4 minute read
TRAGÉDIA ANUNCIADA
anunciada TRAGÉDIA
Quando as aulas da disciplina de Design Experimental começaram, em dezembro de 2019, o cenário da pandemia causada pelo coronavírus ainda não estava no radar da turma. No entanto, a conclusão do curso aconteceu já dentro do período de quarentena e trouxe um sentido de urgência ainda maior para diversos temas tratados ao longo do projeto. Como as desigualdades sociais e os problemas estruturais das cidades nunca foram devidamente enfrentados, colocando a população periférica em situação de alta vulnerabilidade, o Brasil se vê diante de uma tragédia previsível e sem precedentes.
Advertisement
Assim como no conto Cangoma, vivemos em cidades desiguais, em que as medidas de isolamento e higiene necessárias para a contenção do contágio da Covid-19 se tornam impraticáveis para uma grande parcela dos habitantes. Como lavar as mãos se cerca de 4 milhões de brasileiros moram em casas sem banheiro? Como se isolar se 3,22 milhões de pessoas vivem em coabitações, isto é, dividindo a mesma casa com mais de uma família? Como fazer home office se o trabalho informal é a fonte de rendimento de mais de 40% da população trabalhadora do país? Com o fechamento das escolas, crianças da periferia ficaram sem merenda, uma importante fonte de alimentação para elas; ao fazerem todas as refeições em casa, a pressão sobre o orçamento familiar aumenta ainda mais.
Quando se faz o cruzamento entre os números da desigualdade social e da população negra, transparecem os efeitos do racismo estrutural e da falta histórica de políticas de inclusão, que deveriam ter sido colocadas em prática desde os primeiros momentos pós-abolição da escravidão. Em 2015, negros e pardos representavam 54% da população brasileira, mas sua participação no grupo dos 10% mais pobres era muito maior: 75%. Pretos ou pardos estavam 73,5% mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que brancos. No Brasil, atualmente, cerca de 13 milhões de habitantes moram em favelas. É consenso entre as lideranças locais das maiores comunidades de São Paulo e Rio de Janeiro que as medidas propostas pelos governos estaduais e pelo Ministério da Saúde para conter a pandemia ignoram as periferias. As comunidades possuem grande densidade populacional, moradias pequenas e com muitas pessoas. São, em média, oito indivíduos compartilhando o mesmo espaço e não há como isolar os idosos. Se um pegar, os outros também vão adoecer. Além disso, a falta de água encanada e acesso a sabão e álcool gel prejudicam o controle da disseminação do vírus.
Diante desse cenário, as ações de contenção mais efetivas até agora surgiram dentro das próprias lideranças comunitárias e de ONGs a elas ligadas, como campanhas de arrecadação e distribuição de dinheiro, alimentos, água, máscaras e kits de higiene. Essas mesmas lideranças cobram dos governos medidas como programas de renda mínima, isenção de pagamentos das contas de água, luz e gás e locais para o isolamento de doentes menos graves.
O Estado falha no atendimento às populações em situação mais fragilizada, na criação de um programa de testes extensivo (capaz de detectar os doentes precocemente e, com isso, aumentar as chances de conter o contágio e oferecer tratamento no tempo certo) e no fornecimento de números confiáveis sobre a doença. A curva de contágio ainda está em ascensão e, devido à subnotificação, não se sabe ao certo o número de doentes e mortos até agora. Para as populações mais vulneráveis, o futuro, no momento, é uma grande angústia.
“Este contexto da Covid-19 me traz uma sensação de descontinuidade. Li, no ano passado, uma reportagem muito legal sobre o aumento do número de alunos negros nas universidades. Mas agora, quais estudantes têm condições de fazer ensino à distância? Vai surgir uma lacuna na educação novamente. Para mim, esse processo de descontinuidade é resquício da escravidão. Tenho a sensação de que o negro está sempre sendo tolhido, quebrado, sempre tem de se reinventar,”
Ester Lopes
bibliográficas REFERÊNCIAS
CELNIK, Nicolas. Afrofuturism: Decolonizing the Imagination. Paris: Esprit, fevereiro de 2019.
Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencianegra-numeros-brasil/
DERY, Mark. Black to the future: interviews with Samuel R. Delany, Greg Tate, and Tricia Rose. In: Flame Wars. Durham: Duke University Press, 1994. p. 179-221. KABRAL, Fábio. Afrofuturismo, o Futuro é Negro, o Passado e o Presente Também. Medium, março de 2016. SANTOS, Ale. Cangoma. In: Todo mundo tem uma primeira vez. São Paulo: Plataforma 21, 2019. p. 175-206. WOMACK, Ytasha. Afrofuturism: the World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture. Chicago: Lawrence Hill Books, 2013. IBGE: População negra é principal vítima de homicídio no Brasil. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/ibge-populacao-negra-e-principal-vitimade-homicidio-no-brasil/ Mais de 4 milhões de brasileiros não têm banheiro. Disponível em: https:// exame.abril.com.br/brasil/mais-de-4-milhoes-de-brasileiros-nao-tem-banheiro/ Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/rendimento-despesa-econsumo/9127-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios.html
reportagens
A era da escravidão. Disponível em: https://super.abril.com.br/especiais/a-erada-escravidao/
Registros de intolerância religiosa aumentam 22% no estado de SP. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/01/21/registros-deintolerancia-religiosa-aumentam-22percent-no-estado-de-sp.ghtml
Trabalho informal avança para 41% da população ocupada e atinge novo recorde, diz IGBE (G1). Disponível em: https://g1.globo.com/economia/ noticia/2019/08/30/trabalho-informal-avanca-para-413percent-dapopulacao-ocupada-e-atinge-nivel-recorde-diz-ibge.ghtml
Coronavírus: sem ação dos governos, periferias se organizam como podem. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/saude-e-ciencia/2020/03/ coronavirus-periferias-favelas-ocupacoes/
expediente
Istituto Europeo di Design (IED) Supervisor Acadêmico Geral: Stefano Carta Vasconcellos
Design Estratégico e Inovacão Coordenador: Francisco Albuquerque
Design Experimental Professor: Anderson Penha
DESPERTAR DO GUERREIRO
Coordenação das Equipes Camila Almeida, Ciro Koshiyama, Diego Fernandes, Hanna Amback, Lúcia Gurovitz
Arte Alessandro Camargo, Bárbara Wolff Dick, Bruno Lindolfo, Diego Fernandes, Frederico Zarnauskas, Helen Souza. Design do Book: Thaysa Torres
Cenografia Camila Almeida, Denise Ramos, Helen Souza, Júlia Rollemberg, Luiza Abubakir, Pedro Coivo, Roberta de Barros Barreto
Texto Caroline Hoth, Ciro Koshiyama, Danielle Eger, Flavia Hanczek, Hanna Amback, Lúcia Gurovitz, Pedro Coivo, Renato Casseb, Roberta de Barros Barreto, Thaiza Falcone
Produção Ciro Koshiyama, Flavia Hanczek, Johana Abreu, Silvia Maule
Demais Colaboradores Daniele Pereira, Enrico Movizzo, Rafael Buchalla, Renato Gaviolli
Agradecimentos Arlete Freitas, Bruno Macedo, Carla Andrade, Ester Lopes, Michel Cena7, Patricia Abòrisá, Silmara Alves