Desenho: Imagem-Pensamento

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Desenho: Imagem-Pensamento Thyer Machado



Thyer Machado Almeida Ribeiro

Desenho: Imagem-Pensamento Trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado ao Colegiado de Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Artes Visuais. Habilitação: Desenho Orientador: Maria do Céu Diel de Oliveira Belo Horizonte Escola de Belas Artes da UFMG 2014

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Introdução 11 Primeira Parte Da autonomia das imagens 17 Cadernos de desenhos 21 As colagens 25 Imitação, influência e tradição 29 Giacometti e eu 35 Interlúdio 41 Venezia 43 O ateliê e o caos 57 Por que criar imagens 65

Segunda Parte Notas 169 Referências 173

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O meu objetivo é criar o meu próprio mundo, e estas imagens que criamos não significam nada para lá das imagens que são. - Andrei Tarkovski

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Introdução

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Estes escritos foram resultado de uma série de reflexões e pensamentos sobre a imagem baseados essencialmente em minha experiência individual como jovem artista. Procurei comunicar através das palavras as minhas impressões sobre o ato de desenhar e sobre a criação artística de maneira geral. Desejei evocar na escrita uma atmosfera que complementasse meus desenhos, que sugerisse um movimento simultâneo e entrelaçado de palavras e imagens que se relacionassem em um só acontecimento. O presente trabalho foi estruturado em duas partes: na primeira concentra-se a maior parte do texto e na segunda reúnem-se os desenhos organizados entre epígrafes. Optei por incluir um número considerável de imagens, entre desenhos, colagens e páginas de caderno, de forma a melhor ilustrar o caminho percorrido por mim até aqui. Privilegio a forma visual de informação por ser uma linguagem com a qual considero ter tido maior prática e capacidade de articular os meus pensamentos. .

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Primeira Parte

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Um pintor que se dirige ao público, não mais para mostrar suas obras, mas para apresentar algumas ideias sobre a arte de pintar, expõe-se a vários perigos. Em primeiro lugar, sei que muita gente costuma encarar a pintura como uma dependência da literatura e por isso exige que ela exprima não ideias gerais, adequadas a seus meios, mas ideias especificamente literárias; por isso receio que o pintor que se arrisca no domínio literário venha a ser olhado com espanto. Com efeito, tenho plena consciência de que a melhor demonstração que um artista pode dar de sua maneira é a que resultará de suas telas. Henri Matisse

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Começo a escrita pelo meio, ou pelo final. Na metade do caminho volto ao início e depois releio todo o texto esperando que algum trecho tenha alguma ressonância na minha cabeça. Tudo parece desconexo e quebrado. Os espaços vão se acumulando entre os parágrafos, e cada um fala de coisas distintas. Os parágrafos começam a tomar forma em meio a abandonos e redescobertas. As palavras me surgem entre os silêncios do texto; os intervalos me interessam... A ideia de um momento intermediário e mágico paira sobre a minha cabeça desde que comecei a pensar neste trabalho. Aquilo que acontece entre uma linha e outra, ou entre os quadros de um filme. Ao me deparar com depoimentos e escritos de artistas, muitas vezes percebi que havia uma espécie de vão entre o que eles queriam fazer e o que a obra acabou se tornando, que em algum momento do processo estabelecia-se uma autonomia da imagem, algo que se dá exclusivamente durante o fazer. Fiquei muitas vezes surpreso ao acompanhar essa vida própria que emana das imagens...

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Às vezes quando estou desenhando a partir da minha imaginação, o que se revela no papel é algo completamente estranho e inesperado. Quando desenho retratos nesta maneira, os rostos parecem olhar-me e me provocar. Vejo olhos que me fazem perguntas e alguns deles me encaram com desdém. Observo imagens que se contorcem, fundem, sobrepõe-se e criam novas formas, cabeças, rostos e animais. Muitas vezes, é preciso abandonar o desenho por um tempo; em outros momentos ele parece-me tão cheio de exigências que sou obrigado a “termina-lo”, resultando sempre num excesso de linhas, criando um peso que enfraquece o conjunto. Perde-se a espontaneidade e a imagem passa me desagradar mais do que antes. Outras vezes, são esses mesmos confrontos estabelecidos com a imagem que fazem com que ela siga um caminho imprevisto, que acaba desvelando uma ideia ou imagem em que consigo reconhecer uma verdade. Penso que esse momento seja responsável por trazer à consciência algumas imagens que antes existiam apenas no plano mental.

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Os cadernos são uma companhia constante em toda a minha formação em desenho, desde os primeiros períodos da Escola de Belas Artes. O tamanho compacto permitia que eu carregasse sempre algum deles comigo; as imagens multiplicavam-se, e em poucos dias ocupavam dezenas de páginas numa sequência aleatória. Em algumas épocas o desenho se manifestou como uma compulsão. Durante esses períodos, os cadernos assemelhavam-se a diários visuais que registravam percursos, arquiteturas, pessoas na rua, conversas, referências a textos e anotações diversas. Nas épocas mais sombrias, escrevia desabafos e confissões, libertava pensamentos reprimidos e preenchia as páginas do caderno vertiginosamente em cada hora ociosa, a cada pensamento angustiante. Na medida em que o desenho se revelou capaz de exprimir-se com mais potência, a legibilidade destes escritos foi sendo gradativamente suprimida, pois a imagem foi então capaz de expressar o pensamento de forma mais densa e complexa: “Quando o pensamento é expresso numa imagem artística, isso significa que se encontrou uma forma exata para ele, a forma que mais se aproxima da expressão do mundo do autor”¹.

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Os cadernos permitem o registro despretensioso e imediato do pensamento visual; acessórios ao próprio olhar; são imprescindíveis para que a prática do desenho seja constante. Meu interesse pelos cadernos de artistas manifestou-se já no primeiro semestre da escola, estimulado em grande parte pelo Professor Antônio Signorini, com quem tive o privilégio de estabelecer um diálogo constante e enriquecedor durante toda a minha formação. Através dele tive os primeiros contatos com os cadernos e anotações de artistas, notadamente os de Leonardo. Os desenhos preparatórios e esboços para pinturas registrados nas cadernetas e papéis avulsos, os estudos de anatomia de seres humanos e animais, o mistério do Códice Atlântico e seus engenhosos projetos de máquinas impossíveis... Tudo isso me despertou para o grande potencial do desenho como uma forma elevada de conhecimento e investigação do mundo. Desenhar é uma forma de pensar.

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Fui levado a fazer colagens a partir das páginas dos cadernos, que já apontavam uma forma fragmentada de organizar a imagem nas composições em que sobrepunham-se diferentes elementos e planos; onde a palavra e o desenho misturavam-se. Senti a necessidade de incorporar alguns materiais que tinha acabado de descobrir. Naquela época, havia interrompido a habilitação em Artes Gráficas no meio do semestre e aguardava o início do próximo para recomeçar os estudos, então na habilitação em Desenho. Passei então a frequentar livremente o ateliê da Professora Maria do Céu, a quem fui procurar orientação sobre os meus desenhos. Sua acolhida generosa e suas impressões honestas sobre minhas imagens provocaram em mim um grande movimento interno, fundamental para que eu realizasse um grande número de desenhos experimentais que deram origem às colagens e aos desenhos com aguadas.

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No começo das minhas experimentações com a colagem, utilizei principalmente café, tinta e fitas adesivas. Interessava-me a aparência das manchas produzidas pelo café, e os primeiros desenhos consistiam basicamente em encontrar nelas figuras e formas. As manchas então se transformavam no preenchimento dos desenhos de linha que eram adicionados no entorno. Às vezes, quando identificava essas imagens nos borrões, manipulava-os adicionando um pouco mais de tinta. Quase não usava o pincel, pois me agradava lidar com a mancha do jeito que ela acontecia no papel – que afinal tinha sua autonomia apesar das tentativas de dar a ela uma direção. A fita era usada desde o início como elemento gráfico, e aos poucos se revelou capaz de criar planos, transparências e relevos. A palavra era pensada para ser parte da imagem. No início, breves escritos, frases e letras de músicas, que foram dando lugar às caligrafias feitas a bico de pena em gestos rápidos e vigorosos. Passei a incorporar fotografias encontradas, retalhos de papéis amarelados, documentos e selos antigos. Havia descoberto as velhas filatélicas do centro da cidade, onde era possível adquirir selos de várias épocas e lugares a poucos centavos, por serem parte de grandes tiragens e apresentarem características pouco apreciadas pelos colecionadores: a má conservação e as marcas de carimbos. Para mim, eram exatamente esses aspectos que os tornavam mais atraentes.

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Embora não despreze a grande importância da cópia como elemento de formação dos artistas, nunca me ocorreu copiar um desenho em sua configuração original e exata. Qualquer ideia de precisão ou esquema que estabeleça um resultado esperado na elaboração das imagens é algo que não me agrada. O artista pode ter muitas influências e conviver com uma profusão de obras e estilos variados, mas deve reconhecer em alguns poucos espíritos o seu próprio, através da catarse. Quando isto acontece, tais imagens passam a acompanha-lo para sempre. Quero incorporar em meu próprio universo algo da beleza das linhas nas águas-fortes de Rembrandt ou nas litografias de Giacometti, mas não tenciono olhar para uma imagem desses artistas e tentar copiá-la exatamente como ela se apresenta. Por isso penso que seja essencial que tal encontro se dê de maneira catártica, para que a força dessas imagens seja capaz de refletir naturalmente nas criações de quem nelas se reconheceu...

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“Tudo o que é grande nos modela, tão logo nos chega à consciência”, dizia Goethe². Mas existe o grande risco de ser oprimido pelas próprias influências; nunca sentir-se capaz de livrar-se delas para encontrar uma expressão individual. Isto é algo que assumimos quando nos aproximamos de certos artistas. É preciso lutar contra essa influência e isolar-se em si mesmo em busca de questões próprias – do contrário estaria meramente reproduzindo o artista anterior a mim, aquele que veio antes e produziu algo extraordinário e belo. Harold Bloom nos diz que o primeiro passo para a superação dessa influência é a leitura errônea; um desvio da obra do autor em questão³. Entendo que esse desvio comece na simples leitura de uma determinada obra, na qual obviamente se projeta o próprio sujeito, o leitor. Precisa-se então trilhar um caminho próprio. A partir isso consegui compreender todo o sentido e a importância da existência da tradição. “O poeta saberá o que deve ser feito se ele não viver apenas no presente, mas no passado presente” ⁴

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Para onde então eu poderia desviar-me, senão para dentro de mim mesmo? Confirmei a resposta na própria palavra “influência”, ao pesquisar sobre suas origens etimológicas: in fluere, fluir para dentro.

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Alberto Giacometti nos conta sobre o dia em que teve sua revelação. Numa sala de cinema, olhou para a tela e tudo o que viu foram pontos que se moviam. Olhou para as pessoas sentadas ao redor e se deu conta de que as estava vendo pela primeira vez. Ele vira todas as coisas então de uma maneira inteiramente nova; como se o mundo estivesse agora livre do véu que antes o cobria. Desde então se determinou a tentar registrar essa visão do mundo através de suas obras. Giacometti sabia que tal empreendimento estava condenado ao fracasso, mas para ele, não importava o sucesso. Era durante a busca que a verdade se manifestava.

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Os desenhos de Giacometti influenciaram-me profundamente em relação à maneira como construo a figura humana. Isso é mais visível nos desenhos de cabeças alongadas e cadavéricas, feitas com várias linhas sobrepostas. De uma forma mais geral acabei internalizando um jeito de estruturar as figuras, que a meu ver, guarda certa relação com o ato de esculpir e modelar. A matéria no papel se converte em linhas que desenham sombras, volumes e relevos.

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Começo o desenho de uma cabeça. Inicio com os contornos externos, definindo os diferentes planos do crânio, principalmente a testa, maçãs do rosto e as cavidades oculares, que são geralmente pensadas a partir da imagem do esqueleto, grandes buracos que servirão depois como referência para o posicionamento dos olhos. Faço as marcações iniciais em movimentos rápidos e circulares, como se estivesse meditando sobre a circunferência da cabeça e de cada plano que compõe a face. O nariz é começado também por uma forma circular, meio ovalada, posicionada no centro a partir do cálculo visual da distância entre os olhos, a boca e o queixo, que são traçados quase ao mesmo tempo em que são assinaladas tais proporções. Observo e registro os relevos da face, trazendo as partes mais elevadas para frente. Ao tentar traduzir tal maneira em verso, percebo quão intrincadas estão as atividades dos olhos, da mão e do pensamento. A mão trabalha subjugada ao olho, e a multiplicidade de linhas que se acumulam traduz uma espécie de tatear mental, que é próprio do processo de olhar e tentar apreender a forma de um objeto no espaço, adaptando sua presença e matéria para a bidimensionalidade do papel.

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Levanto os olhos do computador e encaro a parede. Observo a fotografia de uma catacumba, uma mulher de gesso de Giacometti, um bilhete de uma exposição de Antonioni com o rosto de Monica Vitti, um postal da laguna vista da Piazza San Marco, um desenho de uma asa, uma grande cabeça de múmia feita em pastel, uma colagem com fitas, manchas, caligrafias e um selo antigo. Uma bailarina de Degas descansando, um estudo para duas jovens camponesas de Gauguin, um bilhete de entrada para a Accademia de Veneza, uma página tirada de um caderno de desenhos com anotações ilegíveis, uma fotografia dos degraus que levam a um canal, uma colagem com dois insetos, o desenho de um porco, um bilhete para o duomo de Milão, uma camponesa de Rembrandt, um retrato de Carol à frente do Rio de la Toletta, mais bilhetes de trem, metrô de Milão, Berlim, ônibus em Florença, tram em Zurique, um bilhete para o vaporetto, uma amostra de perfume Chanel, uma pintura de Rubens, um desenho no verso de um documento, um estudo a lápis de cor, um pôster de Giacometti no Centro Pompidou, o mapa de Veneza, um cupom de supermercado, um postal medieval russo, “O mundo de Christina”, uma chapa de cobre que apoia-se entre a mesa e a parede. Uma múmia em trajes de camponesa parece sorrir-me com sua meia dúzia de dentes amarelados...

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Venezia

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Em 2013 fui agraciado com uma bolsa de estágio na Coleção Peggy Guggenheim de Veneza. Participei de uma concorrência internacional com o intuito principal de poder habitar a cidade. Depois de muito sonho e ansiedade, tive a chance de realizar enfim a minha primeira grande viagem, deslocando-me fisicamente no espaço. De acordo com Michel Onfray, “a viagem começa na biblioteca” ⁵... Por isso, embora estivesse há tempos atrás preparado minha leve bagagem e me lançado sobre as ruas, canais, cafés, pontes e monumentos, vislumbrei só então a oportunidade de transportar o meu próprio corpo e vivenciar os locais factuais que deram origem a tantas imagens e ficções que impregnaram meu olhar desde o início de minha atividade como artista. Embarquei em fevereiro daquele ano, embora houvesse há muito tempo viajado por meio das palavras, imagens e através da minha própria invenção.

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[Khan] - Então você deveria começar a narração de suas viagens do ponto de partida, descrevendo Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir nenhuma das recordações que você tem dela. (...) As margens da memória, uma vez fixadas com palavras, cancelam-se – disse Pólo. – Pode ser que eu tenha medo de repentinamente perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou pode ser que, falando de outras cidades, já a tenha perdido pouco a pouco. (CALVINO)

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Ao pensar sobre Veneza, sinto como se minhas memórias adquirissem tons mais vivos, como se essas reminiscências fossem mais reais do que os fatos vividos. Elas são, afinal, tudo o que me resta. As fotografias são traduções imprecisas, que revelam pálidas impressões que já não correspondem em nada às minhas. A imagem flutuante da cidade que paira sobre minha cabeça provoca um desejo irrefreável de retornar a ela. Penso que cada desembarque será como o primeiro, pois sinto-me como se tivesse voltado no tempo, a uma época anterior à viagem; como se ainda estivesse aqui fazendo as malas no anseio de encontrar um lugar que só existe na minha imaginação.

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Numa pequena caderneta, misturam-se os desenhos de observação e uns outros que fiz há pouco, de memória. As imagens que tenho mais nítidas agora são aquelas que vejo ao fechar os olhos. Encontro na literatura as evocações mais precisas de minhas experiências. Recordo-me das palavras de Brodsky, que ao narrar uma manhã qualquer de inverno, me traz aos sentidos o som dos sinos das igrejas, o frio molhado no rosto e o cheiro do café fresco: “No inverno você acorda nesta cidade, especialmente aos domingos, para o repicar de seus inúmeros sinos, como se por trás de suas finas cortinas transparentes um aparelho de chá de porcelana gigante vibrasse numa bandeja de prata no céu cinza-perolado. Você escancara as janelas e o quarto é instantaneamente inundado pelo exterior, neblina impregnada do repicar dos sinos, parte oxigênio úmido, parte café e parte orações.”

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A água no canal que reflete na parede do quarto de manhã, as algas que se desprendem dos degraus de mármore desgastado e brilham com os raios do sol num dia frio. Elas chacoalham com o passar dos barcos, que com seus ruidosos motores serpenteiam por entre as construções e passam sob as pontes. Os rostos dos turistas se misturam no grande fluxo de passantes, as vozes entrecortadas numa profusão de diferentes línguas e sotaques. Estou caminhando por um corredor estreito, junto à multidão de pessoas que se acotovelam e ultrapassam uns aos outros com seus pesados casacos. Furtivo, tomo um desvio pela esquerda passando por um corredor ainda mais apertado que me leva a um canal, uma pequena praça e finalmente um beco sem saída. De repente, cessam as vozes e desaparecem as pessoas. Enfim, o silêncio.

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Veneza se apresenta a mim neste momento com sua verdadeira face serena. A vida acontece no interior das coisas. Quantas casas visitei e quantos jardins observei através de portas semiabertas; todos encerrados dentro dos muros e portões. Nas ruas, não se veem árvores, e as poucas plantas surgem de pequenos vasos nas janelas e varandas. Por fora, as fachadas nos oferecem nada mais do que paredes apodrecidas e seus interfones com botões que parecem pequenos rostos assustados. Ora pelo atrevimento em esticar o pescoço - e até o próprio corpo – em direção ao interior das casas, ora por convite, entrei e pude assistir a pequenos episódios da vida privada dos venezianos. Há muitas pessoas fotografando varais pendurados nas janelas, por toda parte. Talvez fascinem tanto por oferecerem um vislumbre de intimidade. Ali sentado, abro o caderno e arrisco um desenho; em vão. Meu olhar é atraído por um movimento na janela do quarto andar, no prédio à frente. Surge uma senhora muito velha e gorda, que lá do alto se debruça sobre o batente da janela com os braços esticados para apanhar as roupas. Assisto com admiração o esforço hercúleo investido naquela tarefa tão banal. Findo seu penoso empreendimento, ela recolhe seus membros flácidos e dissolve-se na penumbra do apartamento.

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Sempre interessei-me pelos ateliês de artistas. O espaço físico que rodeia o artista reverbera de alguma forma em seu trabalho. Isso também acontece em um processo inverso. Lembro-me de observar com fascínio as imagens do ateliê de Francis Bacon em livros: como seria possível viver em um lugar assim? Ao mesmo tempo, seduzia-me a sensação de que ali eu poderia finalmente realizar qualquer coisa; e de que em todos os lugares que habitei havia qualquer espécie de censura. Eu queria ter um ateliê...

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No estúdio de Francis Bacon predominava a desorganização. Mal se podia caminhar nele, pois o piso estava completamente tomado por retalhos de papéis, panos, jornais, caixas de papelão, latas de tinta e toda sorte de acúmulos, incluindo restos de alimentos. A luz pareceu-me um tanto escassa para o ateliê de um pintor. Nas fotografias de pessoas, elas parecem diminuídas pela sujeira que as rodeia. É um lugar inóspito e apertado, incômodo a ponto de os olhos terem dificuldade em encontrar um ponto onde possam repousar. As únicas coisas que parecem contar mostrar algum traço de vida são as telas inacabadas e as várias marcas de tinta deixadas nas paredes e portas, usadas no lugar de uma paleta – como se a presença do artista pudesse ser melhor representada pelo rastro deixado pelo seu trabalho do que um documento fotográfico. Olhando para estas imagens deparo-me com a sensação de abandono, de um local negligenciado e esquecido, que guarda um mistério. Vejo o estranhamento que reflete na pintura. Imagino-me transportado para aquele local. Talvez eu me acostumasse a conviver com todos aqueles objetos numa harmonia disfuncional; e a presença de tantos ruídos fosse capaz de produzir em mim uma angústia que terminaria por alimentar as minhas imagens.

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O ateliê é um lugar que deve oferecer mais incômodo do que conforto; permitindo que o artista materialize as suas inquietações. O ateliê do artista é um local de excessos, um refugo temporário de ideias, imagens e objetos à espera de uma nova configuração. O caos é necessário para que se crie uma necessidade pungente de ordem. O espaço funcionaria como uma espécie de catalisador deste processo.

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Idealizei um espaço físico de criação onde o exterior pudesse ser uma projeção do caos que existe no interior da mente. Falo do ateliê como um espaço onde o artista convive com excessos; objetos e imagens que esperam que lhes seja dado um sentido. Isso pode ser entendido como um reflexo do processo mental de se criar imagens. Falo do ateliê como uma metonímia, um emblema para a atividade de criar que diz respeito à prática e à técnica. O meu ateliê é qualquer lugar onde eu esteja.

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Por que desenho? Sinto-me tentado a reproduzir as palavras de Calvino em uma de suas “Lições americanas”, ao falar sobre o mito de Perseu. É uma alegoria bonita para pensar o porquê de fazer imagens, e como elas podem servir para aliviar o fardo da existência. Contrariando todo o peso do mundo, o herói voa com as sandálias aladas para então enfrentar o monstro terrível cujo olhar transforma a todos em pedra. Para derrotar a Medusa será preciso encontrar uma maneira de olhá-la de forma indireta, através da imagem refletida no seu escudo polido. “É sempre na recusa da visão direta que reside a força de Perseu, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver, uma realidade que ele traz consigo e assume como um fardo pessoal”. Refugiei-me desde sempre em minhas imagens, um lugar onde imaginação e a loucura podiam conviver, onde podia falar o que quisesse sem ser ouvido. Nos momentos em que enfrentei as maiores dificuldades, o desenho foi capaz de materializar a minha angústia. Sinto que me fortaleci através das imagens que criei. Depois de decapitar a Medusa, Perseu toma a própria cabeça monstruosa como uma arma; que então se torna uma proteção contra seus inimigos. Foi através dos desenhos que consegui suportar melhor minha própria realidade, pois as imagens me ofereciam outros mundos possíveis, aliviando a própria necessidade de cria-las. Creio que produzimos imagens para ajudar a transformar as coisas horríveis em algo belo, para que também possamos então compartilhar com o outro essa imagem transformada, estes reflexos de monstros, criaturas e de nós mesmos; para que possamos olhar e nos emocionar, ver como o horrível pode ser belo se tivermos a força e a coragem de não desviar os olhos da realidade, e, no entanto manter sempre vivas as imagens dos nossos sonhos; lembrarmos sempre de nossa condição de humanos, mas sermos capazes de levitar apesar de todo o peso do mundo.

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“A arte deve trazer em si a aspiração humana ao ideal, deve ser uma expressão da sua caminhada em direção a ele. A arte deve oferecer esperança e fé ao homem. E, quanto mais desesperançado for o mundo na versão do artista, maior talvez a clareza com que devemos enxergar o ideal que se opõe a ele — de outro modo seria impossível viver!”

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Segunda Parte

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Não conheço arte que possa envolver mais inteligência do que o desenho. Quer se trate de extrair do complexo da visão a descoberta do traço, de resumir uma estrutura, de não ceder à mão, de ler e pronunciar dentro de si uma forma antes de escrevê-la; ou então de a invenção dominar o momento, de a ideia se fazer obedecer, se tornar precisa e se enriquecer com o que ela se torna no papel, sob o olhar; todos os dons da mente encontram seu uso nesse trabalho, em que aparece com não menos força toda a personalidade da pessoa, quando ela a possui.

Paul Valéry

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Sempre busquei a representação de uma espécie de caos organizado nos meus desenhos. O cerne da criação artística é a desconstrução da forma de perceber a realidade, fragmentando-a e reorganizando os pedaços para criar algo novo.

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A criação, pra mim, é tentar orquestrar o universo para compreender o que nos cerca. Mesmo que para isso usemos todo tipo de estratagemas que, no fim das contas, irão se provarcompletamente incapazes de neutralizar o caos.

Peter Greenaway

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Procuro o meu desenho no que está em volta. As coisas do mundo apresentam-se disfarçadas e traiçoeiras, sob camadas e truques de perspectiva. A ilusão do mundo visível revela aos meus olhos a matéria-prima a ser transformada pelo confronto com o meu próprio espírito. O que resultará disso se transformará quando a imagem for visitada pelo olhar alheio, se modificando novamente ao ser abandonada. A imagem é um olhar que pulsa e responde a outro olhar.

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Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente.

Rainer Maria Rilke

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O caderno guarda a memória da cidade que se faz e refaz continuamente. Pelo caminho reconstroem-se arcos, pontes e canais. Um lembrete, um desenho e uma rota rabiscada num pedaço de papel: são instruções para se chegar em algum lugar.

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O eu não se dilui no mundo, ele o colore, lhe dá formas. O real não existe em si, mas percebido. O que, evidentemente, supõe uma consciência para percebê-lo. Esse filtro pelo qual o mundo passa organiza a representação e gera uma visão. Por sua essência, o ser do mundo procede do ser que o olha. A viagem teatraliza essa operação metafísica, acelera essa alquimia. Ora, por detrás de cada fragmento destacado do mundo há um corpo que lhe confere a existência em geral e suas propriedades em particular.

Michel Onfray

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Em meu quarto, os cotovelos apoiados sobre os móveis velhos, todos emprestados. A noite chega numa marcha calma e ainda permaneço debruçado sobre os meus papéis. Fotos encontradas, selos e documentos antigos para compor um memorial de desconhecidos. De viagens que não fiz, cartas que não recebi...

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Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo: quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

Italo Calvino

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Estou em um calabouço úmido e observo a parede apodrecida. Na vitrola longínqua, o disco arranhado repete uma canção de blues americano. A claraboia gradeada deixa escapar fiapos de luz, deixando entrever toda a poeira acumulada no lugar. No chão frio de pedra espalham-se cadernetas e papéis cujos miolos foram amarelados e manchados pelo tempo.

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E difícil imaginar que um conceito como imagem artística possa ser expressado através de uma tese precisa, fácil de formular e de compreender. Não é possível fazê-lo, e ninguém desejaria que o fosse. Posso apenas dizer que a imagem avança para o infinito, e leva ao absoluto. Mesmo aquilo que se conhece como a “idéia” da imagem, em sua multiplicidade de dimensões e significados, não pode, pela própria natureza das coisas, ser colocado em palavras. Porém, encontra expressão na arte. A n d r e i Ta r kov s k i

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Notas 1 – Andrei Tarkovski em “Esculpir o tempo” (p. 122) 2 - Citado por Harold Bloom em “A Angústia da Influência” (p. 86) 3 – Harold Bloom, crítico literário americano que no livro “A Angústia da Influência” sistematiza uma teoria onde analisa a influência do Autor Forte e os estágios pelos quais o poeta passará até libertar-se dela. O “Autor Forte” seria a referência maior do poeta/artista; aquele para o qual ele se inclina sempre ao produzir algo. De acordo com Bloom, devem ser realizados seis movimentos para que se possa conviver melhor com essa influência. Meu contato com o trabalho de Bloom se deu através de uma pesquisa da Professora Maria do Céu que propõe a transposição da teoria para o campo das artes. 4 – (...) a tradição é um assunto de muito maior significância. Ela não pode ser herdada. Se existe no autor a pretensão de alcançá-la, será preciso muito esforço. A tradição envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico indispensável para qualquer um que continue poeta além dos seus vinte e cinco anos; e o sentido histórico envolve uma percepção, não apenas do passado que fora, mas do passado que permanece. O sentido histórico incita o indivíduo a escrever não apenas com o fluxo de sua geração em seu sangue, mas com o sentimento de que toda a literatura da Europa de Homero adiante e de que toda a literatura de seu próprio país existem simultaneamente e formam uma ordem simultânea. Esse sentido histórico é um senso de infinito, como também um senso do temporário e do infinito que o temporário emana. O escritor que tem essa percepção é um escritor tradicional e intensamente lúcido sobre o seu lugar no tempo e sua própria contemporaneidade.

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Nenhum poeta e nenhum artista de qualquer ofício produz sentido integral sozinho. Seu significado é a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos. Não se pode prezar um artista sozinho; deve-se confrontá-lo, por contraste ou comparação, com os mortos. Não se trata meramente de historicismo ou criticismo. Considero isso um princípio da estética. A necessidade que o artista deve se conformar e ser coerente não é unidimensional; o que acontece quando uma nova obra de arte é criada é algo que acontece simultaneamente a todas as obras de arte que a precederam. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal que é modificada pela introdução da nova (a realmente nova) obra de arte entre eles. A ordem existente é completa antes do surgimento das novas obras. Para que a ordem persista após a intromissão do inovador, a inteira ordem deve ser alterada, ainda que levemente. Consequentemente, as relações, proporções e valores de cada obra de arte diante do todo são reajustadas, e esta é a conformidade entre o velho e o novo. Quem quer que aprove essa ideia de ordem não considerará absurdo que o passado seja alterado pelo presente tanto quanto o presente é dirigido pelo passado. (T.S. Elliot, Tradition and the Individual Talent, texto retirado da internet) 5 - Michel Onfray, Teoria da viagem (p. 25)

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Referências ALMEIDA, Milton José. Cinema arte da memória. Campinas: Autores Associados, 1999. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. _________________. Cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHIPP, Herschel Browning. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ELIOT, TS. A tradição e o talento individual. Em: http://memoriaeidentidade.wordpress.com/2009/12/08/tradicao-e-o-talento-individual/ GIACOMETTI, Alberto. Paris sans fin. Paris: Buchet – Chastel: Les Cahiers dessinés, 2003. GOETHE, J.W., Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Editora Abril, 1999. KENTRIDGE, William. Fortuna. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2012. OLIVEIRA, Maria do Céu Diel. Encontros com gravadores. Campinas: Publit, 2007. ONFRAY, Michel. Teoria da viagem. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1995. SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. São Paulo: Cosac Naify, 2007. TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. VALÉRY, Paul. Degas, Dança, Desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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