A encruzilhada dos blocos no Carnaval de Salvador

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CARNAVAL

SALVADOR DOMINGO 3/3/2019

cudiu rques sa Bell Ma , ontem, à a Barra o bloco frente d ra Vumbo

Raul Spinassé / Ag. A TARDE

TATIANA MENDONÇA E VICTOR MELO*

Se o Carnaval de Salvador participasse do Desafio dos 10 anos, que movimentou as redes sociais no mês passado, espelharia uma mudança e tanto. De 2009 a 2019, os desfiles de blocos com cordas caíram pelo menos 62% no circuito Dodô (Barra-Ondina) e 57% no circuito Osmar (Campo Grande), de acordo com levantamento feito por A TARDE. O exemplo mais expressivo dessa retração no circuito Dodô pôde ser visto logo no primeiro dia de desfiles oficiais. Pelo segundo ano consecutivo, nenhum bloco com cordas saiu pelas ruas da Barra na quinta-feira, contra 16 em 2009. Já no circuito Osmar, há muito combalido, a diferença mais gritante se dará na próxima terça-feira. Em 2009, 12 grandes blocos e seus abadás passaram pelo centro. Neste ano, nenhum. A mudança na dinâmica da festa não implica na ausência das estrelas forjadas no Carnaval. Com exceção de Ivete Sangalo, que este ano se apresenta exclusivamente no Bloco Coruja (ontem, hoje e amanhã), os principais nomes do axé e do pagode baianos desfilarão pelo menos um dia para o folião pipoca na programação oficial, com custos pagos por patrocinadores ou pelo poder público. Há exatos 20 anos, Daniela Mercury deu início a este movimento. A artista sai pelo menos um dia sem cordas desde o Carnaval de 1999. Em 2011, foi a vez de Saulo Fernandes cantar pela primeira vez para a pipoca, baixando as cordas de um dos blocos mais tradicionais de Salvador, o Eva, que na ocasião comemorava três décadas. A partir daí, a iniciativa se multiplicou.

A atual encruzilhada e o futuro dos blocos que desfilam com cordas MUDANÇA Nos últimos 10 anos, redução do número de agremiações que vendem abadás revela declínio do modelo, mas há quem aposte no segmento como os afoxés, os blocos afros, os grupos de samba, os pequenos blocos". Outra consequência desse processo, diz Fantinel, foi o "reclame crescente" por uma festa mais inclusiva e democrática. "É a população que brinca o Carnaval na rua quem primeiro começa a tensionar essa corda hegemônica que deu as cartas durante quase 30 anos". O desconforto da segregação cresceu na proporção da popularização da festa de rua de outros estados, como

Alfredo Filho / Secom / PMS

Os principais nomes do axé e do pagode baianos desfilarão pelo menos um dia para o folião pipoca

“Cansaço”

A pesquisadora Caroline Fantinel, que estuda o Carnaval de Salvador, acredita que há um "cansaço" no modelo de negócio do bloco de trio. "Foi um modelo hegemônico que cooptou uma criação cultural super potente como a axé music e fez disso um grande negócio. Ao mesmo tempo em que isso propagou o Carnaval de Salvador, aumentou as desigualdades na festa, com a visibilidade quase exclusiva para as estrelas da axé em detrimento de outros importantes grupos culturais,

São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Para o empresário Pedro Tourinho, que costuma escrever sobre a festa e este ano trouxe ao Carnaval Major Lazer, o modelo corda-abadá está "datado". "Não funciona mais. O Carnaval que mais cresce no país é o de São Paulo, que não tem isso. O do Rio também não tem corda. Então, é um modelo que não faz mais sentido, de segregação econômica, comercial". Outros dois pontos explicam o declínio, na opinião

A San Folia, braço do grupo San Sebastian, comercializa este ano quatro blocos direcionados à comunidade LGBT

de Tourinho: a questão fonográfica e o custo de manutenção dos blocos. "A Bahia não tem mais artistas de grande sucesso fonográfico como tinha há 15 anos, o que é um atrativo a menos. Como a indústria do axé music caiu, diminui esse apelo. E é muito caro fazer bloco de corda. Como a maioria da receita hoje vem de patrocínio, é melhor você patrocinar a atração e não ter todo custo de responsabilidade, de segurança, para montar um bloco para três, quatro

mil pessoas". Ehá, especialmente,os patrocinadores que preferem destinar recursos diretamente a quem "gere a festa" do que a um ou outro bloco, como lembra Fantinel. "A prefeitura cresceu o alcance da captação de patrocínio da iniciativa privada. Hoje grandes marcas preferem dar o dinheiro para quem gere a festa, porque assim a visibilidade da marca será muito maior". Neste cenário, o poder público acaba bancando em

Out, com O Blow Leitte: Claudia do e ta segmen dás b a com a s o esgotad

grande medida a permanência dos grandes artistas na festa, com trios sem cordas. Um movimento, que na opinião de Fantinel, precisa ser revisto. "É fundamental que a presença das grandes estrelas seja garantida no Carnaval. No entanto, considero um equívoco que seja o poder público a fazer isso, a destinar um montante de verba considerável para a contratação de artistas que possuem maior facilidade de captar patrocínios diretamente com as marcas. Elas que assumam esse custo". Mas nem tudo é crise no mundo dos blocos de cordas. Muitos premanecem com um público fiel, formado por fãs ardorosos de determinado artista ou voltados para grupos específicos, como o público LGBT. "São pessoas que preferem pagar o abadá para estarem mais juntos do que para ter a segurança de uma corda", analisa Tourinho. Criada em 2018, a San Folia, braço do grupo San Sebastian, comercializa este ano quatro blocos direcionados especialmente para a comunidade LGBT (Crocodilo, Blow Out, Coruja e O Vale). Na quinta-feira, apenas o Crocodilo ainda tinha abadás disponíveis. Os demais estavam esgotados. Um dos sócios da central de vendas, André Magal, diz que as vendas cresceram 40% em relação ao ano passado. Para Magal, muitos blocos perderam espaço por prestar um "desserviço". "Blocos muito cheios, abadás de má qualidade... E aí a gente entrou nisso para ver se conseguia melhorar essa estrutura". Animado com os resultados, ele já está pensando em aumentar o número de blocos. "A gente quer criar mais um ou dois para o Carnaval do ano que vem". Ao contrário de Magal, Tourinho imagina o Carnaval daqui a 10 anos sem blocos e abadás. "A corda acaba, graças a Deus. O Carnaval está indo para um modelo muito mais livre". Fantinel aposta num caminho parecido para o Carnaval de 2029. "Certamente continuará sendo nossa maior festa, a mais bonita, a mais rica em diversidade cultural, sempre aberta a novidades e um espaço de trocas. Torço, apenas, para que a sua transformação seja no sentido de ser menos desigual do que é hoje". * SOB A SUPERVISÃO DO JORNALISTA MARCOS DIAS


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