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SALVADOR DOMINGO 8/10/2017
Mentiras
SINCERAS
Texto TATIANA MENDONÇA tatianam@gmail.com Fotos RAUL SPINASSÉ raulspina@gmail.com
Questionar as dimensões da irrealidade cotidiana em que vivemos mergulhados pede uma estratégia, no mínimo, irreverente. E foi bem assim que o fotógrafo Paulo Coqueiro investiu contra a caretice reinante nas redes sociais com uma inusitada mistura de roubo, perseguição e fama. A exposição Não Minta para mim, em cartaz no Palacete das Artes, conta esta história
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fotógrafo baiano Tito Ferraz está desaparecido desde janeiro deste ano. Em uma das suas últimas postagens no Facebook, contou que seu apartamento no Rio Vermelho tinha sido arrombado e seus HDs, destruídos por completo. Lamentava a perda de fotografias de uma vida inteira. O texto curto vinha acompanhado por imagens de um dos discos danificados, extraídas de um vídeo encaminhado pelos arrombadores. Alguns dos seus cinco mil amigos na rede social compadeceram-se do ocorrido. Houve quem sugerisse que procurasse a polícia, houve quem contasse um casoparecidoparailustrarquetudopassa.“Fotoagente faz tudo de novo e melhor. Pior é perder um olho”, aconselhou um colega. Tito, que viajava o mundo trabalhando para a prestigiada agência Reuters, agradeceu o apoio. “Vou sair hoje dessa toca, tomar uma cerveja no final do dia e, sim, o melhor que faço com isto tudo, nesse momento, é registrar um BO. Abraço a todos!”. Depois disso, não se soube mais dele. Um fiapo de notícia veio alguns meses depois, num comentário do também fotógrafo baiano Paulo Coqueiro. Ele contou ter participado da perícia policial para apurar a autenticidade das imagens de um dos HDs encontrados. Algumas das fotografias foram recuperadaseestãonoprojetoNãomintaparamim,em cartaz no Palacete das Artes, na Graça, ao lado de reportagens de jornais que falam sobre a investigação do caso, documentos pessoais de Tito, livros que mostram a importância da sua obra e depoimentos em vídeo de colegas seus. Um memorial muito comovente, sombrio, triste, não fosse o fato de que Tito nunca existiu. Não existe. O personagem foi criado por Paulo há dois anos, como um meio de discutir a “crise de representação” da fotografia, do que seja de fato a verdade documental atribuída à imagem, amparada numa credulidade crescente por parte de quem vê. Pensou que a internet seria um bom suporte para a sua investigação e criou o perfil de Tito no Facebook. Começou a adicionar fotógrafos baianos e a utilizar estratégias de credibilidade, como ir a um evento da área e postar fotos dos livros assinados. Tito foi ganhando materialidade. Houve quem questionasse em mensagens privadas a foto do seu perfil, o icônico retrato do escritor Albert Camus feito por Cartier-Bresson, e a essas pessoas Tito, quer dizer, Paulo, respondia que era como ele estava se sentindo nos seus trabalhos no exterior, um estrangeiro, saudoso de voltar à Bahia. Nesse período, Paulo também visitou cerca de 40 fotógrafos baianos para entrevistá-los sobre questões concei-
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tuais do projeto, discutindo a relação entre fotografia e verdade e as possibilidades de trabalhar com ficção na fotografia. E lá pelas tantas perguntava se conheciam Tito, se tinham notícias dele. Queria testar o “poder das imagens em forjar verdades” justamente com aqueles que vivem de produzi-las. Depois disso, Paulo fez Tito desaparecer. Seguiu construindo sua narrativa fora da internet, apropriando-se de referências do cinema e da fotografia. Produziu as imagens periciais da investigação policial, as reportagens de jornais sobre o caso do fotógrafo ameaçado, seus álbuns de família e documentos pessoais. O retrato do RG de Tito foi feito utilizando imagenssuperpostasdepartesdorostodosfotógrafosentrevistados. Narizes de uns, olhos de outros. Reuniu todo o material em dois fotolivros que homenageavam a trajetória e legado de Tito, um deles prefaciado peloartistaeteóricoespanholJoanFontcuberta–que, sim, existe, mas, não, nunca escreveu aquele texto. Defensor de que toda fotografia é uma manipulação, capaz de que Joan gostasse de ver-se metido ali. Foram justamente esses dois livros que Paulo levou para apresentar no Fórum Latino-Americano de Fotografia, que aconteceu no ano passado, em São Paulo, e no Festival Internacional de Fotografia de Porto Alegre, em maio deste ano. Em Porto Alegre, foi premiado com uma participação na Trienal de Hamburgo, na Alemanha, no ano que vem. Em 2018, ele também levará a obra para exposições na Argentina e Uruguai. “É um projeto que chama muita atenção porque é a vida das pessoas. O tempo inteiro a gente está sendo enganado. Atribuímos uma certa neutralidade à fotografia, mas as imagens sempre têm um posicionamento sobre o mundo”. A obra também transformou Paulo no primeiro vencedor baiano do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger, criado em 2002 e promovido pela SecretariadaCulturadoEstado(Secult).Elefoipremiado com R$ 30 mil na categoria “trabalhos de fotografia de livre temática e técnica”, e foi aí que pensou em dar umcarátermaisexpositivoaoprojeto.Nãomintapara mim integra a imperdível mostra coletiva da premiação, que fica em cartaz até 12 de novembro. Paulo soube de um diálogo curioso que aconteceu por lá outro dia: enquanto a moça responsável pela limpeza do espaço garantia que aquilo tudo não era real, o monitor batia o pé de que Tito tinha sumido mesmo, estavam ali as provas. O texto de apresentação do projeto dá o spoiler de que Tito é um personagem. Quando foi ver a exposição, a fotógrafa Valéria Simões tomou um susto. Foi uma das entrevistadas para o projeto, mas confessa que na época não sabia di-
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reito do que se tratava. “Ele conseguiu guardar segredo até o último minuto. Achei fantástico, surpreendente, genial. É um trabalho de fotografia que questiona a própria fotografia. É muito interessante que o prêmio tenha valorizado esse outro formato, para além da fotografia documental, tradicional”. Amiga de Tito nas redes sociais, Valéria lembra de ter interagido com ele numa postagem em prol de um museu de arte contemporânea no Pará. Em nenhum momento achou aquela figura esquisita ou questionou a sua existência. “Acreditei de cabeça”, ri. “É incrível como a gente está vulnerável. Essa experiência me deixou mais esperta”. O fotógrafo Álvaro Villela, também entrevistado por Paulo, correu para o Facebook depois de visitar a mostra. Foi ver se era amigo de Tito, e era. Mas não chegaram a conversar, porque o achou “estranhinho”. Álvaro não se sentiu enganado pelo projeto, mas homenageado. Para ele, Paulo reverenciou a cena baiana de fotografia ao retratar e conversar com seus expoentes, construindo a imagem de Tito à semelhança deles. Também impressionou-se com o modo original com que Paulo trouxe a ficção para a fotografia, envolvendo pessoas e instituições reais. “Imagine que Tito Ferraz foi aceito para o museu da fotografia baiana. O nome dele está lá, e eu também estou”, ri. Ele se refere ao Espaço Pierre Verger da Fotografia, no Forte Santa Maria, na Barra. A comissão que organizou o espaço recebeu informações de que Tito Ferraz era conhecido fora do país e acabou incluindo seu nome numa lista de fotógrafos baianos. Paulo explica que antes da exposição no palacete conversou com os curadores responsáveis, indicando que eles poderiam retirar a referência a Tito, se quisessem. Mas prevaleceu o entendimento de que seu nome representava ali “a ideia de invenção ou crença coletiva”, conta Paulo.
CRUZADA A trajetória fragmentária e cênica de uma arte que surpreende pela subversão da realidade
Durante sua cruzada para mostrar como a fotografia é um instrumento de fabricar realidades, a realidade pregou uma peça em Paulo. Em julho deste ano, a BBC publicou uma reportagem sobre o fotógrafo brasileiro Eduardo Martins, que tinha mais de 100 mil seguidores no Instagram e dizia trabalhar para a ONU. A história era floreada com elementos tocantes: Eduardo teria superado abusos na infância e uma leucemia antes de se tornar fotógrafo de guerra, com passagens pelo Iraque e Síria. Nas redes sociais, ele publicava reproduções de páginas de jornais importantes, como o The Wall Street Journal, que teriam utilizado fotos suas. Mas, assim como Tito Ferraz, Eduardo Martins não existia.
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A própria BBC desvendou o caso em nova reportagem publicada em setembro. Eduardo era um fraudador. Roubava imagens que encontrava na internet, fazia pequenas alterações nelas e as revendia para agências internacionais. Quando leu a história, foi a vez de Paulo tomar susto. Ficou com medo de que botassem os dois casos, crime e arte, no mesmo balaio. A preocupação o impediu de ver o episódio como uma promoção para sua própria obra, um atestado de sua premência. Paulo já está trabalhando num outro projeto, também ficcional, onde imagina um mundo alastrado por uma praga, do qual só teríamos notícias por meio de fotografias “não humanas”, feitas por equipamentos. É como agrônomo que ele ganha a vida. A fotografia o acompanha desde pequeno, quando andava com uma inseparável câmera Kodak. A produção seguiu doméstica até 2011, quando começou a participar de salões de fotografia com propostas mais estruturadas, conceituais. No decorrer desse percurso, acabou se interessando mais por questionar a fotografia em si do que desenvolver um trabalho marcadamente documental. Inscrevem-se nessa busca dois ensaios que estão no Espaço Pierre Verger da Fotografia. Um deles é Diplopia, surgido a partir de um problema de visão que acometeu Paulo por três meses, fazendo com que visse tudo duplicado e turvo. Em meio à bateria de exames para identificar o que tinha, começou a fotografar como se o desconforto que sentia fosse uma técnica. A princípio, só queria passar para as pessoas o modo como estava enxergando, mas depois reparou que o trabalho serviuparaquerepensasselimitestradicionaisdefocoeenquadramento,ampliandooqueentendiacomobelo.OoutroensaioéGuardados,noqualfotografoucerca de 50 pessoas com mais de 80 anos repetindo poses de quando eram jovens. O trabalho foi feito em Boa Nova, no centro-sul da Bahia, onde Paulo nasceu. “Era uma época onde a fotografia era rara e contemplativa. Hoje, é instantânea e descartável. As pessoas não têm mais tempo de olhar as imagens, só têm tempo de fazê-las”. Tito Ferraz, onde quer que esteja, haveria de concordar com Paulo. «
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Detalhes da exposição Não minta para mim: os vestígios de uma ficção
MOSTRA DO PRÊMIO NACIONAL DE FOTOGRAFIA PIERRE VERGER
Palacete das Artes, Graça. Até 12/11 (ter. a sex., das 13h às 19h; sáb., dom. e feriados, das 14h às 18h). Tel. 71 3117-6987
No meio do caminho A sexta edição do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger reverenciou três fotógrafos com trabalhos bem distintos. Além da obra ficcional do baiano Paulo Coqueiro (Não Minta para mim), foram premiados o pernambucano Gilvan Barreto, com o contudente Postcards From Brazil, na categoria inovação e experimentação, e a paulista Ilana Bar, com a poética Transparências de Lar, na categoria documental. As imagens produzidas por Gilvan são entremeadas por retângulos brancos, tais quais trechos censurados. O artista mapeou paisagens naturais que serviram de cenário para crimes da ditadura, mostrando o tanto de dor que há nos nossos cartões postais. Ilana, por sua vez, registrou de maneira afetuosa o cotidiano da sua família. Ela tem um irmão e dois tios com Síndrome de Down. A mostra coletiva da premiação também reúne trabalhos de 12 artistas, selecionados pela comissão julgadora. Destaque para Lebará – Força Feminina, do baiano Vinicius Xavier, e para o projeto Marrocos, do duo paulista Gringo Coletivo. «