5 minute read
NINGUÉM VAI CONSEGUIR PARAR CANGOMA
parar cangoma NINGUÉM VAI CONSEGUIR
Tava durumindo, Cangoma me chamou Tava durumindo, Cangoma me chamou
Advertisement
Disse levanta povo, cativeiro já acabou Disse levanta povo, cativeiro já acabou
(trecho do jongo tradicional Cangoma, gravado por Clementina de Jesus)
Clementina de Jesus.
Cangoma, na língua banto, é a festa dos tam- bores, o momento em que os escravos das etnias banto e iorubá se reuniam para can- tar e dançar. Cangoma, no conto de mesmo nome, escrito por Ale Santos e publicado na coletânea Todo Mundo Tem uma Primeira Vez (Plataforma21, 2019), é o momento da destruição do sistema opressivo, o fim do ca- tiveiro para prisioneiros condenados a servir de mão de obra barata aos “barões das crip- tomoedas”. A história se passa entre a favela de Vila Cle- mente e a Área Central, num futuro em que a internet como conhecemos hoje se tornou obsoleta e deu lugar à MegaNet — mais avan- çada, com serviços melhores e inacessível para quem não pode comprar equipamen- tos caros. Para o povo do Distrito de Tamuiá, onde fica Vila Clemente, a MegaNet sim- boliza segregação, e a Inteligência Artificial Cérberus (o braço repressor da MegaNet), o sufoco constante da hipervigilância e da co- erção. Entretanto, a comunidade encontra seus caminhos de resistência: um grupo de nerds conhecido como Malungos hackeia a internet abandonada pelo governo e ressus- cita um servidor no meio do distrito, ao qual os moradores da periferia conseguem se conec- tar com seus celulares e computadores velhos. O garoto Akin é o único do local que tem um notebook com o sistema operacional Babel, que garante acesso à MegaNet. Estu- dioso, ele ganhou o dispositivo, e uma pro- messa de estágio, por ser o melhor aluno do programa educacional Projeto Tupiniquim. Akin acredita no poder da obediência às re-
gras, do estudo e do trabalho para mudar de vida. Ele quer ser diferente de seu pai, Ozeias, a quem mal conheceu. Ozeias, um rebelado, foi preso durante uma manifestação na Área Central quando Bete, mãe de Akin, estava grávida. Akin não quer o destino do pai nem a vida clandestina dos Malungos. Não quer ser confundido com os integrantes do gru- po, que passaram de hackers a amotinados. Tanto uma associação como a outra pode colocar seus sonhos em risco. Akin significa “homem valente, guerreiro, herói”, em iorubá. Ele é o escolhido para mudar a situação do distrito, mas ainda não sabe disso, e mesmo sem saber, reluta. O momento da revelação acontece durante o encontro entre Akin e Moss, mulher trans que lidera os Malungos, conhecida por ser um gênio da tecnologia. Essa cena marca o início do despertar de Akin e servirá como ponto de partida para a proposta deste trabalho: projetar uma experi- ência física (exposição) com base num recor- te específico do conto Cangoma (a cena do encontro), reproduzido nas próximas páginas:
Seria no Brasil ou na
África? Seria uma viagem no tempo? Akin recebe um chamado, mas ainda não entende. As reações de seu corpo se sobrepõem.
Agora sim, ele compreende que houve um chamado e corre em direção a ele.
Akin identifica de onde partiu o rugido e percebe que ali existe um poder.
A descoberta de que o leão é Moss gera fascínio e, ao mesmo tempo, decepção. Moss revela seu papel como mentora de Akin.
Moss também é o link com as forças sobrenaturais que ajudarão Akin em sua jornada.
Ilustração do Yemi Yung.
Akin acorda no meio da floresta e experimenta sensações nunca antes vi- vidas. Seu corpo está mais ágil, mais forte e em total sintonia com a natureza. Ele é uma das feras reverencia- das por caçadores de diferen- tes etnias. O que parece uma aventura, no entanto, é de fato um ritual de reconexão do ga- roto com sua ancestralidade, proporcionado por Moss. “Al- gumas pessoas utilizam a fé como ponte entre o mundo dos vivos, o dos espíritos e o dos ancestrais. Malungos utilizam a tecnologia”, diz ela. A partir do momento em que Akin recebe o im- plante cervical, começa uma jornada de transfor- mação em que ele terá de lidar com a ambigui- dade de pertencer e, ao mesmo tempo, não pertencer à comuni- dade (ele é o “especial” do pedaço, o nerd com chances de cair fora) e aca- bará por reconhecer o lugar de luta de homens como seu pai e a importância de se conectar com suas origens. E por que essa reconexão é necessária? Para que Akin cumpra seu destino de herói e encontre dentro de si a força para agir na hora certa. Neste ponto, é importante entender o significado da palavra malungo. Na língua kikongo, malungo quer dizer “no barco”. Aqui no Brasil, virou a forma como se tratavam os escravos que vieram da África na mesma embarcação e também uma gíria para “camarada”, “companheiro”. Embora tenha saído do encontro com Moss afirmando que nunca se juntaria aos Malungos, Akin já era um deles. De volta à Vila Clemente, o personagem parece seguir na via conformista, quando, em sua casa, engole a raiva diante da fala cheia de desprezo de Fernando Minsky, o responsável pelo Projeto Tupiniquim. O leitor percebe que algo mudou no momento em que Akin, a caminho de seu primeiro dia de estágio, é parado pelo sargento Josué, a quem diz: “Você sempre nos caçou. No mato ou no morro, mas eu tô fechado para ti.” Akin e Josué já haviam se cruzado em vidas passadas? Essa fala corajosa parece sair da boca de Akin por inspiração dos ancestrais. Ao chegar à Área Central, Akin é vigiado, revistado, humilhado, ameaçado de morte e vira cobaia de uma ex- periência científica. No momento em que aconteria o reboot de seu cérebro, ele volta à floresta, reencontra Moss e, finalmente, entende seu papel de esco- lhido. Ele era o único no distrito com acesso à MegaNet, o único que poderia clicar no ícone Cangoma na tela do notebook e fazer rodar o programa que levaria Cérberus ao colapso. Seu ancestral, Nebiri, estava com ele. Akin termi- na o conto tendo cumprido seu papel de herói e disposto a procurar seu pai. O sobrenome de ambos, Imani, significa fé. O trecho escolhido para servir de base a este trabalho marca a passagem entre o mundo em que Akin vivia e um novo mundo. “É o ponto mais forte na narrativa como portal de transição entre dois momentos”, diz o professor Anderson Penha. “Além disso, envolve assuntos como religião, educação, tec- nologia e política. Pensar o futuro de um ethos passa pela reflexão sobre esses temas estruturais da sociedade. O encontro entre Akin e Moss também está repleto de simbologias e permite explorar expressões bi e tridimensionais que são interessantes para a nossa proposta”, completa.