram dois agentes da Polícia Federal. Ficharam a gente, só por causa dessa música. A coisa foi embora até chegar na música Camuflagem, que eu falei de guerrilha. Quando eu cheguei em casa, nos levaram presos para Recife. Murilo – E o que aconteceu na prisão? Aurísio – Eles me levaram só com a roupa do corpo, não tive direito de levar nenhuma sacola com nada, nem escova de dente eu pude levar. Eles me pegaram, quando a minha irmã foi se despedir de mim botou um papelzinho na minha mão com o endereço de uma pessoa lá de Recife. Foi o que me salvou. Chegaram lá e me soltaram na rodoviária. E dois agentes foram me ameaçando no caminho, pagaram tudo no caminho para mim café, almoço e janta. E disseram: “Olha teu pai e tua mãe podem amanhecer boiando com a boca cheia de formiga. Tua irmã pode amanhecer boiando no Lagamar (bairro pobre em Fortale-

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za). Então é melhor tu acabar com essas ideias de esquerda”. Ficaram com ameaças psicológicas, a chamada tortura psicológica. Eu passei um ano no Recife, sem poder vir aqui. Para eu poder vir aqui, minha família teve de pegar um atestado na Polícia Federal para provar que não tinha mais nada contra mim e eu poder voltar para a universidade de novo. Um ano que eu perdi de faculdade. Thaís – Aurísio, eu queria voltar só um pouco a sua vivência aqui na universidade. Como era a comunicação entre as pessoas ligadas à resistência, ao movimento estudantil? Porque havia uma perseguição muito forte, né? Como era que vocês faziam para se reunir e se comunicar? Aurísio – Primeiramente era assim, de dia a gente quase não se reunia. Quantas vezes aqui gente não dormia aqui nesse bloco? Discutíamos política até de madrugada. A gente mandava buscar lanche. Alguém era encarregado de comprar os lanches. E a gente geralmente discutia os problemas que a gente tinha

muito engajado com a questão da ideologia. Eu estou vivo não sei por quê. Eu apanhei muito de polícia aqui dentro dessa Fortaleza. Agora para vocês terem uma ideia, no dia da morte do Guevara, nós ocupamos Fortaleza. Foram todos os estudantes, todas as classes. Todos os colégios particulares. Naquela época, não tinham os grandes colégios que têm hoje. Era o Liceu, Colégio Cearense, Castelo Branco e o pessoal da universidade, que não existia a Universidade Estadual do Ceará (Uece) ainda. Entendeu? E nós, segundo a polícia, que eram oito a dez mil alunos no centro de Fortaleza. E nós fomos cercados pelas três armas, só que nós quebramos o centro de Fortaleza todinho. E eu me lembro que passei um mês de cama do pau que eu levei da polícia, principalmente aqui (pega nas costas) na região da clavícula e das costas. Levei um corte na cabeça. Eu passei um mês acamado. Meus pais pensaram até que eu ia morrer. E eu não queria ir pro hospital com medo de eles dizerem o que eu tinha, o médico querer saber o que aconteceu

com o governo e tudo e com a própria questão interna da universidade. A gente discutia à noite, de dia a gente estudava. De madrugada também a gente destacava a turma que ia pichar muro. A gente tinha o trabalho de pichação também que era muito importante, tinha de ter dinheiro para comprar tinta. Por exemplo, grupo tal vai para bairro tal, geralmente era quem tinha carro. A classe média sempre tinha carro e tudo. A classe média veio para a universidade gratuita, né? A gente fazia pichação de carro, porque naquela época não tinha negócio de roubo, assalto não. A gente fazia serenata aqui com o violão embaixo do braço, não tinha roubo. E todo mundo dormindo e a gente pichava os muros. Procurava os melhores lugares visuais para a gente fazer isso. Beatriz – Para se matricular, o aluno tinha de assinar o documento se dizendo anti-comunista. Você podia muito bem assinar o documento, blefar e continuar com essas reuniões aqui, mas você não fez, não assinou. Por quê? Aurísio – Eu não fiz, mas muita gente fez isso. Beatriz – (interrompendo)... Por que você não fez? Aurísio – Eu não fiz porque eu era um cara

e eles me pegarem lá. Era isso que acontecia. Ed – Aproveitando que você falou dos seus pais. O que eles achavam do seu engajamento no movimento estudantil? Quando eles viam que você sofria abuso dos policiais, o que eles achavam, sentiam e falavam para você? Aurísio – Meus pais na realidade sofreram muito desde quando os meus irmãos vieram expulsos da Marinha, tanto é que hoje eles são oficiais da Marinha anistiados. Meus pais sofreram muito quando os meus irmãos vieram para cá, porque meu pai foi preso lá no Banabuiú. Inclusive meu pai ficou a noite todinha levando chuva para dizer onde estavam meus irmãos. E os meus irmãos passaram o rio a nado, que o pessoal foi avisado que o Exército estava lá. Um vereador lá de Quixadá (município a 160 quilômetros de Fortaleza) foi quem dedurou meus irmãos aqui em Fortaleza. E levou o Exército para lá. Os meus irmãos passaram o rio a nado, mas os soldados não sabiam nadar e não passaram. Mas meu pai vinha sofrendo muito. Meus pais já estavam calejados. Quando eu me transferi para São Paulo, que eu fui expulso aqui da universidade, meu pai veio pegar a minha transferência e foi preso aqui. Levaram meu pai para o Corpo de Bombeiros, preso. Ele passou um dia

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Em São Paulo, Aurísio foi demitido da indústria química Grace, onde trabalhou por quase 20 anos, pois denunciou a empresa no Sindicato dos Químicos por não estar sendo remunerado de acordo com o piso salarial referente à sua posição.

No processo que Aurísio moveu contra a UFC, o jornalista Xyco Theóphilo, que estudou junto com Aurísio, foi testemunha. Xyco afirma que os amigos chamavam Aurísio de “guerrilheiro”. O jornalista também participou da Revista Entrevista na 7ª edição.


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“O estudante estava predestinado a derrubar a ditadura. Nós não tínhamos acordo com ela. O que a gente queria? A gente queria a renúncia dos militares (...)”

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Pela complexidade histórica do período abordado na entrevista, Larissa e Marcella constantemente procuravam Aurísio nos corredores da UFC para tirar dúvidas com relação a datas e esclarecer fatos que ele relatava.

Aliás, durante todo o período de produção da entrevista, Aurísio foi interpelado pela equipe de produção seja almoçando no RU (Restaurante Universitário), pelo celular ou encontrando com ele nos espaços de convivência dos estudantes, mais conhecidos como “ventinho” e “ventão”.

lá. Quando eles viram meu pai ele disse: “Eu vim soltar meu filho. Ele quer voltar a estudar, mas ele ainda vai dizer onde está, eu não sei”. Ficaram monitorando meu pai. É tanto que esse documento meu de transferência era de cá para São Paulo. Um cara que foi daqui conhecido da gente, durava 15 dias para chegar em São Paulo. E o cara foi daqui e levou meus documentos para lá. Ed – Seus pais tentaram fazer você desistir de continuar nesse movimento? Aurísio – A esquerda exige muito uma renúncia de vida. Quantos esquerdistas não tombaram? Você não vê um direitista morrendo por nada não, só morre se um policial jogar uma bomba, jogar uma bomba lá e o cara morrer (risos). Mas direitista não tem ideologia, a esquerda tem ideologia, só que a esquerda errou muito. Em cima da ideologia do conceito de justiça social, a esquerda fez muita coisa errada. Em alguns casos, mais do que a direita. Agora na minha visão, o cara só é esquerdista se ele reconhecer isso. E eu reconheço isso. Eu sempre combati as coisas ruins de dentro da esquerda. Marcello – Aurísio, quando você saiu da universidade e foi impedido de frequentar as aulas, você foi para São Paulo. Por que São Paulo? Aurísio – Porque eu estava queimado, daqui para Recife todo mundo me conhecia, eu tinha medo de ser pego. Eu fui embora para São Paulo, eu fiquei na clandestinidade, perambulando de 73 em diante. Em 72 eu fui para lá e, quando cheguei lá em São Paulo, quando meu pai conseguiu minha transferência – Porque quando eu cheguei em São Paulo eu escrevi para o meu pai, porque eu tinha medo de vir aqui na universidade pegar. Meu pai veio pegar aqui a minha transferên-

cia. O coordenador deu a minha transferência, mas, ao mesmo tempo em que ele deu a transferência, ele passou um telegrama para São Paulo dizendo que eu era subversivo, procurado, que eu era um elemento perigoso. A Universidade de São Paulo (USP) disse: “Olha você é federal, nós não podemos lhe admitir, mas nós podemos submeter você a um exame, a uma prova, vale tantos pontos, se você atingir isso aqui nós ainda vamos pensar em lhe matricular aqui”. Eu já estava no último semestre. Submeteram-me a uma prova lá, naquela época era a Revisão. Revisor de matéria. Você pegava um texto daquele e tinha de corrigir as coisas. Deram-me um texto de correção e umas coisas lá sobre diagramação. Eu tinha trabalhado no jornal aqui como repórter, aprendi a diagramar umas coisas, deu certo. Eu tirei 77 pontos. Quando foi na hora de fazer a minha matrícula eles disseram: “Rapaz, tem duas coisas aqui, você tem de assinar o decreto 477, que ainda está em vigor, e tem um telegrama aqui dizendo que você é comunista. Que você é um terrorista”. Colocaram-me em uma situação muito complicada. Mas na hora vinha chegando o Vice-reitor para Assuntos Estudantis e ficou ouvindo a conversa. Eu disse: “Não rapaz, não vou assinar isso aqui não”. Eu era cabeludão, era totalmente diferente disso aqui. Mal vestido, maltrapilho, eu não tinha nada, só não andava de pé no chão. Apesar disso aí não fazer diferença, porque Jesus Cristo nasceu numa manjedoura e o Papa tá coberto de ouro. Então o que aconteceu? O vice-reitor me chamou: “Ei rapaz, venha cá, pois você recorra. Está tudo contra você, mas tem alguém dizendo que você tem direito de recorrer. Aqui dentro da universidade ainda não é lá fora não. Aqui quem mandamos ainda somos nós. Você tem direito de recorrer. Recorra. Vamos ali.” Ele me levou para o canto lá, me deu um papel e disse: “Assine aqui e preencha tudo isso aqui. Pegue seus dados, assine e deixe o resto comigo. Quando for daqui um mês venha buscar o documento comprovando que você recorreu, que eu vou mandar isso aqui para o departamento”. Ele disse o nome do departamento lá da USP. Foi isso aí que me salvou, porque, se eu não tivesse recorrido, eu tinha perdido o direito, tinha caducado, né? Ele disse: “De quatro em quatro anos, você tem de recorrer de novo”. Aqui mesmo eu recorri ainda duas vezes, em Fortaleza, para não perder. Eu vinha aqui e fazia o papel de requerimento e tudo. Eu tenho uma irmã advogada que fazia tudo, protocolo. Foi assim que eu me anistiei. Murilo – Quando você foi para São Paulo, lá em São Paulo, a sua resistência contra a ditadura continuou? Aurísio – Continuou, porque lá na USP era

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que o negócio era pesado, muito mais do que em qualquer lugar do Brasil. A Universidade de São Paulo sempre foi muito politizada. Lá era um ambiente muito fechado, porque foi lá onde surgiu a guerrilha urbana. Pouca gente sabe disso. A guerrilha urbana surgiu dentro da USP. E lá do lado do São Francisco, da Faculdade de Direito. Que eram os grandes focos da turma lá, dos militares. Eles perseguiam o pessoal da Universidade de São Paulo. Porque o outro lado, que era a Mackenzie, só tinha o pessoal da direita da Mackenzie (faculdade Mackenzie privada). Ou você era da direita ou você era da esquerda. Então, era o pessoal da Faculdade de São Bento, o pessoal da USP e o pessoal da Mackenzie. Alissa – Mas você deixou em algum momento de lutar, de participar ativamente da luta contra a ditadura? Aurísio – Na realidade, quando aconteceu uma série de coisas, passei um ano e tanto na clandestinidade. Eu sei que de 72 em diante, quando eu fui para São Paulo, eu vim voltar a trabalhar já em 76. Eu passei todo esse tempo desocupado, porque eu estava muito perturbado mentalmente. Eu só não cheguei a enlouquecer, mas é uma coisa horrível você se olhar sem dinheiro, sem família, sem ninguém, jogado no meio do mundo, a esquerda discutindo ideias. A gente vendo o carnaval, as festas, e você lá enclausurado dentro de uma universidade sem poder fazer nada. E não havia uma tomada de posição. Você não tinha salário, não tinha nada, não tinha arma para lutar. Aquele negócio foi me enchendo. Quando eu vi que realmente não ia dar em nada, foi que eu resolvi escrever uma carta para a minha família e pedir meus documentos tudinho, porque eu não tinha documento não. Alissa – O que você ficou fazendo lá durante esse período? Aurísio – Fiquei fazendo subversão, pichando muro. Eu comia de graça lá na Universidade de São Paulo. A turma me dava os passes e eu comia lá. Eu dormia lá no alojamento da universidade e fiquei esse tempo todinho. Camila – Enquanto estava em São Paulo, você se inscreveu no Festival da Tv Manchete com três músicas e chegou a ser preso antes mesmo de cantar. Aurísio – Mas isso já foi depois, já foi no final do governo Figueiredo (João Baptista de Oliveira Figueiredo, 1979 – 1985). Foi quando eu passei a trabalhar... Camila – Ah, você já trabalhava (interrompendo)... Aurísio – Foi aí que eu resolvi me estruturar socialmente. Porque de 72 até 75, eu era um zé ninguém, eu era um cara clandestino. Está entendendo? Eu não trabalhava, não ganhava dinheiro. Então, quando o cara é assim, é

Eu estou vivo não sei por quê. Eu apanhei muito de polícia aqui dentro dessa Fortaleza (..) eu me lembro que passei um mês de cama do pau que eu levei da polícia. Eu passei um mês acamado. um cara socialmente inútil. Quando eu vi que aquilo não ia dar em nada, eu resolvi procurar um emprego, procurar trabalhar. Daí quando foi em 85 já... Quantas décadas depois? Muito tempo depois, nove anos. Mas eu sempre continuei estudando música, estudei acordeón, estudei bateria, estudei teoria musical, nunca abandonei a música, porque a música é uma coisa que até hoje eu mexo com ela. Quando a Manchete começou em 85, ela só passava Rio/São Paulo. Um dia eu abri o canal e vi aquela imagem boa, começou a falar do negócio do festival. Cheguei na firma que eu trabalhava e contei para um amigo meu. Ele disse: “Rapaz, escreve as tuas músicas”. Eu escrevi três músicas. “Meu Brasil, meu grande amor”, “A verdadeira história de Antônio Conselheiro” e “Se arrebenta”, que é o melô do trabalhador. Que eu cantava lá nos shows, cheguei a cantar no 1º de maio, uma música que eu cantava pro pessoal. Eu escrevi as três músicas e recebi um telegrama da Manchete falando que o meu trabalho estava aprovado, mas precisava mandar para a censura. Aí que o negócio complicou. E eu mandei. Dez folhas de cada uma, datilografada, assinada e reconhecida firma. Era isso que a Polícia Federal exigia. Eu fui levar para a Polícia Federal. Eu estava de férias, no dia que eu voltei a trabalhar, uma semana depois, a menina da recepção me chamou: “Aurísio, tem dois senhores aqui querendo falar com você”. Pensei que era um pessoal do Ceará, porque nunca ninguém foi atrás de mim lá no emprego, eu nunca tinha tido problema com ninguém. Quando cheguei, eles me prenderam lá: “Você está preso”. Camila – O que foi que você passou na Estação da Luz? Aurísio – Teve um acontecimento grave desse episódio comigo lá, porque eles me le-

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Aurísio casou com Teresinha e teve dois filhos: Gabrielli, 32, e Bruno Barreto, 22. Avô de Laysa e em breve de mais um neto. Atualmente, vive com a segunda mulher, Ana Cerly.

Aurísio é bem expressivo. Durante a entrevista, os gestos que ele fazia eram determinantes na compreensão das emoções que o músico transparecia. As mãos rápidas ajudavam a contar os fatos pelos quais passou.


Com o número do processo de Aurísio em mãos, a produção foi até a Pró-Reitoria de Administração da UFC em busca de detalhes sobre o processo contra a Universidade. Lá informaram que não havia nenhum dado.

Desde garoto, Aurísio tem uma “paixão” pela música. Ele compunha e tocava violão. Em 1967, começou a compor músicas com o amigo Wilson Gomes. O estudante afirma que música dele tem influência do forró de Luiz Gonzaga e da MPB.

varam preso. Eu fiquei 14 horas preso lá na Estação da Luz. Lula (ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva) transformou até em um museu. Dilma (Rousseff, atual Presidente) foi presa lá também. Thamires - É no Departamento de Ordem Política e Social (Dops)? Aurísio - No Dops. Só tinha torturador ali. Quem fundou o Dops foi até o ex-delegado Fleury (Sérgio Fernando Paranhos Fleury, 1933 – 1979), era um cara quente que fundou o esquema do Dops. O que aconteceu? Eles foram me buscar na empresa eram sete e meia para oito horas. Quando deu nove horas eu cheguei em um prediozão lá esquisito. Não sei se a Presidente Dilma já estava presa lá, se eu não me engano ela já estava presa lá. Eles me deixaram 14 horas preso lá, sem comer, sem beber nada. Quando eles me prenderam eles disseram: “Você está preso porque você é subversivo, você escreveu essas músicas aqui criticando o governo. Quem você pensa que é?”. Começa aquela questão de tentar atingir você psicologicamente. “Quem é você para libertar o Brasil?” Que na música tem assim: “Trabalhador se arrebenta,/ trabalha, trabalha,/ luta, se esforça/ feito um fela da puta,/ para ninguém reconhecer”. Eles ficaram putos com isso daí. Com o refrão da música. Eu disse que era um compositor. E eles: “Mas você é um compositor de merda”. Foram me xingando, mas não chegaram a me bater não. Eles me jogaram lá, abriram o portão e me colocaram lá, escorado no portão e era assim (mãos imprensando o rosto), você não tinha como dobrar as pernas nem nada. Você ficava aqui assim em pé. Entendeu? Era um sacrifício. (Aurísio se confunde com as datas, porque a Presidente

Dilma, quando lutava contra a ditadura, ficou presa entre os anos 1970 – 1972) Nessa brincadeira eu fiquei 14 horas, e os meus outros colegas aqui, eles disseram para mim que já estavam há dois dias lá. Eles só comiam uma sopa. Eles chegavam e só davam uma sopa por um canudinho. Quando foi onze e meia, o cara que chegou para trocar o serviço com o outro disse assim: “Pega esses três caras, está aí o saco”. O helicóptero vem de madrugada pegar para jogar no Tietê. “Pega esse compositor de merda e bota junto também”. Muitos desse pessoal eram jogados pela polícia no Tietê e parte desse pessoal... É por isso que eu digo, isso tinha de ser investigado, porque eu tenho certeza que os crânios desses meus dois amigos estão lá. Porque eles foram encontrados boiando lá no Tietê. Quando foi mais ou menos onze e meia, lá no fundo, ele olhou para mim, estalou os dedos e queimou um envelope amarelo com as letras das músicas todas dentro. Mas a fita – naquela época, você dava a letra e uma fita cassete – ficou com ele. Ele disse: “Rapaz, eu vou ficar com a fita porque eu gostei da letra, eu sou cearense. Eu vou te salvar”. Eu disse: “Rapaz, e esses dois meninos aqui?”. Ele disse: “Esqueça! Eu estou salvando só você”. Por isso que os dois amigos meus amanheceram boiando no Tietê. Fico todo arrepiado. Eu vi no jornal, na Folha de São Paulo: “Dois corpos foram encontrados boiando no Tietê”. Entendeu? Quando boiava a imprensa ia, e os que afundavam? Ed – Durante essas 14 horas que você ficou sem comer e sem beber, você se arrependeu de ter enviado as músicas? Aurísio – Não. Que esquerdista sou eu? Que revolucionário sou eu? Eles usavam a tortura para conseguir muitas coisas da esquerda, e muitas vezes o cara morria, mas não confessava. Muitos companheiros da gente morreram. Muito cara morreu e não entregou. Mas muitos não aguentavam a primeira chibatada e já diziam tudo. Cabo Anselmo entregou 200 colegas da gente para morrer. Entendeu? O Jorge Paiva (integrante do movimento cearense Crítica Radical) foi um dos caras que o cabo Anselmo entregou para morrer, mas conseguiu fugir aqui para o Ceará. Mas estava na lista do cabo Anselmo para ser assassinado lá em São Paulo. Tanto que ele veio embora para o Ceará, nunca mais voltou para o Rio. Mora aqui até hoje. Thamires – Quais torturas você viu e como isso o afeta hoje? Aurísio – Eu não cheguei a ver, eu fazia só ouvir aqui no 23º BC, que eu servi o Exército aqui. Era de madrugada e eles levavam as pessoas para torturar em uns galpões do lado do que a gente estava tirando serviço. Eu estava

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de serviço aqui, em frente ao Arsenal Militar. Onde era que os soldados iam tirar serviço? Ou em redor do quartel ou no Arsenal Militar, guardando as armas. Por exemplo, está guardado ali mosteiro, metralhadora, fuzil, aí tem de ter um soldado ali na porta. Porque esse galpão só tem uma porta. Fosse quem fosse só entrava ali quem eu autorizasse. Quando você está de serviço ali, você manda mais do que o comandante do quartel. A autoridade é sua ali. Eu estava de plantão ali e do lado os soldados iam torturar as pessoas ali. De murro, de pancada, eu ouvi muito essas coisas. Eu passei muitos anos doente psicologicamente. Eu me salvei porque eu sou músico, eu toco violão. Eu pensava besteira e pegava o violão. Tanto que eu nunca fiquei sem violão. Essa era a questão. Alissa – Aurísio, o que você viveu em termos de tortura na ditadura? Isso afeta hoje ainda psicologicamente? Aurísio – Psicologicamente não me afeta, me afeta como pessoa, como ser humano. Porque a gente vê tanta coisa bonita que o ser humano faz, né? Uma poesia, como uma música, como a educação, ensinar as pessoas. Você quer uma coisa, um legado mais bonito do que a renúncia de ser professor. Porque professor no Brasil era pra ser bem remunerado e não é, todo mundo sabe disso. E é o cara que ensina, que deveria ser mais respeitado e não é. Eu por exemplo tenho muita sensibilidade, eu só dei uma tapa no meu filho e outra tapa na minha filha, quando eram pequenos. Porque eu não tenho senso de violência. É tanto que eu nunca concordei com o terrorismo dentro da esquerda. Porque o terrorismo mata gente inocente, pessoas inocentes. Essa foi uma das grandes causas, uma das grandes questões que eu passei a ter inimigo também dentro da esquerda. Aqui mesmo no Ceará, tive vários inimigos. A turma queria partir pra bomba... Pra esquerda terrorista. Botar bomba nos cantos. E o nosso grupo nunca foi a favor disso. Porque o terrorismo você pode ver aí. Tá num país, o pessoal numa igreja, numa mesquita rezando... Explode uma bomba lá mata milhares, dez, 20, 30, 100 pessoas inocentes que não têm nada a ver com o negócio. Essa não é a ideologia. Isso é terrorismo. Isso eu sou a favor dos EUA. Mas não da maneira como eles combatem. Marcella – Você disse que sofreu mais tortura psicológica do que física. Quais foram as torturas psicológicas que você podia...? Aurísio – A tortura psicológica é o cara ameaçar minha família, ameaçar meus pais. De que meus pais iam amanhecer boiando com a boca cheia de formiga, minha irmã podia amanhecer boiando no Lagamar, entendeu? Aquelas coisas, tortura psicológica.

“(...) eu só não cheguei a enlouquecer, mas é uma coisa horrível você se olhar sem dinheiro, sem família, sem ninguém, jogado no meio do mundo” Marcella – Houve outros tipos de ameaças depois? Aurísio – Novos tipos de ameaça, por exemplo, muitas perseguições. Quando eu estava aqui na universidade que eu passei no Banco do Nordeste, que mandou prova pra duas vagas pra estagiários, eu fiquei em segundo lugar, eu fui um dos aprovados, quando eu cheguei lá, fiquei preso 8 horas dentro do Banco do Nordeste. Eles queriam que eu dissesse onde estava o Genoíno, onde estava o pessoal que já era clandestino. Eu dizia: “Eu não sei, rapaz”. O Banco do Nordeste era aqui, por trás do Cine São Luiz ali, naquele mesmo prédio do Cine São Luiz (na praça do Ferreira, o coração central de Fortaleza). Lá em cima era o Banco do Nordeste. Alissa – Aurísio, você disse que a música o salvou, tirando esse viés de protesto, qual o papel que a música tem e teve na sua vida? Aurísio – Olha, quando surgiu a Bossa Nova... Não sei se vocês já ouviram falar em um estilo de música chamado música de protesto. Por exemplo, o Gonzaguinha fazia música de protesto, muita música dele foi censurada. Chico Buarque era um escritor. Compositor censurado. É tanto que o Roberto Carlos nunca teve uma música censurada. Alissa – Tirando esse viés de música de protesto, além disso? Aurísio – Além disso... Porque a música é uma coisa que toca o sentimento da pessoa. Eu defendo até uma campanha... Se eu tivesse chance de ter chegado ao governo diria assim: “Troque seu revólver por um violão”. Eu acho que o governo deveria fazer: “Troque seu revólver por um pistom, por um sax” “Troque seu revólver por um teclado, por um clarinete”. Não era uma campanha legal? Pra que arma? Por que estão acontecendo essas tragédias nos Estados Unidos? Por que nos Estados Unidos todo mundo tem três, quatro armas em casa. Pra que isso, gente? O

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Apaixonado por música, em 2003, Aurísio montou a banda de forró “Cajá com Mel” em Quixeramobim. A banda existiu por um ano e chegou a se apresentar no “Programa do Ratinho”.

No Liceu do Ceará, colégio em que Aurísio estudou o colegial (atual Ensino Médio), já estudaram grandes personalidades cearenses, como o ex-governador Lúcio Alcântara, o ex-prefeito Juracy Magalhães e o empresário Edson Queiroz.


Aurísio foi preso e levado para o Departamento de Ordem e Política Social (Dops), antigo prédio localizado na região da Estação da Luz (SP), onde a atual presidenta da República, Dilma Rousseff, também fora presa e torturada.

Quando voltou para Fortaleza há 14 anos, Aurísio trabalhou como free lancer na criação de jingles. É aposentando há dois anos, recebendo um salário mínimo.

Americano é um dos povos que fazem mais músicas. A música mais bonita do mundo é a música americana. A segunda é a brasileira e a terceira é a música cubana, entendeu? São os países que fazem a música mais bonita do mundo. Em Cuba, existem 20 ritmos diferentes de música. Todas essas músicas que tocam: lambada, salsa... Surgiu tudo lá... O bolero. Todo mundo sabe, surgiu tudo lá em Cuba. A música americana é uma coisa linda! Pra que arma? Arma vale nada? O que os Estados Unidos construíram para o mundo com arma, me digam? Beatriz – Aurísio, durante a ditadura você participou da luta armada, achava inclusive que o debate com os militares era desnecessário. Como você vê esse seu posicionamento extremo hoje? Aurísio – Primeiro, os militares, quando tomaram o poder, prometeram fazer eleições gerais. Começou com o Castello Branco, que disse: “Nós vamos daqui a um ano e meio”. O que é que aconteceu? Quando ele disse isso daí... Que ele (Castello Branco) tava próximo de terminar o governo dele. Ele foi derrubado. Castello Branco não renunciou. Castello Branco foi derrubado no Estado. Só que a imprensa não pôde divulgar isso, a imprensa... “Castello Branco foi afastado”, não disse que ele foi derrubado. Ali foi um golpe dentro de um golpe. Foi a linha dura das Forças Armadas que derrubaram o Castello Branco. Tá entendendo?! Nós queríamos eleições. Como não ia haver eleições, agora nós vamos pra luta. Ficou definido que todo mundo ia pra luta. Só que cada um pensava de um jeito. A turma pensou em ir pro Araguaia. Outros queriam ir pra Cuba, outros faziam a guerrilha urbana. Eu fazia parte dos pichamentos de rua. Havia os

panfletos que eu lhe falei que a gente ia pra dentro dos ônibus denunciar os generais. Tá entendendo o negócio? Essa também, era uma forma de luta embora não fosse uma luta confrontal, mas era luta ideológica. Da esquerda contra a direita. Por isso, que eu lhe digo, naquela época não tinha centro. Era direita e esquerda. E o movimento militar brasileiro era de direita. Nem de centro e direita. Ele era de direita. Tanto é que o Castello Branco quis maneirar um pouco, mas caiu fora. Beatriz – Você disse que não é violento, mas participou da luta armada. Você já chegou a apontar a arma pra alguém? Pra algum militar? Aurísio – Não, não. Quando eu treinei guerrilha... Eu ensinei o Bergson Gurjão a atirar. A gente ia lá pra onde hoje é o Beach Park (Parque Aquático na praia, em Aquiraz, pertinho de Fortaleza). A gente treinava lá. A gente ia num Jeep “véi” que ele tinha. Acho que era do pai dele esse Jeep. Ia um bocado de pessoa que hoje eu não recordo o nome. Lembro que o Genoíno uma vez foi, e ele não quis nem pegar na arma. Ficou só de longe, de vigia. Ficou só de guarda olhando se vinha alguém. Quer dizer, o comandante da guerrilha não sabia dar um tiro de pistola, rapaz! Você vê que erro. Isso não tem nada de revolucionário. O Fidel morava na Sierra Maestra. Ele era um estrategista, militar. Apesar de ser formado em Direito, ele foi aprender a atirar tudo quanto é coisa. Lá na Sierra Maestra. E o Genoíno ia pra lá, ali (Porto das Dunas) pra gente ensinar a atirar. Era eu, o Edson Brasil... A gente sabia atirar bem. E ele não foi lá pegar numa arma, ele não sabia dar um tiro. Como é que um homem desse comanda uma guerrilha e não sabe dar um tiro? E outra coisa, uma coisa que nós combatíamos também, o desastre do Guevara aqui na Bolívia. Em 67, o Guevara – armado até os dentes – foi derrotado na Bolívia com 200 guerrilheiros do Guevara. Só na retaguarda, ele tinha 20 guerrilheiros. Antes de chegar no Guevara morreram 20. O Guevara morreu, pra vocês terem uma ideia, com seis metralhadoras na mão. Uma na mão e cinco do lado dele ali. Dentro da sacola tinha quatro e mais uma do lado, que é pra quando acabasse o armamento dele, ele pegar outro. Não tinha esse negócio de trocar de bala não. Ele jogava fora e pegava outra. Mesmo assim, ele foi assassinado. Sabe por quem? Pelos Boinas Verdes americanos. O Guevara não foi derrotado pelo exército boliviano. Ele foi derrotado pelos Boinas Verdes, o exército mais bem treinado do mundo, que é o exército americano, entendeu? E eles também estavam aqui dentro do Brasil. Eu mesmo vi aqui dentro do 23 BC vários americanos falando inglês aqui dentro do 23 BC... Comungando em inglês as

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coisas que eles diziam que nós não sabíamos, porque nós não sabíamos inglês. Eu vi muito... Oficiais da Marinha americana aqui dentro do 23 BC dando ordens em inglês pro pessoal... Só pra cúpula que também sabia alguma coisa de inglês. Geralmente, esse pessoal sabe inglês, entendeu? Camila – Aurísio, quando você foi morar em São Paulo de vez porque você tomou a decisão de se estabelecer em São Paulo mesmo? Aurísio – Na realidade eu não sabia fazer nada. Só sabia tocar violão e não cheguei a me formar. Não podia exercer a profissão de jornalista porque eu cheguei pra ser repórter, mas em São Paulo tudo é muito difícil. Eu levei um currículo pra Folha de São Paulo, para o jornal O Estado, Folha da Tarde, Jornal da Tarde – que até faliu –, mas ninguém me deu nem resposta. Eu precisava sobreviver. Você num canto você tem de sobreviver, você tem de vestir, tem de comer, tem de morar. E em São Paulo não existe nada de graça pra ninguém não. Onde que eu fui? Fui no Sesi (Serviço Social da Indústria). Fui lá no sindicato. Cheguei lá bati na porta. Lá tinha uma moça. Contei minha história pra ela: “Eu era nordestino cheguei aqui. Só que eu não tenho nem documento” “Rapaz como é que você vem pra cá sem documento”. Eu disse: “Pois eu vou mandar buscar os meus documentos” “Pois vá buscar seus documentos e traga pra cá que eu arranjo pra você fazer um curso aqui (sindicato). Que você come aqui mesmo no Sesi de graça e não paga nada. Arranjo até alojamento pra você aqui”. E foi isso que aconteceu. Fui buscar meus documentos. Minha família providenciou tudinho, meus documentos e tudo. O meu primeiro emprego foi no Grupo Pão de Açúcar, mas na época chamava-se Grupo Eletroradiobraz, era o maior grupo de logística de São Paulo. Era até de um português...A família do Abílio Diniz comprou. Depois chamou de “Jumbão”. Hoje é o Grupo Pão de Açúcar. Eu trabalhei três anos e meio. E já entrei como encarregado de faturamento. Era um cargo importante já. Porque olha: Eu tinha quase curso superior. Quando eu mostrei o meu currículo... O chefão lá era do Ceará. Ele disse: “Eu tô precisando de um encarregado aqui. Você sabe dá ordem?” “Rapaz eu dou ordem até em você se precisar” (risos de todos). Até brinquei com ele assim. “Então você é o cara”. Eu fiquei como encarregado de faturamento. Trabalhei três anos e meio no Grupo Pão de Açúcar. Quando o grupo entrou em crise, disseram pro pessoal: “Olha os chefes vão passar um ano sem aumento. Aquele que não concordar quem não concordar, pode ir pro departamento pessoal, paga, indeniza e tudo”. Eu fui porque não concordei ficar um ano sem

aumento. Eu já estava fazendo um curso de Química à noite. Foi quando eu comecei a mandar currículo e essa empresa americana (indústria química Grace) me chamou... Fiz o teste. Deu tudo bem. E eu trabalhei 19 anos e nove meses nessa empresa (Grace). Entrei como auxiliar de produção e saí como gerente de produção. Murilo – Nessa época, a ditadura já estava nos finalmente. Quando você começou a trabalhar nessa empresa? Aurísio – Eu comecei em 76, ainda era essa ditadura ainda, né? Porque vocês pensam que depois do governo Figueiredo. Quando aconteceu o Festival da Manchete, ainda tinha tortura e tinha muita coisa. Até no governo Sarney ainda tinha tortura. A máquina da ditadura não se desmanchou da noite pro dia não. Apesar do Figueiredo ter decretado a anistia, que o pessoal voltou tudim... Muito nego caiu numa armadilha. Muito nego foi pego, entendeu? Larissa – O Festival de Música da Manchete que você participou foi em 85? Aurísio – Foi em 85. Foi quando a Manchete estava iniciando. Era até no governo do Brizola. Ele tinha sido eleito governador. Que até o pessoal dizia que foi o Brizola que financiou (a TV Manchete). (Leonel de Moura Brizola, governador do Rio de Janeiro, entre 1983 e 1987 e 1991 e 1994. Faleceu em 2004). Marcella – Aurísio durante esse tempo você tinha movido um processo contra a UFC, quando você tinha sido expulso. E você nunca desistiu. Você sempre recorreu... Por que você nunca desistiu disso? Aurísio – Porque eu também não fazia nenhum mal nem bem, né? Já que é um direito que eu tenho de recorrer. E eu tinha aquele sonho de voltar a estudar o Jornalismo porque eu sou fã do Jornalismo de carteirinha. O bonito é fazer o jornal. É complicado e bonito. Eu dava valor a essas coisas tudo. Então eu vou fazer a faculdade de Jornalismo, concluir a minha faculdade. E foi um sonho. Toquei pra frente, mas só seria possível se eu recorresse. Porque, se passar quatro anos e eu não for lá, caduca e eu perco e não posso mais. Thamires – Você voltou a UFC depois de 37

“Até no governo Sarney ainda tinha tortura. A máquina da ditadura não se desmanchou da noite pro dia não”

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Os entrevistadores, Thaís e Marcello, que integram a turma de Laboratório de Impresso, apreciaram bastante a música de Aurísio, “Se Arrebenta”. A canção ainda hoje é cantarolada pelos estudantes.

Em 1970, Aurísio se filiou ao MR-8, uma organização política de ideologia socialista que se utilizou da luta armada para enfrentar a ditadura. O MR-8 surgiu em 64 no meio universitário, na cidade de Niterói, com a denominação “Dissidentes da Guanabara”.


Aurísio pediu para a produção para cantar algumas músicas ao final da entrevista. Um dia antes, ele avisou para a produção que levaria o violão caso não chovesse. Por sorte, o estudante chegou à sala de redação carregando o instrumento nas costas.

Depois de terminada a entrevista, Aurísio cantou músicas que tocava na noite de São Paulo, nos tempos em que era cover do Fagner. Ele cantou canções como “Borbulhas de amor”, além de composições próprias do período em que foi militante da esquerda.

anos. O que mais o impactou? Aurísio – (interrompendo) trinta e seis anos. Thamires – O que mais impactou nessa volta? Aurísio – O que mais me impactou nessa volta foi voltar a conhecer pessoas como: o professor Ronaldo Salgado, professor Godofredo, pro-fessor Riverson, professor Agostinho Gósson, o Gilmar de Carvalho, meu colega de faculdade também. E o ambiente universitário. O ambiente da universidade é saudável sabe. O ambiente universitário é muito bom. Marcello – Você começou a faculdade do início, em 2009. O que é que você sentiu quando você pisou no primeiro dia de aula? Aurísio – Eu me senti um cara de sorte, tá entendendo? Muitos amigos meus... Tem uma amiga nossa aqui a Tânia. Essa minha música chamada “Meu Brasil meu grande amor”, o arranjo: “Norte da vida sofrida, do sol, da lua querida”. Uma melodia linda! Essa menina morreu mexendo com uma granada. Ela era mais revolucionária do que eu, a Tânia. Era uma menina que tinha um núcleo de esquerda. Era uma menina que organizava um núcleo... E ela morreu mexendo numa granada. Muita gente morreu... Muita gente sumiu. Tinha um colega meu, o PT (Petestrato Neto), da música que sumiu também eu fiquei... A gente chegou uma vez na televisão e até hoje ninguém sabe do cara. Aí inventaram. Disseram que tava em Paris. Nunca ninguém soube onde esse rapaz estava. Um dos maiores músicos aqui do Ceará, que eu considero. Antes do Fagner e do Belchior. Que quem primeiro começou televisão aqui fui eu, Wilson (Wilson Gomes) e o PT. Depois foi que surgiu o Fagner, o Belchior, o Ednardo, aquele pessoal surgiu depois de nós, entendeu? E esse menino o PT, o Petestrato, o nome dele é PT, mas é Petestrato Neto, um baita de um artista. E sumiu, um cara que cantou uma música na televisão criticando o governo...Era assim: um sábado era com ele e outro sábado era com nós, comigo e o Wilson. O Cláudio Pereira, finado Cláudio Pereira, me viu tocando num barzinho aqui em Fortaleza, falou que era coordenador do programa do Paulo Limaverde: “Vou levar vocês pra lá”. Ai levou a gente pra lá. O Cláudio Pereira foi testemunha na minha anistia. Saudoso Cláudio Pereira. Morreu há um ano atrás. Foi secretário de Cultura em Fortaleza. Um cara importante. (Aurísio não chegou a conhecer Tânia, porém todos do curso de Jornalismo comentavam a respeito da história dela). Larissa – Aurísio, você vivenciou a universidade em dois momentos distintos, durante a ditadura e agora com a democracia, quais são os novos desafios pra você? Aurísio – De ver a universidade valorizando acima de tudo, mais do que ela já está va-

lorizando – do governo Lula pra cá – , o professor... Pra mim só existe ensino bom se o professor for bem valorizado. Tem de investir primeiro no professor. Dar todas as condições para que o professor possa amar o seu campo de trabalho. Mas, pra mim, o sentido é esse...O governo deve investir muito mais. A gente tem de chegar àqueles 12% do PIB para educação. Isso é uma batalha, que eu defendo. A universidade só vai se completar quando ela der valor geral ao professor. Que professor não faça greve, entendeu? Valorizar seus funcionários. Thaís – Aurísio, voltando a fazer mais um contraste entre a sua vivência aqui na universidade nos tempos da ditadura e o seu retorno. Como é que você percebe a diferença das gerações? Você foi um jovem aqui dentro nos anos 60, começo dos anos 70 e agora nos anos 2000. Como é que você percebe essas duas gerações em relação à consciência política, aos acontecimentos? Aurísio – Muito interessante essa sua pergunta. Existe um escritor literário chamado... Esqueci o nome dele, se eu lembrar do nome dele eu digo no final. A gente era proibido de ler esse livro dele. Ele era considerado um direitista, mas era um cara...O cara que criou a globalização, como é o nome dele? Aquele escritor da globalização... Camila – (interrompendo)... McLuhan! Aurísio – McLuhan (Herbet Marshall McLuhan, canadense, 1911-1980). O McLuhan a gente não podia ler naquela época. Se um cara fosse visto com um livro do McLuhan era considerado um cara de direita. Porque ele era considerado um escritor conservador. Mas o que ele disse naquele tempo está acontecendo agora. A diferença de hoje para aquele tempo é que o estudante não é mais politizado, mas ele é mais bem informado por causa da tecnologia, os meios de informações. A questão do computador, a questão da internet, a questão do celular, tá entendendo? Essa é a diferença porque o mundo se modernizou. Agora o que não se modernizou, não foi a consciência politica não, entendeu? O que se modernizou foi a tecnologia, foram as maquinarias. Eu, por exemplo, não vivo sem esse celular mais não. Eu saio de casa sem esse celular. Eu volto pra ir buscar. Essa é que e a realidade de hoje. Camila – Aurísio, você falou dos seus companheiros que morreram, que sofreram tortura, mas eu quero saber quanto aos que mudaram de lado com a redemocratização. Você tem alguma mágoa em relação a eles? Aurísio – Não, porque a consciência humana é um livre arbítrio. Ninguém é dono da verdade. Por exemplo, eu nunca aceitei a perseguição ideológica. Dentro da esquerda também tinha isso de se marcar um cara, sabe?

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Perseguir com a chamada...Tutelar a pessoa ideologicamente também. Eu me tornei revolucionário porque eu fui ler. Eu fui tomar conhecimento e eu acho que a justiça nasceu... O mundo nasceu para ser justo. Ele não nasceu para ser injusto não. Que o homem não nasceu explorando. Ele nasceu bebê ali, bonzinho. Rousseau (Jean-Jacques Rousseau, filósofo iluminista, 1712-1778) já dizia isso. O homem nasce bom e justo, a sociedade é que o transforma em um bandido. Tá no livro de Rousseau, A origem da propriedade (Em verdade, o título original é: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, escrito em 1754 e publicado em 1755). Então eu não tenho direito jamais de ter mágoa de nada. O que a gente tem de dizer é a verdade. Agora eu não vou é dizer que militar era bonzinho, em 64, porque ele não era. Eles torturaram barbaramente e, quando eles não torturavam mandavam alguém fazer. Era o caso do Fleury, entendeu? Mandava fazer. E os que eles torturavam inocentemente? Acusado sem direito. Hoje em dia todo bandido tem um advogado. Naquele tempo ninguém podia ter um advogado não. Não podíamos ter um advogado não. Minha família não pôde constituir um advogado pra mim. Eu fui expulso aqui e não tive direito a um advogado. Hoje em dia um bandido mata outro: “Só falo com meu advogado”. Nós não tínhamos direito de defesa não. Esse é que era um problema grave, que foi a ditadura que estabeleceu isso. Não existia esse negócio de você ser preso e ir lá o advogado tirar você não. A gente fazia era sumir. Larissa – Hoje você se considera um dos poucos militantes da época da ditadura que luta contra o capitalismo? Aurísio – Não, hoje não existe mais... A esquerda não existe mais. Eu me considero um velho simpatizante da esquerda porque o movimento da esquerda. Hoje virou zé ninguém. O que vale hoje é a tecnologia. Então, a esquerda fracassou, entendeu? Por exemplo, com todo respeito que a gente tem com Cuba, mas Cuba hoje não representa mais nada para o mundo do ponto de vista ideológico, de mudar a sociedade. Ninguém mais vai seguir o exemplo de Cuba. Eu, por exemplo, vou chorar quando Fidel morrer...Vou chorar. Mas não resolve o problema. O que resolve o problema hoje no mundo é o capital desde que ele seja bem aplicado. Vocês querem um exemplo maior do que o Brasil. Eu não votei no Lula gente, mas o Brasil virou um país do Lula pra cá. Antes do Lula o Brasil não era um país. Marcello – Aurísio, o Brasil vive um período de articulação da Comissão da Verdade. Na sua opinião, por que diferentemente de países como a Argentina e Chile, o Brasil não

Durante o levantamento de informações, a produção procurou falar com os irmãos de Aurísio, João Ataide Gomes e João Ataliba Gomes. Porém, o estudante não conseguiu entrar em contato com eles, pois não mantêm mais relações tão próximas.

conseguiu avançar tentando revisitar esse passado de ditadura? Aurísio – Essa é uma pergunta muito importante porque eu também tô dentro desse negócio da Comissão da Verdade. O meu processo tá lá em Brasília até agora. Não foi analisado sabe por quê? Porque eu tenho testemunha, mas não tenho prova cabal. Por quê? Lá em São Paulo se o cara (policial do DOPS) tivesse me devolvido o envelope pra mim...Ele queimou o envelope. E eu lá queria saber de envelope, rapaz! Eu queria saber era de salvar a minha vida. Aqui (UFC), quando eu vim pra aqui na coordenação que tinha a circular lá dizendo que eu não podia mais assistir aula... Ninguém tem a cópia aqui. Não tinha computador na época. O caba quando foi saindo aqui da coordenação rasgou e jogou fora. Que não era doido, não era otário. Chamada “a queima de arquivo”. Quando ele foi saindo, limpou as gavetas. Jogou tudo fora. A cópia da circular, a cópia do telegrama que mandaram lá pra São Paulo não tá em lugar nenhum. Eu vou fazer o quê? Eu cheguei para os caras: “Rapaz, é o seguinte, eu não sou doido não. Eu não vou inventar não. Eu tenho meus testemunhos, estão aqui”. Levei as quatro testemunhas que eles pediram e relatei de punho. Tudo o que estou dizendo pra vocês aqui (da comissão), eu disse em seis laudas pra Universidade Federal do Ceará. Relatei tudo o que aconteceu comigo. Murilo – Quem são essas testemunhas? Aurísio – Cláudio Pereira – já faleceu –,

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A produção marcou a entrevista com Rosa da Fonseca para o dia 24 de dezembro, visto que era o melhor dia para a militante. Na manhã do dia 24, Larissa ligou para Rosa, mas ela disse que seria melhor remarcar para o dia 26, visto que não percebera que era véspera de Natal.


Aurísio pediu para a produção para cantar algumas músicas ao final da entrevista. Um dia antes, ele avisou para a produção que levaria o violão caso não chovesse. Por sorte, o estudante chegou à sala de redação carregando o instrumento nas costas.

Depois de terminada a entrevista, Aurísio cantou músicas que tocava na noite de São Paulo, nos tempos em que era cover do Fagner. Ele cantou canções como “Borbulhas de amor”, além de composições próprias do período em que foi militante da esquerda.

professor Gilmar de Carvalho, professor Godofredo- já estão aposentados os dois- e a Quintela. A Maria Quintela e o Xyco Theóphilo. São cinco testemunhas. Pessoal que militou comigo, estudou comigo e sabe do que aconteceu. Por isso, meu caso...Está na Comissão da Verdade. O Xyco Theóphilo fala que a minha música foi censurada no festival aqui. Essa minha música “Meu Brasil, meu grande amor”, que eu escrevi a letra aqui: “Norte da vida sofrida/ do sol da lua querida/ de forró, de farinhada/ e de vaqueiro e vaquejada/ E por falar em vaquejad/ eu sou vaqueiro na vida/ Eu sou vaqueiro na vida/ Mas, meu Brasil, meu amor/ Para mim terá valor/ até que a vida se finda. Será que acaba a maldade/ por justiça e liberdade/ Que que é isso companheiro/ Quem vai, quem chega primeiro/ pra libertar meu amor/ Meu Brasil meu grande amor”. Por causa da letra, eles acharam ruim por causa disso, porque eu escrevei essa letra aí. E a melodia é da Tânia, essa menina que morreu com a granada na mão. Essa menina que fez a melodia dessa música. Murilo – Aurísio, com relação à Comissão da Verdade, a gente sabe que ela não tem um caráter punitivo. Você deposita nessa comissão a esperança de que o País realmente resolva essa dívida histórica que ele tem com as vítimas do regime? Aurísio – Murilo, a minha mãe fala assim: “Nunca cutucar onça com vara curta”. Olha, vocês não sabem da história. Eu fui militar sei como que é. Os oficiais das Forças Armadas Brasileiras são extremamente reacionários. Quem está lá dentro das Forças Armadas é doutrinado para ser conservador. Quando você chega na China, você tem o Exército Popular da China, Exército Popular do Vietnã, Exército Popular de Cuba, Exército Popular Francês já. A França tem Exército Popular.

Portugal tem um Exército Popular, mas o Brasil não tem. O oficialato brasileiro é conservador. Então os governos inteligentes não adianta mexer com esse pessoal não. Porque se você for mexer com o Comando Militar Brasileiro, se eles quiserem dão um golpe de Estado de novo. Dão e não tem quem faça nada não, porque o americano está lá do lado deles, entendeu? Se for dado um golpe aqui, não pense você que o americano vai ficar contra o Brasil que não vai não, porque os interesses do americano aqui...Oitenta por cento das indústrias aqui são deles. São deles as indústrias... A maioria são dos americanos. O capital americano aqui dentro é muito grande, gente. Metade do PIB brasileiro aqui é de capital americano. Então, é uma questão de jogo de interesses. Murilo – Você participou dessa oposição contra a ditadura. De que forma acha que a comissão pode beneficiar você? Aurísio – Eu nem penso em beneficiar a minha pessoa porque eu acho que não é por aí... Pra você ter uma ideia eu nem entrei com processo de indenização. Quem entrou foi o pessoal da anistia. Eu nem sabia. Quando foi recebi uma carta lá em casa: “Rapaz teu nome tá lá em Brasília também, já tem o número do processo e tal e tudo”... Se me pagarem... Se o Genoíno recebeu 120 mil reais, por que eu não posso receber também, entendeu? Thamires – E Aurísio, como é que você se sente ao ver algumas pessoas ainda hoje tentando varrer essas histórias pra debaixo do tapete, esconder? Como é que você se sente? Aurísio – Na realidade o que acontece hoje é o seguinte: o Brasil é cobrado na América Latina. Olha na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Paraguai e na Bolívia, os generais que torturaram já estão tudo na cadeia. O Brasil é o único país que não tem...Estão tentando prender aquele bicho lá do Araguaia, aquele tal do Curió (Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido como major Curió. Hoje é coronel aposentado da reserva)...Só de guerrilheiro, ele cortou a cabeça de 40 e ele ainda disse que era pouco. Disse numa entrevista. O Brasil é o único país em que não tem ninguém preso porque a anistia que eles fizeram foi... Ela foi geral...Vocês estão pensando que estou perseguindo o FHC, mas não é não. É porque ele fez muita coisa ruim... Ampla geral e irrestrita. Foi no governo dele que fizeram o resto pra salvar os milicos. Você não tem como fazer... Só fizer uma nova Constituição. Você não tem como punir os militares brasileiros. Por isso, que a Dilma disse: “Eu vou rasgar a Constituição? Tá aqui na Constituição”. A Constituição de 88 fizeram ali... A anistia ampla, geral e irrestrita. O FHC arrumou o outro negócio lá e incluiu os militares também. Então quer

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dizer que todo mundo foi anistiado. Não foi só a esquerda não. Foi todo mundo de direita... Foi todo mundo. Quer dizer o Brasil inteiro foi anistiado... Só se mudar a lei. A Comissão de Direitos Humanos da América Latina cobra do Brasil a prisão e punição dessas pessoas... Estão criando uma exclusividade no caso do Vladimir Herzog, o jornalista Vladimir Herzog, que por sinal a família dele recebeu mais de 2 milhões de indenização. A maior indenização foi pra família do Vladimir Herzog. O que a família quer saber é se ele se suicidou ou se ele foi assassinado... Se foi controlado pelas coisas que eles estão encobrindo e tudo. Ele foi assassinado rapaz dentro de um quartel! (Herzog foi jornalista, professor e dramaturgo, nascido na Croácia, à época ainda reino da Iugolásvia, em 1037, naturalizado brasileiro. Foi encontrado morto no DOI-CODI, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975). Alissa – Aurísio, você acha que é possível reparar essa dívida? O que é que precisa ser feito? O que é que pode ser feito? Aurísio – Só pode dizer isso quem conviveu com a ditadura militar. Uma ditadura seja ela de esquerda ou de direita é muito dura. Por que os EUA são esse país que são? Porque eles nunca tiveram uma ditadura. Olhe, nos EUA todo jornalista fala mal do presidente da república. Você acha que dois jornalistas têm poder pra derrubar o Presidente da República? Derrubar o Fidel? Têm poder pra derrubar o imperador lá do Vietnã. Da Coréia? Não têm. Quem derrubou o Nixon (Richard Nixon, ex-presidente dos EUA) foram dois jornalistas que provaram que o Nixon subornou a eleição. Foi provado. Quer dizer esse é o lado bom da coisa, tá entendendo? Não somos contra o americano. Somos contra as coisas ruins. São muitas que o americano faz. Como, por exemplo, explorar o ser humano através de baixo salário, de não reconhecer os direitos trabalhistas, de uma série de coisas. Alissa – Mas o que pode ser feito pra reparar essa dívida que o Brasil tem com as pessoas que lutaram contra ditadura? Aurísio – A meu ver só se houvesse um golpe de estado de esquerda que não vai haver, tá entendendo? E nem é o ideal. Porque eu acho que a esquerda do jeito como estava também não estava preparada. Talvez o Brasil tivesse afundado num mar de lama. Porque, se era pra implantar aqui no Brasil o que estava lá em Moscou, era melhor deixar como estava. Porque lá eles só fizeram errado. Eu nunca concordei com as coisas erradas que eles fizeram. Porque eu só defendo pro ser humano – dentro do meu conceito de ideologia –, eu só defendo pro ser humano o que é digno. O que é bonito, o que é bom, o que é transparente para o ser humano. E o ser hu-

“Porque é o ser humano que gera tudo o que é bom que existe na terra. Tanto é que gera o que é ruim também” mano tem de ser valorizado desde o pé até o cabelo da cabeça. Tem de ser tudo valorizado no ser humano. Porque é o ser humano que gera tudo o que é bom e existe na terra. Tanto é que gera o que é ruim também. Larissa – Olhando pra trás, por tudo o que você passou, vendo essa democracia que se instalou no Brasil, você se arrepende de ter lutado contra a ditadura? Aurísio – Não, porque... Se a Presidente da república é uma ex-terrorista. Tá aí comandando o País e comandando muito bem... São as mulheres que estão comandando o País agora. Esses dias jogaram foi uma comandante da Marinha. Uma mulher comandante da Marinha. Você já pensou que isso iria acontecer na época da ditadura militar, dos milicos? Mas nem morto isso aí iria acontecer... Aconteceu porque nós temos uma Presidente da República que a nomeou por capacidade, por mérito... Por sinal é uma medica, uma cientista. Ela hoje é comandante da Marinha no Rio de Janeiro. Isso era impossível acontecer na época dos milicos, entendeu? Porque mulher pra eles era objeto de uso. Larissa – Aurísio, com relação ao curso, quando você se formar, o que pretende fazer? Aurísio – É o seguinte: eu já sou aposentado e eu vivo praticamente só. Meus filhos estão bem criados e eu só preciso de dinheiro pra viver. Um salário mínimo pra mim tá bom demais. Se eu receber esse negócio lá vou comprar um cantinho pra mim aqui (Fortaleza). Agora eu pretendo continuar fazendo minha música. Eu estou até montando um show agora... Eu fui cover do Fagner muitos anos em São Paulo (ainda sem data). Larissa – Mas com relação a trabalhar mesmo com o Jornalismo? Aurísio – Com Jornalismo, talvez eu acredito que não. Eu vou tirar o meu diploma mais como uma satisfação pessoal, entendeu? Já estou com 67 anos... Eu vou fazer agora. Eu acho mesmo que quem vai trabalhar mesmo nos jornais são vocês – a juventude –, a garotada, né?

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Na entrevista, Aurísio mostrou-se indignado com o esquecimento que o País aparenta com relação ao que aconteceu durante o período da ditadura militar. Principalmente, no que diz respeito aos torturadores e às vítimas.

Por admirar Rosa da Fonseca, uma das líderes do movimento estudantil no Ceará, Aurísio pretende fazer o Trabalho de Conclusão de Curso dele (TCC), que é um livro-reportagem, sobre ela. O estudante sempre toca em eventos do Crítica Radical.


Na entrevista com Rosa da Fonseca, a produção teve de se dirigir à sede do movimento Crítica Radical, na praça da Gentilândia, no Benfica. Larissa foi para o encontro bastante apreensiva, pois nas proximidades do local não havia quase ninguém.

Devido à necessidade de conhecer algumas leis que precisaram ser estudadas, como a Lei da Anistia e o decreto 477, Marcella chegou a comentar que se sentia como uma estudante de Direito.

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Gerardo Dimas Mateus Cantador


// Gerardo Dimas Mateus

Quando a vocação para versar transfigura-se na métrica da vida e no mote da existência Na fala mansa e rouca, transparecem, ao mesmo tempo, a inocência campestre e a sabedoria adquirida em meio aos percalços da vida. Do olhar que se aperta, emerge o sofrimento e a força de uma infância com obrigações do labor pesado, quando respirar liberdade era raro. A mão grosseira, calejada pelo ofício da roça de Gerardo Dimas Mateus, 83 anos, é a mesma que transborda delicadeza ao criar a harmonia simples que embala os versos complexos da própria viola. A existência é fruto do destino. O dele é guiado pelo toque rasteiro nos acordes e nas palavras sábias que embalam as rimas cantadas. Na economia de palavras, a princípio, evidencia-se a timidez de quem na infância teve de baixar a cabeça para pais, tios e avôs. O “boa tarde” abre o diálogo e quebra o roteiro. No obscurecer de algumas sílabas, os gestos procuram falar. Dimas é firme. A batida na mesa cadencia cada palavra enfática, assim como a batida da enxada na roça durante a juventude foi embalada pela energia da busca pela liberdade de namorar, estudar. Desejos simples de um jovem, para Dimas, foram privilégio. Se o cantador confere toda a trajetória de vida dele à escolha da escrita divina é porque, antes mesmo de elucidar as primeiras sequências lógicas da mente, a livre escolha não esteve ao dispor. Por “sorteio”, a trajetória é traçada. A pobreza da família desvia-lhe de escrever uma história menos excêntrica. A tristeza emerge do coração duro ao pensar que não teve a criação dos pais de sangue. O consolo, ainda que inconsciente, aparece na própria trajetória que constrói, fazendo do canto inteligente o elixir da vida. Antes de tudo, a vida de cantador é a oportunidade de ganhar pão. Do novo ofício, no entanto, vem muito mais que cédulas e moedas. No esforço de cantar o mundo, é fortalecida a sede por conhecê-lo em livros. A grande escola é a cantoria. Do ofício que lhe preencheu o coração e o cérebro, por

traição da saúde teve de se despedir como quem perde o ente mais querido. O velório da viola é o adeus à companheira mais fiel. “A viola foi quem me deu a vida, e eu perder a vida de quem me deu a vida?” Se o ofício que lhe fez o ser não lhe é mais acessível, Dimas não o esquece. No esforço para renovar o gosto pela cultura popular da qual emergiu mantém a Casa do Cantador no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, como sede da Associação dos Cantadores do Nordeste (ACN). Na luta pela resistência ao fim de uma identidade nordestina, Dimas reergue a casa logo que chega. Dos doutores que o precedem no comando da casa, não leva nada, a não ser o desejo ainda maior de manter o reduto do cantador de pé e vê-lo crescer assim como crescem os versos e as rimas em uma disputa de cantoria. O homem de pulso, no entanto, não faz milagres. A casa vive à mercê de se metamorfosear em palcos de aniversários e casamentos aos finais de semana. O poder público ainda não compreende que ali, muito mais do que a alma de um homem desgastado pela vida, reside o último foco da alma nordestina original que, se não for preservada frente às intempéries das instabilidades culturais de hoje, infelizmente irá evaporar-se tal qual o último verso cantado de Dimas. As marcas no coração são muitas. Dimas precisará, em breve, deixar a casa que lhe foi abrigo e palco da trajetória cantada. O descanso será de consciência leve, depositando, no futuro do cantador, a incerteza e a plenitude garantida por ter cumprido o seu papel. Do pensamento humilde, tal qual seu espírito, vem a honestidade no parecer da durabilidade da cultura popular: “O máximo que ela vai aguentar é uns 50 anos.” Que a previsão do cantador esteja errada. Que a cantoria, o repente, o cordel e a embolada se perpetuem na mesma proporção eterna que terá sido o esforço de Dimas em mantê-los.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Beatriz Ribeiro Thamires Oliveira Entrevistadores: Alissa Carvalho Beatriz Ribeiro Camila Mont’Alverne Ed Borges Larissa Souza Marcella Macena Marcello Soares Murilo Viana Thaís Brito Thamires Oliveira Fotografia: Isabel Filgueiras Texto de abertura: Murilo Viana



Entrevista com Gerardo Dimas Mateus, dia 17 de janeiro de 2013.

Thamires – Seu Dimas, quando o senhor era pequeno, seus pais o deram para o primo de sua mãe biológica. Como é que o senhor acha que teria sido sua vida se o senhor não tivesse sido adotado? Dimas – Podia ser mudado... Eu podia não estar aqui com vocês, porque era outra trajetória que a natureza teria me dado. Mas como eu fui “injeitado”, e foi triste... Eu acho isso triste, você não ser criado pelos seus pais, o meu sofrimento é esse. Me deram a um casal que não foi bom. Eram muito rigorosos, todo-poderosos, naquele ritmo pesado... E eu tinha de obedecer. Obedeci. Mas tudo foi triste na minha juventude. Só em não poder ter aquela liberdade nem de estudar, ao menos, já por aí você vê o sofrimento. Porque com certeza eu era inteligente. E, se eu era inteligente na mocidade, se tivesse oportunidade, teria aprendido muita coisa. Talvez tivesse criado coisas mais interessantes até pra minha própria cidade (Dimas é natural de Russas, cidade que fica a 165km de Fortaleza). Camila – Seu Dimas, o senhor manteve contato com a família biológica depois da adoção? Dimas – Eu não queria nem saber dos meus pais. Quando me chamavam de Joaquim Mateus (nome do pai biológico de Dimas), Ave Maria!, pra mim, era um apelido! Quando eu fui raciocinar, com pouco tempo papai morreu. E nem cheguei a conhecer meus pais... A minha mãe, meu pai... Parece que eu estou vendo meu pai lá na casa do meu avô. Me pedindo... Naquele tempo não tinha copo, era caneco... “Meu ‘fí’, me dê um caneco d’água”. Eu lembro que fui buscar um caneco d’água, dei a meu pai e a um irmão meu, que já morreu também, lá na casa do meu avô. Foi a última vez que vi meu pai. E eu tenho minhas... Não gosto nem de falar, que eu tenho pra mim que meu pai foi sepultado vivo. Papai morreu no Açude Novo. Quem vai pra Russas, tem um lugar chamado Açude Novo. Meu avô morava em Lagoa das Vacas, papai foi pra lá, quando veio de lá pra cá, oito horas do dia, chegou na casa da sobrinha dele, e deu um ataque. “Tio Joaquim morreu! Tio Joaquim morreu! Tio Joaquim morreu!” Não sei se foi

ignorância deles... Quando foi duas horas da tarde, sepultaram o velho. Por isso que eu tenho aquela cisma (de) que papai foi sepultado vivo. Porque, naquele tempo, cemitério era longe. Olha, se a pessoa levar de Açude Novo para Pitombeira! Dá quanto tempo? Para Pitombeira, bote tempo! Duas horas da tarde! Se não enterraram ele vivo, ele morreu na “quentura”. Só com o pavor do sol quente. Eu tenho isso comigo... E sinto muito isso de meus pais, que não puderam me criar, porque a seca era grande, terrível, e eles não puderam. Eles lá (os pais adotivos) tinham as condições melhorzinhas, não tinham filhos e eu fui sorteado. Marcello – O senhor continua tendo contato com os seus irmãos? O senhor tinha nove irmãos, não é isso? Dimas – É, nove irmãos. Mantive! Marcello – Como era a convivência com eles? Dimas – Quando a gente se encontrava, a gente tinha aquele prazer de se encontrar. Eles eram mais pro meu lado, que eu pra eles, porque eu fui criado fora. Mas eles não tinham outra vida, então me consideravam mais. Eu não queria saber deles, no começo. A questão foi essa. Beatriz – Então o senhor tem uma mágoa da sua família? Dimas – Não! Não tenho mágoa. Eu acho que minha mãe fez isso até pra ver a minha vida melhor, pensando em ver a minha vida melhor. Porque eles não tinham condições financeiras e o outro (Seu Xavier, pai adotivo) tinha condições, então eles acharam que eu ia viver melhor do que se tivesse com eles. Só que eu, quando raciocinei, achei que não foi. Alissa – O senhor se arrepende de não ter tido um contato mais direto com a sua família biológica? Dimas – Eu não posso dizer, porque quando eu tive a consciência de reconhecer minha família... Eu não tinha consciência ainda que pudesse ter essa afirmativa. Mas, como eu depois raciocinei, foi que eu fiquei sentimental sobre o assunto, essa trajetória tão triste pra mim. Os pais têm de criar os filhos! Seja como for. Que é pra dizer “papai, mamãe”. Por que é que hoje as famílias

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Foram mais de 70 sugestões de entrevistados para esta edição da Entrevista. Durante o processo de sugestão, Beatriz defendeu Dimas tão empolgada que a turma perguntou se ele era um tio dela. Eles o apelidaram de “Tio Dimas”, que acabou virando “Ti Dimas”.

Quando procurado pela equipe de produção, Dimas, encabulado pela formalidade da proposta, falou: “Minhas filhas, me desculpem, mas eu acho que vocês bateram na porta errada!”.


A equipe de produção foi à Casa do Cantador em busca de documentos de registro da Associação dos Cantadores. Dimas foi até a biblioteca e trouxe para a equipe uma pasta antiga cheia de recortes de jornais amarelados pelo tempo, com informações valiosas.

A biblioteca é um tanto desorganizada. Há cadeiras quebradas e “carcaça” de computador espalhados pelo cômodo. Nas prateleiras, não há critério de disposição dos livros. Dimas comentou que precisava contratar alguém para botar ordem ali.

estão sendo “distornadas”? Porque há separações em cima das outras. Então, está vendo: não tem “papai mais mamãe” como nós tínhamos. Marcella – Seu Dimas, O senhor disse que seus pais adotivos lhe diziam coisas que o senhor não gosta muito de lembrar. Disse que eles eram muito rigorosos. Tem alguma coisa que o senhor poderia falar sobre essa relação, essa rigidez? Dimas – É porque era a época, né? Naquela época, o pessoal tudo era rígido. Meus tios falavam comigo como se fosse qualquer um, uma coisa qualquer. Porque eles tinham aquele poder. Antigamente seu tio mandava em você. O seu avô mandava em você. O mais velho mandava em você. Naquela época, na minha época, era assim. Quando o mais velho dissesse uma coisa, tinha de obedecer. Fosse a “parelha” que fosse, tinha de obedecer! Era o ritmo daquele tempo. Murilo – Tem alguma situação específica que o senhor lembre? Dimas – Tem sim. Eu fui pra casa do meu avô... Tratar do meu avô. Tratei muito. O que é que eu colhia? Carão! (risos) Qualquer coisinha que eu errava, ele falava rigorosamente. Eu ficava me tremendo, porque eu tinha medo mesmo. A gente tinha medo. Ed – Essa rigidez da sua família, dos seus pais, dos seus tios, afetou alguma coisa na vida do senhor? Dimas – Se afetou? Afetou! Deu trauma. Trauma, porque você não tinha aquela liberdade de fazer as coisas. Eu quis estudar, não pude estudar... Já vai um trauma, né? Porque eu lia os livros aqui com a lamparina, quando olhavam no buraco da chave: “Olha, meia-noite! Ainda tá aí com a lamparina?”, (eu) “Fffu!” (faz que sopra, apressado, a chama da lamparina). Você dormia? Dormia, mas era sentindo aquele... (pausa) Porque, quando eu entrei no campo da vida da viola, foi proibido deles. Eles me proibiram. Mas, muito à força, depois, eu continuei. Foi o tempo que eu viajei pra uma construção em Mossoró (no vizinho estado do Rio Grande do Norte) e me liberei mais, porque eu estava fora deles. Eu fazia o que eu queria. Só que não tinha, também, essa liberdade não, porque as coisas eram difíceis demais, difíceis demais. Beatriz – E como era a vida do senhor lá em Russas? Dimas – Trabalhar, plantar, botar carro em jumento, cortar lenha, pescar. Era tão rigoroso, que às vezes eu tava aqui pra ir pra casa da namorada, e a mãe dizia: “Lá vem os meninos. Vão pescar!” Pronto, ali já trocava de roupa, já pegava a tarrafa, as coisas, e ia pescar. Porque ali a gente já sentia que a or-

dem era aquela. Murilo – Mas o senhor tinha algum amigo naquela época? Dimas – Amigo? Meus primos. Tinha uns parentes, ali, tudo vizinho. Eu era muito comunicativo. Agora porque já estavam tudo lá, a gente se reunia pra conversar. A juventude, futebol. A gente tinha futebol, jogava. Quando voltava, ia conversar quem tinha errado o passe, quem não tinha jogado, quem não tinha feito gol, quem tinha perdido a bola. Aquilo ali era o contato que a gente tinha com os nossos jovens daquela época. E, naquela época, a gente era rigoroso. Lá na minha terra, nós tínhamos uns trinta e tantos jovens. Tudo na mesma faixa etária. E passando fome. Comia uma carnaubinha preta na merenda. E era no cabo da enxada. E não roubava. Hoje, qualquer coisa você rouba porque está com fome. Ninguém roubava. Essa turma todinha! Ninguém roubava. Ed – O senhor falou que frequentou a escola já aos 12 anos de idade e foi por um período de dois meses. Dimas – Dois meses, foi. Ed – E disse que estudava de noite, mas mesmo assim tinha todo o gás para estudar. Quem foi que teve a iniciativa de pôr o senhor na escola? Dimas – Ela (dona Etelvina, a mãe adotiva) que me botou na escola, mas tinha aquela rigorosidade. Tinha de ir por esse caminho e voltar pelo mesmo caminho, que era dentro daquela várzea... Não sei se algum de vocês conhece aquela várzea do Vale do (rio) Jaguaribe... Ia por aqui e tinha de vir por aqui. Era rigoroso. E, com dois meses de escola, que era no tempo da palmatória – que tinha os argumentos –, eu aprendi as quatro operações de conta. A tabuada estava na cabeça, todo tempo ali. Thaís – E o ambiente da escola também tinha essa rigidez? Dimas – Claro! Me dá tua mão aí (segura a mão da Thamires sobre a dele). Se eu pegasse a palmatória e fosse ela minha amiga, eu pegava aqui e “Pá!”... Era! Tinha de ser

“Mas tudo foi triste na minha juventude. Só em não poder ter aquela liberdade nem de estudar, ao menos, já por aí você vê o sofrimento”

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assim. Não tinha amigo não! Tinha de ser assim. Marcello – Mas o senhor gostava do ambiente da escola? Dimas – Ora, eu gostava! Que era a minha liberdade. Eu saía de casa, ia ficar com os amigos e pronto. Lá eu fazia as minhas “palhaçadazinhas”, que nunca se deixou de fazer. Mesmo tão rigoroso, ninguém deixava de fazer... Rebolar pedra uns nos outros...! (risos) Era! Era desse jeito! Mesmo rigoroso. Tinha um portão lá, que passavam da feira de Russas lá pra Timbaúba (localidade de Russas). O que a gente fazia? O “cabra” vinha com aquela carga de farinha, a gente fechava o portão, que rasgava, derramava farinha... Era assim que fazia! Mas os “cabra” eram tão ruins, que, quando a gente ia pegar a farinha, os “cabra” rebolavam um punhado de terra em cima! Camila – Seu Dimas, por que o senhor saiu da escola? Dimas – Porque ela pensava que eu já sabia fazer carta para as namoradas! Beatriz – “Ela” quem? A sua mãe? Dimas – A minha mãe. “Não! Tá aprendendo e daqui a alguns dias tá escrevendo pras namoradas!” Aquilo ali fugiu. E, quando eu consegui uma escola à noite, de Russas para a minha casa eram três quilômetros, ela queria que oito horas da noite eu tivesse lá (em casa). Olha! Oito horas era a hora que começava a aula lá (na escola). Aí chegava meia-noite. Até a namorada que eu arranjei, acabou por causa disso. Porque eu saía de Russas, ia para a casa da namorada e ela (a mãe) queria que eu tivesse oito horas em casa. Oito horas não dava, porque era longe de Russas. Alissa – O senhor sente alguma mágoa por não ter tido oportunidade de estudar por mais tempo? Dimas – É, a gente fica. Porque a gente querer fazer uma coisa que é pro futuro da gente e não poder fazer porque foi proibido... Porque, quando você está verde, é diferente. Você está com o organismo todo mole, fraco. O sistema nervoso vai atacando e você fica sentido. Foi a mesma coisa quando eu sofri, aqui, a depressão por falta de recursos. E lá foi por não poder estudar. Aquilo ali foi uma depressão que não atacou no momento, mas ficou por dentro. Mas, como a cantoria veio me favorecer, melhorou minha vida e eu me sinto feliz. Agradecendo a Deus. Larissa – Seu Dimas, se o senhor passou tão pouco tempo na escola, como foi que o senhor aprendeu a ler, a escrever e a rimar? Dimas – Foi isso, né? Eu começava a ler e captava logo. Naquele tempo, era o “bê-a-bá, bê-é-bé, bê-i-bí, bê-ó-bó, bê-ú-bú”, e

Quando a equipe de produção entrou em contato com a dona Lúcia e disse que queria perguntar algumas coisas quanto à relação dela com o Dimas e com a casa, ela disse: “Olha, eu sou meio encabulada... Entrevista eu não dou não, mas se for uma conversa assim, tudo bem!”.

assim seria, né? Aquilo ali era rápido que eu aprendia. E, na força da palmatória, ainda era melhor! Ed – Mas a versar mesmo, a rimar, como é que o senhor aprendeu? Dimas – Ah! Agora aí foi porque a gente, quando tem uma vocação, o que é que faz? Fica olhando com curiosidade pra aprender seja o que for. Uma menina dessa vai pra uma aula de corte e, se ela tem vocação de costureira, ela vai olhar logo o quê? Os moldes. Ela vai ver logo a revista, o modelo daquela roupa, vai costurar, por causa daquela vocação. Então a minha vocação era aquela (a cantoria). Quando eu ia pras cantorias com meus pais, eu me sentava no chão, assistia e achava bonito, comecei a captar. E quando eu comecei a captar, vieram me dizer: “Não, você tem que rimar ‘chegar’ com ‘lugar’, ‘trazer’ com ‘fazer’...” E você compra livro, Geografia e História do Brasil, e vai lendo. E assim foi que eu fiz. Ed – E quem levava o senhor para essas cantorias? Eram os seus próprios pais que levavam o senhor para ver esses cantadores? Dimas – Era! Era festa, né? É como se fosse um leilão, um samba, uma coisa dessas. A cantoria era o lazer do povo naquela época. Cordel era o lazer. Papai ia pra bodega... Ele até lia! Lia bem. Ele ia pra bodega pra ler aqueles cordéis. Aquelas pelejas... Tinha velho que achava graça! Tinha velho que chorava, quando era um cordel sentimental, como Helena vive dos sonhos, como Donzela Teodora. Aqueles sofrimentos de... Os martírios de Genoveva... Chegava um ponto que você sentia. Tinha velho que chorava. Valdemar e Irene, Rosa e Sebastião, Mamãe Gecina... O Mamãe Gecina é um romance de mais filo-

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Quando terminaram as pré-entrevistas e foram se despedir de Dimas, ele disse: “Tão indo porque querem. Aqui tem rede pra dormir, tem televisão, tem lugar pra tomar banho... Podiam ficar por aqui mesmo, que não tinha problema”.


Na pré-entrevista, Beatriz perguntou a Dimas se ele tinha algum verso autoral publicado, que ela pudesse repassar para o resto da turma. Ele entregou um exemplar do livro Antologia Poética e disse: “Tome, é seu. Pra vocês verem o que é que eu faço”.

Thamires e Beatriz foram à Casa do Cantador durante uma Noite das Violas para entrevistar a esposa de Dimas, dona Lúcia, e o amigo Zé Matias. No áudio, a fala dos entrevistados veio junto à peleja dos cantadores que se apresentavam.

sofia. Já os outros eram mais sentimentais, como esses que eu falei. Aquilo ali eles liam, juntava aquela turma nas bodegas. Essa aí (aponta para a dona Lúcia) também leu muito. O pai comprava os cordéis. Eu também li muito. Isso em boca de noite, uma hora da madrugada, e eu lendo cordel. Era festa. Era uma festa. Era o lazer. A gente lia nas fazendas, nas bodegas. Eles iam ali, compravam... Olha, o bodegueiro que vendia muito, ele já comprava (os cordéis) na intenção de reunir o povo. Aquele que fosse pra ali, comprava a cachaça, comprava a bolacha para o filho, comprava tudo quanto fosse preciso gastar naquela noitada ali. Ele não era obrigado a pagar nada, mas, de qualquer maneira, estava com os amigos e ia beber. Thaís – Todo mundo se divertia, apreciava essas cantorias. Mas o senhor disse, na pré-entrevista, que a sociedade enxergava os cantadores como vagabundos. E o senhor? Quando entrava em contato com esses cantadores, qual a visão que tinha deles? Dimas – Eu não tinha. Era inocente ainda. Não sabia. Depois a gente vai descobrindo o que é a vida. Vai descobrindo aos poucos. Quando você está na escola, você não entra no primeiro ano e vai seguindo? Pois é. Eu fazia essas coisas. Cantei no primeiro ano e fui estudando na escola. Então, com o conselho que me deram, para ler, eu comprava os livros e lia. É tanto que eles (os colegas de cantoria) corrigiam meus erros. Eu chamava “Manuel ‘Satiro’”. Para mim, era a mesma coisa. Mas não era. Porque ali, eles (eram) grandes, né? Diziam “Mas não é Manuel ‘Satiro’, é Manuel Sátiro”. Daí por diante. Eu fui lendo, lendo, que chegou um ponto que eu fazia uma cantoria e tinha uns estudan-

tes que me perguntavam se eu tinha feito o ginásio (Ensino Fundamental), porque eu cantava dentro do ritmo da leitura na maior facilidade. Murilo – O seu gosto pela palavra começou quando o senhor frequentou a escola, naqueles dois meses, ou o senhor já tinha o contato com a palavra, com a leitura, antes de frequentar a escola? Dimas – Não, não, não, não tinha nada não. Eu saí burro, burro! Murilo – Então não foi na escola que começou isso? Dimas – Minha escola foi a viola. A escola foi a cantoria. Não foi outra escola. A cantoria foi quem fez eu me desenvolver, que me obrigava a ler. Porque os colegas vinham com pretensão, pra cantar com a gente. Cantar orografia, historiografia, isso, aquilo outro. Você tinha de estar com aquilo aqui (aponta para a cabeça), e é versando. Não era contando a história não, era versando! No improviso. Quem me desenvolveu foi a viola. Alissa – Seu Dimas, o senhor tinha um tema favorito para cantar sobre? Dimas – Não, ninguém tinha nada não. Era na hora! A pessoa chegava e pedia, eu que aguentasse a barra (risos). A pessoa chegava, pedia um mote, e eu tinha de cantar. Camila – O senhor lembra o primeiro verso que o senhor fez? Dimas – Aí é mais difícil! (risos) Ed – Ou que o senhor leu? Dimas – Cordel? Sim, o primeiro cordel que eu li foi um cordel que houve de um padre da Bahia. Lá houve um segredo da Santa Cruz, um milagre, e esse foi o primeiro cordel que eu li e decorei. Não estou mais lembrado o tipo de cordel. Sei que era da Bahia. E comecei a ler e comecei a gostar de decorar pra poder ganhar o pão de cada dia, porque, quando a gente cantava romance numa fazenda dessas, ganhava o dinheiro de sobreviver. Se ganhava o dinheiro da cantoria. Uma vez eu cantei numa fazenda, eu tava “liso” (sem dinheiro), quando eu saí, com cento e cinquenta contos, já era muito dinheiro! Por causa de um romance que se cantava, que eles gostavam e pagavam bem. Marcello – Seu Dimas, o que seus pais adotivos disseram quando souberam que o senhor queria ser cantador? Dimas – Ah! Foi duro! Os cantadores chegavam lá em casa e começavam a me botar e eu cantava e achava bom. Então tinha o Hercílio Pinheiro, que eu tenho o retrato dele ali, que ele chegava num lugar que tinha um cantador querendo aparecer, tinha de cantar um baião com ele. Lendo umas estrofes foi

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que eu fui conhecendo Hercílio Pinheiro. Até a família dele estava aqui (na Casa do Cantador) um dia desses e eu cantei pra eles. Lá em Russas, na minha terra, me botaram pra cantar com ele. Eu estava tão inspirado... Pra cantar com Hercílio Pinheiro?! (ênfase) Uma coisa medonha! Começou a cantar. Ele era bíblico. Muito bíblico, o Hercílio Pinheiro. Terminou uma estrofe dizendo: “Salomão, rei da ciência”. Eu digo: “Salomão, rei da ciência, sabedoria e grandeza / Sansão foi rei da força e do salão da boniteza / Camões foi rei dos poetas, mas o cara das sem-vergonheza”. Que não é “sem-vergonheza”, mas, como eu era analfabeto, botei “sem-vergonheza”. O Hercílio parou, achou graça e decorou a estrofe. Quando botaram no livro da antologia do Linhares (Francisco Linhares publicou, junto com Otacílio Batista, a Antologia Ilustrada dos Cantadores, em 1976, pela Universidade Federal do Ceará), ele botou pra “safadeza”. Mas não era. Até um “cara” reclamou: “Não, isso aqui é o popular! Tem de ser ‘sem-vergonheza’ mesmo. Porque se não desmetrifica”. Se desmetrifica, ele tinha razão de falar, principalmente com a cultura que eu tinha. Isso o Hercílio e o pessoal achava muita graça. Graças a Deus, eu fui um bom repentista. Camila – Quando foi que o senhor decidiu virar cantador? Dimas – Aos 18 anos, mais ou menos. Aos 18 anos comecei, mas ainda não era profissional. Eu vim ser profissional em 1955, na Serra do Cantagalo, município de Redenção (a 63 quilômetros de Fortaleza). Aí eu fui profissional, porque o “cara” me convidou. Eu trabalhava de ferreiro, ganhava 25 contos por dia, e de lá na cantoria deu 150. Ele me deu 75, eu não queria mais ser ferreiro de jeito nenhum não! Na outra deu 300 e daí pronto, eu fiz a profissão de viola. Murilo – O senhor se lembra da primeira apresentação em público? Dimas – Lembro. Foi muito boa. Porque quando a gente não sabe, acha que é grande (coisa). Depois é que a gente vai entendendo, vai aprendendo e vai sofisticando as coisas, modificando. E a cantoria é muito difícil. Ed – Como foi a reação do público quando o senhor se apresentou? Dimas – Eles já gostavam, né? Zé Marçal era a estrela e eu fiquei na companhia dele, na sombra dele, e me senti muito bem, porque (era) novinho, bem trajado, caprichoso... Todo mundo estava olhando pra a gente. Larissa – Seu Dimas, o senhor falou, na pré-entrevista, que viajava muito por conta das cantorias. Tem algum episódio interessante que o senhor queira relatar para a gente? Alguma história importante, que marcou

essas viagens? Dimas – Sim! De história tem as namoradas. É que eu arranjava muita namorada e aquilo ali... No tempo, tinha respeito, que era namoro. Porque eu tenho até um retrato de uma namorada que há 52 anos ela morreu. Um dia eu disse: “Minha filha, me dê um copo com água?” ela disse: “Eu não casei com você, para lhe dar essa liberdade de me chamar de ‘minha filha’!” Era assim! E a gente tinha medo: era o pai aqui, a mãe acolá, a namorada aqui e pronto. Pegava na mãozinha, nem alisava. Embora que, nas escondidas, desse um abraço. Ed – E o que é que a família dessas namoradas achavam de o senhor, um violeiro e cantador, namorar a filha? Dimas – Bem, quando a pessoa olha para aquela outra que gosta, ele não quer saber qual é a profissão não. Não tem dessa. Quando eu namorava com uma moça dessas, não era nem que ela gostava não. Às vezes, era o pai dela quem gostava da cantoria. Os pais dela que gostavam e, com isso, aceitavam. Pronto, já tava apoiado com aquele pai de família. E a gente estava namorando, e às vezes dava um chute assim... Como eu dei nessa namorada que eu disse que morreu. Essa menina morreu... Casou-se, esperou cinco anos por mim. Aí passou-se... Casou e, com 28 dias, morreu. Alissa – O senhor lembra de alguma cantoria que o senhor tenha feito que tenha marcado muito? Dimas – Lembro. Eu fiz em Mombaça (município do Sertão Central do Ceará). Esse casamento foi o seguinte: as cantorias estavam fracas, e o cara me levou daqui para lá. Essa cantoria deu, naquela época, 105 mil contos. Eita, era coisa medonha! (ênfase) Foi a maior cantoria que eu fiz na minha vida. Porque 105 mil contos naquela época era dinheiro! Camila – E como era a cantoria? Como eram os versos? Dimas – Ah, os versos são para o povo. Respeito ao casamento, ao noivado, parabe-

“...com dois meses de escola, que era no tempo da palmatória, que tinha os argumentos, eu aprendi as quatro operações de conta”

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No fim da primeira pré-entrevista, Dimas fez questão de chamar os dois netos que estavam, no dia, na casa, para que cumprimentassem Thamires e Beatriz. Desconcertados, os adolescentes disseram “oi” e voltaram para a frente da televisão.

Antes de começar a entrevista, Murilo quis saber se Dimas conhecia o avô, que era um conterrâneo de Russas, dentista popular. Dimas confessou não recordar o nome, mas provavelmente saberia quem era, se o visse.


Quando a turma inteira chegou para a entrevista, Dimas já estava muito bem à vontade, conversando sobre assuntos diversos e até contando piadas aos que chegaram mais cedo.

Ed foi um dos primeiros a chegar à Casa do Cantador no dia da entrevista. Depois de alguns minutos de conversa, Dimas foi logo mostrando as fotos que ele tinha com José Sarney, ex-presidente do Senado Federal do Brasil.

nizando, essas coisas. Era eu cantando aqui, (quando) o cara botou a bandeja com cinco mil, eu já fiquei espantado! A família “todinha” foi cinco mil. Vieram logo oito cédulas de cinco mil. Meu amigo, você tem de se inspirar! (Risos) É a vitamina pura! Alissa – Seu Dimas, além do dinheiro, o que fez o senhor querer ser um cantador? Dimas – (Antes) eu trabalhava muito pesado, e levar uma vida daquela (de cantador), mansamente? Ganhando dinheiro, olhando para as meninas? Não queria voltar para casa não! Não queria voltar não, garota, não queria não! Você já imaginou pegar numa bigorna, num martelo, cortar ferro, calçar picareta, chibanca (Antiga ferramenta para cavar buracos, parecida com uma pá, porém mais curta e mais estreita), cortar pedra... Porque eu fui muito feliz... Eu cortava pedra meio-dia, sentado na pedra quente. E um cara como eu, graças a Deus, nunca sofrer de hemorróida? É muita felicidade! (Risos) É, porque numa “quentura” de uma

bia, perdia o dinheiro todinho. Mas eu puxei ele na corda, puxei, puxei: deixou de beber. Educou família, vive bem e a família vive comigo aqui, porque o pai se regenerou, ficou feliz. Foi um ano e nove meses que eu fiquei com Zé Matias, cantando nessas praias acolá pelo Choró, por Aquiraz (Municípios do Ceará). Acolá era nossa zona. Zé Matias foi muito honesto comigo. Às vezes se fala em falsidade... Zé Matias nunca foi falso a mim. Nunca! (ênfase) Nunca Zé Matias deixou a minha pessoa pra cantar com outro. Quando falavam, ele: “Eu vou, mas vou com o Dimas, pronto”. Assim nós fizemos dupla. Zé Maçal também foi, na primeira. Teve outros cantadores. Agora, polêmica com cantadores, aqui e acolá a gente tinha, mas era besteirinha! Murilo – Mas com ele, com o Zé Matias, o senhor acha que aprendeu muita coisa? Dimas – Não, que ele não tinha pra me dar, como eu não tinha o que dar pra ele, mas com a parceria, com o equilíbrio... (pau-

pedra daquelas, meio-dia... Nossa mocidade fazia, meu filho, porque nós somos teimosos! Marcella – Na época que o senhor cantava, o que mais lhe inspirava? Dimas – O público. Quanto mais gente, melhor. Os “caras” às vezes vão cantar drogados, porque não têm coragem. O cantador, quanto mais gente vê, mais se inspira. Mais ele tem o que dizer. E quanto mais passa o tempo, mais a máquina desenvolve. Você começa cantando novo, fraquinho, fraquinho. Mas começa a chegar gente, a ver o povo, começa a cair uma nota assim, você fica pronto, desenvolve. Então a cantoria é isso. Quanto mais tempo, melhor. Você passava uma noite cantando, era até de manhã. Tinha uma história de “a cantoria pegar o sol com a mão”... Beatriz – Com relação ao seu relacionamento com outros cantadores, teve alguma parceria que marcou? Dimas – Teve. A minha parceria foi com José Matias, foi a maior parceria que eu fiz. Zé Matias e Zé Pereira. Zé Pereira era engraçado e o Zé Matias foi muito atencioso à minha pessoa. Zé Matias era desses que be-

sa) Tem isso também: o equilíbrio. Porque, você estar trabalhando com a pessoa que você se dá com ele e ele se dedica aos seus costumes, você vive bem. A união de uma família é se dar aos costumes. Então, eu tenho Zé Matias como um irmão. Até mais que irmão, porque ele era o meu caminho e eu era o caminho dele. Thaís – Seu Dimas, quando foi que o senhor resolveu vir para Fortaleza? Dimas – Eu sempre vinha à Fortaleza. Eram as dificuldades da vida. Eu estava em Russas, naquela distância econômica, lá embaixo, com uma família, a mulher costurando, sacrificado... (pausa) Eu tive um vício muito maldito, que deixei: foi jogar. O pior vício que nós temos na face da Terra não é mulher, não é bebida, é jogo. É o vício mais amaldiçoado que tem. Tanto falo de amaldiçoado, que nós estávamos numa roleta lá em Russas, um cara foi e disse: “Dimas, faça um verso! O que é que você diz dessa roleta?” Eu disse: “Fica roleta maldita! / Imunda, amaldiçoada / Por Deus, és excomungada / por se tornares parasita / O Satanás te acredita, / porque a ele convém / Talvez nem um vintém / nos teus dedos eu não ganhe / A

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maldição te acompanhe / para sempre, sem fim, amém!” E de uma praga dessas não tem quem fuja! Isso foi de jogo. Thamires – E quando é que o senhor decidiu se fixar aqui em Fortaleza? Dimas – Aí foram umas dificuldades muito grandes. E eu queria comprar um rancho, que eu não tinha. Vivia em casa alugada. Foi quando cheguei a me empregar, pra poder alugar uma casinha e morar com a família, quando resolvi mudar pra Fortaleza. E (os motivos de) essa vinda para Fortaleza foram as dificuldades que eu estava em Russas. Nada dava certo, nada dava certo, e eu tinha umas coisinhas por lá, apurei, fiz de tudo para comprar um rancho. Comprei aqui no (bairro) Pirambu, esse rancho. Muito ruim, mas me serviu muito. E hoje eu tenho uma casa boa ali. Eu resolvi vir com a família e aqui me estabeleci, daí foi que eu vim pra cá, pra Casa do Cantador. Marcello – Qual era a diferença da vida de cantador no interior e aqui em Fortaleza? Dimas – É mais social, Fortaleza. Só que no interior era mais cabível pra gente. Com a

pressão profunda nos primeiros meses aqui em Fortaleza, e ficou internado no Hospital Psiquiátrico Mira y Lopez. Qual foi o motivo dessa depressão? Dimas – Financeira. Você ver os filhos precisando e não ter o que dar, você tendo a consciência que precisa daquilo ali, você cai. Cai, cai, cai. (triste) Aí me deu um “chororô” danado, até que eu fui internado. Passei dois meses no Mira y Lopez. Quando eu saí do Mira y Lopez, fizeram uma reunião aqui (na Casa do Cantador) e me colocaram como tesoureiro e me recuperei trabalhando. Sem ganhar nada, mas sempre em contato com todo mundo. Eu, muito audacioso... Até que chegou o ponto da quebra da Federação de Cordelistas em Brasília, foi que eu comecei a viajar, melhorei, graças a Deus. Foi o desenvolvimento profissional. Alissa – O senhor se sente curado, hoje, da depressão? Dimas – É, às vezes quer atacar, mas eu me defendo dela. A gente tem de dominar. Alissa – Como é que o senhor se defende, então? Como o senhor faz isso?

No final da última pré-entrevista, Thamires lembrou a Dimas que também viria uma fotógrafa, além dos entrevistadores, no dia. Beatriz, brincando, disse para ele fazer a barba para sair bonito nas fotos. Ele rebateu prontamente com: “A barba já tá feita, eu vou é tirar ela!”

“Quando eu ia pras cantorias com meus pais, eu me sentava no chão, assistia e achava bonito, comecei a captar” poesia do matuto, né? Chegava o cantador, que chamavam de cantador da rádio. Ora, os cantadores da rádio! (ênfase) Aqueles que cantavam aqui (em Fortaleza) faziam os programas da rádio daqui. Quando chegavam no interior: “Os cantadores da rádio!” Aquilo ali, pra nós, era uma graça, uma brincadeira, porque não tinha apoio. Os matutos faziam as cantorias, tinha as polêmicas, e aquilo ali era uma teima! Tinha uns que só faltavam brigar. Agora só que, nas cantorias das praças (da cidade), a gente entrou pro lado mais social. Porque você, vindo lá do sertão, com uma turma dessas? Vocês não iam. A humanidade hoje é outra. A mentalidade, tudo está diferente. Naquele tempo, se esperava o algodão, quando chegava em junho, a gente, quando tinha cantoria, saía cantando por aquelas fazendas e fazendo os tratos. Quando chegava em agosto, vinha a safra do algodão e o lucro aumentava, era só fazer os cálculos. Já sabia que estava bem, porque a cantoria estava boa, porque o pessoal tinha dinheiro. Agora, com a queda do algodão, com o bicudo (principal praga do algodão, inseto que prejudica a safra), acabou a cantoria no sertão. Beatriz – Seu Dimas, o senhor contou pra gente na pré-entrevista que entrou em de-

Dimas – Eu faço que estou com raiva e mando ela para longe. “Você vá pra casa não sei de quem!”, começo a conversar, passa. Foi nessa (ocasião) da depressão que eu tive os casos do Acidente Vascular Cerebral (AVC)... Esse AVC, eu não sei... Tem um mistério nesse AVC sobre um negócio que teve que eu fiquei impressionado. Realmente. Foi essa menina que eu namorei. Essa menina morreu, mas eu sempre sonho com ela. E, num sonho que eu tive com ela, há uns quatro anos, foi no dia 20 de julho desse ano tal, não estou lembrando o ano, já está bem com quatro anos, sonhei com ela e, com três dias, me deu um AVC. Fui internado, me recuperei... E o sonho que eu tive foi no dia 20 de julho, nessa data. E ela morreu no dia 20 de dezembro, no mesmo horário. De nove horas lá, que ela morreu, foi a hora que eu tive o meu AVC. Ed – Qual era o nome dela? Dimas – Fransquinha. Francisca Sampaio. Eu consegui até um retrato dela. Estou com ele ali. Aí a Lúcia... Mostrei (para ela): “Tá aqui, Lúcia, a moça. Mas não vá se preocupar, que ela já morreu”. Ela fica assim, olhando... Era bonita! Era bonita e muito de respeito, a Francisca. O caso que eu tenho remorso é que eu prometi de voltar e não

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Terminada a entrevista, Dimas fez questão de mostrar para a equipe da Entrevista as instalações da Casa do Cantador. São quatro quartos para hospedagem, dois banheiros, uma cozinha e um salão de estar.


Quando Dimas terminou de declarar a dor que sentiu ao saber que não poderia mais tocar a viola, todos estavam emocionados. Thaís retomou o ritmo da entrevista com lágrimas nos olhos e voz embargada.

Minutos antes da entrevista, Beatriz foi buscar um copo com água para deixar à disposição de Dimas, durante a entrevista. Pediu à dona Lúcia, que fez sinal que esperasse, e disse: “Só água? Pois eu levo já um refrigerante bem geladinho também!”.

voltei. Isso ela esperou cinco anos. Alissa – Por que é que o senhor não voltou, então? Dimas – Eu acho que o destino complica essas coisas. Porque se o destino quis... Agora, como diz o matuto, “tivesse quisido”... Eu tinha voltado. Tinha dado tudo certo. Eu não namorei com ela (aponta para a dona Lúcia)? Eu vinha, voltava, namorei e cheguei a casar com ela? É porque o destino era pra ela, não era pra de lá. Aqui, quando você nasce, já está tudo na constituição de Deus. Porque o tribunal divino não tem vazamento. Beatriz – Seu Dimas, então, voltando aqui um pouco para a questão da cantoria, quando é que o senhor encerrou a sua carreira como cantador? Dimas – Desde agora, com o primeiro AVC (Em 1943, Dimas teve o primeiro AVC. Na época, tinha 13 anos. Na pós-produção, a equipe da Entrevista entrou em contato com Dimas, que corrigiu a informação. Na verdade, encerrou a carreira depois do terceiro AVC, que aconteceu em 2011). Não tinha mais condições. Nem voz, nem mão, nem tato pra pegar em viola. E a cantoria se sofisticou muito. Não dá mais pra mim não. É preciso a gente ter consciência do que é. Beatriz – E como é que o senhor se sentiu ao ter de cessar essa carreira? Dimas – Senti ruim, né? Ruim, porque, quando você tem um destino, tem vontade de fazer uma coisa e não dá mais pra fazer, você sente. Seja que profissão for. Camila – Seu Dimas, a dona Lúcia falou que ela chegou um dia, o senhor estava no quarto chorando e disse que era o velório da sua viola. Como é que foi esse episódio? Dimas – É porque eu, vendo a viola, sem poder mais pegar nela, porque não podia cantar... Eu tinha de chorar, né? Aquilo ali era uma morte. A gente tinha quase como uma pessoa que vivia a vida com a gente. A viola foi quem me deu a vida. E eu perder a vida de quem me deu a vida? Você tem de sentir. Não tem coração duro pra suportar não. Chorei, é verdade, porque a gente ver a companheira, a fiel companheira, que ajudou a criar os filhos, pra não poder mais pegar nela, e

“Você passava uma noite cantando, era até de manhã. Tinha uma história de ‘a cantoria pegar o sol com a mão’”

saber que, dali pra frente, estava isolado e o “cabra” vivo? Porque, quando morre, é, tá bom, a morte acaba com tudo. Mas, quando você vê aquilo que lhe deu a substância da sua vida e não tem mais aquela companheira fiel, como era a viola... É mesmo que lhe passar um chifre! Ela (durante) toda a vida me deu o pão de cada dia. Então, a viola foi a minha fiel companheira. Thaís – Seu Dimas, o senhor passou quanto tempo como cantador? Foram quantos anos? Dimas – Quase 50 anos. Quarenta e oito anos, mais ou menos, foi a minha vida de viola. Alissa – O senhor sente falta, hoje, da viola? Dimas – Eu sinto. Sinto. Se pudesse cantar, para mim era uma felicidade. Talvez instruísse mais o meu juízo, os meus sentimentos ruins se apagavam. Uma distração. Tudo aquilo ali servia pra eu fazer a minha vida mais cautelosa e mais calma, fora de traumas, dessas coisas. Beatriz – Seu Dimas, por que o senhor começou a se envolver mais com a administração aqui da Associação? Dimas – É que, quando eles me botaram aqui, há 33 anos, a associação ainda não tinha quórum pra eleger uma diretoria. Era: “Pode botar Fulano, pode botar Beltrano, Cicrano...”, aí me colocaram. “Vamos botar o Dimas como tesoureiro”. Não tinha dinheiro, me “rebolaram”! Ficou o comentário: “Mas botar um doido na tesouraria da associação?” “Mas tudo bem, não tem dinheiro!” Mas quando eu saí dali (do Hospital Mira y Lopez) pra minha casa eu disse: “Eu vou trabalhar pra ser presidente da Associação!” Trabalhei. Com dois anos, já tinha quórum para eleger uma diretoria. Presidente, Vice-presidente, Primeiro-secretário, Tesoureiro, Segundo-tesoureiro e Conselho Fiscal. Fizemos um grupo de 12 membros da Associação dos Cantadores do Nordeste. E comecei a trabalhar. Entrava em todo campo atrás da associação. Carreguei madeira na cabeça pra fazer a primeira casa, aquela casinha pequena ali (aponta para os fundos da Casa). Foi que nós fizemos essa estrutura. E eu entrava no Ministério, entrava em todo campo. Eu era assim desse jeito. Eu fazia as coisas só para o bem, para o mais. Ed – Como é que o senhor conheceu a Associação de Cantadores do Nordeste? Dimas – Foi por causa dessa reunião que me botaram de tesoureiro, e eu morando ali (na casa que comprou, no bairro Pirambu). O Alberto (Alberto Porfírio, poeta popular, escultor, xilógrafo e sócio-fundador da Associação dos Cantadores do Nordeste.

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Faleceu em 23 de setembro de 2009) era o presidente, e me trouxe aqui. O terreno era baldio. Isso aqui era uma “ruma” de lixo. Pra você ver o que é o pessoal, a associação tinha uma vila de casas no (bairro) Antônio Bezerra, uma casa no (bairro) Bonsucesso, uma no (bairro) Pirambu, esse terreno aqui e mais cem contos de réis para fazer a Casa do Cantador, e eles comeram tudo! Ed – “Eles” quem? Dimas – A diretoria passada. E eram doutores, professores, todo esse povo. Acabaram com ela (a associação). Tinha o terreno, aquela Ceasa (Centrais de Abastecimento do Ceará S.A, um projeto que viabiliza a venda de produtos agrícolas) é uma quadra de terra em cima da quadra de terra da associação. E eles conseguiram a indenização de lá. O terreno (em que hoje fica a Casa do Cantador) era o seguinte: ou murava ou limpava. Se limpasse, não dava para murar, se murasse, não dava para limpar. Eles disseram: “Aqui, os vereadores podiam arranjar um material para limpar o terreno!” Com isso, você vê como eu era doido mesmo! Numa terça-feira, com essa história do Alberto, eu fui no Departamento de Limpeza Pública. Nesse tempo era o Adail Fontenele o superintendente (Adail Fontenele foi diretor do Departamento de Limpeza Pública de 1976 a 1985 e é o atual secretário de Infraestrutura do Estado do Ceará). Cheguei lá... Nesse tempo não tinha computador não... (Adail) falou: “Qual o seu caso?”, eu falei que tinha o caso de um terreno e não tinha dinheiro para limpar, ou murava ou limpava. Ele perguntou onde era e eu falei pra ele. E tinha um rapaz lá, com aquelas máquinas, parecendo uns pés de boi, pá, pá, pá, pá (gesticula como quem escreve em máquina de escrever), escrevendo meu nome com tudo, só não pediu o atestado de morte de papai, mas tudo ele colocou lá. Isso numa terça-feira. Disse: “Sexta-feira, às três horas da tarde, esteja lá no terreno”. Eu vim. E ficaram: “E não é nada, rapaz!”. O povo que gosta de destruir a gente (ficava dizendo) “Vem lá nada!”. Saí de casa, na sexta-feira, quando chego aqui, tinha mais gente que em Dia de Finados no Parque da Paz! (Cemitério de Fortaleza) Três, quatro caçambas e uma pá mecânica. Quando foi cinco horas, faltou combustível, eles foram, abasteceram, vieram, limparam o restinho e o terreno ficou que era uma maravilha! Alissa – O senhor já pensou em entrar para a política? Dimas – Deus me livre! Camila – Por quê? Dimas – Porque eu não digo que sou honesto, mas pelejo pra ser honesto. Propina eu não recebo. Eu fiz, no governo do Lula

(Luiz Inácio Lula da Silva, 2003-2010), um projeto de 263 mil reais pra fazer um festival aqui e em outras cidades do interior. Mais tarde, chega um “cara” lá de Brasília: “Tá lá o teu projeto, eu vi o teu projeto, muito bom. Se me der dez por cento, é aprovado!” Eu disse: “E a prestação de contas?” “Não, nós somos oito lá, dá pra gente reajeitar”. Eu disse: “E dá mesmo?” “Dá.” “Pois é, vocês voltem e depois vocês ajeitam”, e eu não recebi. Porque de onde é que eu ia tirar material para cobrir 26 mil e tantos reais? Deixei... Só que depois me arrependi de não ter feito, porque, quando fosse aprovado, o dinheiro ia pra conta. Eu chamava os associados e dizia: “Olha, aconteceu isso e isso. Vocês assinam, como profissão, como a parcela de festa da associação?”. Se eles dissessem: “Ah! Então vamos dar”, dão os cinco mil a ele, ele vai-se embora e pronto. Eu ia ganhar. Quanto eu não tinha ganho? Tinha ganho muito dinheiro, né? Mas eu não sou desses de saber fazer essas manobras. Eu fiz um festival aqui, os 50 anos da associação. Foi tanto dinheiro que veio para cá! Material permanente foi conseguido pelo deputado federal Marcelo Teixeira (atualmente não é mais deputado). Compraram um freezer, um fogão, botijão de gás, 100 cadeiras, uma televisão e um computador. Chega um cantador: “Rapaz, tire esse computador e melhore o nosso cachê...” E eu digo: “Não, senhor! Faço isso não!” As cadeiras, vieram R$ 1.400, foram R$ 1.399. Sobrou um real e eu fui botar na conta do Ministério da Cultura. Fui para a fila do banco e coloquei um real na conta. Passou-se a festa, (foi) muito boa. Foi até uma que o canal 22 filmou “tudinho”

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Dimas, que não conseguiu decorar o nome de todos os entrevistadores, encontrou uma solução prática para os vocativos: chamava as mulheres de “Dindinha” e os homens de “rapaz” ou “cristão”.

Quando falava, Dimas enfatizava alguns trechos aumentando a voz e dando uns tapinhas na mesa à frente. A equipe de produção suspirou aliviada quando viu que o som das pancadas não comprometeu o áudio da entrevista, na hora da transcrição.


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“Minha escola foi a viola. A escola foi a cantoria. Não foi outra escola. A cantoria foi quem fez eu me desenvolver, que me obrigava a ler”

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Dimas é brincalhão. Quando Beatriz estava dizendo que tinha alguns exemplares da Revista Entrevista para lhe dar, ele não a deixou terminar de falar. Virou-se para Thamires e perguntou, rindo: “Ela quer me dar dinheiro, é?”

Quando percebeu que Zé Matias estava receoso ao saber que seria entrevistado pela produção, Dimas usou o seguinte argumento para deixá-lo à vontade: “Fale, rapaz, fale. É bom. Quando essas meninas vieram aqui pela primeira vez eu conversei mais que o homem da cobra”.

aqui. Quem estava no Rio Grande do Sul, de lá telefonava para o pessoal daqui, estavam assistindo lá, o festival. Quando foi uns três meses, chega um “cara” estranho aqui, olhando a casa, muito melhor, a casa nova, estava bonitinha, identificou-se que era um fiscal do Ministério da Cultura. Ele veio com a lista (de materiais que deveriam ser comprados com o dinheiro). Foi só eu mostrar ali (as notas fiscais dos gastos com o festival), foi-se embora. Eu não dou pra política. Manobrinha não é comigo não! Marcella – Há quanto tempo que o senhor está à frente da associação? Dimas – Já posso botar 30 anos. Marcella – Nesse tempo todo, o que o senhor vê, hoje, como as principais dificuldades que a casa enfrenta? Dimas – A manutenção. Porque nós não temos ajuda de Governo nem de Prefeitura. Aqui, o que eu faço ainda, os meus costumes e do meu pessoal, é a Receita Federal. Consigo materiais apreendidos, faço um bazarzinho e aplico. Isso aqui tudo foi Receita Federal (aponta para o telhado novo do deck da casa). Eu botei no meu bolso? Não botei. O superintendente já veio aqui, para ver isso tudinho aqui. Até eu tô aí com ele, para ver se eu consigo um transporte para a associação. Com o material apreendido (pela Receita Federal). Camila – Seu Dimas, o senhor falou que faz dez anos que um secretário de Cultura não vem aqui na associação, né? Dimas – É não, ele passou. Passaram dez anos sem vir o Nilton Almeida (então Secretário de Cultura do Estado), do tempo do Jereissati (que cumpriu três mandatos como Governador do Estado do Ceará, entre 1987-1991, 1995-1998 e 1999-2002), e passaram dez anos (Nilton Almeida foi secretário de Cultura do governo Tasso Jereissati somente entre os anos 1999 – 2002, no terceiro mandato de Jereissati à frente do Governo do Estado do Ceará). Eu sempre ia

“Quando eu saí do Mira y Lopez, fizeram uma reunião aqui (na Casa do Cantador) e me colocaram como tesoureiro e aí me recuperei, trabalhando”

lá pra ver se conseguia recursos. Ele dizia: “Faça o festival!”. Eu: “Seu Secretário, eu só faço o festival quando o dinheiro entrar na conta. Pode ser dez, 15...” “Rapaz, você falou dez mil? Quer 50?”, eu digo: “Seu Secretário, com dez mil não dá pra fazer um festival, mas se o senhor mandar, eu gasto, que eu sei empregar os dez mil na Casa do Cantador. Faço uma noitada e tudo dá certo. E lhe presto conta. E quero que o senhor vá para me ajudar. Qual seria a sua ajuda? Me orientar. Então, você me orientando, eu vou me sentindo mais perto da Secretaria de Cultura”. Eu dei essa lição nele. Porque você sabe que, se (ele) me orientasse, eu iria pra outro caminho mais certo. Camila – Mas, atualmente, o secretário de Cultura tem visitado a casa ou não? Dimas – Já, doutor Pinheiro (Francisco José Pinheiro, Secretário de Cultura do Estado do Ceará desde 2011) já veio aqui. Eu disse a ele: “Doutor, que é que eu faço? Queria cobrir isso aqui”. Foi o tempo que ele saiu, depois voltou. Mas consegui (cobrir o teto) com a Receita Federal, não precisou dele. E agora, tendo esse festival, eu estou esperando que ele venha. Estou encaminhando um e-mail para o Governador (Cid Gomes). O Ciro Gomes, quando foi do governo, veio aqui assistir ao festival, por que é que o irmão dele não pode vir também? E estou levando agora um e-mail pro prefeito novo (Roberto Cláudio), pro Secretário da Secultfor (Secretaria de Cultura de Fortaleza. O secretário é o jornalista Magela Lima)... Eu quero esse povo tudo aqui! O Presidente da Câmara, que é meu amigo. O Walter Cavalcante, quero trazer ele aqui. Quero eles todos aqui, pra ver. Porque eu quero fazer um festival grande em junho. Entre junho e julho, por aí assim, conforme seja, dos 100 anos de Domingos Fonseca, que ele foi o primeiro a criar uma associação de cultura popular do Brasil. Então, 100 anos... Não faz com Patativa? Não faz com Luiz Gonzaga? Camila – Mas então, atualmente, não há nenhuma parceria firmada com nenhum dos dois governos, nem estadual nem municipal? Dimas – Não, não, não. Camila – E como é que o senhor se sente diante dessa falta de assistência, como administrador e como cantador? Dimas – Dificuldade! Dificuldade! Porque tem de fazer projeto. Só pra você arranjar o produtor do projeto, já dá trabalho, porque eu não tenho dinheiro pra pagar. E ainda vai esperar que seja aprovado... (pensativo) É tanto que eu estou com amizade lá dentro da Secretaria de Cultura, pro rapaz vir aqui, ainda fazer o projeto do festival agora pra

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(levar para) Brasília. E aí que eu quero falar com o Baumann (Antônio Baumann, deputado federal), que se dá comigo, com o Eunício Oliveira (senador pelo Estado do Ceará desde 2011), que é do sertão, que gosta de cantoria, as coisas dele ele só quer se for de cantador... Esse Pimentel (José Pimentel, senador pelo Estado do Ceará desde 2011), ele também é pra dar ajuda, sabe por quê? Porque ele é piauiense, então ele, como senador, podia abrir as portas pra gente, no festival aqui. Que é que há ele arranjar 200, 300 mil reais aqui? Pra ele passar cinco minutos aqui, trazendo uns presidentes de associações, trazendo uns cordelistas, fazendo palestras aqui dentro. E eu quero fazer um projeto dessa natureza. Fazer uma noitada só com mulher, cantadeiras. Uma noite feminina, uma noite de emboladores e a noite dos cantadores, com competição, com o troféu padrão, que é grande, é caro. Se isso aqui fosse uma coisinha assim (gesto de coisa pequena com os dedos), mas não, eu acho que dá, não faz vergonha a qualquer autoridade grande chegar aqui não. Eu penso que não. (ênfase) Beatriz – Seu Dimas, na pré-entrevista o senhor falou que aqui dentro da associação alguns cantadores não pagam a mensalidade. Como é que o senhor vê isso? Dimas – É triste. É triste porque, se eles vêm à associação, a associação precisa pagar. Se não quer pagar porque acha que não tem condições, vê que não dá. Mas os doentes que vêm pra cá saem quase todos curados. (alguns cantadores do interior se hospedam na Casa para buscar tratamento médico na capital, não apenas para fazer apresentações.) Quantos deles cancerosos saíram daqui bem felizes. Tem um aí que está meio doente, mas esse é mais pesado. O Batista saiu hoje, satisfeito, o Zé Loro também, saiu outro que veio de Cajazeiras, um barão que se tratou aqui e já levaram, pra você ver, não é essa a dificuldade da gente. Ed – Se a associação tem dificuldade com relação a financiamento, com o poder público e também com os próprios membros, já que alguns não pagam a mensalidade... Como é que ela tem se mantido financeiramente? Dimas – É o que eu lhe disse, eu alugo para casamento, para aniversário... Eu só não cobro em velório. Ed – Já aconteceu algum velório aqui? Dimas – Já teve muitos deles aqui. Com isso é que eu estou mantendo a Casa. É a única por aqui que é até Seção Eleitoral. Qual é a entidade aqui que tem uma sede que tenha isso? Me mostre aqui dentro de Fortaleza, dentro do Estado do Ceará. Só tem

nós aqui. (ênfase) Mas, mesmo distante, eu quero botar no juízo de vocês que também é difícil. Se o governo der um certo apoio aqui, eles vão se aproveitar e mandar todo mundo pra cá. Chega uma turma por acolá, “Ai, precisa de um apoio, precisa de uma hospedagem” e corre pra Casa do Cantador. Como está acontecendo em Brasília. Antes, tinha cama de primeira qualidade, guarda-roupa, banheiros limpos... Pra hoje não ter nem cama, nem rede, não tem armador lá! Não tem nada disso. Meu amigo, espere aí... Isso é triste! (ênfase) Onde tem mais dinheiro é em Brasília. Mas come tudo. Marcello – Seu Dimas, nesses 30 anos à frente da Casa, o senhor chegou a pensar que ela fosse fechar por conta das dificuldades de manutenção? Dimas – Pode fechar. Marcello – Ainda pode fechar? Dimas – Pode. Pode fechar porque, eu saindo daqui, a primeira coisa que dá o prego é o motor. Porque o motor, você tem de ter uma assistência o tempo todo, pra não queimar. Queimou, acabou-se a água. E, quando eu entrei aqui como tesoureiro, o pessoal não fazia isso. Eu fiz. Estou fazendo aí. E, se eu sair daqui, pode acontecer isso. Pode acontecer. Ed – O senhor teme por esse futuro? Dimas – Eu, quando cheguei aqui, não sabia de nada. E não fiz? E os outros, que têm condições e não aprendem? É falta de interesse. E se não tem interesse pra cuidar nisso aí, pra sempre, quem vai cuidar? Bater de porta em porta, como eu bati em Brasília, bati aqui na secretaria, bati na Receita Federal... É difícil. E eu aplico. Arranjo e aplico. Você chega com uma “ruma” de carro velho, amanhã eu estou vendendo aqui na sucata. Pra apurar alguma coisa. Tem as vigas pra fazer, tem um vazamento acolá, tem uma caixa d’água pra ajeitar, tem um motor ali... Todo esse dinheiro que eu arranjo, eu vou aplicar “tudinho”. Aliás, ainda pode ser até do meu próprio salário. Murilo – Seu Dimas, o senhor disse então que vai falar com o secretário de Cultura, vai falar com o prefeito. O que o senhor acha

“É porque eu, vendo a viola, sem poder mais pegar nela, porque não podia cantar... Eu tinha de chorar, né?”

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A conversa com Dimas não foi feita sob a tensão do silêncio: do meio para o fim, alguém da vizinhança ligou o rádio e deixou que Bartô Galeno embalasse o ritmo da entrevista.

Depois da entrevista, ia passando pela rua da Casa do Cantador um vendedor de “chegadinha”, guloseima tipicamente nordestina. Murilo, que nunca havia provado antes, achou bom. “É muita cultura popular pra uma tarde só!”


Pouco antes de a produção começar, Beatriz mudou-se para um apartamento a poucos metros de distância da casa de Thamires. Muitos telefonemas foram economizados. Recomenda-se, inclusive, que todas as equipes de produção das próximas entrevistas se mudem para perto uns dos outros.

A entrevista foi feita na área externa da Casa do Cantador, numa parte coberta, com várias cadeiras à disposição da turma. Lá há uma churrasqueira e um balcão, no qual dona Lúcia deixou vários copos com refrigerante e água para quem tivesse sede.

que eles podem fazer para ajudar a Casa? Dimas – É, tem esses problemas. Mas, primeiramente, se ele vier, eu vou ver a empolgação deles em ver a casa, porque o meu caso primeiro é fazer o aniversário do Fonseca. Vou ver se eles me dão essa cobertura. Por sinal, tem duas emendas aí, de dois vereadores, que já estão colocando pra essa data (do festival em homenagem a Domingos Fonseca). É pouco, mas já é uma ajuda. São 30 mil, já é ajuda. E, com isso, com o prefeito tratando esses assuntos, pode ser que ele abra as portas. Ele não dá 700, 800 mil a um só? Ele não podia tirar uma parte pra nos ajudar? A minha intenção é essa. Eu não sei se ele vai me dar essa cobertura. Vai doer a consciência dele, de precisar fazer isso? Pra nós fazermos a festa, trazendo o pessoal de todo o Nordeste aqui. Quero trazer até a Marta Suplicy, que é Ministra da Cultura. Murilo – Certa vez, o senhor disse que outra casa (do Cantador), a de Brasília, foi aceitando os apoios políticos e passou a ser como se fosse um quintal do governo. Diante da sua busca pela ajuda do poder público, até que ponto isso também ameaçaria a autonomia da Casa? Dimas – É, disso é que eu tenho medo. Porque eu quero a cultura popular liberada, pra nós trabalharmos como estamos trabalhando. Não é pra fazer da maneira que fulano quer. Porque, nessas alturas, a gente tem de fazer uma coisa bem feita. Uma “ruma” de cordel aqui, vocês olhando o cordão, comprando, lendo, tudo. Marcella – O senhor foi para Brasília dizendo que gostaria que o poder público pudesse ajudar a Noite das Violas. Os objetivos de pedir apoio nessa época ainda são os mesmos de hoje? Dimas – É. Os mesmos objetivos. Marcella – E como foi esse episódio em Brasília, da Noite das Violas? Dimas – Nós estávamos na campanha de fazer a Casa do Cantador em Brasília. Nessas alturas, a gente precisava ir lá pra Águas Claras, onde residia o governador. Não tinha nenhum carro pra gente ir. Conseguimos um caminhão lá, fomos de caminhão, pau-

-de-arara, pra lá. Fizemos a cantoria. Quando terminou, Seu Aparecido (José Aparecido de Oliveira foi governador do Distrito Federal de 1985 a 1988 e Ministro da Cultura do governo Sarney) disse: “Vou fazer a Casa do Cantador”. Com 11 meses, inaugurou. O prédio, a estrutura, com arquitetura de Oscar Niemeyer. Murilo – Como é que o senhor conseguiu ajuda para realizar a Noite das Violas? Camila – O senhor não foi pedir ajuda também para isso? Dimas – Foi. Foi quando o José Aparecido deixou o governo e foi ser Ministro da Cultura. Foi quando eu fui para falar com ele sem audiência, que eu não sabia o que era audiência. Pedi. Quando cheguei lá, eles me deram a liberdade. Eu falei com ele, consegui. Já perto dele sair, prestei conta. Murilo – Mas o senhor já era amigo dele, no caso? Dimas – Era. Meu amigo. Ele diz assim mesmo, bate aqui no ombro e diz: “Eles foram a semente da Casa do Cantador de Brasília”. Fiquei muito feliz com isso. E ele nunca me abandonou. Até ser embaixador, ele deu prova de que aceitaria um grupo de cantadores lá em Portugal, levado por nós aqui. Só que tomaram. Eu fui “garfado” por muitas coisas. Ed – Seu Dimas, e como é que surgiu a ideia de fazer a Noite das Violas? Dimas – Essa Noite das Violas já acontecia há muitos anos, na Casa Juvenal Galeno (Fundada em 1919, é uma instituição mantida pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, com objetivo de difundir e incentivar a cultura cearense). Como lá sempre acontecem as teimosias, houve um desentendimento, mudaram o festival lá pra última segunda-feira e aqui pra primeira segunda-feira. Ficou a Noite das Violas. A de lá acabou-se e a daqui continuou. Porque o governo deixou a Casa Juvenal Galeno. Quando o Roberto Galeno morreu, morreu a casa. Não tem nada mais ali. Uma casa daquelas não podia ser assim não. Aquilo ali era no centro da cidade. Mas não tem nada! Tinha reuniões, Noite das Violas, tinha aquele pessoal

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ali, daquelas declamações de quadras dos povos, tudo era na Casa Juvenal Galeno. Hoje ninguém ouve nem falar. Camila – O senhor já está no décimo mandato à frente da ACN. Por que o senhor acha que foi reeleito tantas vezes? Dimas – Porque a consciência deles dizia que eu estava fazendo o trabalho certo. A consciência... A última eleição foi agora. Foram 30 eleitores, chegaram a ser, parece que, 32 eleitores. Não teve um voto “não”. Tudo foi “sim”. Tenho uma responsabilidade muito grande. Porque ser eleito 100%... Alissa – E o senhor se sente satisfeito com o trabalho que fez ao longo desses dez mandatos? Dimas – Me sinto, me sinto. Porque estou vendo que está feito. Porque isso são coisas que a gente faz e vê. Saber, com sacrifício, que tá tudo em pé, saber que isso aqui é coisa para sempre, que tudo é cimento... Isso aqui é bom. Porque tudo o que eu quero fazer é pra ser inacabável. O nosso troféu é padrão, em homenagem a Domingos Fonseca, é de bronze. Fui eu quem criei, porque eles faziam uns festivais e botavam aqueles trofeuzinhos de jogador de futebol. Aqui é a viola. É uma viola por cima da outra, o troféu. Padrão, de bronze. Pronto. É tanto que (para) esses festivais que aconteceram, eu já fazia 50 troféus. Ia atrás de firma, daqui, dacolá, pra patrocinar, que é cara. Fazer 50 troféus de bronze... A Caixa Econômica uma vez me deu 20. Se ela me der mais 20 dá pra fazer outra firma, para arranjar dez de um, dez de outro... Com o projeto que vier, se tiver os troféus, dá pra fazer um festival de competição. Primeiro, segundo, terceiro, quarto lugar e daí por diante. Murilo – Seu Dimas, ao longo desses dez mandatos, qual a conquista que o senhor considera como a mais importante? Dimas – Qual é a conquista? É minha personalidade. Eu acho que a conquista maior é a minha personalidade, de ter executado uma associação dessas em todos os planos, e vocês estão aqui hoje por isso. Se não fosse isso, vocês não estavam aqui. Pra mim, é uma conquista fabulosa. Dada por aquele divino Espírito Santo, porque não teve escola... Mas hoje está tudo aqui, com essa estrutura que vocês estão vendo. Eu acho que só Deus que fez isso em mim. Thaís – Com esses eventos que vocês promovem aqui na Casa, como é que o se-

nhor vê a participação dos moradores da cidade, como é a relação da cidade com essa cultura nordestina? Dimas – Quando tem festival, a casa é cheia, né? A casa é cheia, porque os vizinhos vêm, os amigos e muita gente. Quando você “bota” na televisão, no rádio, no jornal, todo mundo sente. Nós temos gente pra cantoria. A pessoa da cantoria não é a pessoa do forró. Pode fazer um carnaval acolá... Nós fizemos agora Luiz Gonzaga aqui. Não tinha lá na Praia de Iracema? Lá no Dragão do Mar, por acolá, Praia de Iracema? A nossa casa aqui ficou cheia. E só Luiz Gonzaga! Lá era fulano de tal, não sei da onde, do estrangeiro... Não falou nada de Luiz Gonzaga. Mas o cantador falou! Do nascimento dele, a trajetória dele, tudo em verso. Cantando aqui de improviso, bem ali naquele palanque. Aqui foi Luiz Gonzaga. Lá foi uma festa pra aglomerar um público. E lá (era um lugar) onde levava até a cocaína, as drogas, tudo lá. Tanto é que aconteceram arrastões por lá. Aqui não teve arrastão não. Arrastão aqui foi só viola, festa e repente. O arrastão daqui. (risos) Foi bom, foi bom! (Ele se refere a um show organizado no Aterrinho da Praia de Iracema, em Fortaleza, em dezembro de 2012). Alissa – O senhor considera que a associação faz um trabalho de resistência, para manter a cultura popular? Dimas – Considero, porque já houve muitos projetos aqui, que vieram de fora, oficinas de cordéis, os cantadores, os emboladores... Então, nós estamos aproveitando o momento. Eu fico revoltado porque o cantador, qualquer coisa vem com “eu fiz um cordel”. Se você for olhar... Não prestava, o cordel! (risos) Desmetrificado! Até que chegou ao ponto, com o Zé Maria e outros, fiz a reunião aqui, fizeram umas oficinas de cordel. Mas hoje, os cordelistas que participaram aqui, você olha o cordel e você vê métrica, rima, oração, vê tudo bem equilibrado. Diz que tem uma teima na Paraíba, um camarada que diz que a poesia não é matemática. É a maior matemática, a poesia! Eu fui fazer uma apresentação, o cara fez um trabalho lá, um universitário, e leu, gaguejou, na última estrofe. Agora, por quê? Porque estava desmetrificado. É a matemática. Agora, por falar em matemática, o cantador parece que tem um dom tão grande que às vezes... Eu cantando com o Zé Pereira, em um desafio, ele disse: “Mas um ‘O’ só vale um zero se for

“Consigo materiais apreendidos, faço um bazarzinho e aplico. Isso aqui tudo foi Receita Federal. Eu botei no meu bolso? Não botei” DIMAS MATEUS| 75

Mesmo já tendo ido uma vez à Casa do Cantador, Thamires e Beatriz tiveram certa dificuldade para lembrar a trajetória de casa até lá. Apelaram para o “amigo-dos-perdidos”, o Google Mapas, aplicativo da internet que aponta endereços e direções.

Na Casa do Cantador, há uma estátua do fundador da Associação dos Cantadores do Nordeste, Domingos da Fonseca, sentado com a viola no colo. Dimas fez questão que a foto com a turma fosse ao lado da estátua.


Ouvir as histórias de Dimas é ter contato com o jeito de falar peculiar ao homem do sertão. Thaís, amante declarada do bom “cearês”, saiu satisfeita da entrevista, com verbetes adicionados ao vocabulário.

Beatriz, Thamires e Alissa já foram à Casa do Cantador antes da Entrevista. A ocasião era menos profissional: uma festa de São João, no ano de 2010.

pela matemática / nos algarismos romanos, já me disse a vida prática / que essa letra não voga, porque precisa da gramática”. Não é que dá certo, uma coisa dessas? Thamires – Seu Dimas, passando agora para a parte da sua família e do futuro. A dona Lúcia manifestou interesse pelo senhor desde muito nova e... Dimas – Foi, me aperreou muito! (risos) Thamires – Para o senhor, o que foi que fez ela se encantar pela sua figura? Dimas – A gente era quase da família, né? Fazia amizade pelos outros pais. E o pai dela gostava de cantoria, comprava os cordéis pra ela ler. Então, ela se envolveu na cultura, nessa natureza. Depois me pegou cantando. Então ela entrou no mesmo rol, ficou gostando. Porque quando a mulher gosta do que o marido gosta também, o casal fica certo. Mas quando o casal começa: “Não, eu vou isso, eu não gosto disso, não gosto daquilo...”, começa o desequilíbrio. Ed – Então o senhor acha que ela começou a gostar do senhor pela cantoria? Dimas – Pela cantoria, foi. Ed – E por que o senhor acha que a cantoria encanta tanto as pessoas, a ponto da dona Lúcia se apaixonar pelo senhor? Dimas – É porque, sempre que a pessoa é... Eu tenho ela como poetisa. Se ela tem a vocação como poetisa, então, amou a poesia, gostou de mim pela poesia. Porque ela gosta da poesia. Se ela não gostasse de poesia, ela não estava aqui dentro. Ela analisa, ela conhece, sabe dos erros dos cantadores, quando estão cantando... Quer dizer, é a vocação dela. Só não faz é cantar, mas foi cantada por mim. (risos) Beatriz – E por que o senhor acha que o relacionamento de vocês durou tanto? Dimas – Porque eu sou paciente. (risos) A gente teima muito, agora a gente está teimando muito. Mas é isso mesmo, é de casal mesmo. Mas eu também nunca desequilibrei a ela com bebida. O pai dela bebia e ela sofreu muito por causa da bebida do pai. Quem bebe desequilibra muito. Pega um besta que nem eu, que não bebe, e pronto! (risos) Thamires – Seu Dimas, como é que a dona Lúcia participa do trabalho aqui na casa?

Dimas – Na luta, coitada, trabalhando pra dar conta de tudo certinho. Ela tem amor por isso aqui. Quando você tem amor por uma coisa, você faz com toda dedicação. E ela tem amor por isso aqui. E no mesmo caso dela tá minha filha, está quase viciada aqui dentro. Ed – E o que elas fazem aqui? Dimas – A minha filha? Ed – As duas. Tanto a sua filha como a dona Lúcia. Dimas – A minha filha fica nessa parte da burocracia. De passar e-mail, essas coisas, que ela trabalha na Regional (A Secretaria Executiva Regional (SER) I abrange 15 bairros da Região Oeste de Fortaleza), que ela é funcionária pública lá na Regional, tudo quanto for pra ela passar aqui ela passa lá. Pronto. Ela resolve todos os problemas da associação dessa área. Ela gosta. Me respeita. A minha família tem amor por mim. Meus netos, nora, genro... Ed – E a dona Lúcia faz que tipo de atividades na manutenção da Casa? Dimas – Ela faz tudo. Vai lhe receber, trata bem as pessoas... A manutenção, o equilíbrio dos eventos, ela quem faz tudo para poder manter a casa... Ela quem tem as agendas, pra agendar pro povo alugar, receber o dinheiro e a ajuda que chega, pagar as contas da associação, de energia, de tudo. Thaís – E os outros filhos, eles se interessam pelo trabalho aqui da Casa? Dimas – Interessam. A minha filha é um exemplo. O meu filho, acolá, na hora em que eu precisar dele, ele está pronto. E a Leila (filha mais nova do casal) é a mesma coisa. O Arimatéia (filho mais novo) é porque mora em Natal, mas, se eu precisar, é a mesma coisa também. Quer dizer, eles adotam todos os trabalhos da associação. Camila – Seu Dimas, o senhor já é presidente da Associação há mais de 20 anos, com dez mandatos, né? E o senhor enfrentou alguns momentos bem difíceis. O senhor já pensou em desistir de estar à frente da associação? Dimas – Já. Esse vai ser meu último mandato. Camila – Mas antes, já tinha acontecido? Dimas – Não, nem tanto não. Mas agora... Já estou muito abatido. Muita luta, a idade... Oitenta e três anos não brinca não. É peso. Beatriz – E o que o senhor pretende fazer quando terminar? Dimas – Vou pra minha casa. Ed – No Pirambu? Dimas – É, no Pirambu. Na Leste Oeste (Avenida de Fortaleza). Murilo – E quando o senhor deixar a associação, o senhor pretende ainda manter

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algum vínculo? Qual é a relação que o senhor pretende manter, quando deixar de ser presidente? Dimas – Eu posso passar aqui e fazer uma visita, como vocês estão fazendo. Eu não vou mais me preocupar com ela. Para mim, tanto faz se cair uma telha ou cair... (risos) É! Eu não tenho mais responsabilidade nenhuma. Alissa – Mas, Seu Dimas, o que foi que manteve o senhor aqui, como presidente dessa casa, por 30 anos? Dimas – Muita responsabilidade e o prazer de fazer uma coisa que tivesse futuro. Eu ainda tô pretendendo crescer mais um pouquinho nesses três anos. Eu quero ver é (a Casa do Cantador) crescer. Para as pessoas passarem e verem que tem uma casa. E (que) não faz vergonha. Muita gente, às vezes, diz assim: “Fui na Casa do Cantador, pensava que era coisinha, assim, pouquinha”. Quando chega aqui, que vê o prédio... “Rapaz, a Casa do Cantador é essa daqui?!” “É essa daqui”. Porque você chega lá na universidade, muita gente não sabe o que é a Casa do Cantador. Acha que é um chiqueirinho, uma coisinha. Muita gente pensa isso. Beatriz – A Casa do Cantador significa o que para o senhor hoje? Dimas – Significa pra mim uma memória, pra toda a minha vida. Como esse pessoal falado, como Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga, fizeram pela cultura, eu fiz pela Casa do Cantador. Acho que, pra mim, a maior felicidade é que eu vou deixar a casa desse jeito, porque “está puxado para crescer”. Porque nunca comi, nunca mordi desse dinheiro. Porque, como eu vejo, o Ivanildo (Ivanildo Vila Nova é um dos cantadores mais famosos do Nordeste) dizia a mim que fazia os festivais em Pernambuco, em Recife. De 800 mil, 10% era para a associação de lá. E hoje não ter um quarto pra um cantador dormir? Meu amigo, espere aí! Isso dói em você. Marcella – O que o senhor acha do futuro do ofício de cantador? Dimas – Você sabe que cantador foi enquadrado na lei? Que hoje ele é artista, registrado. E não era. Em janeiro de 2010, foi sancionada uma lei. (A lei nº 12.198, de 14 de janeiro de 2010, reconheceu as atividades de Repentista, Embolador, Cantador e Cordelista como profissões artísticas). Que ficou ruim, por um lado, porque o cantador antes se aposentava pelo Fundo Rural (o antigo Funrural), e hoje eles só vão se aposentar se pagarem INSS. Ruim, por esse lado aí, (porque), agora, o que ele iria pagar à associação, ele tem de pagar ao INSS, porque (se não) ele não vai se aposentar. Mas hoje está é equilibrado. Hoje você não pode dizer que o cantador é qualquer coisa não. O cantador é registrado como artista,

profissional, por lei. Isso está garantido. Marcella – Como o senhor vê a posição que o cantador tem hoje? Dimas – A posição hoje está muito boa. O cantador hoje está na televisão, o cantador hoje está na universidade, o cantador hoje está em Brasília, na capital federal, o cantador hoje está sendo chamado para o exterior, para a França, para Portugal... Quer dizer, o cantador hoje está em um padrão diferente do meu passado. No meu passado, você passava em uma fazenda (e ouvia): “Vagabundo!”. Tinha cantador que era “sacana”: quando chamavam de vagabundo, ele puxava aquele dinheirinho miúdo, arranjava um pacote e mostrava. E eles, com tanto trabalho, não tinham aquilo ali. E eles (os cantadores) tinham. (risos) Beatriz – Seu Dimas, o que a Casa do Cantador representa e representou para a manutenção de uma identidade cultural do Nordeste? Dimas – Ela ficou no patrimônio cultural da poesia popular brasileira. É o cordel, é o cantador e o embolador. Beatriz – O senhor acredita na continuidade da cultura popular nordestina? Dimas – Sim, estão aparecendo uns novatos, acredito que eles vão sustentar. Daqui a mais alguns... Não muitos anos, não. Acredito que a nossa cultura popular, da maneira em que nós estamos, o máximo que ela vai aguentar é 50 anos. É o máximo que ela vai aguentar, porque a informática, a eletrônica, a mídia, estão trazendo umas pessoas, deplorando a nossa cultura. Não é mais aquela cultura limpa. É um negócio sofisticado, e acredito que ninguém vá suportar. Agora, se encontrasse a mocidade, como vocês que estão aqui, no festival, interpretando aquilo ali, admirando aquilo outro, iria pra frente. Ia aparecendo mais cantador. Beatriz – Então é isso, obrigada, Seu Dimas. Dimas – Obrigado digo eu! Não mereço tanta cortesia quanto vocês fizeram comigo aqui, mas estou feliz. Graças a Deus, estou à disposição.

“Eu, quando cheguei aqui, não sabia de nada. E não fiz? E os outros, que, têm condições, não aprendem? É falta de interesse”

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Quando a turma foi convidada a conhecer as acomodações da casa, quatro cantadores estavam instalados nos quartos. Todos acharam melhor observar os cômodos do lado de fora, visto que um dos artistas dormia tranquilo numa rede lá dentro.

Repente é uma tradição folclórica que se destaca no Nordeste e cuja origem remonta as trovas medievais. Mescla música e poesia, num rompante de improviso e desafio entre os participantes.


Na reunião de discussão sobre a captação da entrevista, Larissa confessou que teve uma “crise de risos”. Ela não conseguia parar de rir quando Dimas utilizava expressões autenticamente nordestinas nas respostas.

// Direito de Resposta – Nilton Almeida Sobre a relação da Casa do Cantador com Nilton Almeida, então secretário de Cultura no governo de Tasso Jereissati, e sobre a declaração de Dimas Mateus de que a associação passou dez anos sem a visita de um secretário de Cultura. Nilton Almeida – Deixei a Secretaria há mais de dez anos. Portanto, creio que a afirmação segundo a qual “faz dez anos que um secretário de Cultura não vem aqui na associação” não se refere ao meu período. Lembro bem que compareci à inauguração da nova sede da Casa do Cantador, na Rua Coelho da Fonseca, nº 195, no bairro Álvaro Weyne. E, como o próprio entrevistado afirma, ele sempre ia à Secult, recebido em audiência, naturalmente. Já a frase “faça o

festival” não reflete meu estilo de trabalho. Minha postura era sugerir a apresentação de projeto. Agora, com certeza, a Associação dos Cantadores foi contemplada no período em que estive à frente da Secult. Já o mesmo não posso dizer em relação aos projetos pessoais do Sr. Dimas, pois a prática era privilegiar as entidades, ao invés dos projetos de pessoas físicas, o que parecia incompreensível para alguns contumazes visitadores da Secult.

// Direito de Resposta - Nota de Esclarecimento da Casa Juvenal Galeno Sobre a declaração de Dimas Mateus de que a Casa Juvenal Galeno, equipamento da Secretaria da Cultura do Governo do Estado do Ceará, não estaria realizando programação em prol da disseminação da cultura cearense.

Finalizada a entrevista, a equipe de produção voltou a entrar em contato com Dimas. Dessa vez, para esclarecer algumas referências a datas, locais e pessoas, que o entrevistado comentou sem especificar.

A Casa de Juvenal Galeno sempre ofereceu respaldo àquela Associação. Inclusive as apresentações das Noites de Viola, aqui realizadas, eram remuneradas através de verbas do Tesouro Estadual, conforme o Projeto MAPP nº 59 (Monitoramento de Ações e Programas Prioritários). Com a mudança do secretário de Cultura, elaboramos um novo Projeto Cultural MAPP nº 442, contemplando entre as demais Entidades Literárias, aqui sediadas, as Noites de Viola, no entanto, ainda sem aprovação pelo Governo. Portanto, as atividades de cunho popular permanecem suspensas temporariamente, mas a Casa continua de portas abertas para as apresentações tradicionais de agrado do povo. Desconhecemos também o termo “desentendimento” citado pelo Cantador Dimas Mateus em sua entrevista, pois em nenhum momento a direção da Casa deixou de atender as reivindicações dos Cantadores. Registre-se aqui o concorrido lançamento do livro autobiográfico de Alberto Porfírio, expresidente da ACN, realizado nesta Casa de Cultura, com o nosso irrestrito apoio.

Outrossim, a Casa de Juvenal Galeno “não morreu”. Tem atingido os seus fins de Órgão Promotor e incentivador da cultura em nosso meio, e até ampliado os seus círculos de relacionamentos literários. “O Governo não deixou a Casa de Juvenal Galeno”, conforme afirmação do Senhor Dimas Mateus. Graças ao Governo a Casa foi restaurada, reformada, a biblioteca higienizada, catalogada, informatizada, climatizada, além de ter sido a Casa reequipada em suas necessidades básicas. Lamentamos a inoportuna declaração do laureado cantador Dimas Mateus a esta conceituada “Revista Entrevista”, no entanto, não guardamos nenhum ranço ao destinado Senhor, sequer à Associação que ele preside. Ratificamos, porém, que os livros prometidos pela Casa ao Presidente Dimas Mateus para o acervo da Biblioteca dos Cantadores permanecem em vigor. E as portas da Casa abertas para a cultura da terra. Atenciosamente, Antônio Santiago Galeno Júnior Diretor da Casa de Juvenal Galeno

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Coco de Embolada, ou simplesmente Embolada, é um tipo de repente. Nele, o instrumento que dá ritmo à rima e à métrica do desafio de versos é o pandeiro.

Cantoria é outro tipo de repente. Nela, o instrumento que acompanha o desafio entre poetas de improviso é a viola caipira ou a rabeca. O ritmo da Cantoria é mais melodioso que o da Embolada e a temática gira em torno de temas cotidianos.

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Tiririca Humorista e deputado federal


// Francisco Everardo Oliveira Silva (Tiririca)

A sina de um palhaço que se permite a mistura de papéis no picadeiro da realidade

O picadeiro é o como uma moeda. Dois lados que compõem a magia do riso, do improviso. A questão é: o visível e o oculto. A plateia tem acesso ao que está ali, à frente das cortinas, sob as luzes e os holofotes. Por outro lado, literalmente, existe a coxia (a parte de trás, dos bastidores). Ali, os espectadores não sabem o que se passa. Supõem. Assim é esse universo, construído na mescla entre o que (achamos que) vemos e compreendemos e o que supomos haver. Francisco Everardo Oliveira Silva, o Tiririca, é um palhaço que carrega isso. Talvez porque quem se arrisca no palco precise ter um pouco da dualidade tão inerente a esse espaço. O País inteiro o conhece e reconhece. Mas será que o enxerga, de fato? Sob os olhares da sociedade, Tiririca está no palco: é alegre e extrovertido. Faz o tipo brincalhão. É uma criança crescida. E na intimidade? O palhaço dá lugar à seriedade. Vira gente grande. É autêntico, não dá espaço para brincadeirinhas sem pertinência. A arte de aventurar-se nesse ambiente é para poucos. Tiririca teve coragem para enfrentar uma situação adversa desde muito cedo. Dificuldades de toda a ordem, da fome a agressões físicas. Ele não só aprendeu sobre circo, mas também a amar o picadeiro. O objeto que odiava passou a ser o trabalho para ganhar o pão. E, quem diria, que ele apresentaria um dom tão singular para arrancar risos. Talvez não desse tão certo se não tivesse aprendido a essência da arte circense, que traz muito da alegria que Tiririca transmite. No próprio discurso, transparece que a inspiração para a personagem são as crianças. Tiririca incorpora a criancice que pouco tivera a oportunidade de vivenciar. Uma armadura. No início da carreira, escondia-se atrás da pintura, da peruca e do nariz verme-

lho para dizer o que lhe vinha na telha. Pretexto? Esperteza. O personagem passou por mudanças físicas ao longo dos anos, sem perder, contudo, a ingenuidade e a capacidade de surpreender. Franqueza também ajuda a compor esse palhaço. Não há espaço para o meio-termo no espetáculo. Ou o artista é, ou não é. Tiririca afirma que é autêntico. Mais que isso, mostra. Palavras e gestos enfatizam isso. É preciso convencer o público de que ele, o artista, é quem comanda a atração. Ele tem nas mãos as rédeas do tempo, da piada, da deixa para o colega que aguarda a entrada em cena. Sem força e comando, perde a mão e o espetáculo desanda. Tiririca é inquieto. Fala, levanta-se, tampa e destampa a garrafa d’água. O marasmo não condiz com as atitudes dele. Mas não quer só mudar uma situação: assume a mudança e chama a responsabilidade. Como um artista versátil, que busca migrar do trapézio para o show de mágicas. Viu na política a chance de mais uma piada e marketing profissional. A brincadeira era evidente, menos para a sociedade, que não levou o palhaço a sério. Elegeu-se e tem feito malabarismo em relação aos descrentes quanto ao mandato. Tem respondido com assiduidade e trabalho. Com texto na ponta da língua e verdade na voz, o artista busca convencer a plateia. Está no palco, sem esquecer-se da coxia. Tiririca é essa dualidade: alegre para o público, sério quando tem de ser sério. Uma divisão que prescinde de maniqueísmo. Mas, envolta nessa mistura da realidade dos picadeiros (o visto e o oculto), está a personalidade de Everardo. Ou seria Tiririca? A essa altura da vida, são como um cenário bem edificado de uma cena. São um só. Um não vive sem o outro, mesmo com o apagar das luzes e o fechar das cortinas. O artista é onipresente.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Marcello Soares Thaís Brito Entrevistadores: Alissa Carvalho Beatriz Ribeiro Camila Mont’alverne Ed Borges Larissa Sousa Marcella Macena Marcello Soares Murilo Viana Thaís Brito Thamires Oliveira Fotografia: Diego Sombra Texto de abertura: Marcello Soares



Entrevista com Tiririca, dia 29 de janeiro de 2013.

Marcello – Tiririca, a influência do circo na sua vida se deve muito à sua mãe, dona Maria Alice, que desde cedo se desdobrou em várias funções como artista para sustentar você e seus irmãos. Durante uma pré-entrevista, seu irmão Hélio contou que ela fazia de tudo para que vocês não dormissem sem um prato de comida. O que você aprendeu com a personalidade e a força da sua mãe? Tiririca – (pausa) Eu... Aprendi tudo. Eu sou um cara muito pra cima, muito alegre, mas uma coisa que me toca muito é justamente falar sobre a minha infância e sobre a minha mãe. Isso acaba comigo, porque ela é tudo na minha vida... Minha mãe é fantástica! Até hoje ela não mudou, entendeu? Ela é a mesma. Eu chamo ela de “neguinha”. Ela é minha “neguinha”. Sempre fez de tudo, e faz até hoje, pra ter os filhos próximos e pra que não falte nada pra gente. Ela ainda tem isso, e é um negócio bacana, é um negócio legal. É tanto que moram com ela... Todos eles moram com ela! Mamãe é um negócio louco: o meu sonho era comprar uma casa pra ela, e eu consegui. Com o primeiro dinheiro que eu ganhei, eu comprei a casa pra ela. Era meu sonho... Foi bacana pra caramba, foi uma coisa linda! E, logo em seguida, eu fiz sucesso com “Florentina” (música lançada em 1996) e tive de mudar pra São Paulo. E, na época, ela disse que o sonho dela era morar em São Paulo. E eu peguei e comprei uma casa em São Paulo pra ela. Ela vendeu a casa daqui e foi pra São Paulo. Eu tive de mudar de São Paulo e ir pro Rio (Rio de Janeiro), porque... Programa de televisão e tal. Ela disse: “Meu sonho, meu filho, era conhecer o Rio, ir pro Rio de Janeiro”... Por causa das praias e tudo. Eu comprei uma casa no Rio, e ela vendeu a de São Paulo. (risos) Fiquei no Rio... E voltei pra São Paulo de novo. Ela disse: “Filho, eu tive pensando aí... E eu acho que tenho de voltar pra São Paulo. Não posso morrer sem voltar pra São Paulo”. Porque ela queria todo mundo próximo dela, pertinho dela! Eu disse: “Mamãe, pra São Paulo não dá, porque eu tô fazendo uma casa no interior do Rio”. Ela disse: “É... Meu sonho, meu sonho... A região dos Lagos, aquelas praias tranquilas” (risos). E

eu comprei um negócio pra ela, pra lá (região dos Lagos). Ela ficou foi tempo, até agora. Até o quê? Um ano? Não, menos de um ano! Eu fui pra Brasília, ela queria morar em Brasília. E eu disse: “Não, mamãe. Em Brasília, eu estou apenas deputado. Não vou seguir essa coisa. Vou aproveitar essa oportunidade, vou ficar, mas não vou seguir esse lance. E eu tô comprando um terreno em Fortaleza”. Ela disse: “Ô, meu filho, meu sonho é voltar pra Fortaleza” (risos da turma). E eu comprei uma casa pra ela em Fortaleza. Eu montei uma casa aqui, pra mim e pros meus filhos, e é próxima à dela, pertinho. E ela tá pegando a galera toda e trazendo pra cá. É ali em Caucaia (município da Região Metropolitana de Fortaleza). É bem legal, bem bacana! E ela viajou até pro Rio agora, pra pegar o restante da galera, pra trazer. Já estão morando dois irmãos meus... Três irmãos meus com ela (corrigindo), e mais uma porrada de filho, que é neto dela! E é isso, ela é assim, sempre lutou pela família, não parou de ser ela. Ela não tem medo de ser assaltada, de falar que é mãe do Tiririca... Ela anda pra tudo quanto é canto, e tu não acredita! Ela fala pra ti que é (mãe do Tiririca) e tu não acredita! Porque ela se veste de qualquer jeito, anda de qualquer jeito. Ela é muito massa, muito legal! Ela não perdeu aquela coisa que é muito difícil uma mãe de artista ter, que é essa simplicidade... Ela não perdeu esse pé no chão. Isso é fantástico! Eu, às vezes, discuto com ela pra dizer: “Mãe, não é assim, tem perigo”. Ela diz: “Ah, que porra! Só porque tu é conhecido! É Tiririca...” (risos da turma). Ela é bem nossa, bem cearense, fala umas coisas: “Agora não pode só porque é mãe?”. Ela tem esse lance. Isso é legal. Thaís – Como era a relação com o Fernando, o seu padrasto? Tiririca – Eu estava até falando agora pro João (João Paiva, contratado pelo gabinete e considerado como o “braço direito” de Tiririca), que eu sonhei com ele (padrasto) ontem e hoje. Eu não gosto dele de jeito nenhum, a gente não se gosta. Mas eu não tenho ódio dele. Mas a gente nunca se bateu. Ele batia muito na minha mãe, eu apanhava muito desse cara... E eu não gosto dele. Não é porque o

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Tanto Marcello quanto Thaís pensaram em sugerir Tiririca para ser entrevistado desde que souberam que integrariam a equipe da Revista Entrevista. Combinaram que Thaís defenderia a escolha do humorista na votação dos nomes para a edição.

No dia de escolher os entrevistados, Tiririca foi o mais votado. Marcello e Thaís resolveram então ficar com a produção da entrevista e tentar entrar em contato com o deputado. Logo Marcello conseguiu o número de Edit Silva, assessora de Tiririca.


Desde a escolha até a confirmação da entrevista, a dupla conversou com Edit por quase um mês. Uma primeira data foi marcada para 14 de dezembro. Dez dias antes, Edit telefonou: “Vixe, Marcello. Nossa entrevista gorou!”

Participando de uma mesa-redonda na Semana de Comunicação da UFC, a equipe de produção descobriu que um dos palestrantes era amigo de Hélio, irmão mais novo de Tiririca. O contato foi feito no dia seguinte, assim como uma pré-entrevista.

cara morreu... E, assim, ele morreu “na altura” dele. Deus me perdoe! Eu sou um cara que acredita muito em Deus, eu tô falando aqui a real. Ele morreu porque um caminhão passou por cima da cabeça dele. Foi uma morte triste, que pra ele foi... Foi legal. Foi legal porque ele não acreditava em Deus, esculhambava Deus. Batia na minha mãe, apanhei demais desse cara! Ele pegou a minha mãe com dois filhos, eu e o Evandro (irmão de Tiririca, segundo filho de dona Maria Alice e já falecido). Nós dois éramos muito chegados, irmãos mesmo. Ele (padrasto) não aceitava, porque naquela época era muito difícil aceitar uma mulher com dois filhos de outro. E ele aceitou, mas me maltratava muito! O Evandro, não, porque ele sabia levar direitinho, era mais novo do que eu. Mas eu não entendia, cara, porque eu apanhava daquele jeito! E tratava a gente: “Esses ‘nêgo’, vão ser tudo ladrão e maconheiro”. E eu tinha uma revolta contra ele: “Quando eu crescer, eu vou matar esse bicho...”, eu falava essas coisas. Com 15 anos, eu vi ele batendo na minha mãe. Eu vinha chegando do futebol, e quando vi estava aquela confusão no circo: ele batendo nela, puxando os cabelos dela, arrastando pelo chão. Com 15 anos, eu perdi o medo. E parti pra cima, fui na porrada com ele: “Você não bate mais na minha mãe!”, saímos na mão. Eu cheguei pra minha mãe e falei: “Olha, se a senhora deixar esse cara, eu seguro a onda, eu sustento a família.” Porque eu já era artista, trapezista, malabarista, palhaço... Já era artista de circo. Ela disse: “Meu filho... Eu te amo, mas ele quem me deu um nome, e eu o amo muito...” Então, eu saí de casa, com 15 anos. Peguei uma mochila dessa cor (aponta para a toalha da mesa), que era do Exército, que um amigo tinha me dado. Botei minhas coisinhas dentro e saí, fui pra outros circos e deixei ela. Marcello – E quando é que você descobriu que o Fernando não era seu pai biológico? Tiririca – Desde o começo. Ele me batia e falava, passava mesmo na cara. E ela (a mãe) tentava esconder: “Não, meu filho, é só a cabeça quente, porque tá faltando o cigarro dele”. Mas ele batia e falava, e eu não sou otário. É tanto que nós chegamos ali (refere-se

“Eu cheguei pra minha mãe e falei: ‘Olha, se a senhora deixar esse cara, eu seguro a onda, eu sustento a família”

ao corredor do Theatro José de Alencar, local onde foi realizada a entrevista), eu vi o Trepinha (o mais antigo palhaço em atividade no Ceará em 2012, ano em que faleceu aos 85 anos) , que dizia que era meu pai. Eu vi a foto dele. Parece pra caramba comigo! Eu passei muito tempo querendo conhecer meu pai, por causa desse lance todo que passei... Eu queria conhecer meu pai, mas ela (a mãe) nunca me falou. “Não, seu pai é ele (Fernando) aqui! Ele que lhe deu um nome”. Eu cheguei aos 28 anos ainda querendo conhecer meu pai. Depois, pensei: “Porra, não quero mais conhecer não”. Mas o João (João Paiva) falou: “Se eu fosse você, fazia um teste de DNA”... Porque tem bem uns três ou quatro que dizem ser meu pai! (risos da turma). E ela (a mãe) falou que era o fulano de tal, o Joãozinho lá não sei de onde... Beleza, mas a essa altura não interessa mais. A essa altura do campeonato, faltando dois anos pra completar 50 anos... Eu não quero mais saber disso, quero viver minha vida. Assim, a gente (volta a falar sobre o padrasto) nunca se gostou. Mas ele viu o meu sucesso. Filho da puta morreu depois de ver meu sucesso. Eu ajudei ele várias vezes. A mamãe começou a pisar nele, eu cheguei pra ela e disse: “Mãe, não se paga o mal com o mal”. Ele, já velho, chegava pra mim, chorando: “Everardo, tenho de conversar com a tua mãe. Ela tá me chamando de ladrão”. Ele estava fechando show pra ela, e ela falava essas coisas com ele: “Esse filho da puta tem que pagar o que fez comigo!” “Mamãe, não é assim”. Juro pra ti, tô falando do fundo do meu coração o que tô dizendo. Ajudei ele financeiramente. Ele viu meu sucesso. No enterro dele, eu não vim, não vou acender vela... Acredito muito em Deus, mas não é porque o cara morreu que eu vou... Entendeu? Não gosto dele, não me entra. Alissa – Você falou que era muito próximo a um de seus irmãos... Tiririca – (interrompendo)... Isso, a esse... O Evandro. Alissa – E como era a relação, quando você era criança, com seus outros irmãos? Tiririca – Não teve. Nós não tivemos relação nenhuma porque, como eu era o homem da família, o artista do circo, eu não tive infância. A realidade é essa. Eu só tive mais contato com esse irmão (Evandro), porque a gente achava que fosse filho do mesmo pai. E acabei descobrindo que a gente não era filho do mesmo pai. Ele me entendia e me aconselhava pra caramba. Eu dizia: “Eu vou matar esse cara (refere-se ao padrasto, Fernando)”. Ele me chamava de “Auáuá”: “Auáuá, não faz isso. Você tem muita fé em Deus”. A gente era muito irmão. Foi tanto que, quando ele morreu, ele ia completar sete anos, eu já devia ter

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oito ou nove anos. Eu ficava sonhando com ele, porque eu não fui no enterro. Eu achava que ele não tinha morrido, eu não acreditava. É tanto que é uma coisa que me bate... Quando fala no nome dele, eu fico meio... (pausa) Porque ele era meu amigo. Com os outros irmãos, eu não tenho essa coisa. Não sei se é porque foi pai diferente... Eles enxergam de uma maneira, e eu de outra. Eu respeito todos, eles me respeitam. Mas, sabe? Não bate! Nós não temos diálogo. Larissa – Como era a sua rotina no circo? Você gostava do ambiente? Tiririca – Não. O circo foi uma necessidade. Eu não gostava de circo, e minha mamãe vivia nesse negócio de circo, junto com esse cara (o padrasto), porque ele era locutor e palhaço. E minha mãe me pegou da casa dos pais adotivos dela, que moravam na Aldeota (bairro de Fortaleza). Ela me deu pra família e, depois, me roubou da família. Roubou mesmo. Ela me pegou num murinho lá e me levou. Deu polícia e tudo, eu era novinho... Mas depois os pais adotivos dela deixaram pra lá, porque não queriam ela presa. É uma história que eu nunca contei! Era pra eu ser um médico, sei lá... Mas Deus sabe o que faz. Ela me pegou, e eu não gostava do circo. Ia pra lá e não gostava. Eu não gostava dela se apresentando no circo, eu tinha vergonha! Ela dançando, e o pessoal jogando dinheiro pra ela... Eu tinha vergonha. Era totalmente contra. Um outro irmão já adorava: “Olha minha mãe, que linda!”. Mas ela me pegou (refere-se ao episódio em que a mãe tirara-o do convívio dos avós). Era meu mundo agora, não tinha outra coisa a fazer. Fui aprendendo. Via os trapézios, os caras andando no arame... Pegava e subia só. E fui tomando gosto pela coisa. Mas, a princípio, eu não gostava. “Não, ficar de mudança é uma loucura, não ter um lugar certo pra morar...”. E eu tinha conforto lá (na casa dos avós), meu quarto, tudo direitinho. Eu não durmo. Tenho insônia por causa do circo. Porque o circo é à noite. Depois, eu passei a ter circo. Então, eu ficava vigiando pra não tocarem fogo no circo. Porque, à noite, é que acontecem as coisas, você arma o circo em lugares perigosos... Tipo, Bom Jardim, Pirambu (bairros da periferia de Fortaleza). Na época, eu armei muito circo (nesses bairros). Eram bairros perigosos na época, não sei (se são) hoje. Então, “neguinho” vinha do funk, do forró e jogava fogo, pedra... E eu ficava vigiando. Ficava com um pedaço de pau na mão, arrodeando o circo e cantando, pro pessoal ver que tinha gente acordada. Eu não ia resolver nada... Uma porrada de gente daquela ia meter o pau em mim e pronto! (risos da turma) Mas eu fazia isso. Aí, troquei: passei a dormir durante o dia, e à noite, não. Eu dirijo a noite

Duas músicas de Tiririca, “Um amigo é pra acudir outro” e “Leite Ninho”, foram exaustivamente tocadas na viagem de Réveillon de Marcello, Thaís, Marcella e Larissa.

toda! Se eu for viajar, eu pego o carro e me mando, a noite toda. Quando amanhece o dia, 6h30min ou sete horas, o sono bate! O lance da política tá sendo ruim pra mim por causa disso. Porque de manhã é a hora que eu vou dormir e a hora que eu tenho de acordar. Por dia, eu durmo uma ou duas horas. Mais que isso, não. Isso é ruim, é horrível. Camila – E por que, aos oito anos, você foi escolhido pra substituir o palhaço do circo? Tiririca – Era um circo lá... Faltou o palhaço oficial, ele brigou com os donos e saiu. O dono do circo pegou eu e o filho dele, pintou a nossa cara e perguntou se eu tinha coragem. “Beleza, vamos lá!”. Mas, por eu ser um cara muito revoltado, por não conhecer meu pai, por ser criado por padrasto... Não ter infância nenhuma... Por isso esse apelido Tiririca, porque eu era muito revoltado. Fomos eu e ele. Eu arranquei mais risos que o filho do cara. Eu achei isso legal: “Caramba, arranquei riso da galera. O pessoal riu dessa coisa que eu disse, dessa besteirinha”. Eu sou muito criativo. Gosto de criar as coisas e ser diferente. Mas eu passei pouco tempo (como palhaço). Só com 15 anos que eu voltei a pintar a cara de palhaço. Fiquei pouco tempo (como palhaço), até uns nove anos. Decidi, de nove a 15 anos, ficar na ginástica. Trapézio, saltos, arame, dez passos da morte... E palhaço nada, porque eu tinha encostado. Com 15 anos, eu queria aparecer: cabeludão, cabelo grande, pessoal de circo tem essas coisas. Tinha, né? Não sei se ainda tem. Cabelão, brinco... Eu uso brinco, mas (na Câmara dos Deputados) não pode. Mas isso aqui (aponta para a orelha esquerda) faz é tempo que é furado. E, na época, usar brinco era coisa de baitola, e tinha o lance do circo... Mas eu gosto de ser diferente.

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Toda a turma viu participações do palhaço em alguns programas de televisão: “Show do Tom” e “Escolinha do Barulho” (Rede Record), “A Praça é Nossa” (SBT) e “A Vila do Tiririca” (TV Manchete).


No mês de dezembro, a equipe temia que a entrevista não desse certo. A agenda do deputado estava lotada de compromissos políticos. A solução foi esperar que ele viesse a Fortaleza em janeiro, período de recesso parlamentar.

Foi no final de dezembro que Edit confirmou a nova data: 29 de janeiro. A produção, que já havia desanimado um pouco, voltou a se empolgar com a história e a obra de Tiririca.

Eu queria aparecer para as gatas, o corpinho bem bonitinho, todo invocadinho... (risos da turma). Quando eu tinha 15 anos, um cara do circo me chamou: “Tu não tem coragem de ser palhaço, não? O fulano de tal aqui não vai vir hoje” “Sim, vamos lá!”. Eu arranquei riso. Eu já tinha 15 anos, mas eu me escondia atrás da peruca, da pintura. Quando tirava aquilo... Acho que era como o Sansão (personagem bíblico), com o lance do cabelo, né? Não era o Sansão, com a força no cabelo? Pronto, eu tinha força com aquilo ali. Eu usava aquilo pra colocar minha infância e falar o que eu tinha vontade de falar... Que eu, Everardo, jamais falaria. Sabe? Até hoje eu faço isso. Eu, de Tiririca, eu falo realmente o que o Everardo não falaria. Como Everardo, eu não chegaria para o Faustão (Fausto Silva, conhecido popularmente como Faustão, apresentador de televisão), na época, e dizia assim: “Cala a boca aí, papagaio!” E como Tiririca eu tinha essa coisa de falar, e ele não ia me levar a mal. Sabe? Chegar pro Carlos Alberto (Carlos Alberto de Nóbrega, humorista e apresentador de televisão) e dizer: “Cara, tu é um filho da puta!”. Como Everardo, eu não vou falar um lance desse, mas como Tiririca, sim. E o cara ia rir. É o que eu faço, e a galera ri. Então, a minha infância eu jogo no personagem. Mas hoje eu tô mais Tiririca mesmo... É, tô mais assim. Beatriz – Everardo, você falou que recebeu esse apelido, Tiririca, por ser revoltado, porque apanhava. Então, por que você decidiu adotar esse nome na sua carreira? Tiririca – Eu achei bacana! Achei um nome forte, porque me explicaram que é uma planta filha da puta! Ela nasce no meio das coisas e não tem como acabar com aquilo, não. Só

se tu acabar com a raiz, porque ela se alastra. Ninguém consegue acabar aquilo, entendeu? Eu disse: “É isso mesmo. Tiririca e pronto”. Alissa – Você disse que deixou de ter infância por causa do circo. Como é que isso influencia na sua vida hoje? Tiririca – Hoje eu tenho infância. Eu quero que tu veja! Eu sou o cara mais canalha que você imaginar, até mais que o Tiririca! Eu faço coisas que o Tiririca não faz. E é ao contrário hoje. Eu fazia coisas que o Everardo não podia fazer. Hoje o Everardo faz coisas que o Tiririca não faz. É muito massa, sou muito canalha, muito brincalhão! Se eu for chupar pirulito, é um pacote de pirulito, e é só meu. Danoninho: agora não mais, porque tenho... Como é que chama? Gastrite! Agora faz mal. Mas antes tinha: eram meus danoninhos! “Isso aqui é meu, isso aqui é pra vocês” (simula a explicação de como ficaria a divisão com os filhos). Se acabasse o deles (filhos), Deus me livre aqui (refere-se à sua parte da divisão)! (risos) Eu comprava chocolate para todos, mas criança acaba rápido. Eu ia comendo aos poucos... Porque eu não tive infância! Então, se eu quero comer, eu como mesmo e pra me lascar mesmo! Nunca tive condições de comer. Uma vez, eu estava no Rio, comendo um chocolate escondido, macho! A minha filha mais velha chega: “Ei, pai!”... Chega eu tomei um susto! (risos da turma). “Comendo escondido, pai!” “Toma, menina, mas não fala pros outros não!”, eu dei um pedaço a ela. Eu sou assim. E eles sabem que aquilo ali é meu, não pode mexer. Se for mexer, tem de pedir. Sou muito real, muito verdadeiro. Se tiver de dar bronca, eu vou dar. Eles me entendem pra caramba. Isso é legal. É muito massa, porque eles estão em outro patamar de vida, não passaram pelo que eu passei. Mas eu sempre coloco pra eles o que eu passei. Eles são outra cabeça, mas eu tento colocar isso. Marcello – Mesmo trabalhando no circo da sua família, você chegou a se apresentar também em outros picadeiros. Por quê? Tiririca – Sim. Eu deixei eles lá (refere-se à família, que continuou no circo do padrasto), porque a procura (ao seu trabalho) era grande. Porque foi espalhando, né? “Tiririca... O cara é completo. O cara é fantástico, o pessoal vai no circo por causa dele”. É massa, macho. Aqui (Fortaleza) só tinha dois (palhaços). Todo circo que vinha pra Fortaleza ia assistir nós dois. Era eu e o palhaço Pimenta. Os dois melhores palhaços que tinha. A gente era disputado, era massa! Bicho, vinha a proposta e eu pensava: “Vou nessa”. Tinha contrato, eles pagavam por semana. Eu passava uma temporada no circo, e por nada eu saía. Porque eu sou um cara muito... Tipo, se eu estou em um circo e, se tu não gostas de mim, eu não

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me sinto bem com a tua presença. Eu não fico nesse ambiente. Fez mal, eu não fico. Eu vou ficar num canto que tá me fazendo mal? Eu não! Quero sair, eu vou sair. Eu chegava pro dono do circo, dizendo que ia sair. O cara dizia: “Mas o que foi?” “Não, não foi nada”, porque também eu não sujava o cara não. Eu me afastava e pronto. Alissa – O senhor disse, em uma reportagem da Revista Piauí, que o palhaço era a atração principal do circo... Tiririca – (interrompendo)... No de porte médio, né? No “circão”, não. Alissa – Mas o senhor disse que o palhaço tinha de chegar trazendo alegria. Qual era a fonte da sua alegria? Tiririca – Criança. Minha infância que eu não tive e eu botava pra lá. Eu pegava coisa de criança. Eu sempre busquei pegar coisa de criança. O “pusquê” (imita a voz do personagem Tiririca), eu peguei da minha irmã, a mais nova. Ela falava “pusquê”. A minha “neguinha” (refere-se à filha mais nova, Nanda Kauanny), ela fala uns negócios legais pra caramba, que eu estou pegando também. Ela tem três anos. Tipo assim: “Calamba!”, ela (filha mais nova) chama “caramba” de “calamba”. O Tiririca usa essas coisas de criança. Eu jogava minha infância ali, eu vivia minha infância ali. De chegar e beliscar um menino, e sair correndo. Como criança faz, sabe? Ou se esconder num canto que não tem nada a ver... O cara que se esconde atrás de um cabo de vassoura e diz: “Me ache, duvido você me achar!” (imita a voz de Tiririca, provocando risos da turma). Eu busco esse lance de criança. Eu não fazia esse negócio na política? Eu falava assim: “Adivinha quem tá falando? Sou eu, abestado! O Tiririca!” (usa as mãos para cobrir o rosto e imita a voz do personagem). Quem não vai saber quem tá falando? Isso é coisa de criança! É muito massa. Eu jogo isso na minha atividade. Thaís – Tiririca, chega um momento da sua história em que você resolveu romper com o circo da sua família e, junto com a Rogéria (Rogéria Márcia, primeira esposa de Tiririca), resolveu ter o circo próprio. Como foi essa nova fase? Tiririca – O pai dela deu um circo pra gente, na época. O pai dela era ricão pra caramba! Dinheiro pra cacete, uma porrada de circo. Deu um circo pra gente, mas ele não foi pra frente. Ele começou a falar, e eu decidi entregar o circo pra ele. Então, fui em busca de conseguir minhas coisas só. Saímos em busca e montamos um circo, com a ajuda dos amigos, aqueles dos bairros por onde eu já passava. O pessoal me dava madeira, pano, essas coisas... E eu fui montando. Foi massa, ganhei dinheiro que só a porra, muita grana! No meu

“Eu não gostava de circo, e minha mãe vivia nesse negócio de circo. Eu não gostava dela se apresentando no circo, eu tinha vergonha!” circo... O que é que eu fazia? Eu sou um cara muito inteligente. Eu pegava menininha nova e rapazinho novo, que não eram artistas de circo. Naquela época, todo mundo queria fugir com o circo. Você montava e “neguinho” queria ir embora com o circo, cara! Eu ia falar com os pais e tudo. (perguntava) Se os filhos tinham vontade... E os pais liberavam! O mais velho do circo era eu. O resto era rapazinho e moça. Então, os caras jogavam bola e a gente fazia amizade. O circo era lotado, amigo! Durante o dia, a gente fazia brincadeiras no circo. A gente fazia amizade. Os nossos amigos chamavam os amigos deles, e o circo lotava. Tinha a Escolinha do Professor Raimundo (programa humorístico exibido pela Rede Globo de Televisão, de 1990 a 1995, e em 2001), na época. E nós resolvemos colocar a Escolinha da Professora Raimunda. Era uma sátira. Antes dos caras fazerem sátira, eu já fazia isso no circo! Uma vez, o Tom (Tom Cavalcante, humorista cearense) pegou uma novela que eu fazia aqui, “A Viagem” (referência à novela homônima, exibida em 1994 pela Rede Globo de Televisão). O Tom levou isso pra escolinha (do Professor Raimundo), logo assim que ele entrou lá. E aquilo, pra mim, era coisa do outro mundo. Só eu e as pessoas que me acompanhavam sabiam que aquilo era meu. Pra lá a nível nacional, foi ele que criou. Mas a gente sabia que era da gente. Eu sou um cara criativo, eu não gosto de ficar na mesmice. Camila – Em uma passagem pela cidade de Peritoró, no Maranhão, incendiaram o seu circo porque um macaco mordeu a mão de uma criança, que era filha de um coronel da cidade... Tiririca – (interrompendo)... Naquela época, tinha muito isso. Eu acho que ainda tem, pelo Nordeste. O coronel não é da polícia, não. É aquele fazendeiro que é ricão e manda na polícia, em todo mundo ali. Mandaram tocar fogo (no circo), cara... Camila – E o que você decidiu fazer a partir disso?

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Ângelo e Everson nasceram antes do primeiro casamento de Tiririca, com Rogéria Márcia. Com ela, teve Erilândia Márcia, Florentina Evellyn e Antônio Everardo. Com Nana Magalhães, a atual esposa, tem a filha mais nova: Nanda Kauanny.

Everson conta que Tiririca é mais amigo que pai. Revela também que recebe ajuda direta do pai para compor o Tirullipa, personagem que lhe rendeu contrato com a Rede Globo no final de 2012


Perguntamos se Tiririca tinha um local de preferência para a entrevista. O Theatro José de Alencar é um dos lugares preferidos dele em Fortaleza. Com o palco principal ocupado, o encontro ocorreu no Teatro Morro do Ouro, anexo ao prédio.

A produção conversou com os dois filhos mais velhos de Tiririca no restaurante Beira Mar Grill. Everson se apresentaria no local como Tirullipa. Ângelo, o mais velho, também estava presente, pois é empresário e produtor do irmão.

Tiririca – Me mandei pra cá, pra Fortaleza. Passei uns três dias pra chegar em Fortaleza. Pedindo carona... Foi um sofrimento da porra! Dormindo em posto de gasolina com a minha filhinha (refere-se à terceira filha, Erilândia Márcia), que hoje tem 22 anos. Na época, ela tinha três aninhos. As prostitutas me ajudavam. Por isso eu tenho o maior respeito pelas prostitutas, porque me ajudaram pra caramba. Contei minha situação pra elas. Dormíamos eu, minha mulher e minha filhinha no posto de gasolina, um paninho no chão... Quer dizer, elas dormiam, porque eu não tinha condições de dormir. Os carros iam encostando, eu ia pedir carona, mas os caras não me levavam a sério. Porque eu saí só com a roupa do corpo, estava sujo. Passamos três dias. As prostitutas desse posto arranjavam comida pra gente, roupa, tomar banho no banheiro... No terceiro dia, eu já estava fora de mim. Parou um caminhão, batendo... Batendo é quando não tem nada na carroceria. Eles vieram pro Ceará pra buscar coisas e voltar cheio. As meninas (refere-se às prostitutas) falaram: “Olha, esse caminhão toda semana desce. E tá batendo” “Quem é o motorista?” “É aquele cara lá”. Eu segui o cara. Era à tardezinha, umas quatro horas da tarde. Eu segui o cara, ele foi no banheiro. “Eu gostaria de falar com o senhor... Eu tô aqui...” e comecei a chorar! “Tô aqui com minha esposa e minha filhinha, o pessoal tá ajudando...”. E o cara mijando, não dava nem atenção. Eu disse: “Eu sou cearense...” e o cara saindo. Ele foi tomar café. Eu não aguentei, fiquei desesperado! Peguei nele assim (levanta-se, simulando a situação): “Ei, me escuta! Eu não sou vagabundo, não, porra! Eu só tô te pedindo uma carona!”. E todo mundo do restaurante olhando. “Tô te pedindo uma carona, sou do Ceará... Tu vai me dar uma carona? Fala sim ou não, só isso! Não quero te roubar, não quero nada...” (gritando). O cara só fez assim: “Sobe aí, no caminhão...”. Eu saí abraçando todo mundo, as meninas (prostitutas). Subimos (no cami-

“Eu usava aquilo pra colocar minha infância e falar o que eu tinha vontade (...) Eu, de Tiririca, eu falo realmente o que o Everardo não falaria”

nhão). A gente estava descendo a serra. Um frio! A gente chegou em Tianguá (município do interior do Ceará). Nós lá em cima (na parte traseira do caminhão), bem no cantinho pra não pegar aquele “ventão”. A gente ia abraçado, com minha filhinha no meio. O cara parou em Tianguá pra lanchar! E a gente lá em cima do caminhão, com fome... E na boleia (cabine do veículo) só vinha o motorista e um cara, um ajudante! Covardia, né? Ele parou, comeu umas coisas. Acho que Deus bateu no coração dele: “Você quer tomar um café, um negócio aí?” “Não, obrigado... Só a carona que o senhor me deu eu já fico agradecido” “Vem cá, tu me falou um negócio de circo... Que circo é esse? Ele, por acaso, esteve no Jóquei Clube (bairro da cidade de Fortaleza)?” “Estive! Eu sou muito querido lá, o circo vivia lotado”. “Rapaz, por que você não me falou? Meu filho não perdia uma atração sua! Você que é o tal do palhaço, o Tiririca?”. Eu contei a história pra ele. “Desculpa, rapaz. Tava de cabeça quente. É muito assalto. Quer vir aqui na boleia? Deixa a criança e sua esposa virem aqui na boleia!” “Se elas quiserem ir...”. Coloquei as duas lá, e fui em cima sozinho. “Você quer que eu lhe deixe onde?” “Olha, pode me deixar ali na calçada, perto do Jóquei, que eu tenho um amigo lá”. Ele me deixou lá. Meu amigo, cedinho... O Jorginho, ele morreu. “Everardo, o que você tá fazendo aí?”. Eu contei a situação pra ele. Ligou pra esposa, alugaram uma casa pra mim, fizeram uma feira pra dois ou três meses, pra mim e pra minha mulher... Eu comecei a fazer show ali pelo bairro, explicando que tinha perdido o circo, e que se alguém pudesse me ajudar, com pedaço de madeira, pano, fio, lâmpada... A galera foi me ajudando e eu montei um circo. Depois que eu fiz sucesso, ajudei esse meu amigo. Não por essa coisa (refere-se à ajuda recebida), mas por ser meu amigo. Ele estava com câncer e precisava de uma operação, não lembro o que foi... E eu estava bem na época. Fiz uns shows pra ele, mas ele acabou falecendo. Murilo – Você começou a se apresentar em restaurantes e pizzarias nos anos 1990, ao lado da sua esposa, Rogéria. Como surgiu essa oportunidade de se apresentar fora dos picadeiros? Tiririca – Foi na época que eu voltei (a Fortaleza), quando eu estava na casa que eles (refere-se ao casal de amigos que o ajudou) alugaram. Nesse período, um mágico de nome Sabugo, que fazia muitos shows de mágica, soube que eu estava no Ceará de novo e havia perdido o circo. Aí, me fez o convite: “Tu não tem coragem de ir a um show comigo e fazer esse teu show infantil?” “Tô dentro”. Ele me deu a oportunidade e eu fui fazendo. Ele fazia o show de magia, e eu fazia o show de

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palhaço. Ele me levou pro Shopping Aldeota, pra eu fazer o aniversário de uns dos donos de lá... De umas das casas de lá, de nome Micheluccio (pizzaria). Mas eu fui do jeito que eu fazia pra criança: roupa de palhaço, pintura, peruca, sapatão de palhaço... Fiz o show. Juro por Deus que está no céu: mais de duas horas de show, e ninguém riu! Ninguém riu, ninguém riu, ninguém riu... Não consegui arrancar risada de ninguém. Quando terminou o show, o cara me pagou, e eu perguntei o que ele achou. Ele disse: “Olha, é muito bom. Agora... muito circo! O lance aqui é humor. Já ouviu falar do Tom Cavalcante? O lance é assim: cara limpa”. Mas, existia aquele medo: eu, sem a pintura, a peruca, não fazia nada! Eu achava que a minha força fosse aquilo ali. Eu disse: “Não, mas eu nunca tirei a pintura... Mas se for (necessário)...” “Pois tire a pintura e venha pra cá, que eu vou pegar você às quintas-feiras aqui. Vai ser esse mesmo show aí. Tá fechado, já”. Meu irmão, pra fazer o primeiro (show)... Pra tirar aquela pintura, eu tremia! Eu dizia: “Meu Deus, não vai dar certo, eu não vou saber falar a voz do Tiririca”. Mas eu fui tirando aos poucos, deixei só um pouquinho de branco, menos vermelho, tirei aquele nariz que eu usava, peguei um vestido da mamãe e fiz como roupa... E fui! Mas ninguém ria, impressionante! Mais de duas horas que a gente fazia, e é tempo pra caramba, e ninguém ria. Mas toda quinta-feira era lotado! Mas sabe por quê? Você vem da periferia... E ali (no Shopping Aldeota) era o pessoal altamente (refere-se ao poder aquisitivo de quem assistia ao show de humor). Às vezes, você até olhava, e tinha uma mulher querendo rir, mas o cara cutucava ela pra não rir. Você via que estavam gostando porque lotava, mas não riam! Sabe o que eu fiz? Eu fui brincando com isso. Dizia, do palco: “Vamos fazer aqui, mas esses porras não acham graça não”... Já fui entrando no esquema deles. “Olha aí, faz é virar a cara!”, e os outros achavam graça. “Só sabe é comer!”. Levantava uma pessoa, e eu dizia: “Comeu, comeu e agora vai cagar” (risos da turma). E, olha, falar em merda com os caras comendo ali... Mas “neguim” achava graça da pessoa que se levantava! Aí o pessoal já evitava se levantar durante o show. Quando se levantava lá por trás, eu dizia: “Não se esconda não!”. Quando um se levantava, o outro já apontava! Foi pegando. O que eu falava, era riso. Depois de sete meses, peguei meu público e pronto. Eu ia para as outras casas (pizzarias e restaurantes), e o público ia junto. Foi só correr pro abraço. O Tom (Cavalcante) me ajudou muito nessa época... Camila – O Eriosvaldo Guimarães, dono do Shopping Pizza (pizzaria da capital cearense), falou, em entrevista à Revista Piauí, que você

tem uma ingenuidade chapliniana. Mas você teve influência de outros artistas pra compor o Tiririca ou é algo instintivo? Tiririca – Criança. A criança é muito verdadeira, e o Tiririca é assim, entendeu? Eu peguei essa coisa da criança. Eu tenho minha filhinha de três anos e eu digo à mãe dela: “O que ela falar, vá atrás.” Porque criança não mente! É impressionante. Uma vez, ela falou: “Mãe, tem uma aranha”. Não dei nem muita atenção, mas quando fui ver tinha uma aranha mesmo! E criança fala na cara. Se tu tá fedendo, ela fala, maluco! Ela (a filha) dorme no meio da gente. A mãe dela acorda e vai falar com ela, e ela diz: “Mamãe, vire a boca pra lá” (risos). Eu nunca me liguei de tirar coisas de outras pessoas. Eu tento criar e pegar de criança. Se tem uma coisa que eu imito, é criança. Thaís – E quando você compôs a música “Florentina”, que foi o que mudou realmente a sua carreira... Como foi a história dessa música? Tiririca – Foi uma ex-namorada. Ela era do interior. Inclusive, ela viu o meu sucesso na época, eu cheguei a comprar uma casa pra ela. Ela morreu atropelada. Eu não fui ao enterro, pra não dar mídia a isso, entendeu? Mas eu achava o nome engraçado. O nome completo dela era Florentina de Jesus. No Jóquei Clube (bairro de Fortaleza), na época em que nós ficamos mais de dois meses no bairro... Pra ficar dois meses no bairro, o circo precisa ter repertório, porque o público é o mesmo todo dia. São as mesmas pessoas! Então, tu tens de ter repertório pra fazer uma coisa diferente. Teve um dia que eu entrei no picadeiro com um pandeiro e comecei a tocar “Florentina”: “Florentina, Florentina, Florentina de Jesus, não sei se tu me amas, pra que tu me seduz?” (declama o trecho da música em ritmo acelerado). E a galera sabia que era a menina, a Florentina. E estava arrancando riso da galera! Eu dizia assim (imitando a voz do Tiririca): “Agora eu vou cantar pro senhor.

“O Tiririca usa essas coisas de criança. (...) Eu vivia minha infância ali. De chegar e beliscar um menino, e sair correndo. Como criança faz, sabe?”

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Já Ângelo alerta que o pai continua a mesma pessoa que conheceu aos 11 anos de idade. Sobre a carreira política de Tiririca, afirma que o pai “é deputado, mas a ficha ainda não caiu pra ele”

Segundo Everson, Tiririca quase entrou em depressão quando foi pressionado pela opinião pública no início do mandato. O filho lembra o que disse o palhaço ao ser elogiado pela assiduidade na Câmara: “Chupa que é de uva!”


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“Falaram pra eu definir como é que eu via o político, né? ‘Trabalha muito e produz pouco’. [...] É porque lá você tem vários projetos pra serem votados. Mas eles têm uma mecânica lá que eles derrubam (a votação)”

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Edit quis conhecer pessoalmente a equipe de produção um dia antes da entrevista. Ela foi até o prédio da Comunicação na UFC e conversou com Marcello e Thaís. O papo sobre a convivência com Tiririca desde 2011 rendeu uma tarde inteira.

Edit acompanhava de longe a campanha de Tiririca. Quando viu que o artista havia conquistado uma vaga como deputado, disse para si mesma: “Vou assessorar esse cara”. E foi atrás dele no final de outubro de 2010, mês das eleições.

Não vou mais cantar essa música, vou cantar um rock. Que chama assim...” Eu começava a tocar “Florentina” em ritmo de rock! E as pessoas rindo. Quando eu gravei a fita cassete, eu joguei “Florentina”. Quando eu fui pro estúdio, só tinha essa parte (cantando e batendo na mesa): “Florentina, Florentina, Florentina de Jesus, não sei se tu me amas, pra que tu me seduz?”. Então, fui montando a historinha em cima (começa a imitar a voz do personagem): “Aí eu tava numa cidade...”. Juro pra ti! É tanto que tem nesses karaokês aí, e eu não consigo cantar em cima da música. Sabe por quê? Porque não sei o tempo. É difícil, porque foi improviso. Marcella – O que você acha que “Florentina” tinha pra chamar tanta atenção, inclusive de uma gravadora do Sudeste? Tiririca – É o seguinte: eu fui depois dos Mamonas (Mamonas Assassinas, grupo musical de sucesso nos anos 1990. Os integrantes morreram em um acidente aéreo, em 1996). O Brasil perdeu um grupo irreverente. Uma coisa que fazia tempo que não (acontecia)... Acho que nunca tinha acontecido isto: a história da música, do humor, igual aos Mamonas. Em seguida, vem um cara cantando “Florentina”, que não tinha nada a ver, não era uma coisa pesada... Estava um oco desse tamanho no país (faz um gesto expansivo), por causa da perda dos Mamonas. Vem um cara cantando “Florentina”, que não era uma coisa pesada... E eles faziam uma coisa pesada: “Passar a mão na bunda” (refere-se a um trecho da música “Vira-Vira”, do grupo Mamonas Assassinas). Falar isso era um negócio louco! Vem a “Florentina”, e foi só correr pro abraço. Nós, inclusive, pegamos o público deles também. Foi um negócio lindo, lindo! Fizemos um show, na época, em Guarulhos (município do Estado de São Paulo), e eles (os integrantes dos Mamonas Assassinas) eram de Guarulhos. Foi a coisa mais linda do mundo, aquela multidão! Marcello – Tiririca, tanto o Ângelo quanto o Everson disseram na pré-entrevista que não tinham contato com você nos primeiros anos de vida, mas, depois do sucesso de “Florenti-

“Pra tirar aquela pintura, eu tremia! Eu dizia: ‘Meu Deus, não vai dar certo, eu não vou saber falar a voz do Tiririca’”

na”, você tentou reunir a família... Tiririca – (interrompendo)… Foi. Marcello – Por que você escolheu fazer isso? Tiririca – Não, não é “escolheu”. É que eu sou um cara muito família. Só que a minha vida é muito torta em termos de... Eu tenho seis filhos com quatro mulheres diferentes, então é muito louco (pausa). O Ângelo e o Everson moravam em Fortaleza num bairro bem próximo. Um morava no Jóquei e o outro morava no Henrique Jorge. E não se conheciam. E eu que fiz essa junção deles. Tive o Ângelo primeiro, que é meu primeiro filho, (que hoje tem) 30 anos. A família (do Ângelo) não aceitava porque eu era de circo, então não tinha onde cair morto, certo? E eu fui ver o meu filho já com 11 anos de idade, o Ângelo. Doido pra ver, mas a família não... Fui ver com 11 anos de idade, já estourado aqui em nível de Ceará. Fui lá, paguei todos os atrasados de pensão, todos esses lances que ela (a mãe de Ângelo) gastou, e fiz questão de pagar pensão. Então, o que é que acontece? Não tivemos essa coisa porque não tinha como. É mãe diferente, então se separava ali: “Eu vou levar o filho”. A mulher usa muito esse lance. Eu não tinha condições, não tinha nada de porra nenhuma, não tinha orientação de porra nenhuma, e ficava por isso. Com os onze anos, comecei a ter contato com ele, com o Ângelo. O Everson, eu fiquei com ele até os três anos de idade. E a gente (refere-se a Regione, mãe de Everson) separou. E a mãe também botou (Everson) lá pra casa da vó, lá em Pentecoste (município do interior do Ceará). Depois que eu peguei o Ângelo e ia encontrar com o Everson, fiz a amizade dos dois. Na época da “Florentina”, ele (Ângelo) devia ter uns onze anos. O Everson, uns dez anos, nove anos. Oito anos? Nove anos. (risos da turma) Thaís – Eu queria, Tiririca, lembrar um momento da sua carreira quando houve um processo por que você passou em relação a uma música. O nome da música é “Veja os cabelos dela”... (Em 1997, Organizações Não-Governamentais (ONGs) de promoção da igualdade racial moveram ação contra a música “Veja os cabelos dela”, do CD de Tiririca). Tiririca - (interrompendo)... “Veja os cabelos dela”... Thaís – Isso. E você foi acusado de ser racista. Tiririca – Foi. Mas ganhamos em todas as instâncias. Thaís – Por que você acha que isso aconteceu? Você acha que tem um limite entre a brincadeira e a ofensa? Tiririca – Tem. Tem de ter um (limite)... Tem de ter, mas... É complicado isso (pausa). Eu já fazia show pra caramba e tudo. Mas só

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pra cá (no Ceará), então não era em nível nacional. Quando eu fui (sucesso) a nível nacional, então eu era a bola da vez. O que falassem a respeito do Tiririca dava um lance maluco, certo? Então eles fizeram essa coisa. (a música “Veja os cabelos dela”) Não era música de trabalho, não era nada, era uma música perdida num CD, nunca tocou em rádio nenhuma, em programação nenhuma... Os caras foram buscar isso aí, entendeu? Como tinha música, no meu CD, de menino de rua... Porque, pro bem, eles não fazem essa porra... “Não se admire se um dia um menino de rua invadir a porta da sua casa, pegar um alimento e partir. Não condene esse menino, não chame ele de ladrão. Ele leva sol e chuva e ainda dorme no chão. Se você ajudar e prestar bem atenção...” Sei lá, um lance assim, uma música bacana. Eu fechava o meu show com essa música. Mas não, pra eles é coisa boa, então... Eles tinham de pegar um negócio ruim e pra dar buchicho. Porém, ganhamos em todas as instâncias. A gravadora (Sony Music, que detinha os direitos da música, foi condenada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a pagar multa de R$ 1,2 milhão à Justiça Brasileira) perdeu. Quando você vai pra um emprego, você tem de dar um currículo, né? O cara sabe tudo da tua vida, não sabe? O que você faz, o que trabalha... Artista é do mesmo jeito. Eu mostro o CD, e lá na gravadora tem o cara que sabe o que entra e o que não entra. Certo? E eles não tiveram esse cuidado. Só em lance de ganhar dinheiro... Eles não tiveram esse cuidado. Ouviram (a música “Veja os cabelos dela”) e falaram: “Não, isso aí não tem nada, não tem nada a ver, é uma brincadeira”. Então pronto, deu no que deu. Eles perderam, a gravadora perdeu parece que umas duas vezes ainda. Foi um drama da porra. Mas eu não, que eu não tive intenção nenhuma de ferir ninguém. Mesmo porque eu chamo minha mãe de “neguinha”, a minha filha é minha “neguinha”, né? Eu adoro, gosto pra caramba. Essa cor, acho legal pra caramba. Porra, eu sou (negro) também, né?

Camila – Everardo, na Revista Piauí você conta que entrou na política por convite do então secretário geral do PR (Partido da República), o Valdemar Costa Neto. Tiririca – É. Camila – Que hoje é um dos condenados do Mensalão (esquema de corrupção política publicizado em 2005, envolvendo partidos políticos e repasse irregular de verba). E o PR também é um partido cujos membros estiveram envolvidos em alguns escândalos recentemente, como o do Ministério dos Transportes (em 2011, o então ministro, Alfredo Nascimento, do PR, foi afastado do cargo devido a denúncias de superfaturamento e pagamento de propina no Ministério dos Transportes). Eu queria saber se você acha que esse contexto do partido influencia na sua atuação parlamentar e de que forma. Tiririca – Não. Não, mesmo porque eu sou um cara muito “do certo”. Se realmente errou, tem de pagar. É um erro. É um erro teu, tu tens de pagar. Agora não sou eu que vou falar isso. É a justiça competente aí que... Eu não tenho nada a ver com isso. Sou um cara que sou um dos melhores deputados do País, né? Eu tirei sexto lugar, melhor deputado do País, foram escolhidos 20. Eu sou um dos parlamentares que nunca faltaram. Eram 13, baixou pra nove, agora só são sete. Eu sou um dos sete que nunca faltaram. Isso é fantástico! Fazendo um trabalho bonito pra caramba, graças a Deus. Thaís – Você costumava acompanhar política quando era artista circense? Tiririca – Não. Eu não gosto, sabe? Não gostava. Eu vou explicar pra ti: eu não gosto do Natal. Essa data tão bacana, né? Pra muita gente é, mas eu não gosto. Porque eu nunca tive condições, eu vejo que tem muita gente que não tem condições, entendeu? De ganhar um presente... Enquanto você tá com a mesa lotada de comida, aquela coisa, tem gente que nem tem, maluco! Eu já passei por isso e eu sei que é um negócio muito chato, muito nojento. Eu não gosto dessa data, eu acho

O nome Tiririca foi um apelido dado pela mãe. Ele conta que vivia “tiririca da vida” por não conhecer o pai, por apanhar muito do padrasto e por ter uma infância muito sofrida.

Tiririca chegou ao Theatro José de Alencar com meia hora de antecedência. Pelo portão lateral do prédio, as pessoas que estavam na rua 24 de Maio chamavam o artista para cumprimentá-lo e tirar fotos.

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“Campo de guerra” foi a expressão utilizada por Edit ao lembrar o dia da posse de Tiririca na Câmara. “Tinha gente do Brasil e do mundo todo esperando por ele.” Sobre a pressão que a imprensa faz sobre o deputado, ela resume: “É punk”.

Uma dúvida inquietava os alunos na preparação para a entrevista: deveríamos tratá-lo por Tiririca ou Everardo? O próprio entrevistado nos deixou à vontade. “Eu nem sei onde começa um e termina o outro”, disse à produção.

“Estava um oco desse tamanho no País por causa da perda dos Mamonas. Vem um cara cantando ‘Florentina’, que não era uma coisa pesada” uma data triste pra caramba. Eu lembro que a mamãe quando não tinha nada pra dar, aí era laranjinha num... Não sei se pra cá ainda tem, mas é um saquinho todo furadinho, saquinho amarelinho todo furadinho... Eu não sei se ainda tem isso, era maçã, era laranja dentro. Ainda tem essa porra aqui ainda? (turma sinaliza que sim) Então a mãe levava e botava, pendurava no punho da rede da gente, sabe? Tipo: “O Papai Noel vai passar” e você acreditava naquela porra de Papai Noel. Quando acordava, meu irmão... A laranjinha, a maçãzinha, sabe? Ô, meu irmão! Muito triste (a lembrança). Eu acho muito triste. Hoje é comida pra cacete. Eu fico mal pra caramba no Natal. Porque a hipocrisia é muito grande, sabe? E é ali... Governo não vê, ninguém vê, nem aí... Você vê aqui, nossa terra. Chove pra lá e não chove pra cá (no Nordeste). Dá pra fazer, tem água adoidado sim, de se furar poços. Tem, porra. Tem! Mas os caras (políticos) não deixam, meu irmão. Meu irmão... É foda! Thamires – Tiririca, você hesitou em aceitar esse convite pra entrar na política e você chegou a consultar a sua mãe sobre isso. Tiririca – É. Eu sou um cara muito assim. Primeira coisa que eu falo com ela: “Bênção, mãe? A senhora tá bem?” Thamires – E por que você consultou a sua mãe? Tiririca – Eu falei com a mamãe. A mamãe disse: “Olha, é legal, bicho. É legal porque se tu for eleito, tu vai ajudar muita gente”. Porque eu ajudo. Mas também não divulgo não, entendeu? Eu ajudo já da época de circo, sempre ajudei. Mas não divulgo, porque é uma coisa de Deus, é um lance meu. Ajudo pra caramba, eu ajudo financeiramente e ajudo da maneira que posso ajudar. E aí a mamãe falou: “Olha, já que tu gosta de ajudar as pessoas, é uma boa. Se tu for eleito, tu vai ajudar. E tu vai ser eleito, eu tenho certeza. Tu é muito querido”. Eu digo: “Não, mãe, eleito eu não vou não.

Mas é uma boa também pra eu me divulgar”. Por quê? Porque eu tô (à época) no Tom. O Show do Tom (extinto programa de televisão, exibido pela Rede Record de Televisão) vai (ao ar) tarde. Tô falando aqui pra vocês: até hoje a galera fala comigo por aí, lembram de mim na “A Praça é Nossa” (programa exibido pelo Sistema Brasileiro de Televisão) e não lembram de mim no Tom. Chegam e falam assim: “Porra, te assisti demais na ‘A Praça é Nossa’, tu com o Carlos Alberto (de Nóbrega, apresentador do programa), macho!” Muito invocado. “Quem é você?” (diz com voz do personagem). Porque ia (ao ar) muito tarde, o programa do cara (refere-se a Tom Cavalcante). Então só alguns que (assistiam), né? E eu digo: “Vou entrar na política, vou fazer um lance, vou me divulgar pra cacete. Isso vai ser em nível nacional nesse lance de Internet, essas coisas que tem. Vai ser uma divulgação. Vou tirar cinco mil votos, vou rir pra caramba e vou tirar brincadeira em cima disso. Vai ter comédia pra fazer”. Aí fui o mais votado, maluco! Não acreditei. Nós estávamos vindo, no aeroporto, e o meu filho (Everson) acompanhando: “Pai, o senhor já foi eleito.” Eu digo: “Meu irmão, vai se lascar, macho” “Tá aqui, pai. O cara acabou de passar um e-mail, coisando (dizendo) aqui que o senhor já foi eleito”. Eu digo: “Vai se lascar.” A gente no aeroporto de Guarulhos (município do Estado de São Paulo) pra vir pra cá (Fortaleza). Meu irmão, quando eu cheguei aqui em Fortaleza e desci no aeroporto, tava aquela multidão pra me receber. Eu não tava entendendo era nada. Não tive paciência... Paciência, não, eu não tive... Tranquilidade. Meu irmão, eu fui pro meu apartamento aqui (em Fortaleza). Descobriram o apartamento. Passei mal, no que eu fui pro hospital, me descobriram. Eu saí escondido. Saí escondido, me mandei e fui pra São Paulo, lá pras “brenhas” de São Paulo pra poder passar as férias por lá. Thamires – Tiririca, você acha que você tem condições de repetir essa quantidade de votos? (Tiririca obteve 1,3 milhão de votos no Estado de São Paulo em 2010) Tiririca – Não, não. Thaís – Por que não? Tiririca – Porque eu não vou! (risos da turma). Não vou mais (refere-se à reeleição). Não vou, não. Não vou mais entrar e não vou. Thaís – Mas a gente pergunta se esse número de votos se repetiria. Tiririca – Eu acho (que sim). Eu acho pelo meu trabalho, que eu tenho feito. Eu acho. Eu acho que poderia repetir. Eu acho que poderia, ou até mais. Eu acho que eu poderia empatar com o Enéas (Enéas Carneiro, ex-deputado federal, o mais votado da história do Brasil com 1,5 milhão de votos em 2002) ou passar

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na frente pelo trabalho, pelos elogios que eu venho recebendo por onde eu passo. É a coisa mais linda do mundo. Tem pessoas que chegam assim e dizem: “Olha, eu nem gostava de você como artista. Mas você mostra pra esses ladrões aí...”. Isso é muito massa, macho! O gabinete mais coisado (visitado) é o nosso. Larissa – Everardo, o que fez você não querer se recandidatar? Tiririca – O que fez é que não dá mesmo pra você fazer nada, não tem como. Dá pra você fazer o básico. Porque se todos fizessem o básico... É o que eu tô fazendo. Mas o negócio é tão assim, tão feio... Eu tô fazendo uma coisa que é minha obrigação. É muita coisa, entendeu? Se todos fizessem o que eu tô fazendo, é coisa pra caramba. Mandando as verbas que você tem, né? Pro lugar certo, sabe? Não faltando... Apresentando projetos, e eu tô apresentando projetos bacanas. Votando certo... Tá entendendo? Não deixando me levar por isso ou aquilo. Eu voto de acordo com a minha consciência. Partido, governo não fazem a minha cabeça, não. Camila – Em 2010, antes de você assumir o mandato, você teve de provar que era alfabetizado. Tiririca – Foi. Camila – Além disso teve outra questão que não foi muito publicizada. Tinha uma investigação também sobre ocultação de bens (de acordo com denúncia do Ministério Público Estadual de São Paulo, haveria omissão da declaração de bens no pedido de registro de candidatura). O que foi que aconteceu? Tiririca – Eu não sei, esse negócio de ocultação de bens eu não sei. Porque eu não... Isso é um lance que eu não, não teve nada dessa porra. Esse lance de bens foi o seguinte: eu separei da minha ex (refere-se à ex-esposa, Rogéria) e deixei tudo com ela. Ficou tudo no nome dela. Tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Vocês não sabem. Eu comecei do nada de novo. Eu com o maior sucesso, “Florentina”, estouradaço... Eu comecei do nada com a minha recente (quis dizer atual) mulher. E conseguimos até mais do que a gente tinha, do que eu deixei com a mulher (refere-se a Rogéria). E a mulher ainda mandou os filhos pra gente criar, e essa minha ex (queria dizer atual) criou os três filhos meus. Atual! É a atual, a ex não. Alissa – Everardo, você foi eleito sem fazer nenhuma promessa e sem ter uma bandeira de campanha. Quando e por que você decidiu que iria atuar a favor dos artistas de circo? Tiririca – Porque é a minha praia. Eu sou circense e acho que seria até uma covardia se eu não entrasse nesse esquema. Porque o artista de circo é totalmente desprotegido. Ele chega a uma certa idade e não tem aposentadoria, não tem nada, e o cara não pode fazer

mais (nada). Porque o trapezista, ele vai só até certa idade. Então é complicado. Olha, depois que eu comecei a bater nessa coisa, abriram mais para o lance do circo, nos programas de televisão falam mais de circo. Artista falando que é circense, que eu nunca vi na minha vida, porra! O cara tinha vergonha de falar. E fizeram até o filme agora do menino também, fizeram o filme e tudo, né? Do... (alunos dizem: Selton Melo). Eu ia até participar desse filme (em referência ao filme “O Palhaço”, de 2011). Que é premiado, bem premiado e tal, falando do circo. Isso é bacana, isso é legal. É uma classe muito esquecida. Alissa – Os artistas de circo, na verdade, são uma parte muito pequena do seu eleitorado, não é? Tiririca – Sim. Alissa – Você acha que está conseguindo, com o trabalho que você faz, representar bem esses mais de um milhão de pessoas que votaram em você? Tiririca – Tô representando bem porque não tô roubando, tô fazendo certo... Olha, são 513 deputados. Eu sou um dos sete que nunca faltaram. Dois anos já (de mandato). Sou um dos sete. São 513 deputados federais, sou um dos sete. Camila – Por que você optou por não faltar? Tiririca – Não, eu tô fazendo meu trabalho. Eu não sou pago pra isso? Eu sou pago! Sou pago pra isso, sou pago pra apresentar projeto, sou pago pra trabalhar a favor do povo, porque foi o povo que me colocou lá, certo? Pra comparecer, eu sou pago pra votar, pra fazer as votações, votar a favor do povo. Então eu tô fazendo. Marcello – E por que você acha que só uma minoria consegue comparecer? Tiririca – Aí você tem de perguntar a esses filhos da puta aí. Porque eu tenho uma coisa que inclusive a gente fala muito isso, eu tenho esse esquema assim, que é até do Abraham Lincoln (refere-se ao ex-presidente dos Estados Unidos), essa coisa. A Edit (Silva, assessora de Tiririca) até passou pra mim: “Seja lá o que você fizer, faça bem feito”. Eu tenho esse lema comigo. Seja lá o que você fizer, faça bem feito. Então esse lema é muito massa, entendeu? Tem um cara que eu trabalhei lá na política, na época que eu podia fazer show. Ele morreu, era de Itapipoca (município do interior do Ceará). Ele falava o seguinte: “Olha, você tem que ser o melhor. Que seja engraxate, mas que seja o melhor”. Isso é muito massa, maluco! Eu não quero ser o melhor. Mas eu quero, eu quero fazer por onde. Eu não sou pago? Eu sou pago, ganho uma grana da porra, macho. Político ganha uma grana da porra. Se fosse pela grana, se fosse pra fazer igual esses outros aí, eu nem entrava. Eu vou sujar

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Junto a Tiririca estavam Edit, o segurança pessoal Fernando e o “braço direito” João. Cleide, amiga de Edit, conhecia o projeto da Revista Entrevista ao folhear a edição anterior no momento da entrevista.

Ao saber que Tiririca seria entrevistado pela turma, vários amigos perguntaram se poderiam assistir ao momento da captação. Eles não puderam, mas alguns funcionários do teatro sentaram na plateia e ouviram tudo de onde estavam.


No dia da entrevista, o deputado estava barbado e brincava dizendo que parecia Abraham Lincoln. E disse não ter problema em mudar de visual: “Se eu vier de mulher, o pessoal vai dizer... Olha aí, é o Tiririca que está de mulher!”

o meu nome? Um nome que foi foda pra conseguir fazer? Foi foda, amigo! Foi assim, ó. (faz gestando limpando suor da testa). Pra estar no meio dos grandões aí, dos artistas. Eu sou um dos melhores comediantes do País, porra! Eu tô no meio dos grandões aí. Então eu vou sujar o meu nome por causa de dinheiro? Você entendeu? Eu não vou, eu não sou doido! O mínimo que eu posso fazer (é comparecer). Não dá pra se fazer mais coisa. Não dá, não tem como se fazer mais. O que é que eu tô fazendo? Não entro nos esquemas errados deles (refere-se aos políticos). Faço meu esquema direitinho, faço minhas coisas direitinho. Murilo – Até você se candidatar e ser eleito, você não tinha nenhum envolvimento com a política... Tiririca – (interrompendo)... Não. Por causa desses lances aí, dá pra fazer e não fazem... Murilo – Então como é que você fez para se preparar para assumir esse cargo? Tiririca – Tô falando do fundo do meu coração pra vocês. Depois que eu fui eleito foi que eu meti as caras. Eu digo: “Eu não vou ser eleito, maluco. Eu vou tirar cinco mil votos e vou brincar com isso. Eu sou comediante, eu vou brincar com esse lance.” Tu tá entendendo? Como é? Me fala. Fala, agora fala pra

Era foda, era foda! Foi cansativo, foi horrível! Mas você só encontrava pessoa que dizia assim... Sabe o quê? (levanta-se). Eu em cima do carro, uma mulher varrendo aqui (aponta pra baixo). E eu em cima do carro no som, e a mulher dizendo: “Desça daí! Desça daí! (gritando) Você não é pra ‘tá’ aí não, seu ladrão! Desça daí! Você vai fazer o quê? Roubar! Roubar! (faz gesto de roubar com as mãos, todos riem). Desça daí, vá trabalhar!”... E eu soltando beijinho pra ela. E tinha local em que o pessoal chegava e dizia assim: “É isso aí mesmo, vou votar em você. Você é sincero. Você tá falando a verdade mesmo. Que Deus te abençoe, vou votar em você mesmo. Pode enricar, vai ficar rico, vai ajudar sua famíla. É isso mesmo!” (risos da turma). Bicho, tinha gente que odiava, né? Um palhaço fazendo um negócio daquele ali, com umas palhaçadas daquelas? Tá entendendo? Mas foi massa. A partir do exato momento em que eu fui eleito... Eu digo: “Rapaz, o negócio é sério.” Mais de um milhão de votos, doido? O primeiro do País e o segundo da história do País. Só perdi pro Enéas (Enéas Carneiro, ex-deputado federal). O segundo da história do País, é coisa muito grande, maluco! Ed – Você não achava que ia ser eleito, não é? E no primeiro dia, quando você começou

“Vou tirar cinco mil votos, vou rir pra caramba e vou tirar brincadeira em cima disso aí. Vai ter comédia pra fazer’. Fui o mais votado, maluco!”

Minutos antes da entrevista, Edit revela ao humorista um detalhe sobre um dos membros da produção: “Olha, o Marcello é de Canindé”. Tiririca sorri e diz que a mãe é devota de São Francisco, padroeiro da cidade. “Por isso que eu me chamo Francisco”.

mim: vocês achariam que eu ia ser eleito? Não, do fundo do coração (turma fica em silêncio). Não, fala! Vocês achariam? Eu falando pra galera assim: “Vote em mim, que eu vou tirar as crianças da rua e vou botar nas calçadas. Vote em mim, que eu vou ajudar os mais necessitados, inclusive a minha família...” Meu irmão! Tu vais votar em um cara desse? Então a galera votou por quê? Porque eu tava sendo sincero. Mas, eleito sendo, eu não ia fazer uma loucura dessa, né? Não prometi nada. Eu cheguei a gravar o programa de Everardo dizendo assim: “Eu prometo não sei que e tal” (faz gesto sinalizando o uso de uma gravata). Cheguei a gravar. Eu falei: “Meu irmão, eu não vou falar isso pro meu público. Eles vão saber que eu tô mentindo nisso aqui. Eu não vou conseguir fazer isso nunca”. Rapaz, os caras prometem coisas que deputado não tem condições de fazer. Que nem o governo tem condições de fazer. E eles prometem. Então, meu irmão, votaram porque “o cara tá falando a verdade”. Eu saía nas ruas. Eu saí nas ruas, porra! Não foi só televisão, não. Todo dia eu saía nas ruas.

mesmo, como é que se sentiu assim que você entrou na Câmara? Tiririca – Foi foda! Sabe por quê? Presta atenção. Eu me preparei, eu me preparei, pronto. Eu fui eleito, certo? Aí “bumba”, me preparei estudando essa Constituição. Puta que pariu, macho! (Edit intervém e lembra que Tiririca também estudou o regimento interno) E o regimento interno... Vixe, e esse regimento interno! Porque tem muita coisa que tu não pode falar, macho. Eu tô falando aqui... As palavras que eu tô falando aqui não posso usar lá, não. Se você for falar, não pode. É “Vossa Excelência”, é não sei o quê... (faz gesto sinalizando o uso de uma gravata)... É uma onda da porra (risos). Quando eu tô entre os caras, os caras gostam de mim porque eu sou assim. Eles são todos cheios de putaria, macho! Os caras não falam palavrão, os caras... Ave Maria, se falar um lance lá, os caras ficam tudo... Agora quando eu tô no meio deles, eles gostam. Eles acham bacana. Mas lá dentro (da Câmara), é foda. Às vezes tá lá, a coisa mais séria do mundo... Eu falo no ouvido de um, e

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digo: “Esse bicho é muito sei não...” (se vira pra Marcello e cochicha). Falo alguma besteira que o cara fica rindo numa reunião e tudo. Eu falo só entre ele e eu aqui, sabe? Os caras: “Para, para! Brincadeira, macho!” Reunião do partido... Meu irmão, eles falam a mesma coisa, eles não agem em nada. Toda reunião é a mesma coisa. Chegou numa hora lá, teve um dia lá, eu disse: “Poderia dar só um aparte aqui?”. Todo mundo falou “pois não”. “Gostaria de ir pra lá...” (se levanta) Os caras que já me conhecem já sabem que é putaria, né? (risos da turma). Eu já saio pra lá, eu vou aqui no meio (se posiciona entre Murilo e Thamires) Os caras já tinham falado uma porrada de coisa. Eu vou aqui no meio e digo: “Olha, o que eu acho é o seguinte. A diferença é muito diferente da diferença que você diferenciou. Vocês confundiram as consequências com as emergências cabriocárias. Muito obrigado” (volta pro lugar). “Neguim” quer achar graça e fica naquela... Quando acaba a reunião, o cara disse: “Rapaz, tu é foda, macho. Tu é foda”, um deputado lá (falou). “Macho, tu é foda. É isso mesmo, macho. Ninguém falou nada, só você que percebeu que ninguém falou nada com nada”. Sabe? O cara fica, vira meu fã nesse

coisa e tal... Ternos caríssimos. Eu comprei terno caro pra cacete. Eu cheguei pra Edit e disse: “Edit, eu não aguento mais não! Tenta saber o que não pode deixar de usar”. A Edit se informou lá e disse: “Olha, o que não pode é tirar a gravata, o paletó e tirar o sapato... Vir de chinelo, essas coisas”. Eu digo: “Então, beleza”. Eu ando assim, de calça jeans e tal. Boto o blazer em cima e gravata, e (uso) sapato. Sapato, tênis, não tem essa não... No meio deles (os deputados). Pra mim, foi a maior (dificuldade). Alguns deles realmente não se interessam mesmo por nada. Às vezes, na votação, o “neguinho” não sabe nem em que é que tá votando. Eles chegam lá de uma reunião ou de uma coisa: “Ei, já votaram aí, não? Tão votando sobre o quê?” “Não, sei lá, macho...” “Aí vota sim ou não? Não ou sim?”... Vão os colegas lá e votam. Às vezes é uma coisa importante. E eu fico ligado. Quando eu não sei de alguma coisa, que eu tô perdidão, a minha assessora tá do meu lado lá direto. Eu tô viajando pra cá (Fortaleza), não tô? Pra cá, de férias. A Edit me liga quase todo dia: “Olha, aconteceu isso, isso e isso”. Eu não sou muito de assistir televisão, eu não gosto. “Isso, isso e isso. Fique por dentro disso porque pode vir alguma

lance. Quando eu saí de novo (se levanta): “Eu vou pedir licença, eu vou sair... Então tchau”. Apaguei a luz e saí. Deixei a sala toda no escuro. Eu quebrei o clima ali da coisa, daqueles bichões. Eu quebrei o clima. Só que num lance daquilo (da Câmara) não dá pra você brincar, né? Na hora de votação, cada um vota de acordo com o que achar. Uns votam pelo partido, outros votam porque fizeram acordo... Eu não. Camila – Everardo, e que tipo de pressões você enfrentou por ser um humorista ocupando cargo de deputado? Tiririca – Logo quando eu cheguei, nos três primeiros meses, o que a galera achou? Achou assim: “Esse bicho vai fazer palhaçada com a gente”. Porque antes de ser deputado, a gente tinha um quadro no (programa do) Tom Cavalcante, em que eu já era deputado Tiririca, fazendo palhaçada com os caras (refere-se aos deputados federais). Os caras disseram: “Pronto, isso aqui vai acabar com a gente”. Foi totalmente diferente. Respeito o trabalho dos caras. Os caras me apoiam pra caramba. Pra mim foi difícil, porque aquele paletó, aquela

coisa, (podem) perguntar...” Ela me passa, ela é uma boa assessora. Ela me blinda de uma tal maneira... Alissa – Everardo... Tiririca – Fale, minha filha. É que eu gosto muito de conversar. Alissa – Os seus primeiros meses de mandato foram muito difíceis. Tiririca – Foram, os três primeiros. Alissa – O seu filho Everson disse que você quase entrou em depressão. Tiririca – Foi. Alissa – Por que é que você resolveu continuar? Por que não abandonar? Tiririca – Porque eu sou foda (risos da turma). Eu sou foda, eu sou foda, eu sou foda. É aquela coisa, né? Seja lá o que você fizer, seja bom nisso. Eu digo: “Bicho, muita gente acreditou em mim, cara. Aí eu vou pular? Vou envergonhar a galera? Vou sair fora, né? Vou envergonhar a galera confiando que eu vou fazer alguma coisa? Não, bicho! Vamos meter as caras aí. Vamos mostrar pra esses bichos”. Pronto. Hoje, meu irmão, hoje é muito mas-

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Tiririca deixou transparecer, em algumas respostas, uma paixão: o futebol. Mas, segundo o filho mais velho, Ângelo, um dos piores defeitos do pai está justamente nesse campo: torcer pelo Flamengo.

Um aspecto surpreendeu a equipe de produção: a quantidade de palavrões na fala de Tiririca durante a entrevista. Antes da transcrição, surgiu a ideia de contar quantas vezes a palavra “porra” apareceria. A falta de tempo não permitiu.


Em alguns momentos da entrevista, Tiririca se levantou e se afastou da mesa para expressar melhor com gestos o que contava. Por vezes, apenas ficava em pé com os braços apoiados na cadeira.

A turma previa que a entrevista seria engraçada. Era perceptível o esforço de alguns para retornar ao estado de concentração, principalmente quando a voz do personagem Tiririca ou algumas expressões regionais apareciam.

sa. Hoje eu deito e rolo. Já sei andar por tudo quanto é canto lá dentro. Marcella – Você se considera um político hoje? Tiririca – Não. Não sou político. Nunca me considerei um político. Mas eu sou um artista que estou político. Eu estou político. No momento, eu estou político. Mas não me considero político. Político, eu vou falar pra ti... (pausa) Todos nós somos e não somos. Se quisermos ser, nós somos políticos. Não é só político essa coisa da politicagem mesmo. É em tudo, em tudo tem de ser político. E eu não sou, cara. Eu não sei por que que eu aconteci (na política). É porque eu sou muito autêntico. Mas não é pra ser assim, entendeu? O cara é pra ser político. Se meu filho entrasse (para a carreira política), ele não sairia nunca mais. Ele é político, meu moleque é político. Thaís – Você fala do Everson? Tiririca – O Everson. Ele é político. O outro já não é, o Ângelo. O Ângelo não é. Larissa – O que você pretende fazer nesses dois anos restantes de mandato? Tiririca – Continuar o trabalho que eu tô fazendo. Se Deus quiser, eu pretendo não faltar nunca. Se Deus quiser. E é isso. Tô fazendo um trabalho bonito, não é, Edit? (Edit lembra de projetos a serem apresentados). E (pretendo) apresentar outros projetos. E se algum projeto for aprovado... Se for, é maravilha. Se não for, eu já tô fazendo a minha parte, entendeu? Eu tô fazendo a minha parte bem feita. Se vocês acompanhassem, vocês iriam ver. Se todos eles (deputados) fizessem o que eu tô fazendo... Era muito massa, cara! Eu não tô fazendo nada a mais do que minha obrigação. Thamires – Tiririca, que imagem você tinha da política antes e depois de entrar no Congresso? Tiririca – Tá. (pausa) Sempre a minha imagem (sobre os políticos) foi negativa. Eu achava que não trabalhavam. “Esses caras não trabalham. Estão lá só pra ganhar dinheiro”. Mas trabalham sim! Tem muitos lá que trabalham.

“Eu sou circense e acho que seria até uma covardia se eu não entrasse nesse esquema. Porque o artista de circo é totalmente desprotegido”

A maioria, realmente. Cara, é compromisso em cima de compromisso, é muita loucura... Votação, não sei o quê... Você fica doido, pirado. O meu esquema é (outro)... Artista é só estar preparado pra fazer o trabalho lá, meu show e tal. Lá (no Congresso Federal) não, lá é direto. E a gente, que terça e quarta recebe o pessoal lá (no gabinete), então nós trabalhamos pra caramba. Recebemos as pessoas. São pedidos, são fotos, são sugestões, projetos, não sei o quê... É uma porrada de coisa. Trabalha pra caramba, cara! Vocês não têm noção do quanto trabalha. Falaram pra eu definir como é que eu via o político, né? “Trabalha muito e produz pouco.” Saca? Trabalha muito, mas produção, que é bom, é muito pouco. É porque lá você tem vários projetos pra serem votados. Mas eles têm uma mecânica lá que eles derrubam (a votação). A turma que não quer votar derruba os que querem votar, acaba não dando quórum. Acaba um, entrando outro (projeto). Cai e vai tudo por água abaixo. Tem dia lá que você... Porra, é foda, maluco! Não vota porra nenhuma, não votou nada. Projetos grandiosos pro País! Camila – O que é que você acha que lhe atrapalha mais nessa dinâmica da Casa? Tiririca – O que me atrapalha? Sabe o quê? São os interesses diferentes. Interesses próprios, interesses do governo, interesses não sei de quê... Tipo assim: “A nossa turma aqui só vota nesse projeto aí se botarem o nosso em pauta também ou se aprovarem o nosso.” Tá entendendo? “Ou se indicar uma pessoa que eu quero pra não sei o quê”. Marcello – Tiririca, como deputado federal, a sua visibilidade aumentou, não é? Qual é a sua opinião sobre a abordagem que a imprensa dedica ao seu trabalho? Tiririca – Ao meu trabalho? Cara, eu vou falar um lance pra vocês: a imprensa nunca foi legal comigo. Juro! Nunca divulgaram coisas boas assim que eu fiz, nunca foram legais. Mas é isso, nunca foram. Tipo esse lance da (música) “Veja os cabelos dela”. Tinha música lá no coisa (CD) que eles podiam divulgar, músicas que falavam de coisa bacana. Tipo a “Florentina” mesmo. “Florentina” foi uma das músicas mais executadas no País, cara. Até fora do País. E nunca ganhei prêmio nenhum. É um negócio maluco, eu não entendo. Foi uma das músicas mais tocadas, mais tocadas, mais tocadas de todos os tempos, nós fizemos um levantamento. E nunca ganhei nada. A “Veja os cabelos dela”, eu ganhei um processão doido. Agora a imprensa agora tá pegando leve comigo porque não tem, eu não deixei brecha pra eles. Eu como político que estou. Não tem brecha. Eles vão falar o quê? Podem não falar bem, mas também não vão falar mal. Não tem o que falar, não é? Nós estamos trabalhando

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direitinho. Thaís – Tiririca, estamos nos encaminhando para o final da entrevista, e eu gostaria que você fizesse uma avaliação. O que foi que mais lhe surpreendeu nesse exercício do cargo de deputado? Tiririca – O que mais me surpreendeu? Foi o seguinte: pessoas que assistiam o meu trabalho, que já gostavam de mim e nunca falaram. E eu como deputado... Eles chegaram e mostraram no celular vídeos meus e tudo, que curtem meu trabalho. Como deputados, como pessoas que... Sabe assim? Do alto nível de pessoas... Que nunca chegaram pra dizer assim que curtem o meu trabalho. Diziam: “Eu vou tirar uma foto com você porque se eu chegar em casa sem essa foto, a minha mulher me mata”. Ou: “Meu filho te adora, meu filho desde pequeno escuta “Florentina”. Então foi o que mais me surpreendeu. Esse medo de dizer que gosta do popular. Essa vergonha de dizer assim: “Eu gosto do cara”. Sabe, meu irmão? Isso me surpreendeu. É um preconceito louco assim. Eu não sei por que é isso. E a partir do exato momento em que eles passam a conhecer a pessoa, vai tudo por água abaixo. Isso é muito massa, cara. Tu acredita que eu faço show na casa da galera? Não como comediante, e sim como cantor. Porque eu canto. E eu faço, não é não, Edit? Eles me chamam, a gente faz show no churrasco, nas coisas, nos aniversários. Eles contratam banda, e a gente vai lá fazer show. É muito massa. Eu canto o repertório de músicas que serve pra classe deles, sabe? E canto o repertório brega. Meu irmão, quando eu começo a cantar brega... Você vê os “neguim” saindo da cadeira. Juro pra ti. É deputado, é senador saindo da cadeira... “Canta aquela lá!” (gritando). Qualquer evento eles querem que eu vá cantar lá e me contratam. Contratam não, não me dão dinheiro não. Eu vou, a gente canta a noite todinha. Camila – O que você vai fazer quando o mandato terminar? Tiririca – Dar sequência (à carreira artística). O meu CD tá saindo agora. Sai agora. Vou dar sequência aos meus shows e às minhas apresentações na televisão, cara. Eu tô morrendo de saudade. Doido, doido, doido, doido... Tem dois anos que eu não faço show. Acredita nisso? Não tem tempo. Louco, né? Marcella – Você no futuro pensa em se candidatar a outro cargo político? Tiririca – Não, não. Juro pra ti. Porque não dou pra isso não. Você tem de ser político. Tem de ser político, cara. Você tem de engolir muita coisa. Eu não engulo muita coisa não. É ruim. E fica ruim. E você se queima, entendeu? Se queima no meio deles lá. Eu não me queimo porque eles já sabem que eu sou desse jeito. Então eles me respeitam e respeito eles

também. É tanto que você viu aqui que eu não meti o pau em nenhum deles nem vou meter o pau. Se vocês perguntarem se trabalha, trabalha pra caramba. Muito. Trabalha muito. Agora produz pouco porque há interesses, né? Jogo de interesses, é complicado. Thaís – Everardo, agora a gente vai fazer a última pergunta para concluir aqui a nossa conversa. Bom, depois de ter passado pela fama, de ter vivenciado outra realidade dentro da política, o que você guardou do palhaço que fazia as pessoas rirem tanto no interior do Ceará como em Fortaleza? O que ficou desse palhaço depois de tanta mudança? Tiririca – Só a mesma coisa. É o mesmo palhaço, em condições melhores, né? É a mesma coisa, sou a mesma pessoa, sou humilde pra caramba, graças a Deus. E acho bonito ser assim. É legal, passo isso pros meus filhos. Acho muito lindo, é bacana pra caramba. Sou um bom pai, sou um bom marido, sou um bom filho. Não sou bom irmão porque a gente não tem... Não é que eu não me dou com eles, que eu me dou com todos eles. Mas a gente não tem papo, não tem diálogo, não temos... Nossas cabeças não são... Mas conselho eu dou, falo pra eles pra caramba, mas estamos aí. Não mudou nada, cara! Assim, tenho só condições. Porque hoje eu posso comer, né? Hoje eu posso comprar o que eu não podia comprar. Isso é muito massa. É muito legal, cara, uma coisa linda. Mas é a mesma coisa, é o mesmo lance. Tanto que eu tô voltando pra morar no Ceará. Tô voltando pra morar aqui, maluco. Eu gosto demais daqui, eu me sinto muito bem. E é isso, cara. Vivo a vida legal, não tenho frescura com nada. Não sou fresco com coisa nenhuma. Sou um cara muito tranquilo. E muito brincalhão. O meu defeito é ser muito brincalhão, eu levo as coisas na brincadeira. Tudo, tudo, tudo...

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No mês seguinte à entrevista, surgiu a notícia de que Tiririca havia pintado o cabelo de loiro. A primeira foto com o novo visual foi tirada ao lado do barbeiro e do deputado Popó (PRB-BA).

Após meses afastado da televisão, Tiririca recomeça na Rede Record em fevereiro, dias após a entrevista. Ele estreou um quadro em que responde as perguntas das pessoas, sobre os mais diversos assuntos. Tudo, claro, com muita piada.


Após a entrevista, alguns membros da turma voltaram à UFC para as habituais partidas de Uno. Os alunos lembravam expressões usadas por Tiririca enquanto jogavam. “Calamba” e “desça daí” foram incorporadas às piadas internas.

A edição da entrevista foi concluída na madrugada do último dia de atividades antes do recesso de Carnaval. No dia seguinte, Marcello e Thaís viajariam com Marcella para Ubajara, cidade da região serrana do Estado do Ceará. A quantidade de alunos da UFC online no Facebook (fazendo trabalhos) era surpreendente.

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Andrea Rossati Gestora Pública LGBTT

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// Andrea Rossati

Uma mulher feita de personagens que expressam, acima de tudo, a feminilidade contida na alma

À cabeceira das três mesas amalgamadas em uma única tábula, senta-se Andrea Rossati, vestida de forma elegante. A blusa de seda dança no ar, à medida que acompanha o movimento firme dos pés em cima de saltos altos. A conversa flui com a descontração que lhe é típica da personalidade. Lentamente, as cortinas de uma alma feminina vão se descerrando, mesmo que não por completo. Os lábios cautelosos perseguem a palavra certa, e os olhos travessos parecem nos indagar: “Afinal, que graça tem a vida se não houver o mistério das reticências?” Por entre as frestas que os panos não cobrem, vislumbra-se a guerreira existente no seio de todas as pessoas que vivenciam a transexualidade. Em Andrea, o espírito de transformação social não se circunscreve apenas à luta particular contra o preconceito. Para ela, era preciso efervescer as instituições políticas. Era preciso chegar ao campo público, ao Executivo ou ao Legislativo, para defender os direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT). E assim o fez. Se ainda não pôde realizar o sonho de ser vereadora ou deputada, ao menos pode se orgulhar de ser a primeira mulher transexual na gestão pública do Ceará. Enquanto encadeia discursos marcados pela pronúncia clara dos erres, o brinco insiste em cair. Em movimentos felinos, rápidos, porém suaves, recoloca-o delicadamente, mesmo com o peso que lhe traz à orelha. A explicação para a persistência está na trajetória de autoafirmação como mulher. O medo de ser tragada ao abismo por comentários de rejeição nunca foi maior do que a vontade de se sentir como uma deusa, a mesma da música de Rosana que cantava tanto na frente do espelho. O espelho. Um portal tão encantado quanto o de histórias de princesas. Como uma curiosa Alice que atravessa o espelho em busca de aventuras, Andrea mergulhava profundamente no mundo mágico da reflexão à

procura do próprio eu. Nele, a toalha na cabeça adquiria ares de madeixas em diversos penteados. A blusa grande da mãe se transfigurava em longo vestido. Os tamancos da avó se materializavam em mules vermelhos de sedução. O menino se metamorfoseava em uma menina, que podia caminhar livre no Mundo dos Espelhos. Mas, no mundo real, essa estrada de tijolos amarelos nem sempre a levou a um colorido universo de Oz. Nos episódios mais pontiagudos da batalha pela aceitação, enfrentou o preconceito nos ambientes de trabalho. São nesses momentos que Andrea retorna às lembranças da infância. Busca inspiração no ímpeto de Tempestade ou na docilidade de Sheila, super-heroínas de séries animadas que via pela televisão em Palmácia, cidade do interior cearense onde cresceu. Lá, viveu como se fosse uma verdadeira Tieta na pequena Sant’Ana do Agreste, surpreendendo os habitantes com costumes “modernos”. Longe da ficção, encontrou na realidade do convívio familiar aquele que seria o maior ídolo: a mãe, dona Angelita. Foi com o exemplo materno que a filha aprendeu a pensar na coletividade e a ter forças para marchar contra as discriminações. Decidiu, então, que era imperativo se desvencilhar das amarras e conquistar a própria independência. O convite para morar junto à irmã na Itália surgiu como um passe livre para mudança. Em terras dantescas, a boca experimentou o gosto provocante da liberdade. O cabelo cresceu, e as roupas femininas tomaram conta do guarda-roupa. Flor em meio aos espinhos, Andrea enfim desabrochou, nunca mais ficando restrita aos enquadramentos do espelho. Ganhou definitivamente as ruas e resolveu voltar ao aconchego caloroso da terra-natal. Antes, fez-se uma promessa que a guiaria no resto da vida e que não descumpriu jamais: ser feliz como a mulher que sempre existiu dentro de si.

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Ficha Técnica Equipe de Produção: Ed Borges Murilo Viana Entrevistadores: Alissa Carvalho Beatriz Ribeiro Camila Mont’Alverne Ed Borges Larissa Sousa Marcella Macena Marcello Soares Murilo Viana Thaís Brito Thamires Oliveira Fotografia: Tamara Lopes Texto de abertura: Ed Borges



Entrevista com Andrea Rossati, dia 5 de fevereiro de 2013.

Murilo – Andrea, durante a sua trajetória, seja no âmbito pessoal ou no âmbito do trabalho, você sofreu preconceito devido à transexualidade. Como é que você percebeu que toda a sua experiência de vida poderia contribuir para a luta coletiva do movimento LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)? Andrea – Como eu gosto muito de falar, eu tive de muito cedo ter uma armadura pra eu me policiar de certos preconceitos, de certas discriminações. O preconceito para com um gay e uma lésbica é forte, mas para com uma travesti e uma transexual é muito mais forte. Porque nós carregamos no corpo, no coração, na alma e somos 24 horas a quebra de paradigmas. Eu acho que isso, para uma travesti ou uma transexual, ainda é muito difícil. Hoje, se nós virmos a realidade nua e crua do preconceito, das vulnerabilidades sociais e da exclusão pelas quais as pessoas LGBTT passam, nós, travestis e transexuais, carregamos o maior número de (casos) preconceito e de discriminação. Eu acho que todo o meu empenho, a minha garra, o meu esforço, a minha vontade de lutar contra esses preconceitos e essa discriminação vieram a contribuir muito para o movimento LGBTT. O movimento precisa de pessoas fervorosas, de pessoas aguerridas para lutar. Ninguém manda um soldado pra uma guerra se ele não tiver toda aquela força, todo aquele entusiasmo, toda aquela vontade de ser vitorioso e de trazer êxito para aquilo que ele defende. Pra mim, quando você pergunta como a questão do preconceito que eu já sofri e sofro contribui para o movimento, eu acho que contribui e muito. Porque os preconceitos pelos quais eu já passei e passo, as vulnerabilidades que eu já sofri e sofro, eu acho que tudo isso foi me moldando de uma forma a eu puder ser essa guerreira tão... Que muitas vezes tira forças nem eu sei de onde pra lutar contra o preconceito e contra as discriminações, não só pelos que eu passo, mas também pelos quais a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais passa. Camila – Andrea, você falou (na pré–en-

trevista) que prefere lutar pelo movimento LGBTT no âmbito governamental e não no movimento social. Por que essa opção? Andrea – Na realidade, eu não vejo como opção. Eu acho que não é opção, eu acho que é uma vocação, né? Eu me sinto uma mulher muito política. Eu carrego muito essa questão política nas veias. Quando eu falo de carregar a questão política nas veias não é a questão das cores partidárias, de estar em partido A, B ou C. Não, não é isso. É a questão política de se preocupar com o outro, do desejo de mudança, do desejo de revolução mesmo, de lutar para conquistar aqueles ideais tão sonhados pela coletividade. Eu não estou na gestão por uma opção, mas por uma forma de, até mesmo, me desenvolver, me articular (dá ênfase a cada sílaba) melhor no âmbito do Executivo ou no âmbito do Legislativo – como eu já fui assessora legislativa (da então deputada estadual Íris Tavares, entre o final de 2005 e o começo de 2007) eu já carrego comigo esse outro lado do movimento, de poder ter a desenvoltura de me articular muito bem com o Executivo, com o Legislativo, com os poderes municipais, com os poderes estaduais, tentando minimizar esses preconceitos, essas dores do movimento LGBTT. Eu não vejo isso como opção, mas eu vejo como uma vocação, como um dom, né? Como um dom. Porque, se você for hoje analisar, as pessoas (defensoras dos direitos LGBTT) que estão ligadas às câmaras municipais, às assembleias legislativas, ao Governo Federal são pouquíssimas ainda. São muito poucas pessoas que ocupam esses espaços, que sabem ocupar. Porque também não é só estar lá, não é só ocupar o lugar. Você tem de ter toda uma desenvoltura, toda uma articulação, pra você poder responder aos anseios do movimento no qual você está. Ed – Mas você já teve alguma participação no movimento social fora dos órgãos governamentais? Andrea – Olha, bem no início, né? Bem no início. Eu, hoje, estou nos órgãos governamentais, mas eu já fui... Aliás, eu não fui, eu sou uma militante de Direitos Humanos. Não é porque eu estou como uma gestora à

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O nome de Andrea Rossati para a entrevista surgiu por indicação de Ed, que já a havia entrevistado em 2011, junto a Kelviane Lima e Tamara Lopes, para a reportagem da disciplina de Jornalismo Impresso I, então ministrada por Agostinho Gósson.

Ed conheceu Andrea em 2011, durante o For Rainbow, Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual, realizado anualmente na Casa Amarela Eusélio Oliveira da UFC.


Na época, Andrea era a titular da Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas LGBTT e foi bastante simpática ao aceitar a entrevista.

Na mesma tarde em que Andrea foi selecionada para ser uma das entrevistadas da Revista Entrevista, Ed decidiu ligar para a Coordenadoria. Não deu sorte: ela havia acabado de sair e o expediente estava terminando.

frente do executivo municipal (desde janeiro de 2013, na Coordenadoria de Diversidade Sexual da Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de Fortaleza), à frente de órgãos públicos que eu deixo de ser uma militante. Não, eu sou uma militante de Direitos Humanos, sim (enfatiza). Porque eu enfrento preconceito no âmbito estadual e municipal, porque eu enfrento preconceito no Legislativo, seja federal, estadual, municipal, mas é a força de toda essa militância, de todo esse amor pelo movimento, que me faz cada vez mais conseguir alcançar passos que podem, hoje ou amanhã, refletir em bons frutos pro movimento LGBTT. Eu sempre fui e nunca deixarei de ser uma militante de Direitos Humanos da população LGBTT. Não posso hoje falar em nome do movimento – isso eu sei muito bem separar –, mas eu tenho a plena compreensão de que vim dele. Não esqueço as minhas raízes, jamais esquecerei, e acredito que hoje estou onde estou pela minha militância política dentro do movimento social LGBTT. Marcello – Em que momento você percebeu, ali nos movimentos sociais, que você tinha vocação para o âmbito político, governamental? Andrea – Eu percebia que dentro do movimento a gente tinha muitas pessoas na liderança dos ativistas de Direitos Humanos LGBTT... E esse é o papel do movimento: de reivindicar, de afirmar seus direitos, de ir pra frente e de exigir mesmo. Mas eu sentia muita falta de ter pessoas do movimento ao lado daquelas pessoas que têm o poder de decisão. Não dá pra você só reivindicar, não dá pra você só brigar por alguma demanda se você não dialogar, de fato e de direito, com aquelas pessoas que têm o poder de decidir, para criar leis, para baixar decretos, para enviar mensagem para as câmaras municipais. Eu sentia essa ausência. Uma coisa é a gente ir às câmaras municipais, às assembleias legislativas, reivindicar, fazer passeatas. É

“Não é porque eu estou como uma gestora à frente do executivo municipal (...), à frente de órgãos públicos, que eu deixo de ser uma militante”

importante? Isso é importantíssimo! (repete a frase duas vezes para dar ênfase). Mas é necessário também que aqueles vereadores, aquelas vereadoras, aqueles deputados, aquelas deputadas tenham conhecimento (enfatiza) do que se está demandando, do que é a vivência do movimento, de qual é diferença entre uma travesti e uma transexual (transexuais não se reconhecem no seu corpo biológico e sentem a necessidade de fazer a mudança genital através de tratamento e cirurgia, enquanto travestis apresentam a identidade de gênero oposta ao sexo designado no nascimento, mas não almejam se submeter à cirurgia). De qual é a necessidade na área da política pública de saúde para uma travesti e uma transexual. É necessário que, nas unidades de saúde, os enfermeiros e os médicos saibam que o tratamento de uma travesti é diferente de um tratamento de uma mulher transexual. Como que isso vai se concretizar de fato? Quando o gestor municipal, quando os gestores estaduais de saúde entenderem isso. Como é que eles vão entender isso? Muitas vezes, por reivindicação ou, até mesmo, sugestão de uma lei municipal por um vereador ou de uma lei estadual por uma deputada. Então, eu senti essa necessidade (de trabalhar em órgãos governamentais). O movimento LGBTT precisava estar no parlamento, nas câmaras municipais, no Governo Estadual. Quando eu falo isso não é a questão de estar como deputada ou como vereadora, não, mas é porque (o movimento) precisava de uma pessoa que levasse esses anseios, esses desejos, essas demandas, essas dificuldades (enfatiza) para o conhecimento das autoridades. É aí que eu acho que a Andrea Rossati entra. E eu acho que a minha história de vida veio mais ainda se fortalecer como (militante do) movimento LGBTT a partir do momento em que eu consegui adentrar as casas legislativas, da forma como eu consegui sensibilizar (enfatiza) os gestores estaduais. Não é à toa, minha gente, que eu sou a primeira gestora (pública) transexual do País. Eu sou a primeira (enfatiza) coordenadora estadual de política pública LGBTT (no Ceará). Nunca na história do Ceará nenhum governador tinha criado uma política específica para a promoção da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Hoje, nós temos a Resolução N° 437/2012 do Conselho Estadual de Educação (CEE), que garante o uso do nome social adotado por travestis e transexuais na escola. Isso não é fácil de ser aprovado! Isso não é da noite pro dia! Eu precisei conversar com cada conselheiro estadual no pé do ouvido! (para articular a aprovação, Andrea conver-

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sou com parte dos conselheiros) “Olha, é necessário aprovar, é necessário votar...” (simula a própria conversa com os conselheiros). Para se aprovar um projeto de lei você tem de convencer 46 deputados e deputadas estaduais, e não é fácil! Não é só mandar uma lei e pronto... Não é, gente! Não é assim! Porque você precisa embasar, você precisa justificar, você precisa ter substância naquilo que você está defendendo. E aí eu acho que esse é o meu papel como articuladora nos âmbitos legislativo, executivo, municipal e estadual do movimento LGBTT. Eu acho que é dessa forma que eu venho contribuindo para a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais do Estado do Ceará. Eu sei que ainda é pouco, eu sei que é muito pouco, mas eu entendo que não é com quatro ou com dois anos de gestão que a gente vai conseguir contornar toda essa invisibilidade (fala sílaba por sílaba) que ainda tem hoje o movimento LGBTT, em relação às suas demandas, em relação às suas perspectivas de políticas públicas. Ed – Andrea, a gente queria primeiro entender como é que você entrou nesse âmbito (da gestão pública). O seu primeiro emprego, quando você voltou da Itália (Andrea foi morar na Itália aos 18 anos e passou lá cerca de dois anos) foi na Fundação Cepema (Fundação Cultural Educacional Popular em Defesa do Meio Ambiente) a convite do Adalberto Alencar (o presidente da Fundação na época) para você ser a secretária dele. Por que você resolveu aceitar esse emprego numa fundação que era não-governamental? Andrea – A vida para travestis e transexuais é, muitas vezes, muito dolorosa, muito sofrida, principalmente quando se trata de oportunidades de emprego. E foi justamente por essas participações na política (refere-se a participações que ela teve em movimentos sociais ligados ao meio ambiente e à cultura) que eu conheci o Adalberto Alencar, o meu primeiro chefe, presidente da Fundação Cepema. Inclusive, ele foi o secretário do Meio Ambiente da gestão passada (Adalberto tomou posse da Secretaria de Meio Ambiente e Controle Urbano da Prefeitura de Fortaleza em 2012, durante a gestão Luizianne Lins) e nós nos conhecemos em campanhas políticas do partido a que eu era filiada. Nós nos tornamos colegas e nesse período que eu tinha voltado (da Itália) eu tava procurando emprego. A demanda, o objetivo da Fundação Cepema era trabalhar com a questão do meio ambiente, mas também com as questões de vulnerabilidades sociais da população de rua, da criança e do adolescente, e (a Fundação) não tinha experiência nessa área voltada para a população de homossexuais

“O preconceito para com um gay e uma lésbica é forte, mas para com uma travesti e uma transexual é muito mais forte.” de Fortaleza. E foi um convite que ele me fez naquele momento, não necessariamente foi para trabalhar a questão da sexualidade, não. Foi pra ser secretária executiva da Fundação Cepema, secretária dele (Adalbeto Alencar). Foi um impacto enorme porque eu cheguei na Fundação, e ele disse (para os funcionários): “Olha, a partir de hoje, essa aqui é a minha secretária, a Andrea, que vai trabalhar aqui com a gente”, e todo mundo ficou espantado. (Eles devem ter pensado:) “Como era que o presidente de uma fundação tinha lá uma travesti, uma transexual, um gay” – bom, não sei como era que as pessoas pensavam, né? (Andrea considera–se transexual) – “ali, sendo uma secretaria executiva, dando ordens, atendendo telefone, encaminhando ações, encaminhando demandas do próprio presidente da fundação?” Então, foi uma coisa muito efervescente. Mas eu sou uma mulher muito efervescente, mesmo (risos). E eu consegui contornar a situação e a gente fez um trabalho bacana, um trabalho muito bom. Durei muito pouco tempo lá, porque foi quando eu conheci a minha grande amiga, uma pessoa por quem eu tenho maior respeito, uma grande admiração, a ex–deputada (estadual) Íris Tavares. Conheci a deputada Íris lá na Fundação Cepema. Nós nos tornamos colegas, amigas, e a deputada me fez o convite para eu ser uma das assessoras parlamentares dela na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, mais especificamente trabalhando junto à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, como uma das secretárias, pelo motivo de que as questões LGBTT estavam muito ligadas à Comissão de Direitos Humanos. Murilo – Andrea, eu queria que você falasse um pouco melhor (sobre) como é que se desenvolveu esse seu trabalho na Assembleia Legislativa. Andrea – A primeira coisa que eu fiz no início foi desconstruir os preconceitos e as discriminações, que foram muito fortes, né? Foram muito fortes. Eu me lembro que na

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Nas semanas que se sucederam, não houve mais contato com Andrea, apenas a certeza de que participaria. O recesso de fim de ano complicou a situação. Laércio recomendou que na primeira semana de janeiro fizéssemos nova tentativa.

Já nas semanas iniciais de 2013, a equipe tentou várias vezes manter contato com Laércio. Até que um dia, ao conseguir, ele disse que seria difícil fazer uma pré-entrevista com Andrea naquele período.


Coincidência ou não, horas depois, Ed a encontrou novamente na Casa Amarela, durante mais um For Rainbow. De início, Andrea não o reconheceu, mas logo depois se recordou da entrevista que havia dado um ano antes.

Ed a explicou o conceito da Revista Entrevista e a mostrou alguns exemplares. Ao fazer o convite, ela aceitou prontamente e pediu que os detalhes fossem acertados com Láercio Teixeira, assessor dela na época.

primeira vez que eu entrei na Assembleia Legislativa...– vixe! Eu não sei nem se eu posso falar isso. Mas eu já falei, vou falar, né? (risos). Foi verdade, não tô mentindo... Um guarda me perguntou pra onde era que eu ia. Eu disse que eu ia pro gabinete da deputada Íris, que eu era assessora, ele disse que eu não ia poder entrar. “Sim, mas eu vou trabalhar aqui! Eu vou ser assessora da deputada!” (reproduz a conversa que teve com o guarda na época). Eu não sei se ele entendeu... E aconteceu uma coisa que eu não quero colocar (aqui), porque eu passei por um constrangimento muito, muito chato. Mas – nunca vou me esquecer dessa cena – eu liguei pra deputada (Íris Tavares), ela veio, falou com ele, e ele disse: “Não, é porque essa pessoa...” A deputada (disse): “Ah, ela está aqui, né? Então, tá. Então, eu quero só lhe dizer que ela (enfatiza) é minha assessora e a partir de hoje você passe a se acostumar, porque todos os dias você vai ver a cara dele ou dela – como você quiser entender – aqui. Hoje ela é uma (enfatiza) assessora do meu mandato. A partir de hoje, ela é minha assessora.” E eu acho que estava desabrochando mesmo a Andrea no sentido de o cabelo estar um pouco parecido com o da Cláudia Raia, da Cristiane Torloni (atrizes da Rede Globo de Televisão), aloka (gíria difundida entre a população LGBT, oriunda do termo “a louca”, que é utilizada quando alguém faz ou fala algo extravagante), né (risos)?As pessoas comentavam muito: “Nossa, como é que pode? A deputada tem um assessor que usa calça de linho preto e um mule vermelho (tipo de calçado feminino de salto que congrega características de outros modelos, como tamanco e scarpin)? Uma assessora que usa salto alto e gravata?” Eu também... Quero dizer (fala com tom de riso) que eu usei um pouco mesmo pra mexer com a cabeça do povo. Eu queria deixar aquele povo um pouco aperreado mesmo (risos). As meninas diziam (refere-se às colegas de trabalho): “Mulher, não dá certo esse negó-

cio de tu usar essa gravata com essas calças acochadas e com salto. Eu dizia: “Mulher, mas é a gravata do arco-íris. É só pra chamar atenção”. Então, era assim que eu usava (as roupas). Era pra tentar fazer com que as pessoas compreendessem que era necessário conviver com a diversidade, que era necessário respeitar a diferença. Essa era a forma que eu encontrava. Às vezes – eu me lembro muito – que eu descia para o plenário, o meu cabelo já estava grande, eu usava uma tiarazinha prata, e o deputado – não vou citar o nome – dizia: “Olha ali, a assessora, o assessor da deputada Íris” – porque eles veem a gente como mulher, mas fazem questão de dizer que a gente é “ele”, né? Uó (gíria LGBT para se referir a algo ruim) – “tá lá, com a tiarazinha”, aquela coisa toda (dá uma pausa e suspira). Um dia, tinha uma grande sessão no plenário da Assembleia Legislativa – eu nunca vou esquecer esse dia também –, eu desci (para o plenário) era uma sessão que se estendeu até às 20 horas. Era uma das votações muito importantes, essas votações que levam pessoas (da sociedade civil) para as alas das assembleias, que tratava de reivindicação de plano de cargos e carreiras, aquela coisa toda e, nesse dia, era uma decisão (que estava sendo votada) lá sobre alguma coisa voltada para a juventude. Tinham muitos conhecidos meus, muitos colegas meus que estavam lá – e juventude é uma coisa muito efervescente também. Quando eu entrei no plenário, eles começaram (a cantar em coro): “Andrea Rossati, adoramos sua chapinha! Andrea Rossati, adoramos sua chapinha! (técnica comum de alisamento dos fios do cabelo)” (risos). Eu disse: “Meu Deus do céu!”. E a deputada (Íris Tavares) olhou e começou a achar graça. Todos os deputados olharam... Menina, eu fiquei morta de vergonha! Eu disse: “Deputada, me leva daqui agora” (fala em tom de riso)! Ela (disse): “Vixe, o pessoal adorou a tua chapinha!”(risos). Porque eu andava com o cabelo todo lambido, todo arrumadinho. Então, foi assim que

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a gente foi conseguindo quebrar os paradigmas dentro da Assembleia Legislativa. Thaís – Andrea, em relação ao seu trabalho, como era que você notava a resistência quando você já estava na defesa dos direitos LGBTT, ainda na Assembleia? Andrea – Olha, gente, é muito forte, sabe? É muito forte essa questão do preconceito, da discriminação a pessoas LGBTT, é muito desumano ainda. Vocês não queiram imaginar o que eu escutava de alguns parlamentares – de alguns, não de todos (com ênfase) –, de alguns deputados estaduais quando se referiam à população LGBTT, quando se referiam a mim. E é por isso que... Eu volto à pergunta que vocês me perguntaram, que eu não lembro quem foi que perguntou, que disse assim: “Andrea, em que ponto você acha que o seu trabalho dentro do Legislativo ou dentro do Executivo contribui para o movimento LGBTT?”. Eu começo a responder: quantas e quantas vezes a Andrea não teve de ir pra dentro de um banheiro chorando porque escutou de um deputado A ou de uma deputada C: “Eu tenho nojo de vocês. Eu não entendo, vocês são uns doentes”. E você não poder responder na ponta da língua? Ou porque um servidor de uma certa instituição, quando você pegou num grampeador, disse: “Eu não vou pegar, porque ela pegou no grampeador, pode eu pegar alguma doença”? Ou você sentar numa cadeira e outro assessor de outra deputada, na época, não sentar, porque a transexual tinha acabado de sentar na cadeira? Às vezes, as pessoas do movimento (LGBTT) não pensam no que a gente passa, no que a gente sofre, muitas vezes (enfatiza), pra costurar, articular a aprovação de projetos de leis que venham beneficiar o movimento. Muitas vezes o movimento não sabe, voltando à questão da Resolução (437/2012, do Conselho Estadual de Educação, que garante o uso do nome social adotado por travestis e transexuais na escola), em quantas casas de conselheiros do Conselho Estadual de Educação eu tive de bater, de procurar, quantas portas na cara eu levei, (fala ao mesmo tempo em que bate na mesa repetidas vezes), porque tinha conselheiro que não queria me escutar. Muitas vezes, por parte de algumas pessoas, a gente sofre homofobia institucional. Às vezes, as pessoas não sabem que a gente vai dormir de manhã preocupada porque o som para aquele evento ainda não tá pronto, e a gente quer dar o melhor, entendeu? Muitas vezes, você tem de pedir ajuda a outros deputados, a outras deputadas para que possa aprovar uma resolução. Gente, eu me lembro de uma vez quando eu preparei

uma minuta (texto) de votos de congratulações, há muitos anos atrás, pro Lamce, movimento Liberdade do Amor entre Mulheres. Quem apresentou (a minuta) foi a deputada Íris Tavares, e tinha um deputado – que eu não vou citar o nome, mas quem é do movimento (LGBTT) sabe o deputado que foi – e ele partiu pra cima da deputada Íris pra agredi-la, não conseguiu, mas pegou em mim (a agressão), me humilhou lá dentro do plenário da Casa... Muitas vezes a gente sofre preconceito, discriminação, a gente sofre emocionalmente por estar ali dentro, tentando lutar por uma única coisa: a igualdade de direitos, que, infelizmente, nem todos, nem todos (repete duas vezes para dar ênfase) os legisladores, sejam estaduais ou municipais, já entenderam o que é. Nós, antigamente, tínhamos 37 direitos civis que eram negados à população LGBTT (dentre eles, não poder casar, não poder adotar filhos e não poder somar renda para alugar imóveis com parceiro ou parceira de mesmo sexo). Hoje, nós ainda temos 20 e poucos direitos que são dados à população heterossexual e que a nós, que somos lésbicas, gay, bissexuais, travestis e transexuais, são negados. Alissa – Como é que você driblava esse preconceito nos seus ambientes de trabalho? Como você fazia isso? Andrea – (pequeno silêncio e suspiro)... Com aquelas pessoas que nos apoiam e que nos entendem. Graças a Deus, em todos os lugares que eu já trabalhei, em todos os momentos da minha vida, eu sempre tive – e acho que eu sempre vou ter – aquelas pessoas que me entendem e aquelas pessoas que são contra, que estão ali para fazer com que as coisas não andem. A força e a garra que eu tinha eram daquelas pessoas que sempre estavam ali pra dizer: “Amiga, levanta a cabeça, não é assim, vai dar certo”. Quando vinha uma pessoa e me barrava, já tinha outra lá na frente que destravava o processo. É por isso que eu digo: hoje, nós temos uma rede em nível de estado, de município, de pessoas públicas que são favoráveis à defesa da livre orientação sexual e contribuem muito para a luta dos Direitos Humanos da população LGBTT. Muitas vezes, quando a gente tá ali sem enxergar a luz no final do túnel, essas pessoas chegam, na hora certa, e dizem: “Andrea, é por aqui, eu vou te ajudar aqui, eu vou falar com uma pessoa ali” e as coisas funcionam. Beatriz – Agora falando um pouquinho da sua entrada na Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social (STDS). Você entrou por convite do então deputado (estadual) Artur Bruno e do então chefe do gabinete do Governo do Estado, Ivo Gomes. Por que

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Quase todos os dias, a equipe de produção ligava para a Coordenadoria Estadual. Um dia, antes de Ed se apresentar a quem havia atendido o telefone, Júnior, outro assessor do órgão, brincou: “Oi, Ed! Já te reconheço só pela voz, de tanto tu ligar!”.

A pré-entrevista com Laércio ficou marcada para o mesmo dia em que ocorreu a de Dimas, poucas horas depois. A de Laércio seria no bairro Joaquim Távora. Já a de Dimas foi no Carlito Pamplona. Ou seja, Ed adquiriu em um dia o poder do teletransporte.


Foi quando Ed e Murilo descobriram que ela estava em um momento de transição: deixava a Coordenadoria de Políticas Públicas LGBTT do Governo do Estado para assumir a Coordenadoria da Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza.

Ed e Murilo decidiram que seria melhor começarem as pré-entrevistas com os amigos de Andrea: o próprio Laércio e Mônica Gondim.

“‘Nossa, como é que pode? A deputada tem um assessor que usa calça de linho preto e um mule vermelho?(...)Uma assessora que usa salto alto e gravata?’” você acha que eles optaram por convidar você para essa secretaria específica? Andrea – (Andrea interrompe a pergunta para dizer, em tom de humor, que os entrevistadores estão bem informados. Ao fim da pergunta, faz silêncio seguido de um riso discreto.) Tanto o deputado (estadual) Ivo Gomes como o deputado (hoje federal) Artur Bruno eram deputados estaduais na mesma época que a deputada Íris era, e os dois sempre foram muito elegantes, dedicados e atenciosos às minhas demandas. Às vezes, eu tinha de dar entrada em um requerimento e a deputada Íris não estava ali pra assinar, o deputado Ivo assinava. Às vezes, tinha uma audiência para a qual não ia dar tempo a deputada Íris solicitar a cota (de participação) dela ou já tinha esgotado – porque os parlamentares eles têm cota de eventos, de audiência – e o deputado Ivo ou o deputado Artur Bruno sempre estavam ali para me dar um apoio de parlamentar. Esses apoios são muito importantes para que as coisas possam acontecer. E não só a questão de apoio, mas também de compreender a causa (LGBTT). Então, nós fomos nos aproximando muito politicamente, e o prefeito Cid Gomes se torna governador do Estado do Ceará (Cid foi prefeito de Sobral, no interior do Ceará, de 1997 a 2004, e em 2006 venceu, pela primeira vez, a eleição para governador). O governador assume, o deputado Artur Bruno é convidado para ser secretário do Trabalho e Desenvolvimento Social na época (em 2007), vai para a STDS e me nomeia como assessora especial de Políticas Públicas para LGBTT do Governo do Estado do Ceará (Andrea exerceu essa função na STDS). A gente começa a pensar e a montar um esboço de uma política pública voltada para a população LGBTT no Estado do Ceará. O deputado Artur Bruno, por questões pessoais, abdica

(ainda em 2007) e retorna pra Assembleia Legislativa. Quando ele retorna, o deputado Ivo (então chefe de gabinete do Governo do Estado do Ceará) me convida a permanecer como assessora de Políticas Públicas LGBTT de 2007 a 2010. Em 2010, o governador Cid Gomes cria as coordenadorias (especiais de políticas públicas): a Coordenadoria da Mulher (Cepam), a Coordenadoria do Idoso e das Pessoas com Deficiência (Copid), a Coordenadoria da Igualdade Racial (CEPPIR), a Coordenadoria de Direitos Humanos (COPDH) e transforma a Assessoria de Políticas Públicas LGBTT em uma Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para LGBTT. E o secretário (chefe de gabinete) Ivo me convida a assumir a Coordenadoria (Estadual) de Políticas Públicas LGBTT. Beatriz – Andrea, me diz uma coisa: o que é que significou pra você, na época, e o que significa hoje ainda ser a primeira transexual a assumir um cargo no Governo do Estado do Ceará? Andrea – Significou, pra mim, uma coisa muito bacana, uma coisa muito boa, um reconhecimento das autoridades ao meu trabalho, um reconhecimento do poder estadual a um projeto que eu pensei. Uma das coisas com que eu fiquei muito feliz foi a questão do reconhecimento daquilo que eu tinha planejado e do meu reconhecimento como pessoa. Poxa, sabe? Uma transexual, tá entendendo? Lá de Palmácia (cidade serrana do interior cearense em que Andrea cresceu), que foi criada na serra, que sofre preconceito, discriminação, estar hoje num posto desse, no Governo do Estado, assumindo uma coordenadoria... Eu fiquei muito feliz! Larissa – Quais são as principais conquistas que você considera ter adquirido ao longo da (sua atuação na) coordenadoria para a população (LGBTT)? Andrea – Eu acho que só a criação da Coordenadoria (de Políticas Públicas LGBTT do Estado do Ceará) já é uma conquista enorme. Você ter, dentro do organograma institucional do Governo do Estado uma Coordenadoria (interrompe o pensamento)... Porque quando eu estiver velha, caduca, e (ouvir) o pessoal (comentando): “Olha, a Coordenadoria, todo mundo nas cores do arco–íris, todo mundo perfeito!”, (eu vou pensar): “Ah, que bom! Ô, meu Deus, fui eu quem pensou naquela Coordenadoria, foi eu quem elaborou o projeto de como deveria ser, como deveria funcionar, o que ela iria atender...”. Então, num estado como o nosso, machista, preconceituoso, homofóbico, conservador, nós termos, pela primeira vez – gente, isso é importantíssimo! (fala com o tom de voz

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mais agudo para dar ênfase) – na história do Ceará, uma Coordenadoria Estadual com dotação orçamentária, com dinheiro pra fazer política pública pra lésbica, gay, bissexual, travesti e transexual? Eu acho que uma das minhas grandes conquistas foi ter conseguido sensibilizar o governador Cid Gomes pra criação da Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para LGBTT. Outra conquista foi a Resolução Nº 437/2012 do Conselho Estadual de Educação que garante o uso do nome social adotado por travestis e transexuais dentro da escola e das universidades. Acho que outra conquista foi o programa “Criando Oportunidades”, em que nós criamos (cursos específicos para LGBTT) na nossa gestão juntamente com a Coordenadoria de Promoção do Trabalho e Renda da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social. São cursos de qualificação profissional voltados para populações vulnerabilizadas, então, a população LGBTT participa. São cursos de Cabeleireiro, Corte e Costura, Webdesign, Estilismo e Moda, Recepção, Turismo... E audiências públicas (voltadas para a população LGBTT), né? Hoje, também, por exemplo, nós não temos somente a Coordenadoria Estadual e nem somente a Coordenadoria Municipal de Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza. Hoje, nós temos Coordenadoria LGBTT em Maracanaú, Pacatuba, Iguatu, Itapipoca, vamos ter, agora, em Camocim (municípios do interior do Ceará), e tudo isso foi articulação de quem? Da Coordenadoria (Estadual) LGBTT. Nós sensibilizamos os prefeitos e as prefeitas para a instituição de uma política de fato e de direito para a população LGBTT. Nós temos, hoje, no Estado do Ceará, 184 municípios. Dos 184, nós temos cinco coordenadorias (municipais) que não existiam antes da Coordenadoria Estadual LGBTT, antes do governo Cid Gomes. E por que esses cinco municípios hoje têm política pública pra LGBTT? Porque a Coordenadoria (Estadual) foi lá, porque teve uma atuação nossa. Isso é ganho e vai pra vida toda. Isso não é ganho só pra Andrea. É uma conquista para o movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais do Estado do Ceará como um todo. Ed – Andrea, como você sabe, a equipe de produção falou com o Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), que é uma das organizações não-governamentais (ONG’s) mais importantes do movimento LGBTT aqui do Ceará, e perguntamos como é que eles avaliam a sua gestão (na Coordenadoria Estadual LGBTT). Os líderes do Grab falaram que um dos pontos positivos seria a sua atuação no Legislativo, na criação, por exemplo, da

Ed empalideceu: “É que a entrevista mesmo está marcada pro dia 5”. Laércio aconselhou falar diretamente com Andrea.

semana do Luiz Palhano Loiola (semana da diversidade sexual do Estado do Ceará, que acontece no mês de julho). Em relação aos pontos negativos, eles apontaram a falta de diálogo entre a Coordenadoria LGBTT do Estado e os movimentos sociais e a falta de um plano estadual LGBTT de políticas públicas, de Centros de Referências estaduais, como o Centro de Referência Municipal Janaína Dutra (criado em 2010 pela Prefeitura de Fortaleza) Eu queria saber, de você, como era a relação da Coordenadoria Estadual com essas ONG’s do movimento? Andrea – Primeiro que eu nunca fugi de nenhum debate, de nenhum diálogo com o movimento social LGBTT. Pelo contrário: eu tenho o maior respeito, o maior carinho, a maior admiração, o maior cuidado e zelo com as lideranças do movimento LGBTT do Estado do Ceará e, graças a Deus, hoje, ele está organizado. Quando eu assumi a Assessoria (de Políticas Públicas) LGBTT em 2007, até a criação da Coordenadoria em 2010, nós não tínhamos, ainda, um movimento LGBTT, no interior do Estado, organizado. Foi a Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas para LGBTT do Governo do Estado que contribuiu para a organização social do movimento LGBTT do interior do Estado. Hoje, nós temos vários grupos organizados, várias lideranças, associações oficializadas que foram criadas através do apoio da Coordenadoria (Estadual). Quando a Coordenadoria LGBTT foi criada, foi pensada mesmo em atender ao interior do Estado, pois com relação à capital nós ficamos um pouco mais tranquilos e tranquilas. Por quê? Porque na capital se tinha uma Coordenadoria Municipal de Di-

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A partir daí a equipe de produção passou a ligar constantemente para Andrea. Seja durante reuniões, ou mesmo durante o almoço, Andrea sempre atendia de forma simpática e extrovertida. Porém, continuava sem tempo para a pré-entrevista.


Durante a pré-entrevista, Laércio relembrou o início da amizade com Andrea e o processo de criação da Coordenadoria Estadual, que acompanhou como assessor dela. “Além de minha chefe, eu tenho ela hoje como uma pessoa da minha família, uma irmã”.

Laércio também comentou que Andrea continuava superocupada e, provavelmente, só estaria livre depois do dia 20 de fevereiro, após o Carnaval.

“Vocês não queiram imaginar o que eu escutava (...) de alguns deputados estaduais quando se referiam à população LGBTT, quando se referiam a mim” versidade Sexual (criada em 2005, no início da gestão Luizianne Lins) que já atendia às entidades da capital. Nós estávamos preocupados – e creio que esse seja o pensamento do coordenador atual, o Laércio (após a mudança de Andrea para a prefeitura de Fortaleza, no começo de 2013, Laércio Teixeira, seu ex-assessor, assumiu a Coordenadoria Estadual de Políticas Públicas LGBTT) – com os homossexuais que estão lá onde não chega a informação (sobre direitos LGBTT)... A preocupação da Coordenadoria Estadual era mais com o interior do Estado e não muito com a capital. Nunca foi por descaso, mas pelo reconhecimento do trabalho da Coordenadoria Municipal de Diversidade Sexual que existia e existe em Fortaleza. Sobre o que eles (o Grab) se referem ao Plano Estadual de Políticas Públicas LGBTT, ele está sendo pensado, mas um plano não se faz da noite pro dia. Não é em dois anos que se faz um Plano Estadual de Direitos Humanos pra população LGBTT. Precisa-se de articulação, de empenho para realizar um plano. Então, esse Plano Estadual de Políticas Públicas LGBTT ainda está em andamento, em fase de diálogo. Inclusive, vai começar o período de diálogo com o próprio movimento não só o local, mas também do interior do Estado, pra institucionalização e criação do Plano. Sobre essa questão de ausência de diálogo (retoma o pensamento anterior sobre o diálogo da Coordenadoria com o movimento social LGBTT), o que eu quero colocar é que nunca eu me ausentei ou fugi de qualquer diálogo. Nós sempre estivemos e continuaremos prontos pra qualquer diálogo sensível, qualquer diálogo necessário para a construção de políticas públicas para a população LGBTT. Em nenhum momento nós deixamos de ter essa preocupação com o movimento. Agora, claro, as pessoas têm os seus pensamentos, as suas opiniões, as suas

críticas, construtivas ou não, e a gente respeita o pensamento das pessoas. Beatriz – Andrea, você falou, agora há pouco, que um plano de políticas públicas não se cria da noite pro dia, e a gente sabe que há poucos meses foi criado o (Plano de Políticas Públicas LGBTT) Municipal. O que falta ainda para o Estadual ser lançado e ser institucionalizado? Andrea – O Plano Estadual precisa que a gente possa construir um diálogo com o movimento social LGBTT. O movimento social por completo, não só o de Fortaleza, mas o de todos os municípios do interior do Estado do Ceará. Eu entendo, como gestora, que um plano (também) não pode ser construído só de ações. Um plano precisa de orçamento para que ele possa ser posto em prática, vocês concordam comigo? Orçamento é dinheiro (esfrega o indicador e o polegar simbolizando dinheiro). Neste momento, por que ele não foi iniciado? Porque nós estamos em uma fase de diálogo e conversação com todas as setoriais de governo. Em todas as secretarias de Governo do Estado (do Ceará), nós estamos apresentando aos secretários o último relatório da II Conferência Estadual de Políticas Públicas para LGBTT (evento promovido em 2011 que reuniu representantes do governo e da sociedade civil para discutir as necessidades da população LGBTT em diversas áreas), que foi realizada por nós na época em que eu era coordenadora (estadual), para que os secretários possam ficar a par dessas demandas, dessas reivindicações, e para que a gente possa iniciar o processo de construção do Plano Estadual de Políticas Públicas LGBTT. Agora, uma coisa que é importante ser colocada também é que nós, na Coordenadoria (Estadual), não podemos realizar nem fazer nada sem uma prévia autorização ou consentimento do Gabinete do Governador (Cid Gomes). Até porque o governador tem um cuidado muito grande no trato dessas questões de planos, de execução orçamentária, de planejamento e gestão. Nós estamos concluindo com as setoriais de governo (a exposição de) todas essas necessidades do movimento LGBTT para que a gente possa iniciar o processo de construção, coletivamente entre poder público e sociedade civil, do Plano Estadual de Promoção da Cidadania LGBTT do Estado do Ceará. Camila – Andrea, você está agora assumindo uma coordenadoria que, de acordo com o pessoal do Grab, já tem algumas ações que caminharam mais do que a Coordenadoria Estadual. Você se sente preparada para assumir essa nova coordenadoria, sabendo que ela, pelo próprio movimento, é

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um pouco mais bem avaliada do que a que você estava dirigindo primeiramente? Andrea – Eu me sinto preparada, sim. Como eu coloquei bem no início, eu sou uma mulher muito efervescente e eu adoro desafios. É lógico que são realidades diferentes, são momentos diferentes e são, muitas vezes, projetos diferentes. Mas esses projetos vão caminhar incansavelmente (fala de forma pausada) para o bom desenvolvimento das políticas públicas para a população LGBTT. Quando souberam que eu ia ser a nova coordenadora municipal, estava um espanto: “Roberto Cláudio vai acabar com a Coordenadoria de Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza! Não vai ter mais Parada pela Diversidade Sexual, porque o prefeito vai acabar!”. Inventaram um monte de história, que não tem nada a ver uma com a outra (Andrea se refere ao momento de transição, em 2012, entre o governo da ex-prefeita Luizianne Lins e o do atual prefeito Roberto Cláudio, em que surgiram dúvidas quanto à manutenção de políticas públicas da gestão passada). E na primeira fala que fiz oficialmente, quando a imprensa soube que eu ia ser a nova coordenadora municipal, o que foi que eu disse? “Não haverá retrocesso nos Direitos Humanos. Não haverá retrocessos nos Direitos Humanos para a população LGBTT” (repete com ênfase). O que era bom, nós vamos melhorar. O que era ótimo, nós vamos aperfeiçoar. E o que não existia, que é necessário, nós vamos criar e implantar. É esse o pensamento. Você me perguntou: “Andrea, você se sente preparada?”. Porque são muitas ações na Coordenadoria Municipal, diferentemente da Estadual. Mas nós temos de entender uma coisa: Faz 15 dias que assumi a Coordenadoria Municipal – e o Ed já foi lá (risos de todos)... – Há 14 dias eu era a coordenadora estadual de Políticas Públicas para LGBTT. Eu pensava a política. Eu dizia como é que a política era para ser desenvolvida. Então, muitas coisas (interrompe o pensamento)... Você fala assim: “Andrea, mas não tem a questão da Coordenadoria (Estadual que) ficou só nas legislações?” (remete ao posicionamento do Grab em relação à gestão de Andrea no Estado). Mas esse é o papel da Coordenadoria Estadual. É pensar legislações mesmo. É criar leis estaduais que possam punir e vetar qualquer tipo de preconceito e discriminação. (Retoma o pensamento anterior) O Estado não pode executar (pelas prefeituras dos municípios). O Estado orienta a política. A Coordenadoria Estadual estava ali pra dizer, resumidamente, como é que era para as

pessoas trabalharem nos municípios (as políticas públicas LGBTT). A mesma coisa das creches. Hoje, a competência das creches, de quem é? É do Estado ou do Município? Do Município. Hoje, as políticas de ponta da assistência social, quem executa? É o Estado ou o Município? O Município! Da mesma forma, a política pública LGBTT quem executa são os municípios, não é o Estado. É lógico, evidente, que a Coordenadoria Municipal vai ter mais ações, mais projetos, mais novidades do que a Coordenadoria Estadual! Claro e evidente, porque na Estadual eu não posso executar (pelas prefeituras), eu não posso fazer acontecer. Eu só posso dizer, eu só posso orientar, eu só posso sugerir. “Prefeita, faça assim. Prefeito, faça assado. Secretário, desenvolva dessa forma”. Eu não posso pegar a estrutura do Governo do Estado, chegar aos municípios e criar “Dia Desse”, “Dia Daquele”, “Semana Dessa”, “Semana Daquela”, “Festival Disso”, “Festival Daquilo” (Andrea se refere à criação de datas e eventos em alusão ao movimento LGBTT, como o dia 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans em Fortaleza, e a Semana Luiz Palhano Loiola, no final de junho, em que é comemorada a diversidade sexual no Ceará). Eu não posso! Porque o Estado não executa, o Estado acompanha a política, pensa a política (enfatiza). É nesse sentindo que nós pensamos. Na Coordenadoria Estadual LGBTT, nós pensamos a política pública para a cidadania da população LGBTT. Nós ensinávamos os municípios a fazer o trabalho de casa. Agora (na Coordenadoria Municipal) é diferente, eu

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A conversa com Pedrosa foi na própria sede do Grab, no bairro Itaperi. Ao chegar, Ed foi bem recebido pelos colaboradores da ONG e sentiu o clima de descontração que há no local.

Já Mônica Gondim, amiga e assessora de planejamento da Secretaria do Trabalho e do Desenvolvimento Social (STDS), contou na pré-entrevista que Andrea sofreu bastante preconceito ao entrar na secretaria, da qual a Coordenadoria Estadual faz parte.


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“Eu nunca me vi como gay, eu nunca me vi como travesti. Eu sempre me vi como uma mulher. (...) Depois é que eu fui entender que realmente eu era uma mulher transexual”

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Enquanto isso, a equipe de produção também entrou em contato com Francisco Pedrosa, presidente do Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), uma das organizações não-governamentais (ONG) LGBTT de maior importância no Ceará.

O objetivo era conhecer a opinião do Grab, como movimento social, sobre a atuação de Andrea à frente da Coordenadoria Estadual.

tô indo fazer o trabalho de casa. Tudo o que eu disse lá trás pra ser feito, agora eu tô botando a mão na massa e vou cumprir o que eu estava orientando os municípios a fazer. Só para esclarecer porque que tem menos ações (a Coordenadoria Estadual), porque que a Coordenadoria Municipal tem mais ações. O Centro de Referência (Estadual)? Importantíssimo! Im-por-tan-tís-si-mo (pronuncia sílaba por sílaba) o Centro de Referência! Agora, eles (refere-se ao Grab) esqueceram de colocar que a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República tem um direcionamento, da ministra Maria do Rosário, de não mais instalar equipamentos diferenciados, ou seja, “Centro de Referência para o Idoso”, “Centro de Referência para a Criança e o Adolescente”, “Centro de Referência para Pessoas com Deficiência”... A política qual é agora? Que se tenha um centro de referência só para atender todas as populações (o direcionamento que Andrea cita foi dado pela ministra Maria do Rosário a partir de 2011, quando assumiu o cargo federal). Na hora que eu, querendo ou não, crio centros, casinhas específicas, às vezes eu os enfraqueço, porque aquele centro de referência precisa de advogado, de psicólogo, de assistente social e, às vezes, a estrutura financeira, a estrutura organizacional das secretarias dos órgãos do governo não comporta. O Centro de Referência é uma demanda da Coordenadoria (Estadual), nós demandamos isso ao governador. A gente demandou ao Gabinete, e eles pediram: “Não, espera um pouquinho, aguarda um pouquinho”. E hoje – eu não sei se vocês estão sabendo – vai ser lançado o primeiro Centro de Referência de Direitos Humanos do Governo do Estado do Ceará (segundo Andrea, o Centro já está pronto, aguarda apenas algumas instalações, como na parte elétrica e na de informática). Vai ser até ali na Parangaba (um bairro de Fortaleza), e lá vão ser atendidas todas as populações: movimento negro, pessoa com

“Nós sensibilizamos os prefeitos e as prefeitas para a instituição de uma política de fato e de direito para a população LGBTT.”

deficiência, LGBTT, criança e adolescente. A gente vai ter um centro de referência, sim, mas nós não vamos ter um específico (para a população LGBTT no estado). Nós estamos seguindo uma orientação da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Por isso que é bom a gente esclarecer as coisas pra poder entendê-las. Porque, às vezes, acham: “Não tem um Centro de Referência Estadual (LGBTT) porque a Andrea não criou”. Não é a Andrea que não criou. É porque a orientação, a metodologia sugerida pelas autoridades é diferente, muitas vezes, do que a Andrea pensa. E tem uma coisa que aprendi, quando eu entrei para o serviço público, que levo pra minha vida toda. Diz assim, ó: “Aos técnicos, cabe dar o parecer. A prerrogativa é de quem governa”. Vocês entenderam o que eu quis dizer? Eu, como coordenadora, posso dizer o que é para ser feito. Mas quem governa é que tem a prerrogativa de pegar a caneta, assinar (gesticula como se estivesse com uma caneta na mão) e dizer: “Tá feito”. A mim, sempre cabe dar o parecer, e esse parecer sempre será favorável ao movimento LGBTT. Mas a última decisão nem sempre é da Andrea Rossati. Existem pessoas acima de mim que decidem. Murilo – Andrea, só pra gente encerrar esse primeiro bloco (sobre a participação política de Andrea), você mesma falou que agora está à frente da Coordenadoria Municipal e há muita coisa a ser criada. O que ainda falta? Andrea – Surpresa, não posso falar (diz com olhar maroto e ri)! Não, nós estamos finalizando um diagnóstico da Coordenadoria. Eu assumi há 15 dias a Coordenadoria Municipal, recebi todos os documentos, as planilhas, os projetos, as ações que eram desenvolvidas pela antiga gestão, e eu estou preparando um diagnóstico para apresentar ao nosso prefeito Roberto Cláudio, fofo demais (risos), sobre o que a gente pensa em trabalhar com a promoção da cidadania da população LGBTT. Mas é surpresa, eu não posso falar nada, senão o meu chefe vai brigar comigo, ele tem de saber primeiro. Desculpa porque eu sou muita extrovertida, é pra a gente quebrar o gelo um pouquinho, né (risos)? Ed – Andrea, você ainda sente o desejo de se candidatar a um cargo eletivo (Andrea contou a Ed, em entrevista em 2011, que tinha o “sonho de estar no parlamento, seja no legislativo municipal, seja no estadual”)? Andrea – (Dá uma gargalhada cadenciada) Ai, meu Deus. Como é (risos de todos)? Ed – (Repete a pergunta) Você sente o desejo de tentar se candidatar como deputada

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estadual ou vereadora? Andrea – Sinto. Sinto o desejo. Vocês acham que dá certo? Todos – (Em tom de riso) É isso o que a gente quer saber. Você acha que dá certo? Andrea – Não, eu que fiz a pergunta (primeiro) a vocês! Não, vou só dizer que eu sinto esse desejo. Só isso que eu vou responder, tá bom? Ed – Então, tá, tudo bem. Andrea, já falamos muito da Andrea como política e agora a gente queria saber um pouco mais da Andrea como mulher. Eu vou começar a falar da sua mãe, a dona Angelita... Andrea – (Interrompendo)... Ah, meu Deus, já vai fazer eu chorar (risos de todos). Ed – (Continuando)... Na pré-entrevista, você caracterizou a dona Angelita como uma mulher revolucionária, muito envolvida nas causas sociais, que lutava pelo coletivo de Palmácia. A mãe, para uma filha, sempre caracteriza o maior exemplo de feminilidade. É com a mãe que a filha descobre o que a sociedade quer de uma pessoa que é mulher. Como é que a personalidade da sua mãe ajudou você construir a sua própria personalidade? Andrea – (Repete a pergunta e reflete um pouco em silêncio) Eu trago muito forte comigo algumas características da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa muito efervescente, como eu (risos). Era um pouquinho mais light do que eu, eu já sou mais efervescente do que ela. Mas era uma mulher muito decidida, muito aguerrida, que não tinha medo de nada. Era uma mulher que lutava mesmo pelos seus ideais, que também não tinha meias palavras. Como eu lhe falei (na pré-entrevista), se fosse preciso ela juntar todas as costureiras da cidade para ir à frente da prefeitura reivindicar o porquê do salário (delas) estar atrasado, ela iria. Se ela tivesse de ir ao desembargador, ao juiz da cidade, reivindicar qualquer coisa, ela iria. Porque ela não pensava só nela, ela pensava na coletividade. Só pra vocês terem uma ideia – isso eu nunca contei pra ninguém –, a minha mãe eu acho que é madrinha de umas 46, 48, pessoas lá da minha cidade (Palmácia). Às vezes, tinha questão de crisma, de primeira comunhão... Uma vez o bispo ficou até assustado: “Valha, meu Deus, a mulher vai ser madrinha de 15 pessoas!”. Só pra vocês verem como a minha mãe era querida. Ela era querida porque tinha, querendo ou não, uma presença muito forte no bairro, na cidade onde eu cresci (Palmácia). Eu carrego muito isso da minha mãe, essa determinação de lutar pelo o que é justo, de lutar pelo o que é correto, de lutar pelo o que é certo. Se eu estiver certa, não tem ninguém

A resposta de Ronaldo o deixou mais apreensivo: “Vamos fazer a reunião de pauta com o que temos. Quanto a adiar as datas, não posso de maneira nenhuma. (...) Portanto, ou a entrevista se realiza no dia cinco ou não acontecerá”. Ed engoliu em seco.

no mundo quem pegue na minha munheca, porque eu enfrento quem tiver de enfrentar. Se eu estiver na razão, se eu estiver com a certeza de que aquilo que eu tô fazendo é correto, eu não consigo medir esforços para lutar. E, gente, é incrível, é uma coisa que eu não consigo entender: (para) aquilo que é para os outros, parece que eu tenho mais força de lutar, com muito mais garra, mais vontade, mais desejo de conseguir, do que aquilo que for pra mim, vocês acreditam num negócio desse? Vou dar um exemplo: (recebo) uma multa de trânsito. Aí eu digo: “Não, tá errado, eu estava certa. Eu posso recorrer, mas não, vou recorrer não, deixa pra lá!”. Mas se for outra coisa de duas, três pessoas (envolvidas), que eu estou vendo que foi injustiça, aí parece que (eu me transformo e) aparece a Tempestade, do X-Men (risos): “Vamos para a luta e vamos resolver logo o problema!” (em referência à super-heroína Tempestade, personagem da história em quadrinhos X-Men, série da Marvel Comics criada em 1963 pela dupla de norte-americanos Stan Lee e Jack Kirby). Então, eu trago muito da minha mãe isso, de lutar pela coletividade, pelo interesse das pessoas, de não tolerar injustiças, discriminações, preconceitos, de tratar o outro ser humano como você gostaria de ser tratada, de eu tratar você como eu gostaria que você me tratasse. Tinha uma pessoa, (colega de trabalho na STDS), que, quando eu passava por ela e dizia: “Oi, bom dia!”, a pessoa nunca respondia. Eu (sempre dizendo): “Oi, bom dia!”, todo dia, e a pessoa nunca respondia. Eu dava um sorriso, e a pessoa nunca respondia. Aí a pessoa (um dia, disse a mim): “Você não se cansa de me dar ‘bom dia’ toda vida, não? Você não se tocou que eu não

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A dupla de produção só conseguiu conversar pessoalmente com Andrea na tarde da véspera da reunião de pauta. Baseado na pré-entrevista com ela, Ed e Murilo forneceram as últimas informações ao grupo apenas na noite do dia anterior.


No final do mês, o tempo de Andrea se tornava cada vez mais escasso. O motivo, além da transição, eram as comemorações que organizava para o Dia da Visibilidade Trans, na data 29 de janeiro. Era o seu primeiro evento à frente da Coordenadoria Municipal.

Com a proximidade da reunião de pauta, a angústia na equipe de produção crescia mais e mais. Ainda havia informações que precisavam ser colhidas. Ed, então, decidiu mandar longos e-mails de desespero para Ronaldo.

quero falar com você?”. Eu disse (sorrindo): “Bom dia, pra você!”, desse jeito (risos)! Aí, aos poucos, eu fui conquistando essa pessoa. Aos poucos, eu fui conquistando aquelas outras pessoas (que me discriminavam). Aquilo que é difícil de se contornar é aquilo que me dá mais interesse pra eu lutar. Marcello – Você caracterizou o seu pai, o seu André, como sendo um homem rígido. Como era a relação com ele? Murilo – (Complementando)... Durante a infância? Andrea – Pouquinho, é, ele era (um pouquinho rígido). Ele ainda é, viu? A minha mãe, não. Sempre nós fomos muito, muito próximas uma a outra. O meu pai sempre foi um pouquinho mais rígido. Ele demorou um pouco mais a aceitar a questão da minha transexualidade. Ele via que eu era uma menina, que era uma mulher na frente dele, mas ele sempre ficava me chamando pelo meu nome de registro. Hoje, não, ele já avançou um pouquinho. Ele foi um pouco rígido, porque demorou mais para entender (a minha identidade de gênero). Eu sou a caçula, sabe? Eu sou a caçula, então ele esperava

meu Deus do Céu, tão cedo! Com 10 anos, 12 anos, eu já sabia que não era (homem). Ave Maria, eu amava, amava, amava, amava calçar os tamancos da minha avó, vestir uma camisa da minha mãe de malha, que ficava igual a um vestido, e botar a toalha da minha mãe na cabeça, para ficar igual a um cabelo e ficar (cantando): “Como uma deusa...”, música da Rosana, que eu adorava e adoro até hoje (se refere à canção O Amor e O Poder, da cantora Rosana Fiengo, de 1987, que fez sucesso como trilha sonora de Mandala, novela da Rede Globo). Eu ficava na frente do espelho, me sentindo a própria, a própria, a própria (Rosana) mesmo. Aquilo era, na época, muito difícil para a minha mãe, que estava no processo de entendimento ainda. Mas muito cedo eu já via que eu era mulher. Eu comecei a usar umas roupas um pouco mais acochadas. Só que eu não era gay, eu sabia que eu não era gay. E eu não gostava que ninguém (repete, dando ênfase) se referisse a mim como gay. Em casa eu era calada, eu ficava na minha, mas lá fora, se me chamasse de gay, eu não gostava, eu era mulher (ritma a fala batendo na mesa com

que o caçula fizesse tudo: casasse, tivesse filho, aquelas besteiradas. Aí, foi um pouquinho, foi só um pouquinho doloroso para ele poder me compreender como uma mulher transexual, que eu tinha uma identidade de gênero feminina, não uma identidade de gênero masculina, como ele queria que eu tivesse. Mas, aos poucos... Gente, onde existe amor, a gente consegue trabalhar, onde existe compreensão, a gente consegue trabalhar! Agora, claro, teve muitas confusões, teve muitos conflitos, teve muito chororô, principalmente da minha parte. Até que um dia, ele me abraçou, chorando, e disse que eu jamais deixaria de ser – vou falar com as palavras dele, tá? – “o filho que ele sempre amou”. A filha ou o filho, mas eu serei a pessoa que ele sempre vai amar da forma que eu sou. E se eu sou feliz assim, ele (disse que) também iria estar feliz, porque eu estaria feliz. Eu fico toda arrepiada! Thamires – Em que momento você percebeu que o seu corpo não condizia com a sua personalidade feminina? Andrea – Muito cedo, minha filha. Ah,

as mãos)! As minhas amigas perguntavam: “Mulher, como é que tu é mulher se não tem o cabelo grande, se tu não tem nem silicone, não tem peito?”. Ah, eu ficava uma fera! Porque eu era mulher igual às meninas. Eu tinha o cabelo curtinho, porque minha mãe sempre mandava eu cortar o cabelo curtinho, só que eu tinha um franjão bem grande no olho, que ficava cobrindo esse olho direito e o lance era ficar só assim, jogando o cabelo (aponta para o olho e demonstra como jogava o cabelo para trás). A minha marca registrada era esse franjão que cobria o olho. Mas eu nunca me identifiquei como gay, eu nunca me identifiquei como travesti. Não é nem se identificar, eu nunca me vi como gay, eu nunca me vi como travesti (ênfase). Eu sempre me vi como uma mulher. Depois dos meus 18 anos, 19 anos, é que eu fui entender essa questão da transexualidade. Porque, se você chegasse pra mim com 15 anos e dissesse que eu era uma mulher, mas eu era uma mulher transexual, eu ia brigar com você também. Eu ia dizer: “Não, meu amor, eu sou mulher e pronto! Não sou negócio

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de transexual, não” (bate na mesa). Depois é que eu fui entender que realmente eu era uma mulher transexual. O dia mais feliz da minha vida foi quando eu comprei uma calça jeans acochada, de cintura baixa, bem fininha assim, ó (estreita a distância entre os dedos). Calça jeans cintura baixa, acochada aqui na coxa, e a canela era assim boca de sino (modelo de calça em que o tecido próximo ao tornozelo é mais largo). Fina estampa! Eu adorei (pronuncia pausadamente e enrolando a língua no erre). Eu passei uma semana olhando pra calça (e pensando): “Eu visto ou não visto? Eu visto ou não visto? Ah, eu vou vestir!”. Era show! Quando eu comecei a vestir, quase que eu não soltava mais (risos). Alissa – Em algum momento você hesitou em aceitar sua identidade de gênero? Tentou agir como alguém com quem você não se identificava? Andrea – Não, jamais, não tinha nem como, mulher! Não tinha nem como agir como outra pessoa. Eu sempre agi como mulher mesmo, sempre agi. Thaís – Você tinha alguém com quem confidenciar as suas questões, suas dúvidas,

mada Caverna do Dragão, criada em 1983 e transmitida pela Rede Globo a partir da década de 1980). Era a linha romance. Eu sempre, sempre, sempre me identifiquei como mulher. Então, realmente, eu tive todo aquele período da adolescência de me apaixonar platonicamente. Morria de apaixonada pela pessoa, chorava igual Madalena arrependida, me entupia de chocolate dentro de casa, e a pessoa nunca sabia (dá um tapa com as duas mãos) que eu estava apaixonada. Porque era o medo do preconceito, o medo de tudo. Eu não tinha... Coragem de dizer: “Olha, eu te amo, eu quero ficar contigo”. Mas todos os meus relacionamentos foram homoafetivos (com homens). Eu sempre me relacionei muito bem com os homens. O meu primeiro relacionamento foi maravilhoso (repete, dando ênfase), e eu só posso falar isso. Ed – Vamos falar da sua saída de casa, aos 18 anos. Como foi? Por que você decidiu que era o momento de sair da casa dos seus pais? Andrea – Eu queria viver a minha vida (repete mais uma vez). Existe aquele ditado que diz assim, ó: “Prova do meu pirão, prova do meu cinturão”, não é verdade? Então, você

Ainda depois de iniciada a pré-entrevista, Andrea teve de interrompê-la, pois estava ajudando um casal homossexual que estava preste a ser expulso de casa por ter atrasado apenas um mês de aluguel.

“ O que era bom (na Coordenadoria Municipal) nós vamos melhorar. O que era ótimo, nós vamos aperfeiçoar. E o que não existia (...) nós vamos criar” ainda nesse processo de descoberta? Beatriz – É, porque você falou (na pré-entrevista) que com seus irmãos isso não era muito viável... Andrea – É, não era. (Pausa longa) Tinha, mas eu não quero tocar neste assunto, tá? Porque mexe muito comigo. Ed – Então, Andrea, já na puberdade, quando o corpo começa a mudar e quando realmente acontecem as primeiras relações amorosas, como foram suas primeiras relações? Você poderia nos contar um pouco? Andrea – Tem certeza que quer saber disso (risos)? Ave Maria! Mas, assim, mais especificamente o quê? Ed – Como era a sua relação com os meninos, por exemplo? Andrea – (Pausa) Criatura, ó, a minha relação com os meninos... Ah, eu vou falar e vocês vão rir, é uó! Beatriz – Não! Andrea – Eu só queria ser a Sheila da Caverna do Dragão, com o lourinho lá (se refere ao romance subentendido que havia entre os personagens Hank e Sheila, da série ani-

quer viver a sua vida tranquila, fazer tudo o que você quer, como todas as pessoas quando estão com seu trabalho, ter um cantinho pra ir? Pode rachar alguma coisa (algum lugar para morar)? Para mim, era o que eu esperava. Eu esperava fazer os meus 18 anos e viver a minha vida, porque eu sempre fui muito independente. Eu vendia Brasil Postal, eu vendia Hermes, aquelas revistas de pedido (revistas-catálogo que trazem diversos tipos de produtos para serem vendidos), e, inclusive, comprei a primeira calça jeans de mulher com dinheiro de comissão. Não foi meu pai nem minha mãe que me deu, não. Fui eu que comprei com a comissão (das vendas) das revistas (diz orgulhosa). Eu queria ser eu, eu queria ser Andrea. Para eu ser eu, eu tinha de ir embora, de morar em outro lugar. Eu tinha de arranjar um emprego para eu viver a vida que eu queria, da forma que eu queria. Eu tinha de assumir a minha independência. Eu queria trabalhar, eu queria sair de casa, eu queria morar fora, arranjar um trabalho, pra eu poder viver (como) a Andrea. E a minha irmã ficou noiva

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Depois da pré-entrevista, Andrea ficou de pensar qual seria o melhor lugar para que a entrevista acontecesse. Dias depois, ficou acertado que seria no salão de festas do prédio onde ela mora.


A pré-entrevista com Andrea aconteceu na sede da Coordenadoria da Diversidade Sexual da Prefeitura de Fortaleza, no Parque das Crianças, no Centro da cidade.

Quando Ed e Murilo chegaram à Coordenadoria, Andrea estava ocupada com o trabalho e eles tiveram de esperar uma hora e vinte minutos para começarem a conversa com ela.

(de um italiano) e foi embora para a Itália, entre os meus 16, 17 anos. Quando eu completei 18, ela me perguntou se eu queria ir para a Itália, passar um período lá (em Roma), e estudar italiano, na Escola Dante Alighieri (Andrea se refere à Sociedade Dante Alighieri, instituição localizada em Roma que promove cursos de italiano a estrangeiros). Olha, perguntou se o gato queria leite (risos)! Eu disse: “Claro, querida, eu quero é sair daqui!”. A Europa, a Itália, meu Deus, era o meu sonho! Fui pra Itália. Era para eu passar só um ano, eu acabei passando – olha como eu sou danada – quase dois anos, dois anos e meio, uma coisa assim. Quando eu voltei da Itália, eu já voltei como Andrea Rossati... Camila – (Interrompendo)... Por que você resolveu ficar mais tempo na Itália? O que aconteceu? Andrea – Porque eu gostei de lá, eu me apaixonei lá. Eu arranjei um emprego, comecei a trabalhar... Estava estável. Eu não queira voltar para o Brasil. Eu só queria voltar para o Brasil quando eu pudesse ser eu mesma. Pra dizer: “Voltei. A Tieta do Agreste voltou!” (em referência a protagonista do livro homônimo, de 1977, do escritor Jorge Amado, que não era aceita pela família e depois de anos retorna rica e poderosa para a terranatal). E, quando eu voltei, eu voltei a nova Tieta mesmo. Eu era a Andrea Rossati já, a maioria das roupas eram todas femininas, o cabelo já estava crescidinho, um pouquinho. Eu fui para Palmácia visitar meus pais, visitar minha mãe. A minha mãe me recebeu de

braços abertos, disse que eu não me preocupasse, que eu poderia viver a minha vida da forma que eu bem entendesse, aquela coisa toda. Mas eu não demorei muito em Palmácia, eu vim pra Fortaleza, porque em cidade pequena as pessoas falam muito, o preconceito é maior, e lá não tinha nada. Não tinha perspectiva de emprego, não tinha perspectiva de estudo. Vim para Fortaleza, porque eu queria trabalhar, queria me engajar. Foi aí que eu comecei mesmo a me engajar no movimento social LGBTT, arranjei o primeiro emprego, que foi lá na (Fundação) Cepema, e vocês já sabem o restante da história. Murilo – Andrea, voltando um pouco (na sua trajetória), quando você foi para a Itália, nos primeiros meses, você morou lá com a sua irmã. Porém, depois você acabou indo morar com uma amiga. Por que, naquele momento, você sentiu a necessidade de conseguir essa independência? Andrea – Sabia que ia me perguntar isso aí (risos). Você já sabe a resposta, mas eu vou dizer (Andrea já havia respondido pergunta semelhante na pré-entrevista). Seguinte: quando eu estava morando com a minha irmã, a minha irmã estava casada, tinha meu cunhado e a família do meu cunhado. Então, eu não estava tão à vontade para viver a minha sexualidade. A minha irmã compreendia, mas o meu cunhado ainda não. Eu não poderia ficar com a minha irmã, porque ela não ia deixar de ficar com o marido pra ficar comigo. Eu disse: “Linda, muito obrigada, adoro você, amo você, gata, mas vou pegar o meu rumo (bate com as duas mãos) e, quem sabe, arranjar um príncipe igual ao seu pra mim”. Fui embora, comecei a trabalhar e fui morar com uma amiga. Mas a gente (Andrea e a irmã) ficou se vendo sempre, se falando sempre. A gente tinha toda aquela fraternidade de irmãs que tinha antes. Mas eu morava com outra amiga, pra poder ter a liberdade de viver a minha sexualidade. Por quê? Porque, se eu ficasse morando com a minha irmã e com meu cunhado, a família ou ele poderia achar (e ficar perguntando): “Onde é que a Andrea tá? Tá andando com quem? Por que tá chegando tarde?”. Parece, gente, que, quando o pai ou a mãe descobrem, ou a família, que você é gay ou é lésbica, começam as preocupações: “Será que o boletim tá azul? Será que tá tendo um bom desenvolvimento na escola? Será que vai passar no fim do ano na universidade?”. Parece que, por você se autoafirmar como gay ou como lésbica, você vai perder aquelas qualidades que antes você tinha. Vocês já pararam pra pensar isso? E isso não é só eu que digo, não. Depoimentos de jovens homossexuais que são expulsos de casa, quan-

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do se autoafirmam como homossexuais, que dizem pros pais, que dizem pra família. As famílias começam a pensar assim: “Agora é gay, é travesti, transexual, agora não vai prestar”. Não é bem assim. Então, para eu poder me sentir melhor passei a morar com uma colega minha lá na Itália e continuei no meu trabalho, mas a gente (Andrea e a irmã) se dava superbem. Eu, a minha irmã, o meu cunhado... Mas eu só ia como visita, não morava mais junto deles, até para poder evitar certos problemas, atrito de pensamentos ideológicos, etc. Marcella – Como é que você conheceu a família Rossati lá na Itália? Andrea – A família Rossati é a minha segunda família, porque é a família que me acolheu, que me deu... Eu acho que o meu primeiro emprego, Ed, não foi nem aqui (em Fortaleza), foi lá (em Roma). Meu primeiro emprego acho que não foi nem na Fundação Cepema, foi lá, no Bar Rossati, na Itália. (Os Rossati) foram a primeira família que me acolheu, que me tratou como filha, que me tratou como membro da família, e, por incrível que pareça, a família Rossati é a família do meu cunhado. Para você ver como é a vida, eu fui embora (para a Itália) com a minha irmã, mas a família do meu cunhado foi que se tornou a minha grande família. Essa família é muito cara pra mim, muito (enfatiza) especial. Foi uma família muito importante em um dos momentos em que mais precisei, de começar a passar pelas primeiras dificuldades quando você descobre a sua verdadeira identidade de gênero e orientação sexual. E foi uma promessa (que fiz), quando eu fui embora da Itália: “Olha, a partir de hoje eu sou Andrea Rossati”. É o meu nome social, é o nome que eu vou colocar nos meus documentos também – porque eu tô num processo de mudança – e vai ficar Andrea Rossati. O restante vai ficar o sobrenome dos meus pais biológicos. Alissa – Por que você acha que uma família com a qual você não tinha contato antes de ir pra Itália a acolheu melhor que a sua família biológica? Andrea – (Faz uma pausa e suspira) Eu acho que, no caso, a minha família biológica, talvez, não sabia lidar ainda com a minha sexualidade, né? Tem até um ditadozinho popular que diz assim: “Santo de casa não obra milagre”, só obram os santos de fora. Às vezes, pra quem está fora é mais fácil lidar com aquilo que é novo, com a situação, do que quem está dentro. A minha família, claro e evidentemente na época, não soube lidar com a questão, talvez por desconhecimento, talvez por medo. Com medo de eu ser discriminada, de eu ser desrespeitada, de

eu sofrer uma agressão física, porque você sabe que é assim. Muitas vezes o medo da mãe, o medo do pai, o medo da família não é porque você é homossexual, é lésbica. Mas é o medo de como a sociedade vai passar a lhe tratar, o medo de (não saber) como a sociedade vai lhe respeitar e conviver com você na rua. Porque a sociedade é preconceituosa, é machista, é conservadora, então, o medo da família era esse. Nesse momento, eu acho que a família Rossati soube me acolher mais porque estava de fora da questão. E por ser também (da Itália), um país de primeiro mundo, com pessoas, talvez, com uma mente mais aberta, mais moderna. Diferentemente de uma família do interior do Ceará (Andrea refere-se à própria família), de 15 filhos, cujos irmãos tinham três, quatro, cinco, seis namoradas. Então, vocês imaginam! E gente, vocês sabem que a cultura do interior já é diferente da nossa cultura da capital, vocês sabem disso. Vocês sabem hoje que é mais fácil uma pessoa daqui de Fortaleza tentar compreender a questão da homossexualidade, do que uma pessoa que mora lá no interior. Acho que foi mais fácil para a família Rossati me acolher, me amar, me respeitar, cuidar de mim, por estar fora da questão e por ter uma mente, naquele momento, mais aberta sobre a questão da sexualidade. E também não foi a família Rossati por inteiro. Foi o irmão do esposo da minha irmã, a cunhada dele e a sobrinha que foram as pessoas com quem eu convivi na Itália durante esse período em que morei lá. Alissa – Você disse que a sua família biológica tinha medo de como a sociedade ia tratá-la. Você também tinha esse medo? Andrea – Não, eu não tinha esse medo, porque eu já sabia que a sociedade ia me tratar com preconceito e discriminação. Eu sabia onde estava pisando. Eu só ficava pre-

“Eu trago muito da minha mãe isso, de lutar pela coletividade, pelo interesse das pessoas, de não tolerar injustiças, discriminações, preconceitos”

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No decorrer da entrevista, Andrea foi interrompida duas vezes pelo assessor de imprensa, Marcos André, que esteve ao lado dela durante quase toda a conversa. Marcos a interrompeu por causa de pendências da Coordenadoria.

Com o fim da entrevista, veio a surpresa: Andrea havia encomendado salgadinhos e refrigerantes para toda a turma. Um grande alívio para quem sequer tinha almoçado naquele dia.


Andrea marcou a entrevista para 13h30. Alguns tiveram de se virar para saírem de seus estágios pela manhã e chegarem a tempo ao local. Marcella, por exemplo, almoçou no ônibus um pedaço de panetone dado por Beatriz em uma lata de goiabada.

A maioria da turma chegou no horário combinado. Andrea, no entanto, chegou cerca de quinze minutos mais tarde, e a conversa só se iniciou meia hora depois do previsto. A entrevista, com tempo estipulado de duas horas, teria de ser feita em uma hora e meia.

ocupada do que viria pela frente. Agora, saber que eu ia ser discriminada, ser excluída, ser tratada como um nada, eu sabia que eu iria ser, eu já estava preparada pra isso, eu já esperava isso. A minha preocupação – não é medo – era como iria ser esse grau de preconceito, como era que viria essa avalanche. Eu sabia que ela viria, agora como viria, de que forma, eu não sabia. Então, eu ficava preocupada. Camila – Andrea, e o que foi que mudou em você nos dois anos que passou na Itália? Andrea – Eita... (pausa) Eu não acho que mudei, eu acho que eu adquiri mais ainda a vontade de ser feliz e de lutar pela a minha felicidade. Acho que o grande trunfo que trago da Itália é ter saído de lá com um único objetivo: lutar in-can-sa-vel-men-te (fala sílaba por sílaba para dar ênfase) pela minha felicidade. Ser feliz da forma como eu sou, mulher transexual. Acho que foi a vontade e o objetivo de lutar pela minha felicidade, de ser feliz, de não deixar ninguém ditar a minha felicidade, não deixar que ninguém dissesse como eu deveria viver ou como eu deveria me comportar. Eu saí da Itália com este único objetivo: ser feliz, lutar pela minha felicidade e mostrar para as pessoas que eu poderia ser feliz, mesmo tendo uma orientação sexual dita, dita (repete duas vezes para frisar) como diferente pela heteronormatividade (em referência ao pensamento que estabelece a heterossexualidade como a norma “natural” a ser seguida pelos membros de uma sociedade). Camila – Por que você decidiu voltar para o Brasil? Andrea – Eu decidi voltar porque eu queria estar próxima da minha mãe – a minha mãe me fazia muita falta –, de amigos, de alguns parentes que me faziam muita falta, e você estando no Brasil, na sua terra, tudo é mais fácil pra você do que estar do outro lado do mundo. Por mais que eu tivesse uma irmã lá, ela tinha a vida dela, tinha o casamento dela, tinha os filhos dela para cuidar. Sempre me faltava alguma coisa. Então, você estar no seu país, no seu estado, é muito diferente do que você estar em outra terra, em outras leis, em outras culturas. A Itália é linda, maravilhosa, a cultura italiana é perfeita, mas eu sentia muita falta. Eu sentia falta do Brasil, eu sentia falta do Ceará, das pessoas que gostam de mim, do calor humano do cearense, sabe? Da pegada cearense (risos) que não tinha lá fora. Então, eu resolvi voltar. Ed – Andrea, a última pergunta: reavaliando a sua vida, como a gente pode perceber, você lutou muito para poder mostrar a Andrea Rossati. Depois de tudo isso, o que significa ser mulher para você hoje?

Andrea – (Longa pausa para refletir) O que significa ser mulher para mim hoje, né (mais silêncio)? Para mim, ser mulher hoje significa ter toda a determinação, toda a garra, toda a ousadia, toda a coragem e toda a efervescência (risos) que a Andrea Rossati tem. Acho que é isso. (...) Ah, eu trouxe uns salgadinhos pra vocês comerem. (Todos riem).

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Após a entrevista, Ed e Murilo, dupla de produção, tiveram de dedicar parte de seus Carnavais para transcrever a entrevista.

Na quarta feira de cinzas, a folia só estava começando. Os dois passariam os próximos dias imersos no processo de edição. As madrugadas se tornaram as melhores amigas (ou não).

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// Nota do professor responsável pela Revista Entrevista A edição passada, número 29, publicou uma entrevista com o radialista Victor Hannover, a qual gerou uma série de direito de resposta por citações do entrevistado contra algumas pessoas ligadas ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Ceará, como apregoa o Código de Ética dos Jornalistas. Um dos que tiveram direito de resposta foi o jornalista Paulo Mamede, atual editor-executivo da Revista Universidade Pública e responsável pela Divisão de Marketing da Universidade Federal do Ceará (UFC). O direito de resposta de Paulo Mamede provocou uma reação no radialista Victor Hannover, que publicou no blog que mantém (victorhannover1.blogspot.com) uma espécie de tréplica, tecendo comentários negativos ao direito de resposta do jornalista Paulo Mamede. Na condição de professor

responsável pela Revista Entrevista, eu discordo dos comentários do radialista Victor Hannover, que acusa o referido jornalista de não saber fazer a devida leitura da entrevista por Victor concedida. Porém, a questão é que Paulo Mamede só teve acesso a uma parte da entrevista do Victor Hannover que se referia explicitamente a ele, Paulo Mamede. Fui procurado pelo jornalista Paulo Mamede para esclarecer que os comentários do radialista não correspondem à verdade e me solicitando fazer o devido esclarecimento nesta presente edição. Atenciosamente, Ronaldo Salgado, professor responsável pela disciplina Laboratório de Jornalismo Impresso e pela Revista Entrevista.


Números publicados da revista Nº 01 Ciro Ferreira Gomes Blanchard Girão Francisco José Lima Matos Marcos Passerine e Elizeu de Sousa Rosemberg Cariry Nº 02 Francisco Gilmar de Carvalho José Maria Moreira Campos José Dias de Macedo Raquel de Queiroz Dedé de Castro Nº 03 Ângela da Silveira Borges Maria Luiza Fontenelle Adriano Espínola Antônio Marques dos Santos Neto (Lino Villaventura) Antônio Gonçalves da Silva (Patativa do Assaré) Nº 04 Juraci Magalhães Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) Luiza de Teodoro Vieira Francisco Magalhães de Barbosa (Zé Pinto) José Tarcísio Ramos Nº 05 Fausto Nilo Manfredo Araújo de Oliveira José Albano Heloísa Juaçaba Nº 06 Agostinho Gósson Kátia Freitas Zé de Lima Eduardo Campos Nº 07 Antonieta Noronha Narcélio Limaverde Xyco Theóphilo Luizianne Lins Nº 08 Tom Barros Beatriz Furtado Firmino Holanda Maurício Silva Nº 09 Joaquim dos Santos Rodrigues (Seu Lunga) Irapuan Lima Harbans Lal Arora Lira Neto Nº 10 Inácio Arruda Patrícia Gomes Raimundo Fagner Neno Cavalcante José Amaro Sobrinho (Bodinho)

Nº 11 Sebastião Belmino Alemberg Quindins Irmãos Anicete Simião Martiniano Mainha Orlando Sena

Nº 21 Ney Matogrosso Valdemar Caracas Dona Dina Daniel Peixoto Ângela Guiterrez Decartes Gadelha

Nº 12 Manassés Tasso Jereissati General Torres de Melo Muriçoca

Nº 22 Adelaide Gonçalves Hugo Bianchi Pedro Eymar Ermano Allegri Nildes Alencar Cid Carvalho

Nº 13 Raimundo Rosélio Marcílio Maciel Frei Betto Niède Guidon Nº 14 Luis-Sérgio Santos Edilmar Norões Guilherme Neto Águeda Passos Nº 15 Oswald Barroso Padre Haroldo Coelho João Inácio Júnior René Shaerer Nº 16 Wolney Oliveira Chico do Caranguejo Demitri Túlio Glória Diógenes N° 17 Paulo Diógenes Jawdat-Abu-El-Haj Flávio Sampaio João Alfredo Nº 18 Peregrina Capelo Christiano Câmara Francisco Simão Hermínio Macêdo Castelo Branco (Mino) David Duarte Nº 19 Themístocles de Castro e Silva Joaquim de Sousa José Hamilton Ribeiro Alexandre Fleming Cid Ferreira Gomes Karim Aïnouz Nº 20 Terezinha Mapurunga Waldonys Caco Barcellos Sânzio de Azevedo

Nº 23 Regina Passos Rafael Limaverde Samantha Marques Rodger Rogério Fernando Hugo Wellington Jr Nº 24 Ziraldo Alves Pinto Silas de Paula Mário Albuquerque Fernando Catatau Nº 25 Eliomar de Lima Haroldo e Hiramisa Serra Simone Ferreira Tarcísio Sardinha Nº 26 Espedito Veloso de Carvalho (Espedito Seleiro) Francisco Newton Quezado Cavalcante (Lúcio Brasileiro) Heitor Férrer Nilson Lage Silvero Pereira Nº 27 Dilmas Figueiras Filho Antônio Isaías Paiva Duarte (Isaías CDs) Rosier Alexandre Saraiva Filho Olga Lúcia Espíndola Freire Maia Lúcio Gonçalo de Alcântara Nº 28 Luma Nogueira de Andrade Adriana Negreiro Dantas Italo Almeida de Oliveira e Renno Saraiva de Macêdo e Silva (Italo e Renno) Giovanni Costa Cavalcante (Dom Giovanni) Victor Hannover Gouveia Barros Nº 29 José Airton Paula Barreto Aurísio Cajazeiras Gomes Gerardo Dimas Mateus Francisco Everardo Oliveira Silva (Tiririca) Andrea Rossati




Revista de apoio às práticas leitoras e às disciplinas de Normalização, Editoração e Teoria e Práticas da Leitura do curso de Biblioteconomia

A revista Literação tem o prazer comunicar o lançamento do seu segundo número, através do endereço http://miud.in/ZMX. Sob a coordenação da Profª Drª Fátima Araripe do Curso de Biblioteconomia, da Universidade Federal do Ceará (UFC), o projeto conta com a participação de bolsistas voluntários dos cursos de Biblioteconomia, Jornalismo e Letras. A revista, de caráter semestral, é composta por indicações de leitura, entrevistas, textos e artigos produzidos por estudantes e professores da UFC. O objetivo é estimular reflexões e fomentar discussões acerca da leitura e das práticas leitoras na academia na comunidade. A revista também oferece um espaço para colaboração de produções artísticas e literárias. Para saber mais sobre o projeto ou colaborar com a revista acesse a aba “Colabore Conosco” do nosso blog www.revistaliteracao.ufc.br

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