Coletivo canal*MOTOBOY

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Coletivo canal*MOTOBOY


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Coletivo canal*MOTOBOY O nascimento de uma categoria Org. Eliezer Muniz dos Santos

Autores Andréa Sadocco, Augusto Astiel Bruna Bo, Eliezer Muniz (Neka) Fábio Ascempcion, Marcelo Veronez Ronaldo Simão da Costa

Programa Petrobras Cultural

Apoio


Copyright © 2010 Eliezer Muniz dos Santos COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL) organização HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA consultoria ECIO SALLES produção editorial CAMILLA SAVOIA projeto gráfico CUBICULO COLETIVO CANAL*MOTOBOY produtor gráfico SIDNEI BALBINO designer assistente DANIEL FROTA revisão BEATRIZ BRANQUINHO MARINA VARGAS revisão tipográfica CAMILLA SAVOIA tradução do prefácio DIOGO DE HOLLANDA

C658 Coletivo canal*Motoboy: o nascimento de uma categoria / autores Andréa Sadocco... [et al.] ; org. Eliezer Muniz dos Santos ; [tradução do prefácio em espanhol por Diogo de Hollanda]. - Rio de Janeiro: Aeroplano, 2010. il. - (Tramas urbanas) ISBN 978-85-7820-039-8 1. Motoboys - São Paulo (SP) - História. 2. Profissões - São Paulo (SP) - História. I. Sadocco, Andréa. II. Santos, Eliezer Muniz dos. III. Programa Petrobras Cultural. IV. Série. 10-1573.

CDD: 331.71098161

12.04.10

20.04.10

CDU: 331.54(815.61) 018551

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AEROPLANO EDITORA E CONSULTORIA LTDA AV. ATAULFO DE PAIVA, 658 / SALA 401 LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 22.440-030 TEL: 21 2529-6974 TELEFAX: 21 2239-7399

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A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sempre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar ou autorizar a produção cultural dos artistas que se encontram na periferia por critérios sociais, econômicos e culturais. Faz parte da percepção de que a cultura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportunidade de ter sua voz. No entanto, nas últimas décadas, uma série de trabalhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgânicos, profundamente conectados com experiências sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias assume contornos biográficos de um sujeito ou de um grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas condições socioeconômicas e da afirmação cultural de suas comunidades. Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais, criativas, sustentáveis e autônomas, como são exemplos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase desta coleção. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a continuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas experiências novas formas de responder a questões culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como diz a curadora do projeto, “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Petrobras - Petróleo Brasileiro S.A.



Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da periferia se impõe como um dos movimentos culturais de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçável dicção proativa e, claro, projeto de transformação social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores nas práticas que atualmente se desdobram no panorama da cultura popular brasileira, uma das vertentes mais fortes de nossa tradição cultural. Ainda que a produção cultural das periferias comece hoje a ser reconhecida como uma das tendências criativas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugural, sua história ainda está para ser contada. É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse novo capítulo da memória cultural brasileira. Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afetiva ao direito da periferia de contar sua própria história. Heloisa Buarque de Hollanda


Dedico este livro a minha família e a todos os profissionais motociclistas brasileiros.

Um agradecimento àqueles que possibilitaram a realização deste livro, em especial àqueles que lutaram comigo ao escrevê-lo. Eleilson Leite, Alessandro Buzo, Heloisa Buarque, Júlio César, Keila Muniz, Andréa Sadocco, Antoni Abad, Augusto Astiel, Bruna Bo, Ronaldo Simão da Costa, Marcelo Veronez, Jordana Peretti, Roberto Ito, Fábio Ascempcion e meu filho Lucas.


Sumário Prefácio

Antoni Abad

Introdução

São Paulo, a cidade dos motoboys – Eliezer Muniz dos Santos

Parte I

O NASCIMENTO DE UMA CATEGORIA

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Cap.01

Uma breve história da categoria – Coletivo Canal*Motoboy

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Cap.02

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Cap.03

No espelho retrovisor – Augusto Astiel Cultura motoboy – Eliezer Muniz dos Santos

Parte II

OS MOTOBOYS E AS MOTOGIRLS

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Cap.01

Meu nome é Ronaldo

104

Cap.02

Andréa Motogirl

122

Cap.03

Poeta dos Motoboys

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Cap.04

Fábio, motoboy

142

Cap.05

Jordana

158

Cap.06

Neka

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Índice de Imagens

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Sobre o autor


Prefácio

Há aproximadamente sete anos chegaram ao mercado os telefones celulares com câmera integrada. Este dispositivo despontava como um instrumento excepcional, pois tinha duas características nunca antes reunidas em um aparelho tão pequeno: de um lado, a possibilidade de registro multimídia de fragmentos da realidade em formato de áudio, vídeo, foto e texto; de outro, a capacidade de publicação quase imediata na Internet. O celular com câmera integrada estreita ao máximo, portanto, a distância entre uma ideia e sua disseminação. E a publicação a partir de celulares alcança um ambiente global, como a internet, e não um ambiente local. A publicação na internet é barata, além de praticamente imediata. Desde as minhas primeiras visitas a São Paulo, também há sete anos, o universo dos motoboys chamou fortemente a minha atenção. Segundo o censo de 2000, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a cidade de São Paulo contava naquele ano com cerca de 10,5 milhões de habitantes. Dentre eles, e de acordo com a tese de doutorado “Percepção e avaliação da conduta dos motoristas e pedestres no trânsito: um estudo sobre espaço público e civilidade na metrópole paulista”, de Alessandra Olivato, havia 374.588 motociclistas, dos quais cerca de 160 mil eram motoboys. O

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congestionamento do tráfego e as enormes distâncias fazem do motoboy um personagem imprescindível para o funcionamento da cidade, onipresente em cada semáforo e cada esquina. A utilização dos seus serviços é profusa e generalizada. Transportam de tudo: documentos, dinheiro, pizzas... Dizem que até mesmo órgãos humanos entre hospitais. Arriscam a vida diariamente, circulando a toda a velocidade pelos corredores formados entre as intermináveis filas de carros. Entretanto, esses cavaleiros do apocalipse do asfalto paulista são vítimas de graves preconceitos. Nas notícias sobre eles, a imprensa sensacionalista destaca as vertiginosas corridas contra o tempo ou os casos em que assaltantes se fizeram passar por mensageiros para perpetrar seus delitos. Os motoboys aparecem nos meios de comunicação paulistas quase sempre em histórias truculentas, que potencializam os piores preconceitos na percepção social da categoria. Em contrapartida, poucas vezes se enfatiza o lado mais positivo desse coletivo, que demonstra um sentimento de solidariedade muito particular, uma consciência corporativa que antepõe o socorro a um companheiro acidentado à urgência de uma entrega. O citado estudo de Olivato comenta: “Observamos a existência de um sutil código de ética e solidariedade entre eles no trânsito, fato esse de que nem os próprios motoboys tinham se apercebido.” Diante disso, indaguei-me o que ocorreria se uma rede móvel celular, com publicação em tempo real na Internet, fosse gerada a partir de uma rede humana preexistente como a que formam os motoboys. Ou, o que vem a ser o mesmo: o que aconteceria se um grupo de motoboys recebesse celulares com câmera com o objetivo de criar seus próprios canais multimídia na Internet. Poderiam, dessa maneira, transformar-se em cronistas


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da sua própria realidade, autorrepresentando-se e corrigindo a imagem distorcida que os meios de comunicação projetam deles. Assim, em 2003, em estreita colaboração com o programador Eugenio Tisselli, realizamos um primeiro esboço operacional do dispositivo de telefonia móvel para publicar conteúdo na Internet. Quando ficou pronto, o esboço foi “testado” em um workshop com um grupo de estudantes na Casa Encendida, de Madri. Eugenio ficou programando ao vivo, corrigindo as falhas e implementando os recursos de narrativa multimídia que se mostravam necessários com a prática. A experiência se chamou ensaio* GERAL e serviu para assentar as bases tecnológicas, organizacionais e logísticas desse dispositivo de comunicação social baseado em tecnologia móvel audiovisual que funcionou como um alto-falante para todos os coletivos com que eu trabalharia nos anos seguintes: taxistas na Cidade do México (2004), jovens ciganos em Lleida e León (2005), prostitutas em Madri (2005), imigrantes nicaraguenses em San José da Costa Rica (2006), pessoas desalojadas e desmobilizadas na Colômbia e jovens dos acampamentos de refugiados saarianos próximos a Tinduf, na Argélia (2009). Dois desses projetos foram realizados por pessoas com mobilidade reduzida – em Barcelona (2006) e Genebra (2008). Os participantes utilizaram telefones GPS com câmera integrada para fotografar os obstáculos e as barreiras arquitetônicas que encontravam diariamente nas ruas, desenhando em tempo real na Web o plano de acessibilidade de suas cidades. O projeto canal*MOTOBOY – que me inspirou, sete anos atrás, a começar o trabalho que desde então desenvolvo na Internet com o uso de aparelhos de telefonia móvel em diferentes coletivos – teria de esperar até 2007


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para ser realizado, devido às enormes dificuldades para obter os recursos necessários, pois poucas instituições dispõem-se a apoiar um universo como o dos motoboys, que padece de enorme estigma social. Finalmente, com o apoio do Centro Cultural São Paulo, do Centro Cultural de España e da Sociedad Estatal para la Acción Cultural Exterior de España, conseguimos iniciar, em 2007, as transmissões por celular de um grupo de 12 motoqueiros de São Paulo. Três anos depois, as transmissões continuam a ser feitas e o canal* MOTOBOY é o que tem o percurso mais longo entre todos os projetos mencionados neste texto. Os motoboys estão propondo um mapa distinto, uma interpretação particular da enorme cidade de São Paulo, e não apenas mediante seus vídeos, suas fotografias e seus arquivos de áudio e texto, mas através de um sistema de geolocalização implantado no dispositivo e de um mapa lexicográfico. Nos projetos anteriores ao canal* MOTOBOY, os emissores colocavam seus envios em canais personalizados ou ambientes comuns propostos nas reuniões semanais dos participantes. Quando o trabalho com cada coletivo terminava, toda essa informação era organizada segundo um sistema de descritores concebido por um grupo de sociólogos. Mas no caso dos motoboys – pela primeira vez – são eles mesmos que categorizam seus envios. Hoje, observamos os cruzamentos que se produzem no léxico entre a descrição da realidade imposta e antropológica e outra mais íntima e local. Os motoboys foram também os primeiros a experimentar o conceito de “megafone”: um telefone móvel comunitário dotado de GPS e que integra as capacidades de registro audiovisual geolocalizado e de publicação imediata na Web do software desenvolvido em www.megafone.


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net. O megafone muda de mãos toda semana entre os participantes, que decidem democraticamente em suas reuniões editoriais qual deles será o emissor durante a semana seguinte. Em suma, os participantes do canal*MOTOBOY vêm desenvolvendo durante três anos seu próprio dispositivo de comunicação móvel audiovisual na Internet. Mas também contribuíram generosamente com sua experiência para o desenvolvimento do megafone, um dispositivo útil como meio de comunicação alternativo para grupos, coletivos, associações e comunidades que desejem se organizar para projetar sua própria visão da realidade e combater os estereótipos que os meios de comunicação difundem, incluindo entre suas possibilidades a geolocalização, que permite realizar projetos de cartografia pública digital. Obrigado, amigos motoqueiros, por estes anos de entrega ao projeto e pelas expectativas de futuro, pelas quais continuaremos a trabalhar em www. megafone.net. Vida longa ao Canal*MOTOBOY!

Antoni Abad, Barcelona, janeiro de 2010


Introdução

São Paulo, a cidade dos motoboys Todos os dias, milhares de motoboys saem pelas ruas e avenidas da cidade. À noite, durante dia, no frio da madrugada. Eles vão, vêm, cruzam o asfalto. Passam pelas vielas e avenidas: é a cidade dos motoboys. Aceleram suas motos, cruzam para todos os lados, nunca param. Ditam o ritmo da metrópole e fazem de sua rotina diária a paisagem urbana. São Paulo sem motoboy para. Saberemos um dia quantos são? Mensageiros, motoqueiros, deliveries e couriers. Motoboys e motogirls. Homens e mulheres, manos e minas. Todos profissionais motociclistas, enfim, guerreiros do asfalto. Cidade em que não se sabe onde começa uma quebrada e termina outra (os mais ricos só sabem que elas existem de uma poltrona de avião), onde estão suas margens e periferias? O motoboy é a rua da quebrada, o beco e a viela na grande avenida. É a adrenalina com responsabilidade. O vento na cara é o passaporte para outra urbanidade. Eles vieram para ficar. Ocupar o espaço reservado e exclusivista dos automóveis. O motoboy é a cara da cidade, uma das suas identidades mais subterrâneas. É a velocidade com que se


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descobre que, entre civilizados de terno e gravata e os caras de botas e capa de chuva, pode ocorrer tanto o maior respeito quanto a maior falta de respeito pela vida humana. Que o mesmo cidadão que pede o serviço urgente, pode, às vezes, num piscar de olhos, dar uma fechada no trânsito. O que mostra também que a cidade não tem limites: às vezes, na correria do dia a dia, a carcaça de um carro pode ser a última parada de um motoboy. Pra ser motoboy é preciso estar atento. Estar além do tempo. Os motoboys são a cara da cidade; a cidade pode parar, eles não. Pode chover e alagar que eles chegam. Se cai a ponte, eles atravessam. São insubstituíveis. Impossível narrar o cotidiano de um único motoboy. Imagina de todos! A vida na cidade é cheia de aventuras e mazelas. Comandas e ordens de serviço convivem com o inusitado. É uma profissão marcada pelo alto risco de acidentes e pela informalidade. Mas é também na rua, hábitat natural do motoboy, que podemos ouvir seu último grito de liberdade. A buzina que toca no corredor quando um motoqueiro passa é mais do que um aviso de passagem. A capa de chuva, o capacete colorido e a moto adesivada são suas marcas, mas o que os une é a solidariedade. Seu olhar percorre toda a cidade. Seus movimentos rápidos entre os carros deslocam os olhares. Quando esses motoqueiros se propõem a narrar seu dia a dia e criam seu próprio modo de se expressar pela música, pelos gestos, pela linguagem, vemos surgir a força de seu imaginário, um outro fazer, uma parte de sua cultura. Portanto, este livro é um protesto organizado por vozes de resistência. Um manifesto dos motoboys e das motogirls, que não podem ser vistos apenas pela singularidade de sua sobrevivência no caos do trânsito. Suas vidas não se reduzem à mera particularidade de serem


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tomados como mais uma tribo urbana: eles têm seus códigos, seus gestos e sua bravura. Seus valores, seus versos e suas prosas. Assim, a cultura motoboy nasce pela via da autonomia, a partir da expressão criativa, da liberdade dos profissionais motociclistas em contar suas próprias experiências, transformando sua história, no cotidiano da metrópole, em uma grande narrativa. Nesse sentido, este livro realiza sua intenção quando, motivados pela negação de uma visão de categoria marginalizada, eles se tornam os protagonistas de sua própria história e se põem a narrá-la, saindo em defesa da criação, do surgimento de uma nova cultura urbana, e transformando o cotidiano de toda uma cidade. Abrem-se à vida cultural a que têm direto. O ato de narrar, como um gesto simbólico, representa aquele momento em que eles tiram os capacetes, revelando em sua realidade a fisionomia cansada de pessoas comuns, mas por isso mesmo heroicas. A ideia de um livro assim só pode nascer quando um grupo de profissionais motociclistas, reunidos em torno de um projeto cultural como o canal*MOTOBOY, percebe que suas vivências nada mais são do que a própria história do surgimento de sua categoria profissional. Dessa forma, em vez de adotar outras experiências como modelo de organização cultural e política, essa categoria vive hoje um dos mais interessantes processos coletivos de organização social. Quando inventa os seus próprios meios e a partir dos seus espaços e tempos mostra sua capacidade de criar o inusitado, nunca se rendendo as soluções fáceis, podemos compreender a sua especificidade e a sua autonomia. Ao entrarmos em contato com suas narrativas, aos poucos conhecemos suas histórias, trajetórias e preocupações. Passamos a conviver com personagens que apontam para uma nova relação


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com a cidade. Portanto, mais que uma nova classe de trabalhadores, vemos surgir uma nova cidadania, ainda em formação. Como tão bem definiu a motociclista Andréa, que faz parte desta coletânea e nos faz compreender o papel desse novo personagem urbano: “O motoboy é protagonista participante contribuinte do novo século, desta nova sociedade que surge cheia de tecnologias e desafios ambientais. Fundamentalmente, contribui com a sociedade, fazendo desenrolar com rapidez (as muitas) burocracias civis, abrindo um novo horizonte para uma nova cidadania.” Eliezer Muniz dos Santos (Organizador)


PARTE

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breve hist贸ria da categoria


Cap.01

Uma breve hist贸ria da categoria


Se fizermos aqui um breve relato da história da categoria dos motoboys, descobriremos que é uma profissão relativamente nova no Brasil. As primeiras empresas a contratar office-boys motorizados começaram a operar no início da década de 1980, com pouco mais de meia dúzia de motoqueiros. Em menos de duas décadas, por conta da crescente demanda por esse tipo de serviço, eles se tornaram uma das maiores categorias de rua do país. A profissão de motociclista – atividade remunerada que consiste no uso da motocicleta para execução de diversas tarefas, como entregas e retiradas de documentos, cheques, malotes, medicamentos, alimentos e todo tipo de pequenos volumes e componentes que demandem certa urgência – surgiu na onda da globalização e do fortalecimento do setor de serviços. Entrou definitivamente na cadeia produtiva da economia a partir 1988, quando a nova Constituição legitimou a terceirização dessas atividades no setor de serviços. No final daquela década já havia dezenas de empresas e mais de 5 mil motoqueiros rodando por dia nas ruas da cidade de São Paulo. A partir de 1994, com o Plano Real, a economia se estabiliza e a demanda por esses motociclistas cresce exponencialmente, chegando a mais de 80 mil profissionais em 1999, quando pela primeira vez a prefeitura de São 22


Uma breve história da categoria

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Paulo tenta regulamentar a profissão de motoboy. Entre 1999 e 2006 haveria ainda mais duas tentativas frustradas de regulamentar e enquadrar os profissionais motociclistas, em seguidos decretos-lei criados pelos gabinetes dos prefeitos Celso Pitta – que assinou o primeiro decreto –, Marta Suplicy, em 2004, e José Serra, em 2006. Todos partindo de um mesmo objeto de lei, copiado, ipsis litteris, de um antigo projeto de Lei de 1968, que regulamentou o serviço de táxi na capital paulistana. No início de 2007, 1,2 milhão de motos são fabricadas no Brasil. A categoria já superava a marca de 120 mil profissionais motociclistas apenas na capital de São Paulo. No país inteiro, os mototaxistas se tornavam uma realidade. Em maio do mesmo ano é inaugurado no Centro Cultural São Paulo (CCSP) o canal*MOTOBOY, projeto que reúne um grupo de motoboys que utilizam celulares a partir de um site na internet, o que permite criar um canal de comunicação com a categoria. Em junho, depois desse coletivo de motoboys solicitar à presidência da Câmara Municipal uma audiência pública a fim de voltar à discussão de uma regulamentação da categoria que atendesse suas reivindicações, o prefeito Gilberto Kassab envia à Câmara dos Vereadores o malfadado “Decreto do motofrete”, recusado durante anos pelos motoboys. A Câmara aprova, em regime de urgência, o projeto de lei nº14.491/07, de “autoria” do vereador Adolfo Quintas e, trinta dias depois, o prefeito recebe de volta o projeto na prefeitura e o sanciona. Em agosto, após a eleição de uma nova diretoria, o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado de São Paulo volta para as mãos da categoria. Após inúmeros projetos de lei tramitarem no Congresso Nacional, no dia 29 de julho de 2009, o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, assina a lei que regulamenta definitivamente a profissão de motoboy e


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mototaxista. Os profissionais passam a ter regras claras para a atividade, que serão definidas pelo Conselho Nacional de Trânsito, passando às prefeituras municipais a responsabilidade de regularizar os serviços de acordo com a necessidade de cada região. A sanção põe fim à polêmica em torno da legitimidade do serviço de motoboy e mototaxista, em relação aos quais havia um grande preconceito. O senador Expedito Júnior, relator do projeto de lei 203/2001 do Senado, que propôs a regulamentação das profissões, comenta, em tom de comemoração, durante o ato que criou a classe dos profissionais motociclistas: “Esses profissionais esperam por esse momento há mais de dez anos. É justo que agora consigam ver sua atividade regulamentada. São mais de 2,5 milhões de pais de família que agora podem bater no peito e dizer que têm uma profissão.” Coletivo canal*MOTOBOY



Cap.02

No espelho retrovisor



Um espectro ronda o trânsito — o espectro do motoboy. Há anos ele vem desaparecendo em meio aos carros, os donos por direito do espaço não tão público das ruas e avenidas da cidade. O espelho retrovisor dos automóveis revela a imagem fugaz de um personagem cada vez mais presente. Invasor de um espaço restrito, o motoboy burla códigos e normas para suprir uma demanda de mercado. Desobediente, mostra como a falta de regulamentação acarreta problemas para um país que se considera pacífico, mas não enxerga seus mortos diários. O motoboy devolve a imagem que se faz dele, pois é sua única maneira de ser visto: personagem que não se enxerga nem se escuta, mas que se quer disciplinar, o Leviatã das relações de trabalho tenta seduzi-lo com a oportunidade de ser “autônomo”. E transforma-o em “autômato”. Por ser uma relação com apenas uma via de visibilidade, ao motoboy é dado um papel que alguns abraçam com prazer: o delinquente sobre rodas que nada obedece nem respeita. Da natureza simbólica da moto nasce o mito do fora da lei que chuta sua própria imagem no espelho. A invisibilidade do motoboy pode se transformar quando um invade o espaço do outro. Alguns sabem disso e invadem com vontade. De aparecer. De conflitar. Não obedecem as regras, pois não fazem parte do jogo. Os demais

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No espelho retrovisor

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profissionais que arriscam a vida diariamente carregando documentos, valores, ofícios, correspondências e outras parafernálias do nosso cotidiano burocratizado, são, desse modo, agrupados à revelia em uma categoria, como sempre acontece nessa construção cotidiana chamada sociedade. O que foge à categorização transformase em caricatura. E a caricatura é uma imagem sensibilizada pelo personagem criado apesar da pessoa. Hoje há milhares de motoboys em meio ao tráfego pesado da cidade. Os corredores de ônibus espremeram os automóveis, mas garantem o transporte dos periferizados até os centros de trabalho, otimizando o tempo de quem tem que chegar antes e sair depois. Os tempos distintos dos mais diversos trabalhadores assim se cristalizam. O espaço também: corredores segregados imitam a separação metafísica entre quem pega ônibus e quem usa carro, ao mesmo tempo em que sedimenta a opção da cidade por sua geografia excludente. Dos depósitos de mão de obra barata, entretanto, surge um rebelde por natureza: a moto, que penetra o espaço que não lhe é de direito, ágil, rebolando entre os automóveis habitados por quem precisa que determinadas coisas sejam feitas em determinado tempo. Ou mais rápido, de preferência. Os eternos trabalhadores invisíveis, que constroem sem aparecer, pois seu espaço restringe-se ao lugar da produção e não da fruição, sobre a moto tornam-se incômodos, pois desafiam o olhar atento do motorista — atento com o outro no carro e não com seu empregado na moto, pois ver o outro significa, primeiro, encaixá-lo em um discurso. A invisibilidade de alguém pressupõe a inexistência desse alguém dentro do ordenamento social. Mas a invisibilidade muda historicamente: do escravo aos trabalhadores miseráveis de Engels na Manchester do século XIX, e ao motoboy todos têm sua existência condicionada à posição social. E esse olhar condicionado, regra na sociedade desigual, é


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forçado a enxergar quem nunca viu: primeiro como incômodo, depois como estatística. Inverte-se então o dito de Marx: assim como o serviçal submisso vira marginal para depois morrer, o motoboy é primeiro farsa para depois tornar-se tragédia. Entretanto, apesar de como é retratado no enredo dos romances policiais dos tabloides televisivos diários, o motoboy é um trabalhador. No imaginário nacional, isso significa ser o oposto de “bandido” — que é nosso “vagabundo”. O motoboy trabalha e morre, ou trabalha e se acidenta, pois, como numa guerra, para cada morto aparecem três feridos: clavículas quebradas, joelhos torcidos e pernas amputadas são parte das estatísticas, assim como as 365 mortes anuais — ou 366, se o ano for bissexto. Daí a equação simbólica que não fecha: não é bandido, é trabalhador. Mas morre. Fica o incômodo de algo que não se explica. Algo que não se entende. Como uma sociedade pode conviver com um espectro desses rondando sua civilidade? Apesar de a morte ser o destino humano, o convívio diário com sua real possibilidade pode revelar a falta de capacidade da sociedade em gerir bem-estar. As categorias profissionais cujo discurso é perpassado pela fatalidade mostram valores diversos para a vida humana: parece que, tal qual a geografia “política” da cidade, que circunscreve em um “centro expandido” seu gueto de civilidade, o acesso ao conforto e às oportunidades é demasiado restrito. Quem se percebe excluído dessa parcela de civilização pode optar por não partilhar de seus princípios, resignando-se diante da fatalidade ou rebelando-se: a morte na fila de um posto de saúde ou na esquina de uma avenida torna-se um fato da vida ou fica implícita no slogan que fala da opção por ser outsider: “vida loka”.


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A civilização do trabalho intelectual tem tradição de rejeitar as tarefas musculares, braçais. Tais tipos de atividade foram continuamente rebaixados à medida que o processo histórico foi tomando o rumo do intelecto, que domava a natureza e a sobrepujava — colocando-a a seu serviço —, distanciando-se da sujeira e do suor, separando-se cada vez mais de sua origem e, assim, manifestando o orgulho do caminho percorrido. E, com a história, segue o rumo do olhar. O motoboy, nesse ponto, é o final de uma complexa cadeia produtiva: ele é o responsável pelo último parafuso de uma grande máquina. Seu trabalho o obriga a relacionar-se com as ruas e avenidas continuamente, exposto à fumaça e à fuligem, ao suor e à sujeira — que não penetra nos automóveis, essas carapaças herméticas de conforto regulado, fetiche do homem moderno. A natureza da motocicleta é outra, daí seu apelo não conformista. Mas, sujeito do ordenamento social, a moto como veículo para o lazer é diversa da moto para o trabalho: a sociedade não aceita o conformismo em seu seio tão facilmente. Ela restringe ao lazer — o período do não trabalho merecido após as horas regulamentares —, ou a outro tipo qualquer de regulação, seus rompantes de originalidade. A moto também está mais próxima do risco que o carro: os dispositivos de segurança desenvolvidos ao longo dos anos — que tornam os automóveis cada vez mais seguros e caros — dão ao homem a possibilidade de viver cada vez mais próximo do limite. Se os carros mudaram muito, as motos, no entanto, mudaram pouco, devido aos limites de sua própria concepção. O risco físico fica ao encargo de quem a ele se sujeita, como no caso de inúmeros outros trabalhos essenciais à sociedade que, por lidarem com o que se considera “degradante” — pois contrário à norma que valoriza a distância dos subprodutos ou da infraestrutura da máquina social —, são


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reservados às classes mais abaixo da pirâmide. A sociedade, em suma, deve operar como “por encanto”, magicamente, funcionando sem produzir detritos de qualquer espécie. O “encanto” é assegurado pelo olhar que ignora quem lida com o indesejável, ato agravado em uma sociedade historicamente segregada, cujo ideal de igualdade de direitos é apenas retórica, uma ideia “fora do lugar” — é o que fica aparente no trato da valoração da vida humana, que possui índices diferentes conforme se aproxima do centro geográfico da metrópole. Aqui, igualdade e autoconsciência unem-se para dizer que consciência e democracia não se separam. No “centro expandido”, a morte ganha destaque, mesmo que seja pela força dos números. O motoboy acidentado aparece nos noticiários graças ao agravamento do trânsito de uma cidade cujas veias não suportam mais a seiva que transportam. O motoboy, que agiliza serviços e encurta prazos, atrasa a rotina da cidade quando sai de sua rota invisível. Nesse ponto, ele passa a ser visto. Vira assunto no jornal. Leis são feitas para ele. Umas “pegam”, outras viram moeda de troca entre os representantes do poder e quem a ele deve se submeter. Outras simplesmente desaparecem. Leis em um país de apenas alguns cidadãos carecem de eficácia. Leis são elementos públicos, mesmo em um país em que as calçadas são mosaicos desarranjados da privacidade dos imóveis que invadem o espaço público das ruas. A falta de normatização é a carência de um projeto unitário, o que incentiva a criação de mais leis para tentar normatizar o caótico, provocando a ingerência em relação às coisas mais básicas. Chega-se, então, às normas que impõem roupas padronizadas, com fitas luminescentes, para que o motoboy seja visto. Acessório indispensável por ser mundialmente aceito como eficaz, ele esbarra na questão de que a invisibilidade do motoboy não é um problema de regras de trânsito, mas de organização social. O olhar é educado para não ver. O olhar cria. Sobre o motoboy


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incide o olhar que vigia. Esse olhar não dá oportunidade ao observado de se pronunciar, pois vigia segundo suas próprias normas. Ele visa à adequação a um sistema, em um discurso que viabiliza e reforça ordenamentos previamente estabelecidos. Cabe então ao olhar deseducado a tarefa de observar e se surpreender. O olhar estrangeiro é aquele que não participa do conjunto de normas específicas que regula o passeio momentâneo dos olhos. O turista descobre o que o nativo não vê, pois o encaixa em outro sistema simbólico de valores — ou não encontra lugar definido para encaixar, e aí fica a surpresa do inusitado. A curiosidade do estrangeiro devolve imagens que muitas vezes não vemos. Por isso o estrangeiro pode ser perigoso, pois com seu olhar desestabiliza toda uma construção social. Nesse ponto, o motoboy é o estrangeiro eternamente presente no trânsito da cidade. É o indivíduo que não deveria aparecer; invisível, deveria cumprir sua missão civilizatória e retornar ao gueto, como outros milhões, diariamente, mundo afora. Resta saber em que mundo vive esse estrangeiro, ou em que mundo ele pensa viver. Da união de estrangeiros surge a oportunidade de dar ao “motoboy” o controle de seu discurso. Capturando as imagens de seu cotidiano, o “profissional do motofrete” pode mostrar o que vê da maneira como sente, tornandose visível além da mera estatística. O indivíduo sob o capacete de “motociclista” pode mostrar quem é, o que vê e o que quer nas imagens que produz. Para além do herdeiro do antigo office-boy, o novo personagem cotidiano que ronda o trânsito em sua moto pode, finalmente, começar a produzir sua própria caricatura. Augusto Astiel Neto


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p.03

ltura motoboy


Cap.03

Cultura motoboy


Em um excelente artigo publicado em 2008 no site do Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique e intitulado “A Revolução Cultural dos Motoboys”, o historiador e ativista social Eleilson Leite revelou uma surpreendente visão do universo dos motoboys paulistanos que participavam da 1ª Semana de Cultura Motoboy, realizada em maio daquele ano no Centro Cultural Popular da Consolação. Sempre tendo em mente o contexto em que surge a figura do motoboy, segue o material em versão impressa: A revolução cultural dos motoboys Um evento em São Paulo, um site inusitado e dois filmes ajudam a revelar a vida e a cultura desses personagens de nossas metrópoles. Sempre oprimidos, por vezes violentos, eles vivem quase todos na periferia, são a própria metáfora do caos urbano e estão construindo uma cultura peculiar. “Termina neste sábado, 17 de maio, a 1ª Semana de Cultura Motoboy. O evento começou na última segunda-feira, no CCPC — Centro Cultural Popular da Consolação —, e a programação conta com muita música, intervenções, mostra de filmes e oficinas, entre outras atrações. Durante a semana, as atividades rolaram sempre à noite. No sábado, tudo começará à tarde, com workshops e show de encerramento a partir das 20h, varando a noite.

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A realização desse evento é tão surpreendente quanto oportuna. Fomos habituados a ver os motoboys apenas como um bando de malucos que desafiam as leis da física e os limites do próprio corpo nos estreitos corredores das avenidas da metrópole. E a maioria da população, sobretudo os motoristas, nutre uma antipatia em relação a esses mensageiros de moto. Para muitos, é difícil ver o ser humano por trás do capacete. Por outro lado, é um fenômeno tão recente que os estereótipos são compreensíveis em função da falta de informação e reflexão sobre o perfil desse tipo de profissional. É chegada a hora de darmos atenção ao que eles pensam e desejam. Eles, que arriscam a vida diariamente para atender à pressa que temos para entregar documentos, comer pizza, tomar remédios, entregar flores, receber o jornal — ou seja, socorrer-nos na maluquice que virou a vida nos centros urbanos, em especial São Paulo. O aumento exponencial dos motoboys causa perplexidade. Nos últimos dez anos, saltaram de cerca de 50 mil para um número estimado de 300 mil, só em Sampa. Embora não haja estatísticas seguras, estimativas apontam um número que pode chegar a 500 mil em toda a região metropolitana. Quanto mais inviável o trânsito, maior a demanda pelo tipo de serviço que esse profissional realiza. É uma categoria que surge em função do caos provocado pelos congestionamentos. No ritmo em que a indústria automobilística vem produzindo, a perspectiva é de que tenhamos mais e mais motoboys pela cidade. Sem que percebamos, estamos cada vez mais reféns desses mensageiros. Há quem diga que uma greve de motoboys causaria mais prejuízo a São Paulo do que uma greve de ônibus. Vivendo nos corredores das grandes cidades, os motoboys são a tradução explícita da alegoria de Brecht: um rio cuja violência das águas é produto da opressão das margens que o comprimem. Mas existe uma cultura motoboy? Pensando na cultura como a construção simbólica de uma coletividade, cuja expressão revela sua identidade, comecei a refletir sobre essa questão. E é intrigante analisar o que é afirmação de identidade para


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esse grupo. Conversando com alguns deles, sobretudo os mais antigos, percebi que há uma rejeição ao próprio nome. A definição motoboy popularizou-se em virtude do caso do Maníaco do Parque, bandido que, em meados da década de 1990, passando-se por um fotógrafo de agência de modelos, atraía jovens garotas para a densa mata do Parque do Estado, onde estuprava e matava suas vítimas. Esse caso causou uma indignação maior do que a que assistimos hoje no caso Isabella Nardoni. O nome motoboy, portanto, surgiu estigmatizado. E, para piorar a situação, nos últimos anos estatísticas policiais revelaram um grande aumento do número de assaltos praticados por ladrões com uso de motos. Não é fácil a vida de motoboy e motogirl. Ralam em condições de trabalho para lá de precárias, insalubres e periculosas, para obter uma remuneração que vai de R$ 250,00 a, no máximo, R$ 1.200,00 (casos raros). Ainda têm que aguentar o preconceito. Os caras e minas têm uma jornada de trabalho que pode chegar a 16 horas, em três serviços diferentes. Alguns deles começam às quatro da madrugada, entregando jornal até as sete da manhã. Depois, vem o expediente básico na agência de motoboys ou numa firma qualquer, até seis da tarde. Cruzam a cidade e, na periferia, onde a maioria mora, ainda complementam a renda entregando pizza, ali mesmo pelo pedaço. Esse trampo noturno é dos mais ingratos. Normalmente, ganham uma diária de R$ 15,00 e mais R$ 1,00 por pizza entregue. Ou seja, se fizer 15 entregas em uma noite, receberá R$ 30,00. Essa realidade e muitos outros dramas (e delícias também) da vida desses profissionais estão no brilhante documentário Motoboys Vida Loca, de Caito Ortiz, uma produção de 2003, que foi premiada na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo naquele ano. O belo filme 12 Trabalhos, do cineasta Ricardo Elias (De Passagem), também ajuda a entender o coração que bate embaixo da jaqueta do motoboy. O filme conta a história do jovem Heracles, que, saído da antiga Febem, tenta recomeçar sua vida trabalhando com moto-frete. Embora ficcional, a produção, de 2006, revela o perfil de um motoboy com enorme sensibilidade.


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A cultura motoboy é um produto do contexto social em que vive esse profissional. Sendo esse contexto caótico, urgente e tenso por natureza, não há como essa cultura não expressar a paisagem urbana que lhe serve de cenário. O motoboy e a motogirl são a própria metáfora do caos urbano. São, ao mesmo tempo, heróis e bandidos em uma cena cujo protagonista não é o ser humano, mas o veículo motorizado —carro, moto, ônibus ou caminhão. São a expressão de um dos lados da luta fratricida pelo espaço público. Cada metro quadrado de asfalto é defendido por motoqueiros e motoristas como se dele dependesse sua vida, seu destino. Vivendo nessas artérias que são os corredores das grandes avenidas, os motoboys acabam sendo a tradução explícita da alegoria de Brecht: um rio cuja violência das águas é produto da opressão das margens que o comprimem. Roupa, moto adesivada, solidariedade entre si e procedência periférica são elementos da cultura motoboy. Mas há algo menos evidente: a semântica. Eles e elas construíram uma linguagem própria. Contracenando nesse caos, o motoboy é parte dessa confusão, e sua afirmação enquanto grupo é carregada de contradições. Quem ele é fora do front? Ele leva para sua casa e sua comunidade toda essa adrenalina do dia a dia do trampo? O filme de Caito Ortiz é muito feliz ao desconstruir estereótipos. Há uma motogirl de 44 anos que pede para que o destino lhe reserve um acidente fatal. Assim, ela se livraria da dor que foram a perda do filho, morto aos 18, a separação do marido e o afastamento da filha, que resolveu casar e sumir. Ronaldo, outro personagem real do filme, contradiz a percepção que temos do motoboy. Empregado com carteira assinada e salário de R$ 1.200,00, ele tem 34 anos e não tem pressa. Faz o trampo na boa e no final do dia chega em sua quebrada e é recebido em casa pela mulher e o casal de filhos. Já o Gavião, garoto de 20 e poucos anos, é “cachorro loco” – denominação usada na periferia para aquele motoqueiro arrojado, ousado, que atrai a atenção das minas com suas loucuras ensaiadas. Ele adora ser motoboy porque gosta da adrenalina do trânsito. Parece um “sem destino”, um sujeito que não responde a ninguém que não seja ele próprio, ostentando a máxima segundo



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a qual, se morrer em cima da moto, “morre feliz”. Que nada. Mora com a mãe, que lhe prepara o café da manhã com carinho, reclama da roupa suja e das unhas malcuidadas do filhinho e todos os dias reza para “arrumar um emprego decente”. A diversidade revelada pelo documentário Vida loca nos coloca a indagação: Teriam os motoboys, enquanto categoria, um sentimento de pertencimento que desse um conteúdo cultural a sua afirmação? Fiz essa pergunta a Eliezer Muniz, o Neka, um dos fundadores do canal*Motoboy, coletivo que organiza a Semana de Cultura Motoboy. Segundo ele, há vários elementos comuns que criam uma identidade. A roupa, a moto adesivada, a solidariedade entre eles, a procedência periférica e a classe social são alguns desses elementos. Mas Neka destaca outro aspecto muito interessante e talvez menos evidente: a semântica. O motoboy e a motogirl construíram uma linguagem própria. Expresso quase totalmente pela oralidade, esse vocabulário agora pode ser lido pelas narrativas dos motoqueiros que integram o canal*Motoboy na página (www.zexe.net/saopaulo) que mantém na internet. São dez motoqueiros que se juntaram por iniciativa do artista plástico catalão Antoni Abad no projeto artístico Motoboys Transmitem de Celulares, realizado durante três meses, no primeiro semestre de 2007, no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Cada um deles recebeu um celular de alto padrão tecnológico com conexão à internet. Enviaram fotos e textos para o site, revelando sua percepção sobre a vida na cidade. Antoni desenvolveu experiências semelhantes com prostitutas em Madri, imigrantes nicaraguenses na Costa Rica e taxistas na Cidade do México. Está tudo lá, no mesmo site. Lendo as narrativas, no site, nos surpreendemos com relatos do drama vivido pelos motoboys, mas também nos divertimos com a comunicação entre eles. São repórteres privilegiados. A realização desse trabalho teve o apoio do Centro Cultural da Espanha. Durante e após o término da exposição no CCSP, o grupo atraiu diversos parceiros, entre eles a Cidade do Conhecimento, da USP, o Instituto Socioambiental (ISA) e


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a Ação Educativa. Vale a pena navegar pelo site. Lendo as narrativas, nos surpreendemos com relatos do drama vivido pelos motoboys, mas também nos divertimos com a comunicação entre eles. Percebemos uma preocupação com a cidade e nos chocamos com os acidentes que às vezes são noticiados. O motoboy é um repórter privilegiado. E essa produção rápida de notícia, feita por quem sabe bem o que é urgência, tendo um veículo midiático ao alcance, certamente está produzindo um indicador muito interessante e revelador do que pode ser a cultura motoboy. A Semana de Cultura Motoboy e o canal*Motoboy estão dando uma contribuição enorme ao entendimento acerca da vida dessa gente tão batalhadora quanto estigmatizada. A capacidade de articulação do grupo tem produzido parcerias muito interessantes. A aproximação com o ISA vem possibilitando o engajamento do motoboy em questões ambientais urbanas das mais relevantes. Você sabia que um motoboy utiliza, em média, 3 litros de óleo por mês e que esse resíduo vai, na maioria dos casos, para o esgoto? Segundo o ISA, cada litro de óleo contamina 1 milhão de litros de água. Você pode imaginar 900 mil litros de óleo contaminando a água? Por outro lado, o contato com a Ação Educativa está pautando a questão do letramento entre os motoboys e suas dificuldades de leitura e escrita. A Cidade do Conhecimento está proporcionando capacitações em mídia digital. Ou seja, há um movimento em torno de um pequeno grupo de motoboys que pode produzir uma grande revolução na categoria. Muitas outras iniciativas estão rolando e ainda dá tempo de entrar em contato com o canal*Motoboy e participar de seu evento. Apareça nesse sábado no CCPC e você mudará seu conceito em relação ao motoboy. Eleilson Leite, “Caderno Brasil” do Le Monde Diplomatique em 17/05/2008.

Para esse reconhecido programador cultural e coordenador do Espaço de Cultura e Mobilização Social da ONG Ação Educativa, a partir de agora não é mais


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possível olharmos para os motoboys de uma forma limitada. Mesmo que possamos considerá-los mais uma tribo urbana, sua presença e seus modos de sentir estão atravessados por uma trama de significados que nos leva a nos perguntar: Como podem ser pensadas suas manifestações culturais? Figura urbana por excelência, morador da periferia e presente todos os dias nos veículos de comunicação, Eleilson me indagou sobre o que são os motoboys. “Existe uma cultura motoboy?” O que pensam esses caras? O que é ser motoboy? No início de 2008, no pavilhão do Centro de Convenções Imigrantes, durante um evento voltado para o segmento de motoboys e mototaxistas chamado Motoboy Festival, tivemos a oportunidade de conhecer o grupo musical CR 13 MC’s, que, naquele momento, estava em alta com seu refrão “Ei, cachorro louco”, presente no CD 125 motivos de correria, lançado por eles naquele ano. O líder e cantor do grupo, Junior 13, nos procurou. Conversando com os motoboys do canal*MOTOBOY, pediu para que cedêssemos uma parte do pequeno estande que ganhamos no evento para que expusesse o CD do grupo. Durante aqueles quatro dias, tivemos o prazer de compartilhar com os músicos e outros motoboys que participavam do evento uma fraterna parceria de ideias e trocas de experiências. Nosso estande transformou-se, assim, em um caldeirão cultural, com distribuição de catálogos do canal*MOTOBOY e adesivos, muitas fotos e vídeos produzidos ali e expostos no site do nosso projeto. Além, é claro, de brindes e vendas do CD do grupo. Entre conversas e discussões surgiu a ideia de realizarmos um evento exclusivamente voltado para a cultura motoboy. Encabecei o projeto imediatamente, colocando o


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canal*MOTOBOY à disposição como o realizador do evento, que passamos a chamar de Semana de Cultura Motoboy. Como já tínhamos em mente organizar uma festa para comemorar o primeiro ano do projeto canal*MOTOBOY, em maio daquele ano, e como estávamos confiantes de que teríamos uma boa programação, estipulamos que cada banda que conhecíamos na categoria dos motoboys faria um show por dia – dia não, noite, porque a ideia era que, ao realizarmos uma pequena atração durante a semana, à noite houvesse a possibilidade de que muitos motoboys que trabalham de dia participassem ao menos de um dos shows. Assim, nos meses que se seguiram, ficamos em contato direto com diversos artistas motoboys que começaram a aparecer e que passaram a se reunir em torno do projeto canal*MOTOBOY. Era o início de um trabalho coletivo no qual os motoboys que faziam música e falavam da vida sobre duas rodas podiam se reunir e discutir nossa atuação cultural junto à categoria. Conhecemos o Poeta dos Motoboys, que já estava na estrada havia pelo menos uma década, com seu rap cheio de melodias. Fomos apresentados a um dedicado grupo de rappers de Guarulhos, que também viria a se apresentar na Semana de Cultura, liderada pelo Carlos, ou, como o chamamos, o Cal, do grupo Q.I. do Queto. E convidamos para uma apresentação o grupo Núcleo, que tem um trabalho bem desenvolvido, com canções gravadas durante os útimos anos e duas faixas inéditas: “Na Contramão” e “Trânsito”. Fechamos então com esses artistas e começamos a procurar apoio para a realização do nosso evento cultural. Porém, como todos sabem, hoje em dia é muito difícil as empresas vincularem suas marcas ao nome motoboy por conta do preconceito.


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Foi assim durante os mais de quatro anos em que o artista plástico espanhol Antoni Abad, sem sucesso, tentou realizar no Brasil seu projeto de arte usando celulares com os motoboys. Com a experiência que acumulei durante os anos em que me envolvi com nossa categoria profissional, sabia que não seria possível encontrar patrocinadores no mercado de motos. Então, preparamos um projeto de captação de outras fontes de apoio e começamos a levá-lo às instituições que nos apoiavam. Só depois fomos buscar apoio junto às empresas do setor de motocicletas. Antes disso, para que o leitor tenha uma visão mais próxima de como o canal*MOTOBOY funcionava, seria interessante deixar clara a importância que algumas parcerias desempenharam nessa história. Desde que o projeto do Canal foi lançado, em maio de 2007, no Centro Cultural São Paulo, com o apoio da Agência Espanhola de Cooperação (AECID) e do Centro Cultural da Espanha em São Paulo (CCE-SP), tínhamos desenvolvido uma estratégia de sustentabilidade para o canal*MOTOBOY. O CCE-SP, no caso, foi um grande parceiro para nós. Estabelecemos contato com o pessoal dessa instituição logo que ela foi inaugurada, e o canal*MOTOBOY ainda tinha pouco tempo de existência. Solicitamos apoio ao canal*MOTOBOY em suas ações, além de suporte, uma vez que o projeto era basicamente uma experiência que agregava um grupo de motoboys e alguns pesquisadores que desde o início do projeto vinham acompanhando o grupo e orientando suas ações. Também era necessário apoio financeiro, sem o qual seria impossível prosseguirmos. Desde que não nos faltassem créditos nos celulares para que fizéssemos os envios ao site www.zexe.net/SAOPAULO, poderíamos desenvol-


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ver nossos projetos e manter o site e, mais importante, o grupo de motoboys unidos. Assim, o projeto da Semana de Cultura Motoboy começou a nascer. E para isso voltamos a buscar o apoio do CCE-SP, que foi fundamental para a realização do evento. No início, tínhamos apenas uma ideia do que queríamos. A nossa esperança sempre foi que uma categoria grande como a dos motoboys tivesse muitos artistas a revelar. Ainda há, todos sabemos disso. Quando apresentamos nosso projeto, a Sra. Ana Tomé, diretora do CCE-SP, percebeu que estávamos indo na direção certa. Além da parceria com o centro cultural, o canal*MOTOBOY tinha criado uma rede de contatos com outras instituições parceiras. E naquele primeiro ano o canal já era um grande sucesso, pela atenção que vínhamos recebendo da mídia. Uma das parcerias mais sólidas, que mantemos até hoje, é com a ONG Ação Educativa. Muito conhecida pelo seu trabalho com a cultura jovem de periferia, a Ação Educativa imediatamente deu apoio ao Coletivo canal*MOTOBOY. O primeiro contato com a Ação Educativa foi promovido pelo antropólogo Augusto Astiel, que nos apresentou ao Sr. Eleilson, coordenador da ONG, em uma de nossas reuniões do canal*MOTOBOY, ainda quando o canal era apenas uma exposição de arte contemporânea no Centro Cultural São Paulo. A Ação Educativa caiu do céu. Digo isso porque foi em boa hora, e por força da necessidade, que surgiu essa parceria. O Astiel, meu amigo desde nossa formatura na USP, foi uma das pessoas que ajudou o artista a fundar o canal*MOTOBOY e participava de todas as reuniões do canal desde o início. Em uma dessas reuniões, quando o prazo da exposição no CCSP já estava quase se esgotando, o que significava que deveríamos cair fora, ele sugeriu que buscássemos uma parceria com


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alguma outra instituição para acomodar nossas reuniões com os motoqueiros aos sábados à tarde. Acredito fielmente que, se não fosse o contato com o Eleilson naquele dia, quando os motoboys e as motogirls aceitaram o convite dele para fazermos nossas reuniões de pauta na sede da Ação Educativa, o canal*MOTOBOY teria acabado. A parceria com a Ação Educativa nos possibilitou muitas outras coisas além do espaço para as reuniões. Passamos a nos encontrar todos os sábados pela manhã e a utilizar o centro multimídia para a edição dos canais dos motoboys do projeto no canal*MOTOBOY. Também passamos a receber nossas correspondências em um endereço fixo e a ter uma estrutura básica para trabalharmos, como telefone, internet etc. Foi ali na Ação, também, que gravamos inúmeras entrevistas para as redes de TV, revistas e jornais. Outra grande parceria que concretizamos e por meio da qual realizamos muitas ações foi com o Instituto Socioambiental (ISA). O ISA é uma das maiores ONGs de meio ambiente do país e tem um extenso projeto de preservação dos mananciais em São Paulo. À primeira vista, até pareceria estranho termos uma parceria com eles, já que motoboys e meio ambiente, aparentemente, não têm nada a ver. No entanto, não é essa a realidade, principalmente para nós do projeto canal*MOTOBOY. Essa parceria aconteceu e cresceu justamente por conta da preocupação dos motoboys com a poluição causada pelas motos. Essa preocupação apareceu em uma das inúmeras e incansáveis reuniões semanais que realizamos desde que constituímos o projeto. Nesse cenário, a Semana de Cultura estava basicamente certa. Ou seja, tínhamos muito conteúdo. Mas faltava ainda um local.


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Assim, quando sentamos com a diretora do CCE-SP para apresentar nossa proposta de parceria e apoio para a 1ª Semana de Cultura Motoboy, já tínhamos fechado com um espaço que era a nossa cara: o Centro Cultural Popular da Consolação (CCPC), na Rua da Consolação 1.901, quase em frente ao cemitério. O lugar, como o nome já diz, tem uma pegada com projetos culturais populares, além de ser um centro de treinamento para que jovens da periferia se especializem em iluminação teatral. No piso superior, um projeto subsidiado pela prefeitura oferece um dos principais cursinhos pré-vestibulares populares, voltado para alunos sem condições de pagar as altas taxas cobradas pelos cursinhos privados. Assim, quando fechamos com o Tiago e o Bahia, indicados pelo pessoal da Ação Educativa, sabíamos que aquele espaço tinha todas as condições para abrigar o primeiro evento cultural da nossa categoria profissional. Era pôr mãos à obra. O Centro Cultural da Espanha em São Paulo topou apoiar nossa Semana de Cultura. Assim, recebemos um adiantamento de R$ 6.000,00 para a curadoria e as despesas do canal*MOTOBOY pelos próximos cinco meses. Ainda receberíamos outros recursos por meio de mais parcerias de peso no projeto. Como já dissemos, a base do canal*MOTOBOY, apesar de ser um projeto de rede social na internet, é a presença das pessoas nessas reuniões semanais. Ao contrário da web, das redes de relacionamento e das comunidades, os projetos organizados pelo artista Antoni Abad, em geral, são todos presenciais. Isso implica que, ao se disporem a participar desses encontros, as pessoas realmente se envolvem nos projetos, já que eles são criados para que elas possam, frente a frente, discutir as questões que mais afetam sua vida comunitária. No caso, as


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complicadas relações dos profissionais motociclistas com a cidade de São Paulo. Foi assim, por exemplo, quando o artista esteve no Brasil para organizar o projeto canal*MOTOBOY e apresentou a mostra “MOTOBOYS TRANSMITEM DE CELULARES”, no Centro Cultural São Paulo, em maio de 2007, e fui contratado para ser o curador-adjunto da exposição. Lembro que, logo nas primeiras discussões sobre esse projeto, propus que aproveitássemos a oportunidade da exposição e, já que o momento também era de comemorações dos 25 anos do CCSP, organizássemos paralelamente à exposição um ciclo de debates e filmes sobre a temática motoboy. Isso, no entanto, dependeria de enormes esforços por parte do pessoal do CCSP para buscar todos os filmes que foram realizados sobre motoboys e ainda convidar diversas personalidades públicas para comparecer aos debates, uma vez que eles não tinham apenas a nossa exposição, mas precisavam cuidar de toda a comemoração que aconteceria junto à nossa abertura, com dezenas de artistas e eventos simultâneos por todo o CCSP. É preciso lembrar também que a Prefeitura havia liberado uma verba para essas comemorações, o que possibilitou ao CCSP trazer o artista ao Brasil e montar o canal*MOTOBOY. Ao dar esse suporte, e somados os esforços da equipe do CCSP, meu trabalho de curadoria foi buscar os diretores que haviam filmado com os motoboys e ainda montar as mesas para o Ciclo de debates e filmes – os profissionais motociclistas e a cidade de São Paulo. Meu argumento naquele momento era de que precisávamos resgatar o debate público em torno das condições de vida dos motoboys, uma vez que havia um hiato, criado a partir das sucessivas tentativas de regulamentação



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pelo poder público, a favor da criação de uma política pública voltada para a categoria, mostrando aos cidadãos que mantínhamos uma relação quase umbilical com a cidade. Após a abertura da exposição, ficou claro, durante as reuniões, que os motoboys tinham uma poderosa ferramenta de comunicação em mãos. E que deveriam se apropriar dela como forma de suscitar uma mudança na opinião pública acerca da categoria. Voltando à importância das parcerias na realização da Semana de Cultura, lembro que o formato do projeto – com reuniões abertas – possibilitou que tivéssemos contato com diversos atores sociais. Por exemplo, o professor Gilson Schwartz, diretor da Cidade do Conhecimento, da USP, que naquele momento iniciava uma série de pesquisas sobre o uso de celulares em comunidades. No início do projeto canal*MOTOBOY convidamos o professor a participar de uma das mesas de debate, da qual participariam o diretor de cinema Caito Ortiz, o crítico e teórico de arte Alberto Lopez Cuenca — que veio do México/DC —, e o professor de artes e comunicação Martin Grossmann. Desde então, Gilson se propôs a fazer com que nossas contribuições, em termos de experiências com nossos celulares, se transformassem em pesquisa para a academia. De fato, criou em nós uma grande expectativa. E passamos a colaborar com as iniciativas da Cidade do Conhecimento, uma vez que acreditávamos que os benefícios que poderiam resultar das pesquisas seriam direcionados a uma mudança radical — que ainda não se concretizou, apesar de nossa intensa colaboração — na forma de organização do trabalho dos profissionais motociclistas.




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Desse modo, nos meses que se seguiram, entre a exposição “Motoboys transmitem de celulares” e a idealização da Semana de Cultura Motoboy, contribuímos continuamente para as pesquisas da USP. Um exemplo disso ocorreu alguns meses após aquele primeiro debate: a Cidade do Conhecimento havia recebido uma proposta da Fundação Telefônica da Espanha para participar de uma pesquisa de campo na America Latina, juntamente com outras instituições — no Brasil, a USP seria a responsável pela realização da pesquisa. Graças ao Coletivo canal*MOTOBOY, que promoveu um debate sobre a importância do celular na comunidade dos motoboys como uma ferramenta imprescindível para o desenvolvimento do trabalho, a comunidade escolhida entre tantas para ser pesquisada seria a dos motoboys paulistanos. Podíamos estar comemorando. Tínhamos bons motivos. Após um ano de trabalho duro, um grupo de motoboys cruzara diversas fronteiras. Tínhamos sido acolhidos por duas das maiores ONGs do Brasil, uma voltada para a educação e outra para o meio ambiente. Tínhamos o apoio dos centros culturais e ainda estávamos caminhando com a mais importante universidade pública do país, que agora, por meio da pesquisa que estava realizando para a Fundação Telefônica, apoiaria a Semana de Cultura, e foi assim que conseguimos que eles se responsabilizassem pelo pagamento da locação do espaço do evento. Nossa agenda era extremamente corrida. Mas ainda tivemos tempo de fazer alguns contatos com empresas especializadas na venda de produtos para motoboys. Íamos não só atrás do patrocínio deles, mas de apoio e parcerias, buscando levar uma nova proposta de trabalho e procurando mostrar ao empresariado uma nova


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visão dos profissionais motociclistas. Afinal, tudo aquilo que estávamos desenvolvendo no canal*MOTOBOY não tinha parâmetro em lugar algum, nem em associações ou sindicatos de motoboys: era totalmente inusitado e permitia mostrar uma nova face desses cidadãos. E como ainda temos esperança de um dia ver o que estava sendo pensado por nossos pesquisadores nas universidades, buscando uma compreensão das dinâmicas dos motoboys a partir de um novo modelo de negócio, para nós, era hora de demarcar um território. Para essa finalidade, a Semana de Cultura seria um palco. Recebemos muitos brindes de diversas empresas do ramo de autopeças motociclísticas e os distribuímos aos motoboys e às motogirls que foram apreciar o evento. Da Alba Industrial, de Campinas, recebemos capas de chuva. Da Pneus Levorin, em Guarulhos, dezenas de pneus. A Filtros MANN, da cidade de Indaiatuba, nos enviou diversos kits com brindes. E o mais legal foi a distribuição, nas ruas, nas semanas que antecederam o evento, dos 20 mil folhetos que recebemos como apoio e incentivo da empresa AM3 – Feiras e Eventos, organizadora do Moto Festival. O apoio da AM3, em especial, veio de uma parceria com o canal*MOTOBOY com esta empresa, para que a Semana de Cultura Motoboy entrasse definitivamente no calendário oficial do setor das duas rodas. Assim, entre os dias 12 e 17 de maio de 2008, realizamos a 1ª Semana de Cultura Motoboy, com a seguinte programação:


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12/05

Festa de Abertura/Exposição Fotográfica1/DJ San

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Apresentação de Q.I. do Gueto e Poeta dos Motoboys (transferido p/ sábado)

14/05

Sessões de curta-metragens: Meu nome é Ronaldo, de Antoni Abad e Glória Marti FLUXUS Kynemas, de Pedro Paulo Rocha

15/05

Apresentação NUCLEO - com os rappers Zaro e Rogério

16/05

Apresentação CR 13 MC’s

17/05

Oficinas: Teatro – Cia Kiwii; Grafitti – IZU 100% Favela; Meio ambiente com Cezinha do ISA – Instituto Socioambiental

Eliezer Muniz dos Santos

1 O painel fotográfico apresentado foi uma doação do Estúdio Madalena e teve a curadoria do fotógrafo Iatã Cannabrava.



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Meu nome ĂŠ Ronaldo.


Meu nome é Ronaldo, tenho 36 anos e trabalho de moto nas ruas de São Paulo todos os dias desde 1992. Tinha apenas 17 anos quando comecei, e como qualquer moleque nessa idade, também era apaixonado por motocicletas. Naquela época, não existia essa facilidade de hoje para adquirir uma motocicleta, e para quem nunca teve nem uma bicicleta, ter uma moto era um grande sonho a ser realizado. Nunca desisti de sonhar. Aos 12 anos perdi meu pai. Foi um grande baque para mim; passei a contar apenas com minha mãe, que sempre me ajudou em tudo. Então, fui trabalhar em um bar próximo à minha casa, onde separava os vasilhames para entregar às distribuidoras. Aos 14 anos comecei a trabalhar de office-boy. Nessa época, aconteceu meu primeiro contato com a cidade de São Paulo. Aos 17, com o dinheiro da rescisão da empresa onde trabalhei de boy, comprei minha primeira motocicleta. Lembro como se fosse hoje. Eu estava deitado no sofá em minha casa quando Marké, um de meus melhores amigos de infância, chegou gritando: “Meu, achei uma motinha pra você comprar.” Era uma Yamaha RX 125 cilindradas. Ele me dizia, todo eufórico: “Vamos lá, Ronaldo, dar uma olhada na moto.” Quando chegamos lá, era uma motocicleta vermelho-cereja, estava parada havia muito 72


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tempo e não funcionava. Fiquei todo empolgado com a ideia de ter minha primeira moto. Naquela noite, quase não dormi pensando nela. Na manhã seguinte, fui ao banco e retirei o dinheiro combinado. Na época, eram setecentos contos. Quando finalmente tive a moto na mão, eu nem acreditei. Nesse mesmo dia, subi lá nas bocas2 para comprar algumas peças e outras coisinhas que ainda faltavam para fazê-la funcionar. Voltando à casa do Marké, no dia seguinte, começamos a desmontagem. Tiramos desde o banco até o tanque de gasolina. Foi uma lavagem completa! No final da tarde, estávamos desanimados por não termos consertado a moto depois de um dia inteiro de esforço. Um grande amigo chamado Marivaldo, que estava passando em frente à casa do Marké, perguntou: — Vocês já viram o platinado?

Um olhou para a cara do outro, e como nos dias de hoje, ninguém ali sabia o que era isso. Naquela época, a maioria das motos era a platinado, uma peça que foi posteriormente substituída pela ignição. Graças a Deus, pois, se chovesse e o platinado ficasse molhado, a moto morria e não funcionava. Empurramos minha moto várias vezes para fazê-la pegar — sem sucesso. Então, o Marivaldo, que tinha uma manha que faltava a todos nós, pediu licença e fez a moto funcionar. Marivaldo era daqueles motoqueiros cachorro louco, mas não era bobo. Depois de uns minutos de conversa com ela, a moto cantou o hino! Uma alegria para todos, principalmente para mim. Vrummmmmmmmm... Vrummmmmmmmm! Todo mundo queria dar uma volta na moto. Quando chegou minha vez — o dono da moto —, eu não quis ir, pois ainda não tinha as manhas de andar... Eu dizia, dando 2 Região central da cidade onde estão localizadas lojas de motopeças.


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de ombros: “Depois eu ando.” No final da tarde, fui para casa tomar um banho e, lá pelas oito horas, passei de novo na casa do Marké. Só então a gente saiu para dar meu primeiro rolé com a moto. O Marké tinha um irmão muito louco que já tinha motocicleta. Ele empinava e barbarizava com a motoca, e como ele tinha alguma base da tocada, saímos à noite para dar uma volta. Para mim, era um sonho se concretizando. Na garupa, ele me explicava as marchas certas, o que e quando eu devia trocar, e, logo depois, eu já estava pilotando sozinho... Mas era daquele jeito, porque eu ainda não tinha confiança. Se parasse em um semáforo e a moto morresse, tinha medo de ficar na mão. Não sabia ainda respeitar as leis de trânsito. E o pior: não tinha habilitação. Naquele tempo, não era obrigatório o uso de capacete nem de espelho. Era uma sensação de liberdade que eu queria experimentar, mas tive grandes problemas com a polícia. Na primeira vez em que os policiais do meu bairro me pararam sem dó, levaram minha motinha paro o pátio da Marques de São Vicente. Depois o policial ainda me perguntou: “Por que você não fugiu com esta merda?” Daí para a frente foi só balão, não parava mais nas blitze, arriscando minha vida e a de outras pessoas. Estava naquela idade em que pensamos que somos os melhores. E até hoje é assim na periferia, onde a rapaziada quando junta uma grana compra sua primeira moto. Para recuperar a moto, comecei a trabalhar em uma oficina de motocicletas, onde tive a oportunidade de aprender algumas coisas básicas sobre mecânica de motos. No mundo das duas rodas, existem vários problemas que podem ser evitados na motocicleta tomando cuidado com o óleo, a relação e os freios. O óleo é como o sangue da moto: sem o devido cuidado, as peças se desgastam mais rápido. Para quem não sabia nada sobre esse tipo



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de coisa, tive a oportunidade de aprender muito, desde esticar a corrente até abrir o motor. Um dos anos mais felizes da minha vida seria 1990. Porém, quase no fim, acabou sendo um dos mais tristes, pois perdi Marké, mais que um grande amigo, um irmão. Sofremos um acidente em decorrência do qual ele veio a falecer. Na manhã desse dia fatídico, chamei Marké para ir comigo à 24 de maio para comprar uns discos. Era o aniversário de 15 anos da minha sobrinha, Luciane, e estávamos muito felizes. Por volta de umas dez da noite, o pai de uma amiga de minha sobrinha, que estava na festa, veio procurá-la. Disseram a ele que ela estava em uma casa noturna. O velho ficou indignado e falou que ia buscála pelos cabelos. Como todo moleque, a gente quis ver o circo pegar fogo. O Marké ficou insistindo para a gente ir lá ver, e eu dizendo que era melhor não irmos. Como a gente era muito colado e ele insistiu muito, acabamos indo. Naquela noite, a gente estava com a moto do Jean, outro grande amigo. Pegamos a moto e partimos. Uma esquina antes da casa do Marké, onde viraria à direita, ele me falou: “Passa na minha casa que vou pegar uma blusa.” No mesmo instante, quando voltei a acelerar a moto, recebi um impacto lateral na motocicleta. Fomos arremessados para longe. Tive mais sorte, por estar usando capacete e jaqueta. Além disso, caí no meio da rua e fui deslizando. O Marké colidiu com um poste. O carro, um Fusca vermelho, descia a rua após sair de uma festa na casa de outro conhecido do bairro. No momento da correria, ninguém se tocou, mas o motorista, por estar alcoolizado, tinha passado o volante à mulher, e ela tinha descido uma rua em que obrigatoriamente teria que parar e passar com atenção, porque a preferência era nossa. Na mesma hora, conseguimos parar um carro que o levou ao hospital do Mandaqui. O


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quadro dele se agravou e a família resolveu transferi-lo para o hospital Osvaldo Cruz, cuja diária era caríssima. O irmão do Marké teve que trabalhar alguns dias para pagar a conta. Mesmo assim, ele não tinha condições de permanecer nesse hospital, então, foi transferido mais uma vez para outro hospital público, onde veio a falecer. Meu melhor amigo partiu. Fiquei sem chão. Desde os tempos em que andávamos de bicicleta, que ele mesmo me emprestava para andar, eu nunca tinha apertado um parafuso, pois ele sempre dava uma mão. Mas a vida é assim: nós a amamos e aos amigos, mas a morte nos namora! E até hoje tenho um laço enorme com a família dele, todos me tratam como se fizesse parte dela. Para toda coisa ruim, Deus sempre reserva uma coisa boa para a gente. Nessa mesma época, conheci aquela que seria minha esposa, Patrícia, a melhor amiga da Mônica, namorada do Marké. Sofremos muito nos primeiros anos com a morte do meu melhor amigo, mas a vida continua. Patrícia foi uma peça fundamental em minha vida. Começamos a namorar de verdade. Estou com ela há 18 anos e temos duas filhas maravilhosas, a Fefe e a Júlia, que me fazem feliz. Ela também era motoqueira e por alguns anos teve uma Yamaha TT 125 cc, que usava para ir ao trabalho e à escola. Com o passar dos anos, ela tirou carteira de motorista e compramos o primeiro carro. Foi uma alegria. Hoje ela trabalha em uma indústria de tecidos, ocupando o cargo de gerente de estoque. Aos 18 anos, comecei a trabalhar na oficina de motos de um grande amigo, o Renatão, e lá aprendi o básico. Trocar o óleo, verificar válvula... Um pouquinho de cada coisa. Algum tempo depois, comecei a trabalhar como motoboy em uma empresa, e foi fácil. A cidade é muito grande, mas a experiência adquirida na época de office-boy me ajudou bastante. Essa é a função que exerço até hoje.


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Fiquei nessa empresa por uns dois anos. Naquela época, eu não tinha muitas responsabilidades. Após algum tempo, comecei a trabalhar na contabilidade, e todos os dias tinha um roteiro diferente. Foi lá que pude conhecer outras regiões da cidade. Como todo motoboy, eu só queria andar de moto. Mas com o passar do tempo a gente vê que não é só isso. É preciso estar atento aos ladrões e à polícia. Fiquei no escritório de contabilidade uns oito anos. Quando os filhos do dono começaram a administrar, ela durou um ano apenas. A empresa chamava-se Roma Contabilidade Ltda. Novamente fiquei sem saber o que fazer, afinal, foram oito anos naquele contrato. Então resolvi fazer alguns cartões e trabalhar por conta própria. No começo não foi fácil. Alguns dias eu não tinha nenhum serviço.Cheguei a pensar em parar. Mas, como todo brasileiro sofredor, lutar sempre, desistir jamais. Depois de alguns dias, consegui dois clientes muito bons. Eles me davam trabalho todos os dias. A minha sorte é morar desde que nasci no bairro do Bom Retiro, que, além de ser próximo do centro de São Paulo, é onde se localizam muitas das empresas para as quais distribuía os cartões. Graças a Deus, hoje tenho alguns clientes que são grandes amigos, como o pessoal da Araguaia e alguns clientes especiais como a Sra. Regina Silveira, a Sra. Márcia Veek, entre outras, que me oferecem trabalho todos os dias. Tenho duas paixões: as duas rodas e o Corinthians, meu time do coração. Nos finais de semana, vou à quadra da Gaviões da Fiel, onde encontro meus amigos e levo minha família para passear. O bairro do Bom Retiro é um dos mais antigos de São Paulo. Aqui vieram morar italianos, judeus, gregos, sírio-libaneses, coreanos, bolivianos. Além deles, temos, é claro, os nordestinos e os paulistanos, que sempre estiveram aqui. Esse é um dos


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motivos por que não me mudo desse bairro que além de ser onde alguns amigos de infância moram é onde se concentram muitas das empresas que os imigrantes constituíram aqui. Foi onde conheci minha mulher e vi minhas filhas nascerem, e espero que cresçam aqui como eu. A vantagem de trabalhar por conta própria é que você não tem só um cliente e nunca falta serviço. Muitos desses clientes viraram grandes amigos e sempre passam serviço. Quando recebo uma chamada, vejo meu roteiro para poder atendê-la rápido. No começo, era mais difícil trabalhar como motoboy em São Paulo, pois dependíamos de uma mensagem que vinha por bip. Mas tudo se modernizou — e o motoboy também mudou. Ganhei meu primeiro telefone celular de uma grande amiga e patroa, que era a mãe do Tutu, outro amigo meu que faleceu em um acidente de motocicleta três meses depois de ter me convidado para trabalhar na firma que ele montara em sua casa. Na época, foi um choque para todos os amigos, mas principalmente para Maristela, que além de mãe era uma grande amiga dele. Mas não desanimamos e seguimos em frente com um dos seus sonhos: demos continuidade à Speed Express firma de motoboys, na Alameda Barão de Limeira. Lá éramos uma grande família. A tia fazia tudo por nós. Até moto ela já financiou para dois motoqueiros que não tinham condições de comprar as suas. Comigo não foi diferente: ela me deu meu primeiro celular. Antes eu era pequeno, agora me transformara em um gigante, atendendo toda a freguesia da região. Em 2004, tive o prazer de conhecer o Antoni Abad por meio de uma cliente minha, artista plástica, chamada Regina Silveira. Ela me falou que em breve um amigo dela, também artista plástico, viria ao Brasil com o desejo de realizar um projeto que mostrasse a realidade dos motoboys em São Paulo usando celulares. Na época, achei que não era verdade, pois se um celular


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sem câmera já era muito caro, um com câmera era uma fortuna. Por isso, não acreditei. Mas resolvi apostar. Em outra ocasião, ela me ligou para fazer uma entrega e perguntei sobre o projeto. Ela me disse que seu amigo espanhol viria com uma proposta de entregar vinte celulares para que alguns motoboys registrassem fatos do nosso cotidiano. Nesse momento, fiquei mais empolgado ainda e saí falando para todos os meus amigos que tinham motos. Com o passar do tempo – um bom tempo – meus amigos me perguntavam: — E aí, Ronaldo? Quando vai começar aquele projeto? Eu, sem saber o que dizer: — Em breve!

Mas só depois de três anos e muitos contatos tive a notícia de que daria certo! Voltei a comentar com meus camaradas e dessa vez tínhamos a esperança de que o projeto seria realizado. Naquela época, eram poucos os aparelhos que tinham a tecnologia que têm hoje, com câmeras, MP3, internet, GPS etc. Quando comentei com meus amigos motoqueiros sobre o projeto, ninguém botou fé, pois ninguém dá nada a ninguém, e, em se tratando de motoboys, as coisas eram muito mais difíceis. Um camarada até comentou: – De novo?

Fiquei com cara de mentiroso. Estávamos em 2005, e toquei minha vida. Então, um belo dia, recebi um grande presente: minha primeira filha, Fernanda, que seria uma das primeiras palavras-chave (TAG) que um dia eu criaria naquele projeto. No final de 2006, tivemos finalmente uma boa notícia: Antoni ligou dizendo que algumas instituições tinham resolvido apoiar o projeto, o que não fora fácil, pois nenhuma empresa queria vincular sua marca aos


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motoboys. Ou seja, faltavam o patrocínio do projeto e os vinte celulares! Quando esteve no Brasil, em 2004, esse grande amigo ficou impressionado com o grande número de motoboys que trafegavam pela cidade e perguntou ao taxista, ao passar pela Marginal, vindo do aeroporto de Cumbica: — Quem são esses caras? E o taxista respondeu: — Esses são os donos da rua. E ele falou: — Como assim?

Então o taxista disse que os motociclistas que passavam pelos corredores eram os motoboys. Naquele mesmo dia, ele falou sobre seu espanto em relação aos motoboys com Regina Silveira, sua amiga. Então, quando começamos a construir o projeto, foi uma grande luta para conseguir trazê-lo ao Brasil, além do que ainda não tínhamos os celulares para começar o projeto. Mas isso foi resolvido na última hora, pois anteriormente, o Antoni Abad havia realizado um projeto com celulares com a comunidade de cadeirantes em Barcelona e sobraram 10 celulares; foi graças a eles que nosso projeto pôde ser realizado. Já era um grande começo. Para quem já estava esperando havia três anos, foi uma maravilha! Tínhamos aí a oportunidade de realizar um sonho. O melhor era que eu não passaria mais por mentiroso entre meus amigos e ainda seria um dos coordenadores do projeto. No final de 2006, tive finalmente a oportunidade de conhecê-lo, e fizemos os primeiros testes pela internet. Antoni Abad mudou minha vida, pois passei a transmitir para uma página na internet, que até então era um bicho-de-sete-cabeças, meu dia a dia. Com o passar dos meses, a cada dia me empolgava mais com aquela experiência de enviar fotos, vídeos e


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comentários que até então eu não podia compartilhar com ninguém. No primeiro momento em que vi esse cara já gostei dele. Como todos sabem, a vida do motoboy não é fácil, e aquele dia estava cheio de trampo. Mas consegui um tempo para passar na casa da dona Regina, onde ele estava hospedado. Ele me parecia ser uma pessoa muito sincera e preocupada com a realidade de pessoas que muitas vezes não são valorizadas pela sociedade, como os motoboys, aqui em São Paulo, os taxistas na Cidade do México, as prostitutas e os cadeirantes na Europa. Por isso, esse projeto com os motoqueiros era muito importante, pois iríamos participar de algo que envolvia comunidades no mundo todo, além de fazer parte de uma grande família, a ZEXE.NET. Nesse dia ele me perguntou se eu tinha um aparelho celular com câmera. Eu disse que não, pois, naquela época, ter um celular já era uma grande conquista para um motoboy. Após três meses, minha operadora mandou uma carta dizendo que tinha um bônus que poderia ser revertido em um aparelho com câmera. Rapidamente, fui saber como poderia adquiri-lo. Teria que permanecer um período naquela operadora. Mesmo assim, adquiri o aparelho e comecei a fazer fotos da minha família, dos meus amigos e algumas coisas mais. Nessa época, em 2006, tivemos um segundo encontro com o Antoni, e eu já tinha o aparelho compatível com o projeto. No mesmo ano, fizemos alguns testes de envio e achei legal essa possibilidade de mostrar coisas que até então eu apenas via pela cidade. Ficamos uma tarde inteira fazendo testes na casa da dona Regina Silveira. No final da tarde, eu já estava me empolgando com a situação, pois, no mesmo momento em que tirava uma foto, ela já estava no computador. Uma coisa maravilhosa!






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Até aquele momento eu nunca tivera contato com um computador. Achei aquilo maravilhoso e saí fotografando tudo o que via pela cidade. Mas tínhamos um grande problema: naquela época, ninguém queria patrocinar o projeto. A razão era o nome “motoboy”, uma profissão indispensável, mas muito discriminada. Esse foi um dos motivos pelos quais passei por mentiroso para os motoboys com quem já tinha comentado sobre o projeto, que eu acreditava que podia ser realizado, mas os caras não. Quando conheci Antoni, ele me perguntou: — O que você gostaria de ser se não fosse motoboy? Respondi: — Eu gostaria de ser o Ronaldinho, mas não tive a chance de ser jogador de futebol. Então prefiro ser um pessoa feliz, que pode realizar seus sonhos.

Assim, em 12 de maio de 2007, tivemos a oportunidade de realizar esse sonho com a inauguração da exposição do projeto canal*MOTOBOY no Centro Cultural São Paulo, onde tive a oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas, filósofos, antropólogos, sociólogos, artistas de várias categorias e muitos outros que compareceram para prestigiar o evento que mudaria definitivamente minha vida. Como coordenador do projeto, junto com o Neka, eu tinha a missão de organizar os motoboys que convidara para participar. Cada um recebeu um celular e uma página no Canal. Eram 12 motoboys, alguns foram convidados por artistas amigos do Antoni, outros eram meus amigos, Cleyton, Luis, Deton, Tadeu, Edison, Alexandre e uma mina que eu tinha conhecido no dia a dia louco da cidade, guardando motos no estacionamento da avenida Paulista, que sonhava ser motogirl. Por sorte, quando começamos o projeto, ela já era motogirl e convidei-a imediatamente.


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Fiquei impressionado com a dimensão que a ideia tomou. O que era um simples projeto para mim poderia alcançar grande repercussão nos meios de comunicação. Da noite para o dia, começamos a receber convites para a TV, para o rádio e para revistas e jornais; aquilo era muito louco. Pela primeira vez, o motoboy era visto com outros olhos. Poderíamos mostrar a verdadeira realidade e também o nosso dia a dia. Aos sábados, a gente se reunia em volta de uma grande mesa redonda que ficava no centro da biblioteca do CCSP. A exposição deveria durar apenas dois meses. Mas tivemos a ideia de continuar o projeto. No entanto, logo na primeira semana após a inauguração, liguei a televisão pela manhã e escutei que havia caído um balão no CCSP. Logo imaginei: “O Centro Cultural é grande!” Meia hora depois de ter escutado essa notícia, o artista me ligou, muito triste, dizendo que o balão tinha caído justamente em cima da nossa exposição! Eu não acreditei... No mesmo momento, liguei para o meu amigo Luis e comentei com ele: — Meu! A nossa exposição acabou! E ele me perguntou: — Por quê?

E eu lhe disse que um balão tinha caído no telhado e causado um incêndio que destruiu nossa exposição — computadores, banners, mesas e até as TVs de plasma! No mesmo momento, larguei tudo e fomos para lá. Chegando lá, vimos a dimensão do estrago. Eu não acreditei... Levamos as mãos à cabeça. Depois de tantos anos, de tantos sacrifícios e de tudo que passamos, parecia que


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o projeto tinha acabado ali. Mas nossa história estava apenas começando. O que era para ser uma exposição de dois meses acabou durando quase quatro meses, pois o Centro Cultural São Paulo reservou um grande espaço em outro local, onde foram refeitas todas as instalações do canal*MOTOBOY. Mas não era mais a mesma coisa. Aquele incêndio ficou marcado para sempre em nossa memória. Nosso amigo Antoni Abad tinha ido embora do Brasil logo depois daqueles fatos totalmente desolado, mas, com a promessa da reinauguração, dali a algumas semanas, depois que tudo estivesse pronto novamente, ele ficou aliviado. Então, quando retomamos o projeto, todos já estavam enviando material para o canal*MOTOBOY e editando seus canais com muito profissionalismo. O projeto cresceu. As reuniões de sábado com os motoboys emissores eram uma grande confraternização em que muitas vezes aconteciam discussões sobre a realidade do motoboy, o dia a dia. Eu era o encarregado de combinar os horários, ligando para cada um dos motoboys, enquanto o Neka, o outro coordenador, cuidava das relações institucionais. Eu também fazia toda a logística para que pudéssemos atender todos os jornalistas. Eram muitos, às vezes até mais de dois repórteres por dia, e terminávamos faltando ao serviço para dar entrevistas. Por fim, solucionamos o problema revezando as entrevistas com cada um dos motoboys participantes, afinal, todos tinham que ganhar o dia! Mas o melhor de tudo isso, além do reconhecimento da mídia, era saber que muitas pessoas também descobririam que podiam utilizar seu próprio celular para enviar para qualquer meio de comunicação. Nesse sentido, o inovador e muito interessante poderia sim dar voz à sua comunidade. Fomos entrevistados por todos


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os grandes jornais e telejornais, e até para o programa da Ana Maria Braga fomos convidados. Estávamos bastante empolgados. Todo dia encontrava algum motoboy na rua que perguntava: — Você não é o motoboy daquele site? Não foram vocês que apareceram na televisão (ou jornal)?

Mas não era somente a vida no trânsito que a gente enviava para o site. Também fizemos vários TAGs (palavras-chave) que mandávamos com as fotos e os vídeos da família, dos amigos, do lazer etc. Ou seja, motoboy também tem família! Mas, como tudo na vida, nem todos acreditaram no projeto, e alguns simplesmente desistiram, depois de algum tempo, de enviar material para seus canais. No CCSP também tivemos a oportunidade de conhecer muitas pessoas que visitavam o canal*MOTOBOY, pesquisadores, artistas e personalidades que iam aos debates que realizávamos para discutir os problemas da categoria dos motoboys. Coisas assim estão registradas no site, mostrando a preocupação dos órgãos públicos com os motociclistas, que expunham no site o descaso que as autoridades tinham em relação à rotina do motoboy em uma cidade tão grande como São Paulo. O projeto canal*MOTOBOY tinha vindo para ficar, e agora os meios de comunicação tinham bastante cuidado ao falar do motoboy. Eles estavam acostumados com aqueles motoboys que só falavam besteiras, se achavam os melhores e não respeitavam ninguém. Pela primeira vez, tínhamos a oportunidade de mudar essa imagem negativa com diversos projetos relacionados à cultura motoboy e ao meio ambiente que nasceram nas reuniões dos motoboys e motogirls. Entre todos os TAGs, o mais importante para nós naquele momento era o TAG “FALA”, que criamos para ouvirmos a voz do próprio motoboy. Isso representou uma grande vitória para nós. Um ano depois, durante a 1ª Semana de Cultura Motoboy, recebemos


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a notícia de que o canal*MOTOBOY receberia o Prêmio Orilaxé 2008 de veículo de comunicação do ano, do Grupo AfroReggae, no Rio de Janeiro. No final dos quatro meses em que o projeto canal*MOTOBOY ficou no CCSP, muitas pessoas vieram nos visitar. Uma dessas pessoas, o Eleilson, se tornaria um grande amigo e parceiro, e nos convidaria para continuarmos a nos reunir em uma sala cedida pela ONG Ação Educativa, da qual ele é diretor, onde estamos até hoje. Sempre fui motoboy em São Paulo. No meu dia a dia, sempre tive contato com muitas pessoas, mas não imaginava ter contato com antropólogos, sociólogos e ambientalistas, que se tornariam grandes amigos e parceiros em um projeto que elaboramos sobre o descarte de óleo das motocicletas no meio ambiente. A maior parte da população desconhece que 1 litro do óleo de moto — que tem que ser trocado a cada mil quilômetros —, quando lançado no meio ambiente, pode contaminar 1 milhão de litros de água. Calcule-se, assim, o estrago causado por 300 mil motoboys! Se 20% deles fizerem de maneira errada a troca de óleo, qual será o impacto no meio ambiente? Essa preocupação levou a uma parceria com o Instituto Socioambiental, que há anos cuida dos mananciais em São Paulo. Ohando para trás, apesar de todas as dificuldades que passamos, vejo agora que o projeto está vivo e já anda com suas próprias pernas, graças ao esforço daqueles que sempre acreditaram nele. Com o conhecimento que acumulamos e as parcerias que realizamos, o próximo passo é a criação de uma associação que se chamará canal*MOTOBOY. Hoje tenho 36 anos, tenho duas filhas e até já fui chamado de motoboy repórter: “Estou aqui na avenida Pacaembu, trânsito bom. Um dos únicos problemas é a grande quantidade de lixo,


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devido à falta de fiscalização. Então, quando chove, a gente perde tudo por causa dessas pessoas que, em vez de pedirem uma caçamba para limpar seu estabelecimento, arrumam um carroceiro e pedem que ele remova o material. Os carroceiros têm seus filhos, mas acho isso errado. Então, se não tiver fiscalização, a cidade vai ficar deste jeito: um lixo.” Palavra-chave: cidade limpa. Ronaldo Simão da Costa


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Desafio contemporâneo, aventura e novidades! Maio de 2006. Minha situação financeira estava péssima, então resolvi procurar um trabalho. Minha mãe viu um anúncio de emprego de motoboy. Criei coragem e fui procurar agências. Fui primeiro a uma agência de motoboys na rua Guiará. O rapaz me deu uma ficha para preencher e pediu que eu esperasse; se precisasse, ele ligaria. Depois fui até outra agência, preenchi mais uma ficha e fui contratada na hora. “Esteja aqui pra começar amanhã às oito horas”, disse o Sr. Antônio, dono da agência. Fiquei muito contente, quase sem acreditar que isso seria possível. Estava finalmente empregada, poderia resolver meu problema financeiro e conhecer melhor a cidade onde moro. Então, no outro dia, eu estava lá, no horário marcado. Começou então minha vida de esporádica, e devagar aprendi as regras do jogo. A rotina profissional de um esporádico funciona assim: o pedido do motofrete é feito por telefone, há uma fila de motoboys esporádicos formada por ordem de chegada – sai primeiro para buscar a entrega quem chega primeiro na fila. Após o término de cada entrega, o esporádico volta e entra na fila de novo.

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Dia após dia, fui conhecendo a rotina do trabalho, o endereço dos clientes, a fiscalização de trânsito, as ruas desconhecidas de uma grande cidade como São Paulo. Os vários tipos de entregas, de documentos a peças de automóveis, e seus preços variados conforme o tipo de serviço. Cada motoboy na empresa recebe uma folha de controle de entregas em que são anotadas todas as saídas e entregas feitas durante o dia de trabalho. Na época, os motoboys recebiam vale-gasolina e também convênio com uma loja de peças para manutenção das motocicletas (o que usávamos era descontado no dia de pagamento), importante para os motoboys poderem continuar a trabalhar. O café da manhã era fornecido pela empresa e todos os motoboys tomavam café juntos. Todo dia eu fazia o café, e cada dia um ia buscar o pão e complementos como mortadela e suco, que a gente comprava fazendo vaquinha. Era uma festa! Na nossa sala de espera tinha forno de micro-ondas, mesa, cadeira e televisão. Durante essas esperas, a conversa rolava solta, e todos contavam vantagem. Foi nesses papos que descobri o mundo dos homens e a Casa Azul, local de prostituição que havia perto da agência, que era assunto constante entre os motoboys. No decorrer desse ano, alguns motoboys saíram da empresa, foram tentar outras sortes. Alguns se acidentaram e quebraram os ossos, outros foram roubados e ficaram sem suas motos, outros ainda trocaram de moto. Outro disse que lhe roubaram o dinheiro do cliente. Graças a Deus, não presenciei nenhuma morte dentro de nosso grupo, mas sofri um acidente. A caminho de uma entrega, ao fazer uma curva, a moto derrapou porque havia óleo na pista e caí rodopiando no chão. Ralei os joelhos e o braço. Que susto! Tudo porque eu queria aumentar meu salário. A partir de então, passei a ter muito medo de cair e comecei a trafegar mais devagar.


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O bom de ser esporádico é fazer muitos trabalhos ao mesmo tempo e escolher o horário de trabalho. Tinha um rapaz chamado Alberto que conseguia fazer 400 horas no mês: o normal era a metade disso. Ele ganhou dinheiro, mas quase morreu. O ruim de ser esporádico é não ter registro na carteira – consequentemente, nenhum dos benefícios garantidos pela CLT. Trabalhei um ano de esporádica e valeu a experiência! Em 2007, o Sr. Antônio me ofereceu um contrato de carteira assinada com outra empresa. O piso salarial seria de R$ 450,00 na carteira, mas eu receberia líquidos R$ 900,00, com a gasolina custeada por mim, de modo que me sobravam R$ 700,00. Só o condomínio do apartamento era R$ 500,00. Muito pouco, mas pelo menos tinha décimo terceiro e registro em carteira, assim como férias, que vendo todo ano. Comecei por baixo mesmo, trabalhei muito e foi assim que muito aprendi. Eu rodava muito toda a São Paulo, conheci todas as filiais do Carrefour na cidade, até a Campinas fui para fazer entrega. Eu fazia de tudo: entrega de documentos e peças de alarme, pagamentos em bancos, troca de aparelhos de manutenção, venda de pilhas, tudo que se pode imaginar de exploração durante meu horário de trabalho. Saía com o baú lotado, de manhã e à tarde. Deus é pai! Trabalhando com contrato, eu não ficava mais na sala de espera dos esporádicos, raramente encontrava com o pessoal, no máximo quando ia assinar os papéis de pagamento. Nesse mesmo ano, no dia do motociclista, fui abordada no Conjunto Nacional pelo Eliezer, que perguntou se podia fazer uma reportagem para o canal*MOTOBOY, me parabenizando pelo dia, me deixando adesivo, telefone e convite para uma reunião no Centro Cultural São Paulo, na rua Vergueiro. Essa primeira reunião era uma


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palestra do Eleilson, da Ação Educativa, e também estavam lá alguns motoboys fundadores do projeto, como Ronaldo, Luis, Adriana, Beiço, Eliezer, Djalma e Cleyton. O projeto foi concebido por Antoni Abad, que criou esse espaço no mundo virtual para dar “voz aos sem voz”, possibilitando a expressão de grupos específicos, como taxistas no México, prostitutas em Madri, motoboys em São Paulo e cadeirantes em Barcelona. As reuniões posteriores passaram a acontecer na Ação Educativa, agora sede do canal*MOTOBOY. Numa dessas ocasiões, ganhei a página no site ZEXE.NET, um celular e créditos para envios pela operadora TIM. Nas reuniões, aprendíamos a editar a página, configurar e realizar os envios, pautar os assuntos pertinentes ao grupo, organizar semanas de cultura e participação em eventos, tais como Duas Rodas (2007), Campus Party (2008/9), Motoboy Festival (2008) e Mobilefest (2008). O projeto tornou-se conhecido e participamos de vários programas de televisão de canais abertos, entre eles o programa de Ana Maria Braga, na Rede Globo. O principal objetivo do projeto era retratar o dia a dia de um profissional motociclista durante seu período de trabalho ou mesmo o registro de sua vida pessoal, por meio de fotografias registradas por celular e depois enviadas para a internet. Para mim é encantador quando consigo fazer uma boa foto. É importante perceber o caráter informativo das situações em geral, e com esses fatos, em pequenas histórias visuais, produzir o máximo de informação com o menor custo possível de envio, retratando nossa contemporaneidade. Há duas intenções muito presentes no canal*MOTOBOY: criar um arquivo da atualidade, um acervo para a posteridade, e promover a inclusão digital entre os motoboys. É incrível como somos protagonistas deste tempo. Essa


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ideia de arte como memória humana. Dou muito valor à arte e tento traduzir isso nas fotografias. Por meio do trabalho com fotos, descobrimos também o uso de áudio e vídeo. Tirar fotografias, para mim, se tornou um canal de expressão total. Tirar foto é fascinante! Depois de um ano na empresa, não quiseram aumentar meu salário e desistiram do contrato. Chegou o ano de 2008, e voltei a trabalhar como esporádica, porém com carteira assinada. Minha principal cliente era uma editora e o salário do mês era garantido, mas era roça demais. Enquanto trabalhei para essa empresa, conheci todos os Centros Educacionais Unificados (CEUs) de São Paulo: entregava os pacotes de livros didáticos, que eram bastante pesados, às bibliotecas. Eram locais distantes, e eu ia devagar para não cair da motocicleta. Então, apareceu o contrato com uma firma grande do ramo de elevadores, em meados de maio ou junho, para entrega de malotes e de peças. O Sr. Antônio tinha me dito que era trabalho de escritório, mas quando fomos nos candidatar, soubemos que se tratava de entregas de peças. Na hora de dividir as áreas de entrega, iam me dar a zona leste, região que eu não queria por ser osso e roça, então perguntei ao outro rapaz onde ele morava, e ele me respondeu que era na zona leste e que ficaria feliz em fazer a zona leste. Assim, acabei ficando com a zona sul, o que foi um alívio para mim. No início, fazíamos apenas duas saídas, uma às 9h30 e outra às 13h30. Quando acabavam as entregas, podíamos ir embora, o que me ajudava, pois me sobrava tempo para outras atividades. Depois de um ano, mudaram para três saídas diárias: uma às 8h30, outra às 10h30 e a terceira às 14h30. As regiões que cubro são divididas em quatro setores: g7 – Moema e Vila Olímpia; g8 – Aeroporto, Santo Amaro e Interlagos; g9 – Jabaquara, Ipiranga e Anchieta;


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e g22 – extensão da avenida Nações Unidas, do Morumbi a Pinheiros. Tem dia que é bem light, mas tem dia que é fogo. Os técnicos são legais; por celular, discutimos cada caso de atendimento e sempre entramos em acordo. Assim não fica pesado para ninguém. Nesse mesmo ano, participei de uma entrevista para o programa Profissão Repórter, da Globo, e cheguei à conclusão de que trabalhar dá trabalho, e que as outras pessoas dessa empresa também trabalham muito. Em consideração a todos, faço meu trabalho da melhor forma possível. Em 2008, o piso salarial subiu de R$ 450,00 para R$ 690,00 e, em 2009, o piso foi para R$ 730,00, porque ocorreu uma fiscalização sindical que tornou esse mínino obrigatório, assim como a carteira assinada, para todos os motoboys. Comparado com o salário de um porteiro ou de um segurança, esse piso salarial é muito baixo para os riscos que corremos. O importante é ser útil para si e para os outros. Se colocarmos o dinheiro em primeiro plano, poderemos nos corromper e as consequências podem não ser tão boas. O melhor é fazer o que se gosta, começar por baixo e ir subindo. Na sociedade, apesar de tantas dificuldades para saber qual profissão escolher e questões de rentabilidade, vocação, tempo e necessidade, prefiro a profissão de motogirl, sempre com meu bordão: “Ganho pouco, mas trabalho pouco.” Sigo trabalhando porque acredito que essa é minha tábua de salvação e a solução para todos os meus problemas, servindo até como terapia. Na minha vida, tenho meus valores, Deus e a Igreja, meus familiares, estudos, companheiros de trabalho, o bem. Dou graças a Deus, porque, por intermédio dele, passei a vida de uma forma que eu desconhecia, me livrando das drogas e das vaidades mundanas.


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Nesses três anos como motogirl, vivi algumas experiências bizarras; por exemplo, aceitar transportar um rolo bem grande de mangueira, tão pesado que quase não cabia no baú da moto. Tive que levar da Barra Funda até Interlagos. Outra situação, uma encomenda que recebi às 18h de uma sexta-feira chuvosa: uma firma de material elétrico pedindo entrega de material do centro de São Paulo para Santana do Parnaíba, endereço que nem sequer constava no guia da cidade. A entrega foi realizada no dia seguinte. Também recebi um pedido de retirada em uma empresa de aparelhos de telefonia, mas a caixa era tão grande – do tamanho da moto –, que a empresa teve que pedir uma Kombi. Havia também uma boleira chique que sempre me solicitava serviços e me pediu para retirar uma caixa que estava longe. Chegando lá, eram duas caixas, e só foi possível transportar uma, sinto muito! Certa vez, durante meu trabalho, fui picada por uma maribondo e, imaginando não haver problema, comecei a ficar toda inchada e empolada por choque anafilático, uma reação alérgica que me fez correr para o pronto-socorro. Como meu caso era grave, fui atendida prontamente e fiquei internada em observação por doze horas. Já levei uns vasos de vidro com plantinhas enrolados em papel celofane. Eram lembranças de fim de ano e a maioria chegou inteira, mas outras rasgaram um pouquinho. Na hora me perguntei: isso é coisa que se mande por uma motogirl? Foram tantas histórias que nem posso numerá-las. Gosto mais da viagem quando o pacote é leve, mas não faço manha e entrego tudo, sempre que possível. Só não levo peças que possam ser avariadas pelo transporte na moto. Faz parte da segurança conhecer o limite da motocicleta, pois as entregas não podem cair nem ser avariadas, tudo deve estar bem seguro e amarrado, para não correr o risco de um fiasco, que pode custar



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o emprego. Todo cuidado é sempre pouco, e a responsabilidade pesa muito. Graças a Deus, nunca danifiquei muito o material a mim confiado. Outro dia, no elevado Costa e Silva, de uma Kombi de carreto caiu uma gaveta de um dos móveis. Na hora meu coração gelou... Ainda bem que não veio para o meu lado. Outra experiência: um pedaço de madeira saiu voando de outra Kombi e bateu direto na minha viseira, que por sorte estava fechada — eu poderia ter ficado cega. Outra bem engraçada foi quando eu passava por cima da ponte da Casa Verde e os papéis amarrados com aranha no tanque da minha moto foram levados pelo vento. Parei a moto e saí correndo atrás. Consegui resgatá-los, mas levei um baita susto! Sei que existem muitos lugares para trabalhar como motoboy; a demanda é muito grande. Alguns lugares pagam mais, outros menos, em alguns se trabalha mais, em outros menos, encomendas pesadas ou mais leves — trabalho não falta a quem entra na profissão. Seja qual for a encomenda, responsabilidades como pontualidade, disciplina e asseio são fundamentais. Também é essencial estar com a documentação em dia, fazer a manutenção da moto, ter vestimenta e acessórios adequados e, principalmente, respeitar as leis de trânsito. Há quem diga que é fácil ser motoboy. Convido a experimentar... Estive observando a dificuldade que as pessoas têm em lidar umas com as outras. Durante meu trabalho, encontro pichações em muros com frases como “mais amor, por favor”, “o amor é importante, porra!”, “odeie seu ódio, ame seu amor”, frases que me inspiram, e sem perceber fico remoendo o significado dessas palavras, assim como também outras que fazem parte do nosso dia a dia sem percebermos, como a relação com o nome das ruas. Ser motogirl é um privilégio? Além de


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motofretista, sou mãe, filha, tia, catequista, musicista, dançarina e fotógrafa. Como aprendiz da vida, sei que é preciso perder para ganhar, faz parte do processo de amadurecimento individual. Ganhei experiência na vida ao mesmo tempo em que perdi muitas outras coisas. A vida é um conjunto de práticas diversas: quanto mais praticamos, melhor executamos — até o momento da velhice, que nos impossibilita de praticar muitas coisas. Executar o que se almeja é o desejo de todos desde criança. Tenho muita experiência com a dança, fiz turnê por todo o Japão entre as décadas de 1980 e 1990, e muitas vezes me perguntei: Por quê? Sempre questionei a razão de viver e qual a missão a seguir. No Japão, procurando uma resposta para minha pergunta, fui trabalhar em fábricas de máquinas de bebidas, pachinko, toldos de alumínio e fundição. Descobri então um mundo diferente, pessoas que ganham pouco e trabalham muito. O trabalho como dançarina era muito importante para mim, mas o assédio, a inveja, a especulação e a perseguição dos paparazzi me incomodavam. Por isso eu sabia que um dia, para que pudesse ser livre, teria que deixar de dançar. Eu me sentia, na época, um bibelô manipulado, mas creio que valeu a experiência e percebo que ter dançado esse tempo foi uma preparação física para andar de moto. Dançar é meu dom de nascimento, mas um dia resolvi depositar minhas energia em outras atividades, como o exaustivo exercício de dirigir moto, ter controle e resistência para aguentar a direção. Essa é uma coisa que sempre desejei fazer, tenho carteira de motorista desde os 18 anos de idade, incentivada pelo meu pai, e ele sempre foi meu modelo, porque tinha lambreta. Sinto liberdade; o movimento de dirigir é como o de dançar. Podemos reconhecer o sincronismo da dança na


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natureza e nas ruas. A liberdade está em ver outros lugares e pessoas. Dediquei muitas horas, em três anos, ao meu trabalho como motogirl; na dança também me dedicava a muitas horas de ensaio, até a exaustão completa. Pelo caminho, encontrei muitas pessoas de boa vontade, que me deram as informações corretas e facilitaram meu trabalho. A maior motivação para concluir o trabalho sempre foi a responsabilidade de ser eficaz, e algumas vezes, ao fracassar por um motivo qualquer, a frustração me fez chorar. As aventuras foram inúmeras, e os riscos também. Um passo de cada vez, arquitetei meus atos com fé nas pessoas que me cercam e sempre me inspirando nelas, que, com amor e carinho, me auxiliaram a sobreviver a muito frio, vento, tempestades, poluição e barbeiragens. Foram dias em que cheguei em casa com a cara preta de tanta poeira. Descobri muitos lugares bonitos, diferentes, distantes, de muitos tipos. Observei igrejas, rios e vales, cavalos, feiras, mercados, hospitais, estradas, ruas e casas. Enfim, vi essa cidade imensa por cima de seus arranha-céus. Sempre tive muito trabalho e aprendi a dividi-lo por área ao esquematizar os melhores itinerários. Com esse trabalho, desenvolvi minha memória e consigo decorar rapidamente as coisas. Consigo entregar várias encomendas muito rapidamente. Hoje em dia, posso dizer que tenho experiência como motogirl e que conheço muito bem a cidade de São Paulo, da qual muito me orgulho. Gosto de ser útil e ajudar as pessoas. No trânsito, é necessário ter muita paciência. Com ela, longe se vai... Adoro minha moto. Ela é como uma filha ou uma extensão do meu corpo; sinto vontade de beijá-la e agradecê-la


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por me ajudar tanto, minha querida companheira inseparável. Fico sempre atenta à manutenção e faço de tudo para conservá-la. Não deixo ninguém guiá-la, só dou carona na garupa e olhe lá... No meu baú — meu porta-tudo —, levo todos os tipos de bagagens, desde envelopes e peças grandes até minhas compras pessoais. É muito prático e útil. Sempre faço os trabalhos o mais rápido possível para ter logo meu tempo livre. Nunca tiro os olhos da minha querida. Sempre que a deixo, tranco direitinho, faço rápido o que preciso e volto ansiosa por revê-la no lugar onde a deixei. Algumas vezes, ao deixá-la sozinha, encontrei surpresas que me deram prejuízo, como um pneu furado, lacre arrebentado, pisca-alerta quebrado, a moto tombada por terem feito uma ré de mau jeito, multas, um espelho rachado, batida na traseira por um taxista embriagado etc. Muitas coisas que me aconteceram tive que relevar, e recomeçar, dando Graças a Deus por ter sobrevivido, poder voltar para casa e ver meus filhos. Porque eu andava devagar, por causa dos meus cuidados de segurança, vários motoristas buzinaram e zombaram de mim. Tenho esse direito, também pago imposto e a rua é pública. A velocidade da moto não pode ser motivo para outros quererem me derrubar. Certa vez, um louco jogou o carro para cima de mim e me xingou; acho que pensou que eu era um homem. Nossa, que susto! Deixei que ele passasse e saí fugindo, afinal, no trânsito nunca se sabe o que um insano pode fazer. Sempre fujo das confusões e brigas, só quero viver e mais nada.


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Procuro sempre ter os documentos em ordem, porque prezo muito andar de moto, e não quero ter problema nenhum. Ser motogirl é meu ganha-pão, minha independência, meu compromisso, minha labuta, meu estilo de vida, minha observância, meu sincronismo nesse balé das estradas. É, afinal, meu jeito de fazer parte de um todo. Andréa Sadocco Giannini de Oliveira


Cap.03

Poeta dos Motoboys


Cap

Poeta dos Motob


A trajetória

Chovia bastante. Era uma manhã de julho de 1990. Dando uma olhadinha nos classificados de emprego, um anúncio chamou minha atenção: “Precisa-se de rapazes com moto própria para início imediato.” Eu nem imaginava que ali começaria uma história de lutas, tristezas e alegrias. Ao chegar ao endereço indicado, no bairro do Tatuapé, vi dezenas de motos paradas na porta da casa e rapazes conversavando, rindo alto e contando em tom heroico suas aventuras do dia anterior. Consegui o emprego e, no dia seguinte, começaria. Eu tinha uma CG ano 77 frente de mola (canelão). No dia seguinte, às 7h, estava eu lá, um dos primeiros a chegar. Não demorou muito, foram chegando os motoboys. Em questão de meia hora, já eram dezenas. Logo chegou o Sr. André, que passava o trampo para os motocas, e chamou meu nome. A primeira entrega deve ser como a história do primeiro sutiã: a gente nunca esquece. Era para retirar um documento em uma conhecida editora, na Ponte do Piqueri, reconhecer firma no cartório e devolvê-lo. Lá fui eu. Achava aquilo o máximo, agora eu era motoboy (yes!), em uma época em que a profissão não era tão concorrida e era possível ganhar um dinheirinho.

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Semanas se passaram, e eu já havia feito muitos amigos e perdido alguns também para o trânsito assassino de São Paulo. Consegui meu primeiro contrato na Embratel: trabalhava seis horas por dia e não ganhava mal. Retirava as fitas de telefonemas na Telesp da rua 7 de Abril, na Embratel da Cerro Corá e da Amador Bueno da Veiga, na Penha, e levava para a rua dos Ingleses, para que efetuassem a leitura. Uma vez por mês eu entregava faturas nas rádios de São Paulo, como a Rádio Globo, a Boa Nova de Guarulhos etc. No início dos anos 1990, a profissão de courrier, ou motoboy, como é popularmente conhecida hoje, era quase novidade. Apesar de ter começado nos primórdios dos anos 1980, o número de profissionais era muito pequeno (tanto que a profissão passou despercebida durante quase uma década). Naquela época, havia algumas empresas em que nós, motoboys autônomos, até tínhamos vontade de trabalhar. Por causa da fama de loucos que tinham os motoboys, consegui, depois de um tempo, trabalhar em algumas delas, como Protege, RRJ, Mototurbo etc. Meu contrato com a Embratel terminou em 1993 e fui trabalhar na Tip Top, próximo à Ponte do Limão. Certa vez, uma senhora do escritório me pediu que fosse a uma conhecida livraria comprar um livro sobre economia. Deu o dinheiro contadinho, preso com um clip. Coloquei no bolso da calça e acabei perdendo o dinheiro. Eu não tinha como repor, e o jeito foi encarar a fera. A mulher ficou furiosa, achando que eu havia gasto o dinheiro dela. Começamos uma discussão que minutos depois resultou na minha demissão. Saí de lá de alma lavada, pois as pessoas que ali estavam sabiam que eu não teria coragem de me sujar por uma porcaria de dinheiro que mal dava para pagar meu almoço.




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Depois de trabalhar em mais três ou quatro empresas, fui trabalhar na Mototurbo, na Vila Guilherme. Ali, sim, comecei a entender alguma coisa sobre a profissão. Éramos trezentos motoboys e trabalhávamos para a Caixa Econômica Federal e para o Banco do Brasil. Eu já estava com 24 anos, mas o espírito louco, aventureiro — e muitas vezes inconsequente — estava bem presente. Comecei a presenciar a morte de pelo menos um amigo por semana, devido ao capacete que éramos obrigados a usar, de cor verde (padrão da empresa) e semelhante a uma casca de ovo. Então, resolvi acionar uma equipe de reportagem para fazer uma matéria sobre o que estava acontecendo e, na época, a matéria foi veiculada pelo SBT, no extinto programa Aqui Agora (o que também resultou na minha demissão). Na Mototurbo, comecei a escrever músicas e poesias que contavam o nosso dia a dia nas ruas de São Paulo. Um amigo meu, o Fernandão, ouvia e gostava muito, até que ele pediu para cantar comigo. Montamos, então, o grupo Fator Surpresa. Passamos quatro anos cantando e fazendo apresentações em empresas, locais públicos, eventos etc. A profissão de motoboy sempre foi muito discriminada, devido aos 30% ou 40% de envolvidos na profissão que desrespeitam pedestres e leis de trânsito, chutam espelho, arrumam confusão e mancham a imagem dos 70% ou 60% formados por pais de família, gente séria, que é profissional de verdade. A mídia também contribui bastante para essa discriminação: por exemplo, quando bandidos usam motocicletas (um meio de fuga rápida) para cometer delitos, a mídia logo diz “motoboy bandido”, entendeu? Tacham o profissional motoboy. Motoboy é trabalhador, bandido é bandido, e ponto final. Quando alguém mata uma pessoa com uma faca ninguém diz que o cara é açougueiro, não é? Por favor, parem de hipocrisia e de


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jogar a culpa no motoboy. Que sejam punidos os que desrespeitam pessoas, assim como os motoristas que também o fizerem. Depois de ter socorrido um amigo motociclista que teve a perna decepada e morte quase instantânea na ligação Leste-Oeste no ano de 1999, resolvi que não queria mais ser motoboy. Decidi que poderia exercer uma profissão que ajudasse, de fato, meus colegas de profissão. Consegui um emprego como motorista de ambulância. Finalmente, em 2004, consegui entrar no “SAMU 192” (serviço de resgate do governo federal) e hoje em dia contribuo para que vidas sejam salvas na cidade de São Paulo. Hoje, uma das minhas músicas, “O Rap dos Motoboys”, tem centenas de milhares de acessos no Youtube, o que me deixa feliz, porque ela transmite a realidade nua e crua do motoboy paulistano. Após encerrarmos o grupo Fator Surpresa, desenvolvi uma carreira solo como poeta dos motoboys. Hoje somos três (DJ, Nando e Kiko Melodia) e defendemos com unhas e dentes a causa justa dos motoboys, por meio de músicas e desta poesia: A poesia dos motoboys Eu rodo por aí para lá e para cá. De manhã, no sol, na chuva, eu saio para trampar. Eu não nasci em berço de ouro, se liga, bacana. Eu atuo na profissão que tritura carne humana. Não arrisco minha vida para chegar primeiro. Para ganhar o pão eu conto com a sorte. Sou um sobrevivente que desliza pelo corredor da morte. Hei, Joe, preste atenção, você que discrimina e me tira de ladrão. Eu rezo todo dia, pedindo proteção. Capote violento, homem e máquina no chão. É cena normal ver um mano em coma na UTI de um hospital. Mas eu não quero ver esta cena nunca mais, vocês e o poeta dos motoboys nesta luta pela paz, chegue mais, dê a mão, são 200.000 para formar este cordão,


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Eu luto pela vida e vai ter que ser assim. Vou deixando um recado para os muleques das dream. Fiquem atentos, ligeiros, aprendam um velho macete. Em vez de drogas na cabeça usem sempre o capacete. Porque o perigo não dá trégua nem sequer um momento e pode te encontrar em qualquer cruzamento. Variante de feirante quase me matou, deu pane no sistema e o cara não freou. Saí voando, você tinha que ver, para Steven Spielberg eu seria o dublê. Levantei rapidinho, nenhum arranhão, tá pensando que é milagre, mas tem explicação, tô com Deus, sou herói. Sem carteira assinada, profissão motoboy, tudo de ruim já sumiu da minha lista, chamo no grau, detono na pista, também sou artista, versão brasileira do motoboy paulista. Quando vejo um comando me mando, volto amanhã, cansei de deixar moto lá no pátio do Detran. Daelim, RDZ e até uma Titan. Terça-feira passada um tremendo sufoco, carrocinha amarela para pegar cachorro louco. O guarda olhou para minha motoca e começou a dar risada, ele achou a magrela um tanto encorpada. — Eu nunca vi turuna 80 com motor de estrada. — Então você não viu nada, tá tudo normal, comprei lá nas bocas tenho nota fiscal, na general. — Você é cara de pau, olha esse painel, olha o escapamento, olha o pneu careca, e o licenciamento, a casa caiu vou prender seu documento. — Pode prender que eu tiro depois, enquanto isso vou rodando porque tenho 2, o meu cabrito não berra, eu quero a paz não a guerra. Eu levo sua pizza, entrego sua mensagem, percorro em um segundo os quatro cantos da cidade. Observe com atenção que você vai perceber, sou cenário da cidade que não para de crescer.


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A motocicleta driblando o trânsito absurdo e desordenado das grandes cidades é como a cadeira elétrica: muitos sentam e morrem. Já perdi dezenas de amigos que trabalhavam como motoboys, na maioria das vezes, com idades entre 18 e 25 anos, para os quais imperavam o espírito de aventura e a adrenalina. Quando eu tinha essa idade, acreditava que jamais morreria. Abusei muito, e, graças a Deus, sobrevivi, por isso tenho propriedade no que falo. Eu diria que as piores recordações foram os velórios de amigos jovens que se foram, vítimas de um sistema capitalista que massacra esses profissionais. Via suas famílias destruídas, filhos e mães chorando, e sabia que não demoraria muito pra que essa cena horrível se repetisse. Rezava todas as noites para que eu não fosse o próximo. Posso dizer que as melhores lembranças foram as amizades, que duram até hoje, e o trabalho que desenvolvo como “poeta dos motoboys”, pois transformo minha realidade como motoboy em cultura e orientação, e, graças a Deus, sou muito querido e respeitado entre meus antigos colegas de profissão. Na verdade, não é uma profissão muito mal-remunerada, mas é de alto risco e bastante discriminada. Peço a Deus para nunca mais precisar subir em cima de uma moto para ganhar a vida. Se não houver outro jeito, eu vou para cima, mas… Saudades dos amigos e das viagens que fazíamos juntos — acredito que era uma das poucas diversões, pois a realidade é cruel, esse é meu ponto de vista. Sei que uma minoria deve pensar assim. Que Deus abençoe os motoboys de todo o Brasil. Marcelo Veronez





Cap.04

Fรกbio, motoboy

Cap.04

Fรกbio, motoboy


Opção ou profissão?

Eram umas 16h do dia 2 de outubro de 2008, uma quintafeira quente, sem previsão de chuva. O dia tinha começado bem... A primeira saída tinha sido de Guarulhos a Jardim Cumbica, trampo rápido, só retirar e levar para o cliente. Já conhecia e tinha amizade com a pessoa em Guarulhos, então, era chegar lá, retirar rapidinho e me jogar para Eugenópolis. Quando retornei à base, fiquei parado umas duas horas. Aproveitei para almoçar, e já tinha saído uma O.S. (ordem de serviço) da prefeitura de São Bernardo do Campos, para uma entrega de documentos, e depois dei um retorno na avenida Angélica. Dei risada, pois o dia estava fraco e já tinha feito umas horas, e com trampo fácil. A pessoa que pede o trampo é muito gente fina; onde trabalho são poucos os clientes que são chatos e pegam no pé do motoca. Fiz o serviço e voltei à base rápido. O dia estava rendendo, farol ajudando, a sorte estava a meu favor. Tive a sorte de sair com dois de uma vez. A primeira era um mamão, para retirar ali perto da FMU e levar até um local próximo ao viaduto 9 de julho. Depois eu ia fazer a outra, que era pegar uns cartuchos de impressora na avenida Imirim e depois levar para uma produtora na Lapa. Antes ia no distribuidor retirar umas caixas de O.S. Lá eles me dariam outros

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endereços para fazer, mas acabou sendo apenas um endereço, na TV Cultura, no bairro da Água Branca.” Pensei: “Olha, vai dar para fechar legal o dia.” Em dinheiro, tinha feito mais ou menos R$ 90,00 até aquele momento. Queria fechar o dia com mais um pouco. Ainda ia fazer mais alguma ordem de serviço antes de ir embora, pois sempre fui de chegar cedo e sair tarde. Na empresa em que trabalho há 15 motoboys, quase todos antigos na firma. O mais novo tem seis meses e o mais antigo tem oito anos de firma — ele é mais velho que o dono da empresa. Somos um pessoal unido, mas é claro que sempre há quem tenha mais amizades. Em relação às outras firmas de motoboy, pelo que escuto por aí, é bem melhor que muitas no mercado. Quando comecei a trabalhar como esporádico na rua — em agosto de 2005 —, na pizzaria do meu tio na Saúde, tinha saído da área de manutenção de computadores porque o salário estava meio ruim. Além disso, meu tio tinha sofrido um enfarte e pediu para que eu e uma irmã dele tocássemos o negócio. Comecei a trabalhar quando tinha aperto de entregas e fiquei lá até meados de janeiro de 2007. Trabalhava lá à noite e durante o dia fazia uns bicos para pessoas que precisavam pagar contas, comprar alguma coisa, serviços de autônomo mesmo. Não tinha intenção de trabalhar em empresa de motoboy. Então meu tio resolveu vender a pizzaria e os novos donos só ficaram com o pizzaiolo. Pensei: “Caramba, fiquei desempregado. Mas beleza, vou procurar outro serviço para fazer.” Foi quando um amigo meu, que conhecia o dono da empresa onde trabalho, me levou até



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lá, e acabei ficando já no mesmo dia. Fiz um serviço, pois estava com falta de motoca e o trabalho estava pendente. Foi quando recebi o aval de bem-vindo à vida de motoboy — ou “cachorro loko” — em São Paulo. Saí da produtora umas 15h30 para levar uma fita até a Fundação Padre Anchieta. Depois ia retornar à base... Saí da emissora e peguei a marginal Tietê sentido Penha. Pretendia ir até a ponte da Casa Verde e pegar a avenida Rudge sentido Centro. Como sempre, no meio dos carros, mas com o cuidado de não sofrer uma fechada ou, pior, uma batida. Na altura de uma loja de material de construção tinha um ônibus na faixa da esquerda, ao meu lado, e ele simplesmente veio com tudo para a faixa central; percebi e desviei dele, só que ele voltou, e o carro da faixa da esquerda deixou a traseira do veículo todinha para mim. Na hora tentei frear e desviar do carro. Consegui jogar a moto entre o carro e o ônibus, e bati na ponta lateral do carro da frente. Não tive como evitar o acidente. Caí na marginal. Na hora, por instinto, olhei para trás, deitado, para ver se vinha carro. Como a moto caiu antes de mim, fez uma barreira e ninguém passou por cima. Mexi os dedos dos pés e das mãos. Não tinha quebrado nada. Então fui rastejando até a moto para desligá-la. Tirei os óculos e o capacete. Sentei e me examinei: não tinha nenhum arranhão nos braços. Nada. Quando fui me levantar notei que, para minha surpresa, meu pé estava para o lado, aberto. Tive fratura exposta da perna – que mais tarde soube ser fratura da tíbia e da tíbula. Na hora, entrei em choque: não pela dor, pois na hora não senti a dor, mas pela situação em que me encontrava – fiquei com medo do que aconteceria comigo e tal. Fim de ano, na hora você entra em desespero. Nisso, o motorista do ônibus foi embora sem prestar socorro nem olhar o que ele tinha causado.


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O cara do carro em que colidi, coitado, estava com os documentos atrasados. Ele não tinha sido culpado e me socorreu. Ficou comigo no local e foi embora antes de a polícia chegar... O tempo que fiquei no chão pareceu uma eternidade. Cada minuto que o resgate demorava eu ia piorando. Quando você sofre o acidente, começa a pensar em tudo ao seu redor: sua vida, seus familiares, filhos, tudo o que acontece à sua volta. Fábio Ascempcion


Cap.05

Jordana



Motogirl de Iomerê, Santa Catarina

Nada é mais clichê do que começar uma história pelo começo. Antes de rabiscar as primeiras palavras, até me perguntei se teria outra forma de mostrar ao mundo (ou só a você mesmo, leitor) um pedaço dessa minha vida. Pedaço, porque costumo resumir tudo. Baseio-me em fases, nas melhores delas. Porém, como não encontro outra solução, começo pelo começo mesmo, e deixo o meio e o final em seus devidos lugares. Uma vez li que planejar é o primeiro passo depois de uma boa ideia. Mas, na minha vida, os planos sempre foram coadjuvantes, enquanto as surpresas e os imprevistos davam ainda mais velocidade ao meu dia a dia. Eu me lembro de um dia ter estacionado a bicicleta em uma guia pintada de branco, perto da divisa entre Videira e Iomerê. O dia parecia noite. O céu estava escuro, as luzes já começavam a se acender nas casas e o comércio estava quieto. Beretta estava comigo. O nome dele é Fernando da Silva Beretta, daí o apelido. Somos amigos desde os tempos dos dentes de leite, mas ele nunca me acompanhava nos passeios de bicicleta. Naquele dia, Beretta estava na garupa.

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Sentamos na grama amassada e ficamos ali por alguns minutos. Os poucos carros que passavam levantavam uma poeira engraçada, que formava desenhos de areia e sujava as roupas de um varal. Era exatamente do que eu precisava. Um cenário, um ouvinte e a vontade de refletir sobre o futuro-presente que se apresentava para mim. — Já sei! – falei. — O que você sabe? — O que quero ser quando crescer...

Beretta virou o pescoço e me fitou de frente. Foi o que bastou para que eu concluísse. — Quero ser livre!

Iomerê nasceu depois de mim. Foi fundada em 20 de julho de 1995. A principal atividade econômica é a agropecuária. E era dela, e das minhas duas rodas preferidas, que eu dependia para sobreviver. Mas antes de render-me a confidências e amores, deixo escapar, como quem não quer aparecer, meu nome: Jordana. Agora, sim, posso deixar o coração falar por mim e pelos sentimentos que tenho pela vida. É tudo muito simples. Nasci em uma família humilde, que cresceu e se tornou forte. Devo tudo o que tenho e tudo o que sou à união e à perseverança. Parece até conversa mole, mas não é. Meu pai, desde muito cedo, sempre me induziu às melhores sensações, fruto das escolhas mais sábias que alguém pode ter. Em julho de 1999, meu pai abriu, com um dinheiro que ganhou na Loteria, uma loja agropecuária. Não foi Mega-Sena, aviso antes das precipitações. Mas foi um dinheiro que, na época, jamais conseguiríamos juntar em poupança. No início era algo pequeno. Não tínhamos funcionários e quase não havia clientes. Meu pai


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pensou em fechar, mas Beretta e eu não deixamos. O que fazia com que ele não desistisse e voltasse à fazenda em que trabalhava anteriormente era o sonho que, em uma conversa e outra, eu e Beretta confidenciávamos. Meu pai não queria nos decepcionar. E não o fez. Três meses bastaram para que o negócio começasse a dar certo. Eu, com a bicicleta, ia ajudando no que era possível. Batia nos sítios, pulava porteiras, conversava com fazendeiros e arriscava levar desaforo quando insistia demais na propaganda. Beretta ia comigo, às vezes, mas eu gostava de estar sozinha para correr com a bicicleta o máximo que conseguisse. Nada era melhor do que a sensação de dever cumprido e o vento batendo nos olhos em um final de tarde. Mas eu queria mais. Meu aniversário de 18 anos estava chegando e eu sabia que podia pedir o que quisesse. Eu sabia o que queria, mas tinha medo de me frustrar. Sempre fui assim. Ilusões demais, sonhos além da conta, e uma mania tremenda de idealizar meus presentes. Nunca ganhava o que queria, mas aquele ano seria diferente. A loja estava dando certo, havia dois veterinários e vários clientes. Meu pai não ia me negar nada. Decidi que seria ela. A que o vizinho precisava despachar para outra garagem em troca de dinheiro. Vermelha e preta, com alguns arranhões que davam a ela um ar de aventura e adrenalina. Já tinha um nome, mas eu a batizaria novamente, com um apelido carinhoso à sua altura. Era aquele o presente que, no fundo, eu sempre quis. Uma Suzuki Bandit 400, ano 1993. — Eu compro! – consentiu meu pai. — Pois eu não deixo! É perigoso demais... – contestou minha mãe.


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E eu ali, no meio dos dois, com 17 anos de idade, olhos cheios de lágrimas e medo de nunca conseguir a liberdade que tanto buscava. Algo me dizia que eu teria a moto. Se não fosse no aniversário, seria mais tarde, anos depois. Mas eu a teria. Era um sentimento de certeza que meu coração alimentava em silêncio. — Vou tomar cuidado! – eu argumentava. — Mas, Jordana, se você já corre com a bicicleta, imagine com isso! — Deixa, mulher, ela vai fazer 18 anos... — Tudo bem! Não adianta discutir mesmo. Mas depois não quero saber de reclamações.

Nunca eu havia sentido tamanha alegria. Nem quando a moto foi entregue ao meu pai, no dia do meu aniversário. Estava feito. Era aquilo. Em poucos dias, eu estaria experimentando a liberdade, o vento mais ríspido, o corpo mais solto. Não tenho dúvidas. Foi o melhor presente de aniversário que já ganhei na vida. Na primeira semana, senti como se todo mundo na cidade me olhasse diferente. Ninguém acreditava que uma garota, filha dos donos da loja agropecuária, estava pilotando a tal moto vermelha. O próprio vizinho me deu as primeiras aulas. Andávamos devagar, íamos para Videira e voltávamos no fim do dia para Iomerê. Ele me contava algumas aventuras que tivera com a Madalena (era como ele chamava a moto) e eu me imaginava em cada situação. Era como se eu já tivesse vivido tudo aquilo que ele me dizia. Como se já conhecesse cada pedaço de terra ou asfalto de Santa Catarina, montada, é claro, na Suzuki Bandit 400. Era uma loucura! Com a carta nas mãos, e com o guidom também, a única certeza que eu tinha era a de ter feito a escolha certa. Mas ainda faltava algo. Minha moto precisava de um novo nome.


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Já havia pensado em alguns, mas nada que me agradasse. Pensei em Lurdes, para homenagear minha mãe. Desisti. Depois me veio a ideia de continuar mesmo com Madalena. Mas não seria original. Cheguei a pedir a ajuda de Beretta, que disse só gostar de um nome no mundo: o meu. Passaram-se alguns dias e quando eu estava quase me esquecendo do assunto, encontrei dentro de uma gaveta uma folha com a letra de Piece Of My Heart. “Você está fora, nas ruas, parecendo bem, E, baby, bem dentro do seu coração, eu acho que você sabe que isso não é correto. Nunca, nunca, nunca, nunca, nunca me ouve quando eu choro à noite. Baby, eu choro o tempo todo! E a cada vez digo a mim mesma que eu, bem, não consigo suportar a dor. Mas quando você me segurar em seus braços, vou cantar mais uma vez.”

Como eu não havia pensado nela? Será que a euforia do presente, os olhares nas ruas da cidade e a movimentação da loja haviam me cegado completamente? E aquela folha de papel? Ainda tinha algum significado na minha vida? Era minha música favorita. Minha cantora favorita. Eu jamais vou me perdoar por ter me esquecido de Janis Joplin. Foi assim que batizei a moto. Janis e eu passamos a nos entender bem. A harmonia existia, todos percebiam. Claro que quando eu estava nas ruas a concentração aumentava, devido aos pedestres de Iomerê e aos outros veículos. Mas nas estradinhas de terra, só existíamos nós duas. Janis e eu. O resto do cenário era a plateia avulsa, que batia palmas, às vezes, quando eu levantava uma poeira maior, ou deixava escapar um grito de euforia.


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Um dia, depois de ter deixado algumas vacinas na loja do meu pai, peguei Beretta pelo caminho e o levei até meu lugar preferido. Não conto onde fica porque é um segredo meu e de Janis. Mas sempre confiei em Beretta, queria compartilhar com ele os mesmos sentimentos que eu tinha quando estava lá. No caminho, despistamos algumas crianças que corriam atrás de nós e entramos em uma estradinha cujo destino eu já conhecia. O caminho era cheio de pequenos buracos. Beretta reclamou no começo, mas desistiu de falar. Eu não dava ouvidos a ninguém quando estava pilotando. Isso talvez possa ser chamado de sintonia, não sei. Mas sempre foi assim, desde que ganhei a Janis. Estacionei a moto embaixo de uma árvore com folhas secas. Mas até a carência dos galhos tinha beleza ali. Pelo menos eu enxergava. Tiramos o capacete, penduramos no guidom e juntos respiramos o ar que pairava na montanha. A visão que tínhamos era basicamente a de um quadro desses que encontramos na sala da vovó. Eu sempre fui apaixonada por pincéis. Era o lugar perfeito para rir, chorar, dormir, acordar ou apenas observar ao redor. — É lindo mesmo! Nunca tinha vindo aqui... – disse Beretta. — Eu imaginei, por isso o trouxe.

Foram as únicas frases que conseguimos trocar. Janis Joplin é testemunha de que tentei balbuciar mais algumas palavras, mas não as encontrei em lugar algum. Era como se todo o meu vocabulário tivesse escapado no vento e ido embora para sempre. Não sei se você, leitor, já teve a mesma sensação. Naquele dia não entendi, mas hoje até poderia arriscar uma conclusão. Porém, fiquemos apenas com o desfecho em si.


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Nunca meus olhos haviam enxergado em Beretta algo além de um bom amigo. O coração também não via nada de mais. O corpo talvez sentisse alguma atração. Mas ela era tão fraca até então que a razão ganhava todas as batalhas contra o instinto. Eu disse até então? Pois foi até que ele também tivesse a mesma sensação que eu. Mais tarde, Beretta me disse que procurou palavras para justificar o que viria a fazer, ou simplesmente para não tornar tudo tão confuso, mas também não as encontrou. Nem preciso narrar aqui que lábios se encontraram naquele pôr do sol. Acho que a maioria das pessoas já esteve em situação parecida. Ter que decidir entre um amor e uma amizade. Mas o que me difere da maioria é que o amor e o amigo eram a mesma pessoa: Beretta. Às vezes, eu sentia que não tinha pilotado bem, que havia me arriscado e descuidado de Janis. Sentia que meu pai percebia minha cabeça longe, mas não perguntava nada. Minha mãe chegou a fazer algum comentário, mas eu não queria falar. Não precisava, ainda. A única hora em que eu não estava pensando em Beretta era quando ele estava ali, diante de mim, trazendo algum doce da padaria ou apenas passando em frente à loja e me cumprimentando com carinho. Um dia a conversa foi inevitável. Não que eu não quisesse, mas tinha medo do que ele pudesse me dizer. Como isso era possível? Eu nunca tive medo de nada. Sempre enfrentei meus pais, as pessoas na rua que desrespeitavam o trânsito, o próprio trânsito. Não tinha medo de cair, me machucar ou morrer nas idas e vindas para a loja do meu pai. Não tinha medo de que me roubassem a Janis. Se isso acontecesse, eu moveria as montanhas de Iomerê para encontrá-la. Eu sabia que era corajosa. Então, por que eu estava naquele estado deprimente? Parecia uma criança quando já espera pela bronca dos pais. Aquilo não estava acontecendo...


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Foi no dia em que precisei ir a Treze Tílias, cidade próxima a Iomerê, em Santa Catarina. Na verdade, eu tinha vários lugares para ir, entre sítios, bancos e empresas. Mas foi em Treze Tílias que me encontrei com ele. Quis correr dali, ir embora sem olhar para trás, subir na Janis e voar. Mas fiquei. Existem duas Jordanas. A Jordana de antes daquela conversa e a que veio depois daquela tarde em Treze Tílias. Dizem que mudar é importante, que faz parte da vida e do crescimento humano. Concordo. Mas só agora, depois de todo esse tempo, consigo enxergar as mudanças de maneira positiva. Como disse no começo desta história, gosto de resumos. Então, prefiro simplificar nesse mesmo parágrafo tudo o que Beretta me disse naquele dia a perder mais tempo relembrando frase por frase do que foi nosso diálogo. Não gaguejou, não pigarreou. Não tossiu nem tentou voltar atrás. Foi direto, seco e cheio de certezas. Não queria nada comigo, a não ser nossa amizade de tempos de criança. Disse que tinha seus medos, seus sonhos e talvez tudo aquilo não fizesse sentido. Desistiu antes mesmo de começar. Eu apenas consenti. Saí de lá entregue ao desespero. Não consegui chorar. Apenas subi na moto, acelerei o máximo que consegui e desapareci das vistas dos habitantes da cidade. Os dias que se seguiram foram angustiantes. Como uma bola de neve, todos os problemas possíveis resolveram se misturar. Meu pai acidentou-se na escada da loja e minha mãe também teve problemas de saúde. Comprei o chão de Iomerê em duas quedas que me custaram um empréstimo no banco para fazer uma reforma em Janis. A loja estava indo bem, mas os gastos aumentaram demais. Faltou dinheiro.


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Foi aí que decidi arriscar. Mudei-me para Florianópolis em outubro de 2002 à procura de um emprego novo, um aluguel barato e a esperança que estava em falta. Não sei se todo começo é necessariamente difícil, mas aquele foi. E muito. Não queria recomeçar nada, apenas apagar uma vida e acender outra. Era minha forma de ao menos tentar voltar a ser feliz. Em Florianópolis, tudo parecia o inverso de Iomerê. Era minha vida de cabeça para baixo, quase literalmente. Só Janis Joplin era conhecida. Meu primeiro emprego na capital foi em uma pizzaria. Trabalho duro, penoso. Exigia mais do que apenas meu esforço físico, exigia esforço psicológico também. Achei que não ia aguentar um mês. Mas passei dois anos inteiros entregando pizzas na tele-entrega. A rotina era puxada. O cansaço que se apossava de mim durante as noites trazia o sono, os sonhos, alguns pesadelos e um ânimo novo a cada manhã. Era uma onda de sentimentos distintos que embalava minha nova vida, longe dos meus pais, dos amigos e do estranho amor que deixei em Iomerê. Aquilo estava começando a gerar efeitos confusos. Ao mesmo tempo em que eu pensava em desistir de tudo e correr para o colo da mãe, tinha imensa vontade de prender meus pés no asfalto e não arredar dali até poder afirmar a felicidade que eu estava procurando. Mas ela também teve sua vez. Datas à parte, ela chegou quando eu menos esperava. Embora muito desejasse, a surpresa foi inevitável. Em um sábado desses em que chove sem parar, estragando planos alheios, bateram no apartamento onde eu morava. Abri a porta e ali estava minha libertação, minha felicidade, meu estranho amor: Beretta. O susto paralisou os meus sentidos. Ele também parecia imóvel por algum


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motivo que nem eu nem ele podíamos enxergar. Já haviam se passado dois anos. Dois longos anos sem olhar dentro dos olhos de açúcar do meu amigo de infância. Aquele da garupa, das confidências, dos sonhos em comum. E agora ele estava na minha porta. Parado. — Eu senti saudades! – disse ele depois de longos segundos. — Eu também senti. Senti muitas saudades... Pensei em te ligar, pelos anos de amizade... — E por que não ligou? — Por que você não ligou? Beretta baixou os olhos para o tapete. Outra pausa. — Entra! – convidei, abrindo mais a porta. Ele entrou. Olhou a sala, acomodou-se no sofá e voltou a falar. — Eu vim porque eu precisava te ver, olhar pra você de novo e ter absoluta certeza do que quero! — E o que você quer? — Eu quero você, Jordana!

Pude identificar cada letra daquela frase, uma após a outra, como se Beretta estivesse ditando as palavras diante de mim. O olhar que me lançou foi impecável, nitidamente lúcido, completamente azul. Tão azul que enxerguei o que havia atrás daqueles olhos. E a única certeza que tinha era de que eu levantaria de onde havia me sentado e correria para lhe dar um abraço de amor, seguido de um beijo, também movido por aquele sentimento que dormia. Mas o sentimento que dormia não acordou naquela manhã de sábado chuvosa. Não acordou durante a noite, nem durante os meses que vieram depois. Já era tarde. Beretta estava atrasado dois anos. Naquele instante, entendi que, mesmo sem perceber, estava dando tempo ao tempo, enquanto vivia longe de Iomerê e das minhas lembranças mais antigas. Eu não ia me levantar respirando depressa todo o ar da sala. Não ia correr em direção a Beretta e abraçá-lo antes de dar-lhe um beijo. O que


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fiz foi mais simples do que isso. Desmenti a falsa certeza que ele trazia no olhar. Ele apenas consentiu. Da janela, vi Beretta abrir o guarda-chuva e acenar antes de ir embora. Não foi à toa que escrevi, parágrafos antes, que a felicidade também teve sua vez. Beretta se foi e levou com ele todas as minhas angústias, os medos e arrependimentos. A felicidade entrou. Peguei a chave, o capacete, bati a porta e sai de pantufas no meio da chuva. Subi em Janis Joplin e voei. Mas para não dizer que sai dali sem rumo, digo apenas que segui na direção contrária a Beretta. O lado oposto, escolhido pela seta da moto e pelo meu coração, livre. Bruna Bo



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Cap.06

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I Meu nome é Eliezer Muniz dos Santos, mas quase todos me chamam de Neka. Entre os motoboys fiquei conhecido como Neka por participar de um coletivo de motoboys e ex-motoboys que desenvolvem atividades culturais junto à categoria. Esse apelido levo desde criança. Mas só recentemente, quando, ao ser convidado pelo artista espanhol Antoni Abad para, junto com ele, criar um projeto com os motoboys na cidade de São Paulo, me apresentei pelo meu apelido, eles começaram a me chamar de Neka, e então me dei conta de que era mais que um apelido, era uma identidade. Acho que nunca me acostumei com nome próprio. Na vida, sempre estamos insatisfeitos e queremos mudar alguma coisa, mas há também outras que, mesmo pequenas, nos fazem felizes e que não queremos mudar nunca. Uma dessas é a forma carinhosa pela qual os amigos nos chamam. Por isso, quando conheci os motoboys e motogirls que vieram participar do projeto canal*MOTOBOY, não fiz a mínima questão de que me tratassem pelo nome próprio e, visto que nos tornarmos grandes amigos, mais uma vez meu apelido substituiu o nome.

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Ganhei esse apelido quando tinha 3 ou 4 anos de idade. Nessa época, eu e minha família morávamos no Rio de Janeiro. Nossa casa ficava nos fundos do terreno de uma pequena fábrica de picolés, cujo dono era um português que cuidava da sorveteria com sua família. Foi ele quem me arranjou esse apelido, e na verdade é uma história bem engraçada. O nome do portuga era Antonio Mota. Não lembro quase nada dele, pois eu era muito pequeno, embora sua grande barriga não me saia da memória, passando todos os dias junto às máquinas de picolés e gritando com suas filhas. A esposa era muito doente e não podia ajudar nas tarefas. Ele tinha que dar conta de tudo e ainda atender à freguesia, formada principalmente pela molecada das redondezas, que não era pouca e corria de lá para cá em busca de um refresco. Com o calor rachando a cuca e a garotada atrás de um de picolé sob a calha em frente à sorveteria, as máquinas não davam conta, e como eu era quase da família, ficava por lá zanzando, brincando no chão, e a molecada que ia lá comprar picolés zoando comigo e mexendo com o papagaio do português. O papagaio passava o dia empoleirado no batente junto à porta, dando grunhidos altos e imitando a voz da criançada e os gritos de Antonio Mota. O papagaio imitava tudo que o português dizia, e a criançada curtia com as estripulias do bicho. Meu pai sempre viajou muito por conta do trabalho. Minha mãe cuidava da casa e tinha que correr o dia todo atrás dos meus irmãos mais velhos, que já estavam na escola, além de costurar para fora para ajudar nas despesas da casa. Nessa época, ela estava grávida de uma de minhas irmãs. Seu Antonio Mota, que além de ser dono do imóvel era muito amigo da nossa família, trouxe um dia do hospital, no seu calhambeque preto, minha mãe


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com a pequena Lora no colo. Ela tinha lindos olhos azuis da cor do céu e toda a vizinhança veio admirá-la. Isso foi logo após a Copa de 1970. São poucas as lembranças da minha primeira infância, mas lembro muito bem o dia que o povo saiu à rua para comemorar o tricampeonato mundial de futebol — foi uma festa enorme nas ruas do Rio de Janeiro. O Brasil viveu um carnaval fora de época aqueles dias, e felicidade assim a gente não esquece. Minha mãe tinha suas preocupações, e eu ficava perambulando pelo quintal da vizinhança, em um ferro-velho próximo, na casa do portuga e na sorveteria. Seu Antonio e as filhas passavam as tardes na sorveteria, desenformando e embalando os picolés. Para desenformar era só puxar os picolés pelo palito, dois de cada vez; então passavam para o outro balcão para colocar a embalagem e depois eram guardados novamente em outro congelador de prateleiras esfumaçadas. A sorveteria era um local bastante fresco e limpo, e aqueles sorvetes fariam a alegria da gurizada no dia seguinte. Naquele calorão, eu, que não era bobo, ficava por lá, porque sempre sobrava algum para mim. Algum não. Vários! Caramba, até vejo a cena. Eu lá, de barriga de fora, pé no chão e um zóião, esperando ganhar um picolé. Eu chegava assim que eles começavam a mexer com os picolés. Quando seu Antonio ou as meninas viam que algum sorvete saía meio quebrado, ele se abaixava e me dava o toco. Eu ficava ali, torcendo para que outros mais viessem quebrados. Virei frequentador assíduo do lugar. O problema era que o português tinha mão boa e nem sempre vinha algum quebrado. Ele sabia a hora certa de tirar as formas do congelador; na primeira forma eu já ficava na expectativa, torcendo para que algum viesse quebrado, e assim começávamos aquele jogo.


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Toda tarde era a mesma coisa. A cada vez que ele desenformava, tirando os picolés inteirinhos — o portuga era habilidoso — apontava os picolés intactos para mim e dizia, com seu jeito de português gozador: — Neca!

Bom, daí em diante vocês já podem imaginar. À tarde era eu correr para a sorveteria para descolar uns picolés. Rio 40 graus e eu na fita. O calor a mil, a molecada no terreiro, um olho na pipa e outro na varanda do seu Antonio Mota, onde o papagaio fazia a maior algazarra. Cabelo espetado, barriga de fora e o suor correndo pela testa. O papagaio girava e retorcia na arara e fazia aquele barulho danado na gaiola. Ele gritava e os moleques imitavam para toda a vizinhança ouvir: — Neca! Neca! Neca!

A meninada toda se divertia com aquilo e fiquei com o apelido. Recentemente, quando tive que usá-lo para aparecer na minha página pessoal no canal*MOTOBOY, substituí o c pelo k, e ficou definitivamente assim: Neka.

II Sempre fui uma pessoa interessada em saber como são as coisas, o porquê delas. Passei por diversos empregos e em vários momentos da minha vida eu sentia que eles me enchiam de tédio e revolta. Fui bancário, vendedor, garçom, programador de computadores e motoboy. Em todos tive a sorte de conviver com pessoas muito boas, mas também com aquelas que não deixam saudades. Sem saber a hora, em todas essas profissões, simplesmente me desligava quando sentia que não tinha mais nada para fazer ali. Independentemente das razões que me levavam a mudar, nunca criei uma relação tão forte


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a ponto de transformar ou interferir no resto da minha vida. Foi como motoboy que essa vontade de saber tudo me levou a compreender muitas das coisas que sei agora, entrar em contato com alguns aspectos da vida de que antes eu somente ouvira falar. Conscientemente ou não, passei a ter uma vida plena, e meus companheiros eram mais que colegas de trabalho. Fico pensando, às vezes, em como seria minha vida se não fosse essa minha paixão por motos. Onde eu estaria agora? O que estaria fazendo? Quem seriam meus amigos? Teríamos tido a experiência que tivemos, se não fosse pelo fato de nos sentirmos tão frágeis — e ao mesmo tempo tão fortes — sobre as duas rodas? A primeira empresa de entregas em que trabalhei ficava no início da Consolação, antes de a rua virar mão única, numa pequena sala de um prédio de escritórios do lado direito da rua. No início, a rapaziada curtia com a minha cara por conta da minha pouca idade — apesar de já estar casado e ter um filho —, e eu ainda era punk! Para eles, eu tinha a aparência de alguém que perdera totalmente o controle: coturno no pé, cabeça raspada e roupas rasgadas. Sempre fui alto, muito magro, e espetava o cabelo dentro do capacete. Aos poucos, conforme os outros mensageiros foram me conhecendo, viram que a imagem que eu passava não representava o que eu era. Para mim, naquele momento, o jeito que eu andava nada mais representava além dos restos de um período da minha juventude em que eu estivera envolvido com o movimento punk. Os motoqueiros da empresa, mais velhos, não eram de muita conversa, mas logo viram que eu tocava bem a motinha. Eles davam dicas sobre os serviços e me apoiavam na hora de montar os roteiros. Eu aprendia rápido como eles trabalhavam. Por isso, acho que, desde o



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começo, meu trabalho de motoqueiro sempre me pareceu mais uma opção, nunca uma obrigação, apesar de ter que tirar dali o meu sustento. Eu queria apenas andar de moto e encontrei uma forma de unir prazer e trabalho. Hoje, quando passo pela rua da Consolação, não há mais toda aquela agitação que fazíamos quando nos reuníamos para almoçar na padaria que havia embaixo do prédio e ficávamos na calçada aguardando o horário dos trampos. Antes havia ali em frente, no canteiro central entre as duas faixas de rolamento, um jardim com um estacionamento de motos. Fico feliz de descobrir agora que o que aquele tempo tinha de bom era a união — ali todos eram motoqueiros e rolava um clima de camaradagem de motoclube entre a gente. Quando digo motoqueiros, me refiro aos motociclistas que, antes de existir a profissão, já faziam uso da moto. Portanto, tinham muita habilidade e prática de pilotagem, pois a utilizavam como transporte e lazer. Digo francamente: fui bem aceito pela galera porque eu “não dava milho”, como diz hoje o Poeta dos Motoboys. A rapaziada toda era da periferia: São Mateus, Guaianazes, Cidade Tiradentes, São Miguel, Santo Amaro, Capão, Imirim, Freguesia do Ó, Taboão, Osasco... Eu também vim da periferia. Ainda assim, me sentia um estranho no ninho. Eu tinha algum estudo e morava com minha esposa no bairro da Saúde. Andava de Vespa e ouvia rock. Pensavam que eu realmente estava ali mais por curtição. Mas ninguém conhecia realmente a minha história. Não sabiam de onde eu vinha, o que eu sabia e o que não sabia. Aos poucos, passaram a confiar em mim e nos tornamos todos grandes amigos, pois trabalhamos juntos por muitos anos. Mais do que isso. Aquilo lá era uma toca de velhas raposas, cobras e lagartos. Era preciso ficar esperto porque aqueles caras eram rápidos no gatilho. Todos ali


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já tinham trabalhado em outros empregos, vinham com alguma experiência de outro lugar. Havia torneiros mecânicos, balconistas, taxistas, bancários, operários etc. A moto era a companheira de cada um, e os manos não davam mole, mas rolava uma grande irmandade. Cada motoqueiro tinha sua história, de longa data, e sabia tudo de motos. Daí para dominar o trabalho de mensageiro foi um pulo. Muitos manjavam de mecânica de motos, então, nunca ficávamos na mão, um ajudava o outro. Ninguém conhecia a cidade mais do que nós e sabíamos dar o valor certo aos serviços que fazíamos. Este é um grande diferencial em relação aos demais motoboys: muitas vezes, eles não têm noção de quanto vale sua corrida. Além de valorizar o trabalho, estipulando o tempo e o custo, os motoqueiros podiam escolher o serviço. Naquela época, havia bem poucos motoqueiros trabalhando. Formávamos uma equipe coesa e ninguém atropelava o outro, e por conta disso não faltava serviço. Cheguei ali sem saber nada, aprendi tudo sobre o mercado e sobre ser motoqueiro. Um dia, a empresa foi obrigada a mudar de endereço. Como havíamos crescido muito rápido, enchendo os corredores com tantos motoqueiros, a coisa ficou pequena e a sócia da empresa, dona Augusta, recebeu reclamações dos vizinhos, pedindo nossa saída. Fazíamos realmente uma zoeira danada, descendo e subindo as escadas, elevadores, atravancando a porta principal, capacete, luva, capa de chuva, mochilão, botas, baús... Não deu outra: o proprietário do prédio deu um basta e tivemos que nos mudar de lá. Foi assim, no meio dessa galera, que comecei de fato a trabalhar como um profissional motociclista.



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Antes desse emprego, cheguei a trabalhar por uns tempos de delivery para uma fotocopiadora perto da avenida Paulista. Foi nessa empresa que fiz a minha estreia como office-boy de moto. Aquele bate e volta de entregas e retornos à empresa era ruim pacas, e quase desisti desse trabalho. Além de não ter registro em carteira, ganhava muito pouco e era um saco ficar parado esperando a vez, indo e vindo, levando e trazendo fotocópia. Continuei no trampo por gostar de andar de moto. Na empresa da Consolação, entrei em contato com as múltiplas possibilidades de o trabalho de um profissional, se bem executado, ser bem remunerado, podendo inclusive crescer na vida. Ali cada um era dono de seu próprio nariz, não tinha tempo ruim, e, apesar de todos os acidentes (todo começo é assim, quem é motoqueiro sabe que somente o tempo dá maturidade ao motociclista), aquele trabalho poderia ser uma verdadeira aventura. Nós começávamos a trabalhar de moto de manhã, nas horas em que surgia um monte de entregas, escolhíamos um trajeto próprio e depois íamos mudando nossas estratégias conforme o dia passava. Creio que se não tivesse ido trabalhar de mensageiro motociclista não estaria aqui escrevendo este livro junto com essa rapaziada de agora, que vim a conhecer quando já tinha vivenciado vinte anos nessa categoria. Naquela época, eu nunca poderia imaginar que um dia eu me envolveria com o movimento político que nasceu junto com a categoria. Nem mesmo poderia imaginar que um dia se poderia falar em cultura motoboy, nem que eu publicaria artigos, daria entrevistas em televisão e rádio, em jornais e revistas, e muito menos imaginava que se poderia usar telefone celular para enviar fotos e vídeos do cotidiano de motoboys para a internet! Outra


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coisa que eu jamais poderia imaginar era que eu estudaria filosofia e me tornaria professor de uma escola de ensino médio na periferia. A liberdade que a motocicleta me proporcionava, me levando a diferentes lugares e me permitindo conhecer pessoas, se tornou um sonho para mim – logo eu, que nunca havia sonhado. Um desejo realizado por lances inesperados, tanto agradáveis quanto de frustração, que não poderia ter acontecido se não fosse essa paixão que tenho por motocicletas. Assim, me transformei naquilo que sou. Eu queria estudar, mas estava trabalhando e sabia das dificuldades que enfrentaria — era quase impossível juntar as duas pontas, escola e trabalho, mas corri atrás e consegui. Criei minhas próprias estratégias para escapar da lógica do trabalho que condicionava o motoqueiro a não exercer outras funções, e tenho certeza de que foi a moto que me possibilitou isso, assim como as pessoas que apostaram, acreditaram no meu potencial. Mas o que, no fundo, sempre me moveu a buscar alguma coisa não foi um interesse individual, pois eu sempre quis que o nosso trabalho de moto não se transformasse em martírio, sempre desejei que não houvesse tanta exploração e injustiça, e que não precisássemos sacrificar nossa liberdade, perdendo o prazer de andar moto. Eu queria que todos tivessem oportunidades e acreditassem em seus sonhos, porque eles podem se realizar. Mas não foi o que aconteceu. A categoria, ao mesmo tempo em que crescia, foi ficando cada vez pior, mais radicalmente explorada pelas empresas. Hoje, quando vejo no que ela se transformou, desejo que este livro chegue às mãos dos motoboys, para que eles saibam que também têm história, que há meios de resistir à exploração. Apesar de toda a violência da vida e do trânsito de


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São Paulo, criamos uma lógica própria de sobrevivência e resistência. Para mim, a trama começa quando chego a São Paulo e descubro pela primeira vez as alegrias e tristezas de morar na periferia. Puxando o fio da memória da minha infância, tentando descobrir como fiz minhas primeiras escolhas, busco de alguma forma uma explicação para os porquês dessas escolhas — e como elas influenciaram minha visão de mundo! O porquê de tudo isso? É justamente a partir dessa visão que podemos buscar construir uma ponte para o futuro. Buscarmos juntos um contraponto para tudo o que está aí. E não é apenas porque acredito; é por meio da experiência que podemos encontrar os argumentos necessários para criticar esta realidade. Não há outro modo de conhecê-la senão por meio da história de nossa vida e de nosso viver coletivo; só assim podemos dar um sentido à nossa história.

III Numa tarde de muita chuva e calor, deixamos o Rio de Janeiro. Era nossa despedida dos anos de luz, alegrias, areia da praia e brilho do mar, mas também da minha primeira infância. Logo mais à noite embarcaríamos em um trem com destino a São Paulo. Pela manhã, um caminhão levara toda nossa mudança; eu não conhecia essa experiência de despedida. Nessa época, morávamos na casa pastoral, conjugada a uma igrejinha em um morro no bairro de Coelho Neto. Essa igrejinha deve existir até hoje; ela foi construída enquanto minha família morava lá. Naquele dia, passaram por lá algumas pessoas que moravam perto e que eram amigos da minha família. Vieram também alguns fiéis da igreja em que meu pai era pastor e que compartilhavam, além


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da fé, a pobreza. Nós, crianças, passamos o dia todo de pernas para o ar, sem necessidade de nos despedir, pois mal sabíamos que no dia seguinte estaríamos longe dos amigos do morro e sentiríamos na pele a fria e fina garoa da vida, nas cruas ruas da grande cidade de São Paulo. Era dezembro de 1972, e eu tinha cerca de 6 anos de idade. No trajeto até a estação, meu pai comprou uma garrafa de Coca-Cola e comemos um lanche preparado pela minha mãe enquanto víamos pela janela a tempestade que se aproximava. Choveu até granizo naquela tarde, e o vento ameaçou destelhar as casas da vizinhança. Lá era muito diferente de Brás de Pina e da sorveteria do portuga Antonio Mota, de onde tínhamos vindo. Vivíamos nos mudando devido à função religiosa do meu pai. Essa igreja protestante, Igreja Adventista da Promessa Conservadora, foi fundada por meu pai e um grupo de pastores dissidentes de outra congregação, a Igreja Adventista da Promessa, que existia desde o início do século, criada por meu avô. Antes de viver no Rio, já tínhamos morado no Mato Grosso, em um lugar chamado Dourados, hoje Mato Grosso do Sul, assim como em Votuporanga, no interior do estado de São Paulo. Desses lugares eu não tenho nenhuma lembrança, mas prestava atenção nas histórias que meu pai contava sobre o chão batido de terra vermelha e os índios e as andanças dele pregando a “palavra de Deus” por este Brasil afora. Ele viajou muito e até conheceu outros países. Foi no litoral paulista, em Santos, que nasci, em 12 de julho de 1966. Aquele bairro carioca, apesar de tudo, era bem tranquilo, visto como se encontram hoje as regiões pobres do Rio de Janeiro. Naqueles tempos, tão distantes dessa guerra não declarada de hoje, vivíamos em paz, apesar de haver criminalidade, como em qualquer lugar em que haja


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falta emprego e pobreza. O morro fervia quando saíam alguns tiros, mas logo depois as pipas já estavam voando outra vez. Éramos muitos pobres, e nunca tive vergonha de falar sobre isso. Sempre que as coisas apertavam os crentes da igreja que tinham melhor condição social nos ajudavam com algum socorro. Fazíamos um esforço fora do comum para nunca precisar pedir a ninguém. Lembro que sempre apertava quando meu pai viajava. Por muito tempo tivemos essa vida. Minha mãe punha-se, com muita garra, na máquina de costura para dar conta do que vestíamos e comíamos. Onde quer que fôssemos morar, ela logo conhecia gente e fazia sua freguesia. Como naquele tempo costureira com máquina própria era algo raro, minha mãe logo sugeria novos cortes. Algumas vezes, quando o carro-pipa calhava de subir o morro, nós tínhamos água na caixa e podíamos tomar banho. Mas a água ali era pouca, e o jeito era buscar água na bica. Vivíamos, então, a época da ditadura, e às vezes acordávamos com o morro cercado pelo Exército. Eles chegavam de surpresa, no meio da madrugada, montavam trincheiras nos pés do morro e fechavam todas as ruas e becos que davam para a avenida. Depois de entrincheirar a comunidade e vistoriar documentos de quem descia ou subia, os soldados ainda se alinhavam e formavam um cordão de isolamento, que subia feito funil pelo morro, fazendo uma verdadeira peneira. Diziam que estavam em busca de armas e “terroristas”, os perseguidos políticos do regime. Em uma dessas ocasiões, meu pai sentou-se em um banco do lado de fora da igreja, lendo a Bíblia aberta. As portas e janelas ficavam abertas para a revista dos soldados, e eles entravam em todas as casas, com pastores alemães, farejando tudo, soldados com metralhadoras e muita gritaria de ordens. O povo da comunidade olhava tudo em silêncio, e se encontrassem algum barraco fechado, punham abaixo.


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Eu não sabia, mas isso acontecia em muitos outros lugares. Eram os tempos do AI-5, e a coisa ficava muito pesada, principalmente para a população pobre. Em vez de acharem “terroristas” e armas, eles só encontravam alguns facões e armas leves, no máximo algum revólver escondido. No retorno do pente-fino, no final da tarde, eles vinham descendo o morro, passando em frente às casas, e, atrás dos muros, ficávamos observando enquanto os soldados levavam alguns homens algemados, em geral negros, com uma corda que os prendia uns aos outros para não fugirem. Na partida do Rio, lembro que me juntei aos meus irmãos em silêncio, pois nunca tinha viajado de trem. Já estava quase escuro quando saímos; meu pai trancou a casa pastoral e fomos com nossas malas para a estação. Embarcaríamos no trem das 22h, que na época fazia o translado noturno entre Rio e São Paulo. Partimos da Estação Central do Brasil. Do Rio de Janeiro, trago a lembrança da partida, do Cristo Redentor de braços abertos no alto, iluminado, em meio à noite quente. Da lua cheia vista pela janela da cabine do trem, enquanto o Cristo flutuava. Levo também a lembrança das mazelas da minha primeira infância, da vida difícil na periferia, dos pés descalços nos paralelepípedos quentes. E também a alegria de vivermos soltos pelas ruas, empinando papagaio, correndo o dia todo e nos divertindo sem maiores preocupações. Como a imagem do Cristo para mim, tenho a impressão de que sempre posso voltar lá e pegar esse trem de novo... Basta fechar os olhos e imaginar. Afinal, a cidade é realmente maravilhosa.


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IV Acordamos em São Paulo. Uma neblina opaca cobria a cidade. Nas ruas vazias, as luzes dos postes preenchiam a madrugada. O sol ainda não tinha nascido. O trem, visto pela janela da nossa cabine, era de uma cor cinza prata, e seu brilho molhado deslizava pelas curvas lentamente, em meio às casas e ruas ainda úmidas da madrugada fria. O trem diminuiu o ritmo quando foram aparecendo muitas fábricas, até que passamos pela estação do Brás e chegamos ao terminal Júlio Prestes. Uma multidão tomou a estação com a chegada dos trens suburbanos. Embarcamos em um desses trens, e por causa da neblina, não pudemos ver os prédios altos de São Paulo. Assim que o trenzinho começou a andar, o Centro desapareceu e entramos na periferia. As rodas metálicas rangiam e o trem estava vazio; demorou uma eternidade para chegar até Guaianazes, que nessa época era apenas uma vila em torno da estação de trem. O transporte coletivo até o centro da cidade era feito por trem ou por uma linha municipal de ônibus da CMTC. Outra opção era a linha que vinha de Ferraz de Vasconcelos e ia até o Parque Dom Pedro II. Após o desembarque, fomos a pé da estação até nossa nova casa, que fora alugada da mesma maneira que todas as outras em que tínhamos morado. O sol já estava alto, e o calor do dia começava a aparecer. Chegamos em nossa rua e o caminhão com a mudança já se encontrava lá, aguardando na porta; o motorista descansava deitado numa lona embaixo do veículo, tomando um chimarrão. Quando entramos em nossa nova casa naquela manhã, esquecemos nossas mágoas e sentimos um aperto no coração. São Paulo significava uma oportunidade para crescermos na vida, mas também era um momento de


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separação e tristeza, já que não viveríamos mais com nossos primos no Rio. Ao entrarmos na casa número 33 da rua Andes, na Vila Minerva, parecia que havíamos ganhado na loto. Na frente, a casa tinha uma varandinha, como quase todas as casas de trabalhadores de antigamente. Sala, cozinha e dois quartos bem distribuídos. Meu pai comprou três beliches para o quarto que eu dividiria com meus irmãos; no quarto dos meus pais ficava o berço do meu irmão mais novo, Davi, que havia nascido um pouco antes de mudarmos. Lembro que ele chorava sem parar. A casa tinha um baita quintal cujos fundos davam para um pequeno córrego que cortava os terrenos das casas vizinhas. Tinha tanta árvore que parecia um pomar: bananeiras, mexeriqueiras, ameixeiras, pés de cáqui, abacateiros e vários bambuzais. Havia também muitos passarinhos, e meu passatempo preferido era subir nas mangueiras e construir balanços. Passávamos o dia todo explorando e brincando, a rua fervilhada de moleques, correndo o dia inteiro. Mil histórias, como qualquer rua de periferia. Havia também os moleques da rua de cima, que sempre jogavam marimbas nas linhas das nossas pipas, e nós para nos defender atirávamos pedras e estilingues neles; por causa dessas tretas, havia muitas brigas no bairro. Quase não parávamos dentro de casa, e nos quintais apareciam tantos moleques que deixavam a vizinhança doida. O que mais gostávamos era de brincar de polícia e ladrão e bang-bang e de imitar os super-heróis que víamos no cinema. Tudo era improvisado. Dividíamos os papéis, construíamos os roteiros, imaginávamos territórios, ataques, disputas com armas que a gente mesmo construía, com paus, folhas de bananeira e as tralhas que desciam pelo córrego. Os domingos eram reservados para as sessões no Cine Guaianazes. Foi lá que assisti a um filme no cinema pela


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primeira vez. Lembro como a tela impregnava meus olhos, e como eu me sentia em meu próprio estômago as porradas que o mocinho levava dos bandidos. Nos filmes, o grande momento era sempre quando ocorriam os duelos entre mocinho e bandido. Cara a cara! Essa era a única hora em que a molecada parava de zonear o cinema, e não se ouvia nem a respiração dos outros. Silêncio total. Todo mundo vidrado na luz do projetor... O momento culminante era quando os pistoleiros sacavam rápido suas armas. Era um delírio geral. Depois a gente ficava tentando recriar os filmes em nossas brincadeiras. Anos depois, o cinema fechou e no local abriu uma loja das Casas Pernambucanas. As peladas de futebol também me marcaram muito. Adorava jogar bola na rua e sempre voltava com um joelho ralado. Aos sábados, porém, a coisa esquentava, porque os caras mais velhos, que já trabalhavam, tiravam um rachão, e então a molecada ficava em volta do campinho esperando uma oportunidade. Não era o meu caso, pois sempre fui muito ruim de bola, cheguei a tentar várias posições — ponta-esquerda, zagueiro e até atacante —, mas nunca acertava a bola, então acabavam me mandando para o gol, posição que ocupo até hoje. Vivemos lá praticamente toda a década de 1970 — chegamos no início de dezembro de 1972 e no final de 1979 saímos de lá. Por conta da religião, não podíamos jogar bola, ir ao cinema ou assistir à TV, mas fazíamos tudo escondido do meu pai. Assim, ele não via a hora de meus irmãos começarem a trabalhar, e foi o que fizeram meus três irmãos mais velhos, a Kedma, o Eliseu e o Elias. Com isso, nossa vida melhorou um pouco, mas, mesmo com a ajuda deles, ainda era muito difícil sobrar alguma coisa, porque a família era grande.


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Os meninos foram trabalhar de office-boys numa empresa que ficava no edifício Martinelli, onde trabalhavam muitos office-boys. Eles pegavam no pesado distribuindo recortes de matérias que saíam nos jornais sobre os clientes. Minha irmã começou vendendo cosméticos e depois foi trabalhar de datilógrafa em um escritório. Com isso, todos passaram a estudar à noite. Comecei a descobrir o mundo quando fui mandado para a escola, com pouco mais de 7 anos. Estudei na Escola Estadual Pedro II, onde, logo de cara, levei bomba, por conta das péssimas condições da escola. O lugar era o próprio inferno! Lembro que mudei de sala umas seis vezes na mesma série, e cada uma era pior do que a anterior. As professoras não deixavam que os alunos fossem ao banheiro durante a aula. Então o que acontecia de moleque molhando as calças não era brincadeira. Pior ainda: todos morriam de medo de ir ao banheiro sozinhos por conta de uma história sensacionalista divulgada nos jornais populares que falavam da “loira do banheiro”, uma espécie de fantasma que nos assustava. Por essas e outras razões, as próprias professoras não iam ao fundo da classe, pois o cheiro de urina era insuportável. Voltei para casa muitas vezes com os shorts molhados. Lembro ainda que acordar cedo era uma maldade, fazia um frio de gelar os ossos. A escola não separava o ensino fundamental do ginásio, e, por isso, a molecada sofria na mão dos mais velhos, que descontavam seu ódio na gente. Depois fui transferido para outra escola, a Escola Municipal 25 de Janeiro, onde fiz o primário inteiro. Lá só tinha classes da primeira até a quarta série, e tudo era muito limpo e organizado. Foi onde me alfabetizei e descobri que a classe não era lugar de urinar. Aprendi a ser educado e esperar o lugar na fila— era fila para tudo. Todos usavam uniforme: camiseta branca e calção azul.


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Descíamos, uma classe por vez, para a merenda, sendo que algumas eu odiava, mas éramos obrigados a comer algo como mingau de baunilha ou arroz doce, aquelas papas brancas. Quem se recusasse a comer passava todo o intervalo olhando para o prato e não podia sair para brincar. O ensino, porém, era de qualidade, e era divertido atravessar todo dia por dentro da estação do trem para chegar à escola. Foi no 25 de Janeiro que eu soube o que era uma biblioteca. Tive muita sorte, pois, nessa idade, em que a criança descobre o universo das letras, tive acesso à leitura, já que a escola ficava na parte de baixo da Biblioteca Municipal, a única em toda a região. A gente tinha o hábito de cabular aula para ficar lendo gibis e livros infantis; passávamos a tarde toda na biblioteca. Para você ver como a vida escreve certo por linhas tortas: adquiri o hábito da leitura fazendo coisa errada. Pouco antes de parar de trabalhar como motoboy, quando eu ia fazer uma última entrega do dia, tive a oportunidade de rever a biblioteca. O local me pareceu bastante deteriorado, porém guardava ainda um pouco daquela atmosfera, com pessoas circulando e muitos cartazes de eventos culturais fixados na entrada. Mas não encontrei o tablado de madeira no chão no qual passávamos horas deitados devorando o pequeno acervo de livros e revistas das estantes. Fui até o fundo, onde havia uma janela, e pude ver algumas crianças brincando em um parquinho na parte mais embaixo, onde era o antigo pátio da escola. Perguntei a uma funcionária e ela respondeu que o 25 de Janeiro tinha virado creche e só atendia o pré-primário. Como naquele dia eu estava com bastante tempo, também aproveitei e resolvi rever nossa casa na rua Andes. Agora, a varandinha era a antessala de um pequeno escritório de advocacia, e o


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grande terreno em volta da casa, que ia até o riacho que corria nos fundos, foi todo ocupado por pequenas casas de tijolos à vista. Tinha acabado de cair uma chuva, e a rua, agora asfaltada, estava vazia, sem ninguém passando. No asfalto, a água que descia da parte alta corria pelo meio-fio. Parei em frente à casa e desliguei a moto. Fiquei um tempo lá olhando cada detalhe, lembrando do dia em que os postes de luz da rua foram fixados e a rua toda ficou iluminada à noite. Cada pedacinho daquela calçada tinha uma parte da minha história. Ainda que o cimento fosse outro, a calçada era a mesma em que passei a infância, correndo sobre ela. Quantas pessoas passaram por ela, quantas histórias ela tinha para contar? Ainda caíam uns pingos grossos, tirei o capacete e deixei que a chuva molhasse meu rosto. De alma lavada, liguei a moto e parti lentamente, subindo a rua. Reconheci algumas árvores, ou pelo menos o que achei ter reconhecido, e elas ainda lutavam contra o tempo. Algumas casas não existiam mais, outras resistiam, mesmo aos pedaços, coladas em outras construções, como as antigas casas das famílias do Zinho, do Boi, do Beto, do Pelé... Mais adiante, sorri quando vi que uma mercearia onde costumávamos comprar doces, com suas portas altas e finas e seus bêbados contumazes, ainda encontrava-se lá. Engatei a segunda marcha até o fim da rua e tomei um atalho em direção à estrada do Lajeado Velho, que eu acreditava ainda conhecer como a palma da minha mão. Cortei por dentro de uns caminhos que antes conhecia bem para tentar sair do outro lado, quase em Ferraz de Vasconcelos, já no Jardim Alice, mas estava tudo mudado, haviam construído muitos barracos e a favela tomava conta de toda a paisagem até a beira das ruas, sem calçadas. Entrei em becos e vielas que não


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davam em lugar nenhum... Foi então que eu me perdi, e tive que refazer o caminho de volta até a avenida, antiga Estrada Dom João Nery. Há algo profundo na periferia, que permanece vivo e resiste ao tempo. Senti que os espaços e as distâncias da minha rua não eram mais os mesmos e as medidas que eu tinha em minhas lembranças eram outras. “Agora”, pensei, “os poucos passos que levam do nosso portão até a esquina não são mais os quase quarenta passos que eu achava que eram. Vendo agora, percebo que aquela distância não me dava a margem de segurança que eu imaginava ao me esconder do meu pai.” Por conta disso, dessa inocência, levei muitas surras do meu pai, quando ele voltava de suas viagens e nos pegava jogando bola na rua, ou então nos encontrava na porta do cinema com a garotada. Aí o pau comia! Essas tais correções aconteciam com cinto de couro ou com o que estivesse à mão, como alguma vara de amoreira ou mesmo fio do ferro de passar. Havia um preço por sermos filhos do pastor, e devíamos ser exemplo para os outros. Desse ponto de vista, eram tempos difíceis, pois não havia leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda por cima vivíamos tempos de ditadura militar, a esfera política de educar e disciplinar o povo, a mesma linha dura que de certa forma legitimava as coças que levávamos em casa. Não sei se faço uma comparação exagerada, só posso dizer que também não sei se seria diferente se a situação fosse outra. Por conta dessas experiências, hoje compreendo que temos que carregar na vida essas marcas. É difícil culpar alguém, embora nunca devêssemos esquecer as responsabilidades devidas, seja do Estado seja da religião. Como uma rua tão simples, na periferia, podia conter tanta vida?


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Reencontrando meu caminho de volta para casa, depois de terminar o serviço na região, em vez de voltar por dentro de Itaquera, converti por Itaquaquecetuba e saí na rodovia Ayrton Senna. Já havia anoitecido quando entrei na Marginal Tietê, o céu se abria às primeiras estrelas, e eu só dentro do meu capacete, com o ronco do motor. Abri a viseira e deixei o vento entrar. Nesse momento, me lembrei dos versos de Octávio Paz, que andavam pela memória e que na solidão daquele dia eram minha única companhia no trânsito da cidade de São Paulo. Agora eu me preparava para deixar de trabalhar como motoboy. Como se estivessem caindo no nada, os versos vinham: Sou homem, duro pouco, e é enorme a noite. Mas olho para cima e as estrelas escrevem. Sem entender, compreendo: Também sou escritura!... E nesse mesmo instante Alguém me soletra.

V A mais triste notícia que recebi na vida foi a da morte da minha avó. Havíamos mudado de Guaianazes para uma casa que pertencia a um primo do meu pai, numa rua que terminava às margens do rio Tietê, no Itaim Paulista. A rua também se chamava Tietê, e na época das chuvas as cheias do rio chegavam bem perto da nossa casa. Próximo de onde morávamos também passava outra linha de trem, que ia do Brás, do tronco Variante, até Calmon Viana, e os trens eram bem mais detonados. Fazia oito dias que havíamos feito nossa mudança e lembro que era um dia quente de janeiro, início da década de 1980. Eu tinha cerca de 13 anos quando minha avó passou mal.


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O quintal de casa era enorme e os fundos davam para outras chácaras que também tinham muitas árvores altas e coqueiros. A casa fora construída pelo primo, quando morava em São Paulo, e fazia jus à sua profissão: ele era promotor de justiça e a casa tinha muitos cômodos. Foi alugada para nós porque ele tinha se mudado para Xique-Xique, uma cidade do interior da Bahia. Estávamos um pouco tristes com essa mudança – como sempre ocorria quando deixávamos os amigos para trás —, mas ao mesmo tempo muito felizes, porque tanto os meninos quanto as meninas teriam seus próprios quartos. Meu pai comprou mais dois beliches, já que havia aumentado a família nos últimos anos, e minha avó, que às vezes passava uma temporada com a gente, veio morar conosco. Passamos a tarde limpando as coisas nesse dia. Tudo ainda era novo, e nosso olhar, acostumado à paisagem de Guaianazes, descobria outras fontes de alegria, como as muitas árvores frutíferas que não conhecíamos. Os carvalhos de frutos amarelos, as pitangueiras — que na época das floradas ficavam brancas, com enxames de abelhas zunindo entre as folhas —, as jabuticabeiras, cujos frutos brotavam no caule como se fossem grandes bolas de gude doces e pretas, e muitas outras, das quais não lembro os nomes. O nosso plano era construir uma horta nos fundos do quintal. Todos se envolveram na tarefa e minha avó estava muito disposta, cantando e dando ordens. Meus irmãos mais velhos, que já trabalhavam, só voltavam à noite, então eu e os pequenos ajudamos minha vó. Quando o quintal ficou totalmente limpo, sem nenhum entulho ou folha seca, ela pôs fogo no monte de lixo e entrou para tomar banho. Nós então fomos todos brincar e subir nas árvores.


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Mais tarde, depois de jantarmos, começou uma chuva torrencial. Já que nossa religião não permitia assistir à TV ou ouvir rádio, estávamos todos deitados sem fazer nada. De repente, minha avó teve um infarto. Saímos correndo para buscar ajuda e encontramos um táxi que, por milagre, havia acabado de despachar um freguês na esquina. Naquela chuva, ele foi imediatamente até nossa casa para levá-la para o pronto-socorro de São Miguel Paulista. Vovó Maria ficou na UTI, e no dia seguinte um dos nossos tios foi vê-la e a transferiu para um hospital em Campinas. Lá ela apresentou breve melhora e recomendaram que ficasse internada por mais uns dias. Nesse ínterim, lembro que minha mãe não saiu de perto dela, e minhas irmãs mais velhas, que iam e vinham, contavam-nos como ela estava. Foi em um desses retornos que encontrei minha irmã Keila na rua, e ela, com tristeza, me contou sobre o falecimento da minha avó, a mãe da minha mãe. Aquele episódio me marcou muito. Mas só recentemente, por meio de terapia, descobri nesses fatos da minha adolescência um processo depressivo pelo qual passei, fato que antes eu nunca havia associado à morte dela. Sei que muitos tiveram a oportunidade de viver com os avós, mas poucos puderam dividir momentos tão agradáveis como os que tive com ela, como quando íamos visitá-la em sua casa antiga de Poá. Ela deixou uma saudade profunda, que nunca morre. Lembro os momentos em que minha mãe me pedia que fosse levar alguma costura até a oficina de minha tia, que ficava ao lado da casa de minha avó e passávamos horas ouvindo rádio, tomando chá e cuidando do canteiro de rosas. Antes mesmo de completar meus 15 anos e arrumar um emprego, eu já me virava para levantar algum dinheiro. Fazia geladinho em casa e vendia na rua, ou fazia carreto na feira. Cheguei a entregar marmita em fábrica,


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e desde os 12 anos eu já ajudava minha mãe a vender Tupperware. Meu primeiro emprego com carteira, no entanto, foi de office-boy. Um dia minha mãe falou: — Amanhã você começa a trabalhar. Vá lá e compre um jornal, que vou achar um emprego pra você.

Subi até a banca ao lado da padaria na rua da estação e comprei um Diário Popular. Ela recortou um anúncio e no outro dia cedo eu liguei da empresa avisando que tinha arranjado o emprego. Era uma fotocopiadora, e acho que o dono era turco. Na entrevista, depois de eu ter dito que morava no “Itaim”, ele simpatizou imediatamente comigo, mas em seguida torceu o nariz quando esclareci que morava no Itaim Paulista.3 A maior parte dos office-boys era da periferia, e alguns amigos meus que já tinham passado por lá me deram muitas dicas de como eu deveria trabalhar. O único problema era que a copiadora ficava na Praça da Sé, e só tinha uma linha de ônibus que saía de lá até o Itaim. Eu podia caminhar até o Brás e pegar o trem, ou então ficar horas na fila para me acomodar no aperto de um busão lotado. Nesse tempo havia apenas uns seis office-boys, que batiam perna o dia todo entregando as fotocópias e heliografias em dezenas de escritórios pelo centro da cidade. Também pegávamos muita fila nos cartórios para autenticar documentos e cópias. Mas houve um tempo em que a copiadora tinha mais de vinte boys e era uma das maiores copiadoras da cidade, mas, com a concorrência grande, o movimento caiu, e aos poucos os garotos foram diminuindo, até o dia que a fotocopiadora pediu falência e fomos dispensados. Eu trabalhei lá uns quatro ou cinco meses.

3 Confusão recorrente com outro bairro nobre da capital chamado Itaim Bibi.


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Ser boy era mais que um trabalho, era estar em contato com a cidade. Todo moleque queria ser office-boy. Outra opção para quem tinha essa idade era começar a trabalhar nas fábricas como aprendiz e depois subir como ajudante de oficial ou meio-oficial, até passar a operário oficial na função de torneiro, chapeiro etc. Mas não era fácil, e a vida na rua era uma saída para quem não queria pegar no pesado em uma fábrica escura ou andar incansavelmente sob sol e chuva. Conhecer a cidade, no entanto, era uma experiência única. Para dizer a verdade, no começo é como entrar em um labirinto de ruas, cruzamentos, prédios, esquinas, praças, repartições e muitos bancos. Até aprender tudo, como me guiar e conhecer as ruas pelos nomes, ficava me perdendo e me achando, pedindo informação para outros boys e me virando como dava. Não foram poucas as vezes que me perdi. Saía com minha pasta de OO7, batendo pelas esquinas até achar os tais prédios. No começo, o patrão sabia que a gente se perdia, mas depois que você tinha mais de um mês de experiência ele botava pilha, cronometrando cada minuto, ligando para os clientes e descontando os minutos do nosso almoço. Para mim foi um aprendizado me virar sozinho e fazer minhas próprias escolhas, me ligar nas malandragens e não cair nos contos do vigário que infestavam a cidade. Nunca caí em nenhum, afinal, tive a sorte de ter dois irmãos que foram office-boys antes de mim, e eles sabiam de todas as lorotas e trambiques que os caras jogavam nos otários, turistas e até nos moleques que começavam a trabalhar, e depois simplesmente desapareciam do mapa. São Paulo era uma verdadeira fauna. Saí de casa talhado e pastei até aprender como andar na cidade, tanto que comecei a ficar malandro. As horas de almoço eram uma farra, batíamos o ponto e descíamos correndo pelas escadas do prédio, deixando os zeladores


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loucos. Comíamos as marmitas escondidos durante o expediente, para poder sobrar mais tempo na hora do almoço, e íamos geralmente para os novíssimos fliperama que começavam a brotar em toda a cidade. Acho que fliperama e office-boy têm alguma relação entre si, pois nos anos 1980, para mim, essa união foi muito feliz. Mas tinha um problema: office-boy ganhava mal, muito mal. E eu ainda tinha um problema a mais: dividir meu salário mínimo com minha família, quero dizer, eu trabalhava, mas ainda não controlava minha grana, entende? Bom, foi daí que tive uma ideia que nos colocou em verdadeiros apuros. Um dia pela manhã, cheguei com um enorme ímã na fotocopiadora. O Manuel, que era o boy mais antigo e filho de um português que morava na zona cerealista, me perguntou para que eu queria aquilo. Eu disse: — Na hora do almoço você verá...

Chegou a hora do almoço e o Manuel colou a OO7 em cima da minha, para ter certeza de que sairíamos juntos. Deu certo, e eu, ele e o Tom fomos para a Praça da Sé. “Agora”, pensei, “terei grana pra jogar fliperama. Sou um gênio!” Era uma segunda-feira, e nos domingos a praça tornava-se um dos pontos turísticos mais visitados da cidade, cheia de gente que jogava moedas nas fontes e quedas d’água que há por lá. Ou seja, estávamos com sorte! Tirei um rolo de barbante do bolso, amarrei no ímã e lá fomos nós para nossa pescaria. Imagine nossa alegria ao lançar o ímã nas piscinas e ele voltar todo colado de moedas. Os meus amigos davam gritos de felicidade. Os bolsos da calça já estavam lotados e as pernas escorriam, molhadas pela dinheirama, quando de repente uma porção de agentes de segurança do Metrô pulou em cima da gente. Não houve tempo de correr. Levaram-nos pelo colarinho para uma sala vazia


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e ficamos horas trancafiados lá, levando um monte de esporro. Os seguranças ainda nos ameaçaram caso voltássemos lá para pescar moedas. Um agente veio conversar e nos levou pelos subterrâneos, nos mostrou os cabos de força, explicando a bobagem que fizemos com o ímã, pois poderíamos ter sido eletrocutados nas redes que iluminavam as fontes da praça. No fim, não deu em nada, mas ficamos com as moedas. Pior foi levar uma senhora bronca do patrão; o turco estava branco, pois estava desesperado, sem saber o que fazer com o “sumiço” de três office-boys em pleno centro da cidade. Com a falência da fotocopiadora, eu e os outros boys tivemos que procurar outro lugar para trabalhar. Como eu já estava descolado, dessa vez comprei um jornal e logo achei outro emprego de office-boy no escritório de uma agência despachante localizada na rua Brigadeiro Tobias, atrás do Ministério da Fazenda. Era uma empresa pequena, só havia os dois sócios e um office-boy, e fui contratado na hora para a vaga.

VI Se aquela fotocopiadora na Praça da Sé foi onde aprendi a me virar no centro da cidade com minha pasta OO7, na nova firma, próxima à Estação da Luz, pude conhecer melhor a cidade e dimensionar de fato o tamanho da metrópole de São Paulo. A partir de então, em vez do boca a boca, perguntando para as pessoas os nomes das ruas, tive que comprar meu primeiro guia de ruas, para não me perder mais. Eu chegava cedo, pegava as fichas dos clientes a visitar, colocava-as na mochila e só voltava à tarde. Era uma empresa que vendia ou transferia informação cadastral. Para chegar ao trabalho, era preciso pegar o trem


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lotado no Itaim Paulista até o terminal no Brás. Lá fazia a baldeação até a Estação da Luz, que ficava próxima à empresa. Na volta para casa, era o cão. Enquanto os trens da linha Variant, como era chamado o tronco Brás/ Calmon Viana, ficavam parados nos trilhos aguardando as sinaleiras para serem liberados, com todas aquelas pessoas espremidas feito sardinha em lata, os Litorinas, que eram trens expressos que faziam a linha Brás-Mogi, passavam ao nosso lado aos milhões, e o povo ficava enraivecido com isso.4 Eu estudava à noite na Escola Estadual Mário Kozél Filho, na rua de casa, mas sempre chegava atrasado à aula. No final do ano, alguns caras que pegavam aquele mesmo trem não foram bem na escola e repetiram de série. Acabaram abandonando os estudos. Ser office-boy, nesse sentido, era um atraso de vida: além de ganhar uma mixaria, passávamos horas na lotação. Muitos não se interessavam em conhecer a cidade, pois era preferível procurar trabalho em uma fábrica, muito menos complicado. Em um mesmo dia, eu podia ir do Alto da Lapa até Osasco, da Penha ou de Guarulhos até Santana, de Santana a Santo Amaro, e assim por diante. Logicamente, naquela época não havia motoboys, pois esse seria um trampo para eles. Eu passava o dia andando de busão para cima e para baixo. O ônibus passou a ser a esfera em que a cidade acontecia para mim. Ali onde nada parece acontecer é 4 Para quem quiser conhecer melhor as agruras que o povo da periferia passava nos transportes ferroviários naquela época, uma sugestão de autor é Alessandro Buzo, o Suburbano Convicto, que em dezembro de 2000 lançou O trem — baseado em fatos reais, no qual fala do cotidiano dessa mesma linha Brás/Calmon Viana, e em 2008 publicou, pela Coleção Tramas Urbanas, seu Favela toma conta.


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que realmente tudo podia acontecer. Roubos, brigas, acidentes, namoros e tudo o que se pode imaginar. Conheci todos os bairros, e algumas linhas de ônibus pareciam levar para o outro lado do mundo, de tão longe que iam. A cidade não tinha fim. Davam mil voltas, enchiam e esvaziavam. São Paulo é a “terra dos mil povos”, e os officeboys que a gente acabava conhecendo nos ônibus iam trocando ideia, se conhecendo e contando as malandragens que faziam para matar a grana dos patrões. Eu não tinha como fazer isso, pois todos os trampos eram feitos de ônibus, e meu chefe dava a conta exata das passagens. Só de vez em quando ele dava um trocado a mais, talvez por consciência pesada, porque sabia que eu retornaria muito tarde e ficaria com fome pelo caminho. Nem sempre, quando voltava à tarde, a marmita estava em condições de consumo, e muitas vezes voltei para casa com fome, porque não havia geladeira no escritório e para esquentar a marmita eu usava uma espiriteira aquecida a álcool no chão do banheiro. A marmita estragava com o calor e, às vezes, ela voltava cheia de comida azeda para casa. Então fui aprendendo a me virar. Se por um lado não tinha como levantar grana como os outros boys, que matavam o dinheiro do táxi pegando ônibus, por outro lado tive que criar minha própria estratégia, aprendi a ganhar tempo e morder os trocados do ônibus. Antigamente, os passageiros subiam nos ônibus pela porta de trás e desciam pela frente, então, eu aprendi como pular por trás e não pagar a passagem. Virei um especialista e terminava o dia sempre com uns trocados no bolso. Essa não deixa de ser uma forma de não ficar com fome. Como minha família era grande, o dinheiro em casa era coisa rara, daí ou se comia a marmita, em geral arroz, feijão e ovo, ou se ficava com fome na rua.


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Aprender a mentir para o chefe foi o passo seguinte. Eu dizia coisas incríveis que aconteciam nos ônibus e que me impediam de chegar aos destinos – a mente é poderosa, acreditem! Claro que nesse tempo minha grande paixão continuava a ser o cinema, então, rapidamente decorei os horários das sessões e acompanhava pelos jornais todas as estreias. Fora aqueles filmes sem noção, a que a gente assistia por acaso, só para matar o tempo, vi praticamente todos os filmes que estrearam nas telas da cidade. Ia ao Cine Olido, Marrocos, Ipiranga e Marabá. Os cinemas Metro, Ritz e São João depois passaram a exibir somente pornochanchadas. As salas no Copan, no Bristol e no Metrópolis passavam filmes inesquecíveis. O famoso e pioneiro dolby stereo, no Cine Comodoro, que ficava na avenida São João, o único a ter esse sistema de som. Todos queriam ir lá porque o som fazia até as cadeiras tremerem. Havia também os cinemas de bairro, que aos poucos eu fui descobrindo. Lembro-me de tantas tardes que passei no Cine Júpiter, no São Geraldo e no Cinema da Penha. Todos esses cinemas perderam suas clientelas e a maioria fechou, apenas um ou outro ainda resiste lá no centro. Nessa época, meus irmãos já trabalhavam em bancos e esse era o sonho de qualquer office-boy. Como eles, que começaram nos anos 1970 como boys, eu também queria chegar lá. Um dia, tomei coragem e fui falar com um tio que era gerente do Banco Mercantil de São Paulo e havia arrumado uma oportunidade para o Eliseu, meu irmão mais velho. Esse tio era muito bacana e havia sido técnico do time juvenil do São Paulo Futebol Clube. No banco, ele era conhecido como o são-paulino, em casa, a gente o chamava de Nonô. Conversamos e ele escreveu uma recomendação em um cartão ao chefe do RH do banco. Depois de toda a documentação pronta,


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cheguei na agência e mostrei a carteira assinada a um dos sócios, com carimbo e tudo, e pedi que ele fizesse minhas contas, pois agora eu era contínuo. O ex-patrão ficou fulo da vida, pois eu ia embora e não tinha avisado a tempo de contratar outro office-boy. Nesse momento, percebi que o próximo moleque provavelmente passaria por tudo que eu tinha passado, como aprender sozinho a dar nó em pingo d’água e não se perder por aí, mesmo trabalhando sem o registro em carteira, como eu fizera. No dia 18 de janeiro de 1982, passei a exercer a função de contínuo, como os office-boys eram chamados no banco. Recebi um uniforme careta, um terno de tergal preto com oito botões dourados, gravata preta e camisa branca, e assim comecei minha nova vida de bancário. Fui alocado na agência central, que ficava na rua Líbero Badaró, um edifício todo envidraçado. Para comemorar meu novo trampo, peguei a merreca do acerto de contas do último emprego e passei na antiga loja Mappin que ficava na praça Ramos de Azevedo, em frente ao Teatro Municipal. Naquele dia tive o prazer de comprar meu próprio presente, um skate importado, e voltei todo feliz com ele debaixo do braço dentro do trem. Acho mesmo que aquele foi o primeiro skate que desceu pelas ruas do Itaim Paulista, pois por onde passava todos me paravam e pediam para olhar a tábua com rodinhas. Queriam saber como andava e não resistiam, precisavam pegar para acreditar. O skate era lindo pra c...

VII Fiquei no banco por quatro anos. Comecei de contínuo, como a maioria dos que trabalhavam lá. O banco era muito grande e ocupava quatro andares do prédio, o mezanino e o subsolo, onde ficavam a expedição


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e o caixa-forte. No quinto andar ficava a diretoria. Nós tínhamos que fazer circularem os documentos por todo o banco. As seções não tinham divisórias, portanto, no começo, bati um pouco a cabeça para memorizar onde ficavam todos os departamentos e as caixinhas de entrada e saída de documentos. Aos poucos fui fazendo amizade com os escriturários, e tudo corria na maior tranquilidade. Lá também aprendi a “rodar pastinha”, uma imagem muito recorrente antigamente, pois quando aparecia na televisão um moleque no centro da cidade rodando uma pastinha com o dedo com certeza era um contínuo. É possível imaginar a zorra que fazíamos, principalmente na hora da troca de turno. Ao todo deviam ser uns vinte ou trinta rapazes, e na hora de bater o ponto e trocar de roupa para entrar ou sair, todos nos encontrávamos ao mesmo tempo, fazendo uma farra no vestiário. Não demorou muito para eu ser recomendado para trabalhar na seção de contabilidade do banco. Muitos departamentos tinham seus próprios contínuos; aqueles que se destacavam eram alocados em seções específicas do banco e logo tinham oportunidade de se tornar escriturários. Seu Minelli, que coordenava toda a expedição, era quem nos indicava aos chefes das seções quando estes solicitavam um novo contínuo. Os “peixinhos”, aqueles que eram apresentados por algum funcionário do banco, eram promovidos rapidamente. Muitos moleques que tinha até pego o jeito de trabalhar rápido chegavam a passar quase dois anos rodando pastinha sem promoção, por não serem peixes. Esse período foi muito bom para mim. Eu trabalhava seis horas no banco, das 7h às 13h, e chegava cedo em casa sem precisar passar aquele maldito sufoco nos trens lotados da tarde. Agora tinha tempo para estudar, andar de skate e ainda chegava cedo à porta da escola, para poder brincar nos fliperamas que havia por perto. No


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entanto, logo as coisas começaram a piorar para todo mundo. Aquela década de 1980 ficaria conhecida como a “década perdida”, e comprovo isso pelos aperreios que passamos. Meus irmãos, que sempre se viraram muito bem, começaram a ser mandados embora dos bancos onde trabalhavam. Lembro, em certa ocasião, que eles rodaram de uma só vez. Minha mãe já não tinha tanta força para ajudar em casa e as despesas com tantas crianças eram muito altas. Nesse período da história do país, faltavam carne, leite e outros alimentos básicos; o Brasil enfrentava uma grave crise e havia uma grande pressão da sociedade por um regime democrático. Ao nosso modo, sentimos o reflexo disso em casa também em outras esferas. De um lado, meu pai era cobrado pelos fiéis da igreja por seus filhos viverem livres e não seguirem as regras da religião. Por outro, dependendo dos nossos salários para manter a casa, nosso pai não podia nos botar cabresto nem nos mandar embora. Meus irmãos mais velhos e meu pai começaram a brigar porque não íamos mais à igreja. Isso aconteceu justamente no momento em que começou a rolar uma desavença interna entre os pastores e a igreja começou a rachar. Foi um rolo que mesmo que eu quisesse não conseguiria contar. Depois de vinte anos à frente da igreja, meu pai começou a afundar em depressão, e por conta de sua fé nos homens, viu-se traído e abandonado, até porque não tinha mais forças para voltar ao mercado de trabalho. Ele tinha sido gráfico antes de ser pastor, e quando ele estava nessa função religiosa, nossa família passava necessidade devido à fé honesta de meu pai. Enquanto isso, os outros caras, que comandavam a igreja, construíam casas, trocavam de carro e tudo mais. Por conta dessas crises, não tínhamos mais condições de manter as despesas e tive que contribuir com uma parte maior do meu salário. Nesse sentido, meu emprego no banco para


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mim era um refúgio, pois ninguém mexia comigo, eu vivia numa solidão eterna, isolado do mundo. O Brasil vivia a agonia do fim da ditadura e começava a democratização, perdemos as Copas de 1982, 1986 e 1990, que foram sentidas como pesadelos seguidos. Depois de morar no Itaim Paulista, fomos morar em Ermelino Matarazzo, e aí as coisas começaram a mudar para mim.

VIII Por causa de todos aqueles conflitos religiosos, um dia tivemos que sair de casa. Ainda moramos, depois que saímos do Itaim Paulista, em uma pequena casa na rua Rainha do Bosque, junto da favela do Ermelino Matarazzo, e até fiz algumas amizades por lá. Jogava muita bola com a galera da favela e aprendi a gostar de pagode e samba de raiz. A violência do bairro não diferia muito do quadro geral da ZL,5 mas não seria mais como nos tempos de molecagens na rua Andes, em Guaianazes, onde eu, o Betinho, o Pitchú, o Bolão, o Isaías e o Zinho tirávamos o dia para brincar nas árvores, catar latas pelo córrego para vender no ferro velho e soltar papagaio — lá na rua formávamos um pelotão de elite de traquinagens e planos mirabolantes. Toda essa molecada cresceu. Cheguei ainda a encontrar alguns, mas a maioria ficou por lá mesmo, casaram-se e tiveram filhos na vila, filhos que talvez tivessem as mesmas aventuras e agruras que vivemos, incluindo os infelizes traumas de ver de perto alguns tiroteios e assassinatos, como os que chegamos a presenciar nas nossas quebradas. Passar por uma experiência dessas, deixa 5 Zona Leste da capital.


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marcas que o acompanharão para sempre. Creio que o tipo de formação desses garotos, de baixa escolaridade e pouco, ou nenhum, acesso a cultura, termina sendo mais dramático, e por isso mais real no sentido pleno da experiência de viver. Para os garotos que lutam para sobreviver na periferia — diferentemente dos que vivem na segurança do seu bairro e dos shopping centers —, a vida real não se passa na televisão. Quando fomos morar na rua Quilombo do Ambrósio, perto da Ponte Rasa, a última casa em que morei com meus pais, eu já não tinha mais amigos, então me isolei por completo, e todo o meu tempo era para estudar e trabalhar. Eu estava com 16 para 17 anos e era tão magro que passava pelo buraco de uma agulha. Não havia mais clima de morar dentro da casa dos meus pais. A igreja que meu pai frequentava era ainda mais radical que as anteriores, e eu e meus irmãos mais velhos não admitíamos sermos enquadrados por regras de uma seita com a qual não tínhamos qualquer ligação. Ficávamos ainda porque éramos o apoio financeiro da família. Kedma, minha irmã mais velha, prestara o vestibular pela primeira vez em 1978 e já trabalhava com arquitetura, mas ainda não tinha conseguido juntar dinheiro. Elias foi quem mais sofreu naquela época, pois estava desolado por não conseguir recuperar o emprego como bancário. Eu e o Eliseu, que sempre fora meu irmão mais esperto, seríamos os únicos que bancaríamos a história a seguir. A Keila acabara de se casar e encaminhava a vida dela; os do meio, Carlinhos, Lôra e Davi, ainda não tinham idade para trabalhar, e os pequenos, John, Kátia e Pepita, já na escola, contribuíam para aumentar ainda mais as despesas. Apesar do desespero financeiro devido à posição radical do velho, não houve consenso. Eu me recusei a tomar parte na discussão, e encontraram uma saída negociada. Mas não poderíamos ir todos,


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então fomos apenas os homens. Vendi uma bicicleta Caloi 10 que eu tinha, minha única companheira, e meu irmão vendeu um fusquinha que ele comprara havia pouco tempo. Com essa grana, alugamos um apartamento. Um ano e meio depois, Kedma, cansada de segurar as pontas por lá, também foi morar com a gente na rua Martim Francisco, na Santa Cecília.

IX “Queríamos ser épicos heroicos românticos descabelados suicidas, porque era duro lá fora fingir que éramos pessoas como as outras.” Caio Fernando Abreu

Depois que fomos morar no centro da cidade, tudo começou a mudar. Aquela vida sofrida, com a apatia de não poder fazer nada de interessante, o mundo que eu conhecia ficara definitivamente para trás. Minha vida se transformou e passei a sair com os amigos para bater perna pela cidade e beber; literalmente, mudei da água para a vodca. A frase que citei acima resume bem o que foram os anos 1980 a partir dali, quando meus amigos punks passaram a frequentar meu apartamento. Levamos para a Santa Cecília apenas algumas poucas peças de roupa, um skate quebrado e um desejo profundo de mudar tudo. Ríamos muito dos tempos que íamos à igreja. O Elias tinha começado a fazer teatro e me convidou para fazer a sonoplastia de uma peça que eles estavam apresentando. Foi minha primeira experiência com arte e carreguei muito cabo, muita mala e muito figurino. Como era o único responsável pela minha própria grana, fui estudar em um colégio particular na Saúde, dividindo meu tempo entre ouvir discos e ir ao cinema, conhecendo


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novas pessoas, tudo isso bem perto de casa. No banco também meus amigos curtiam muito rock. Quando comecei a sair com eles para as baladas tínhamos entre 18 e 21 anos, e todos já tinhamos sido promovidos a escriturários. Trocávamos muitas ideias sobre música, futebol e política. Não era proibido fumar em lugares fechados naquela época, então, o banheiro do banco ficava todo impregnado de tanta fumaça. Ali eu passei a ficar sabendo de tudo o que rolava no país. Havia muita inquietação política naquele período pré-democrático, e lembro como todos os dias chegavam às nossas mãos os folhetos do sindicato dos bancários, informando sobre os movimentos sindicais e políticos do país. Para escapar à pesada rotina da seção e ficar um pouco longe dos números e das máquinas de calcular, tínhamos nossas próprias estratégias de fuga. Uma forma de fazer isso era escolher alguma “tarefa” fora do banco, sair por algum motivo não justificado e dar um pulo na Leiteria Alfa na rua Dr. Miguel Couto. Lá encontrávamos sempre algum amigo e comíamos um X-tudo, aproveitando para tomar um conhaque, hábito que todos os boys e contínuos tinham no horário de expediente. Mas era um problema, porque colavam lá alguns caras que também eram contínuos, em sua maioria punks, rockers, officeboys, e sempre dava alguma confusão. Havia também uns caras que eram metaleiros e curtiam aquelas bandas de metal comercial que a gente odiava, e tínhamos vontade de socá-los. Às vezes chegávamos a voltar para o banco completamente bêbados. Foi também tempo de reestruturação dos bancos, com reflexo no quadro de chefias; os antigos da linha dura começaram a se aposentar e os novos tentavam subir, a maioria bajuladoras de primeira ordem, que impunham regras extravagantes e mandavam para a degola os escriturários que saíam da linha.


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O ambiente bancário tornou-se um verdadeiro terror. Com o país na crise em que se encontrava, nosso medo era de sermos mandados embora, pois sabíamos que dificilmente conseguiríamos outro emprego como aquele. Era um campo minado. Nunca se tinha certeza se um colega próximo poderia dedurar alguém. A sorte era que na nossa seção o cara que havia assumido a chefia era o Luizão, que estava no banco desde os anos 1970 e era bastante tranquilo. Além do mais, ele também curtia um bom rock’n’roll. Sofríamos pressão de todos os lados e éramos o tempo todo vigiados, pois a cada dia ficava evidente que o sindicato estava se fortalecendo, e eles temiam que entrássemos em greve. Assim, aos poucos fui me identificando com as reivindicações, com o movimento anarquista dos punks, e encontrei, enfim, um lugar para depositar minha revolta. Graças aos protestos que surgiam de todos os lados exigindo mudanças no país, houve uma grande pressão política para a volta de plenos direitos políticos. O sindicato dos bancários vivia uma intervenção pelo governo militar e os antigos sindicalistas, que haviam sido caçados, iam pessoalmente à porta do banco fazer o boca a boca, convocando diversas manifestações de protesto e exigindo a volta da diretoria deposta e o fim da intervenção no sindicato. Os pelegos e paus-mandados do banco ficavam de butuca, na eterna expectativa de flagrar algum bancário envolvido no movimento e dedurá-lo. Essa tensão, que refletia o processo de democratização no país, de luta tanto por direitos políticos como pelos eternos reajustes salariais que nunca vinham, culminou em uma das maiores greves que houve na história do Brasil. Ao cabo do período de protestos no qual a Justiça deu sentença de restituição à antiga diretoria eleita e expulsou os interventores, os bancários começaram a se mobilizar tanto pela recuperação das perdas salariais


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daqueles anos de crise e inflação galopante como por movimentos políticos mais amplos como as Diretas Já, que trouxe o país para a democracia. No ABC, os sindicalistas — que no início da década já haviam feito grandes paralisações —, se articulavam por mudanças na política, e muito se falava sobre a necessidade de uma nova Constituição para o país. Recebíamos diariamente o Folha Bancária, folheto do sindicato que passávamos de mão em mão. Quando estourou a greve, nossa agência central foi uma das primeiras a parar. O país vivia um pandemônio, que pode ser representado aqui por uma imagem triste e, infelizmente, inesquecível. Naquela época, o estado de São Paulo era governado por Franco Montoro, que, diga-se de passagem, estava entre a cruz e a espada, pois nas ruas o povo pedia as diretas e ele, que já tinha sido eleito pelo voto, tinha medo de um retrocesso político que possibilitasse a intervenção militar em seu governo. Nesse caso, não se poderia imaginar o que aconteceria. Não podemos esquecer também que se o governador fora eleito, sua polícia fora forjada nas casernas do regime militar, e sua brutalidade é conhecida até hoje pela população mais pobre, uma polícia estúpida e autoritária. Nem tudo que o governador dizia era cumprido. A polícia militar descia o cacete em qualquer um que protestasse. Esse clima pesado trazia um grande medo à população, e não foram poucas as vezes que saímos do banco sem saber se ia sobrar para a gente. Assim, em uma dessas tardes de muito calor, enquanto nos esforçávamos para manter a concentração nos números e fechar os balancetes diários da contabilidade, alguém que tinha a vista cansada e perdida no Vale chamou a atenção de todos: — Gente, olhem para aquilo!


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A agência central, como eu disse, ocupava cinco andares em um daqueles grandes edifícios que têm vista para o Vale do Anhangabaú. Da nossa janela do quarto andar era possível ver desde o viaduto do Chá, cruzando o Vale, até o outro lado, o viaduto Santa Ifigênia. De repente, um a um, todos os bancários começaram a sair de suas mesas com seus jalecos azuis desbotados e se dirigiram para as janelas: o que víamos era muito grave e ficamos chocados com a violência gratuita. A tarde estava abafada, um terrível mormaço. Enquanto aqui e acolá caía um pé d’água, desses rápidos, alguns caminhões da tropa de choque estavam estacionados próximos ao Teatro Municipal, sobre o viaduto do Chá. Uma segunda tropa estava na Praça do Patriarca e uma terceira, que só vimos depois, estava estacionada sob o pontilhão do viaduto. Tropas armadas tomavam as duas pontas da passarela do Chá, sobre o Vale. Naquela época, os carros ainda trafegavam nas largas avenidas do Vale do Anhangabaú, hoje ocupado por uma imensa praça e um túnel subterrâneo. Muitos pedestres passavam por ali, e os pelotões de choque, que estavam posicionados em pontos estratégicos, formavam com escudos e cassetetes barreiras ao lado dos caminhões. Foi quando começaram a cair os pingões de chuva em frente à atual Prefeitura de São Paulo, na Praça do Patriarca. Com o início da chuva, algumas pessoas começaram a correr para se abrigar, e um descuido do acaso criou um caos. As primeiras pessoas que correram da chuva espantaram as outras. De repente, desencadeou-se um correcorre em todas as direções. Na Praça Ramos estava estacionada uma tropa de choque, que reagiu ao ver as pessoas correndo em sua direção. O pelotão foi para cima, descendo o porrete na galera. O corre-corre geral se espalhou. Vendo alguns apanharem lá na frente, as pessoas começaram a voltar em direção ao Patriarca, onde


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outro pelotão as aguardava. Algumas pessoas desceram as escadas e outras seguiram pelas ruas laterais do viaduto. Ali o pau comeu também. Como embaixo do viaduto, era gente para todo lado, apanhando sem saber por quê. Criou-se um frenesi geral na cidade e a sensação de medo se espalhou. Todos estavam em estado de choque! Logo depois, ao final do expediente, fomos para a Praça da Sé para pegar o metrô. Foi preciso tampar o nariz por causa do cheiro forte do gás lacrimogêneo. A cidade estava devastada e aquartelada, lojas e bancos com as vidraças e portas destruídas, e muita gente presa e hospitalizada. Passado alguns meses, o povo saiu às ruas pelo movimento Diretas Já; os bancários ocuparam as sacadas do prédio do Banco Mercantil de São Paulo e gritavam juntamente com um milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú pela volta da democracia no Brasil e o fim do regime militar. Um ano depois, os bancários pararam o sistema financeiro do país com a maior greve de todos os tempos, organizada pelo sindicato da categoria. Essa greve, arquitetada na rua, recuperou a dignidade dos bancários paulistas. Lembro que na época os bancários não tinham o cartaz que têm hoje, mas depois daquela greve todos passaram a nos olhar com outros olhos. Saíamos de agência em agência, fazendo piquetes nas portas. As “comissões de esclarecimento” ficavam acampadas em frente às portas dos bancos, porque era difícil convencer todos da importância da greve unificada, e comissões entravam nos bancos para convencer os gerentes a encerrarem o expediente. Cada agência fechada era uma grande vitória para o movimento, e foi assim durante dois dias inteiros, 48 horas em que o centro financeiro do país parou. Um fato importante que presenciei, e que merece ser relembrado, aconteceu durante um piquete na porta da Compensação do Banco


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do Brasil, onde eram compensados todos os cheques da praça da capital. O piquete já durava horas, mas não conseguíamos convencer os caras a parar e havia um grande empurra-empurra na porta. De um lado, os seguranças do banco e a polícia militar, do outro, centenas de bancários com bandeiras, faixas e apitos. Já eram quase 16h e a Compensação, que ficava na Líbero Badaró, continuava aberta. Os fatos recentes do viaduto do Chá ainda estavam frescos na memória. Ninguém queria voltar machucado para casa, mas também não arredávamos o pé da porta. A tensão era muito grande e formávamos um bloco com homens mais fortes prendendo-se pelos braços, a linha de frente ocupada pelos diretores do sindicato. Quando começaram a chegar os malotes, que naquela época eram trazidos pelo pessoal de carro-forte, percebemos que se não fossem parados ali, os cheques iriam para a compensação, assim como no dia seguinte, e seria ainda mais difícil paralisar o sistema. Tinha muita gente, e gritávamos palavras de ordem enquanto a polícia tentava formar um cordão de isolamento; nosso objetivo era impedir que os maloteiros entrassem. A calçada foi ficando pequena para tanta gente, o carro-forte abriu as portas e os transportadores desceram com os malotes nas costas. Estávamos peito a peito, com os cacetetes na boca do estômago, os gritos da multidão atrás e empurra-empurra. Ao meu lado, uma senhora de certa idade, também bancária, começou a cantar o Hino Nacional baixinho, e outros a acompanharam. De repente, todo a multidão embarcou na cantoria, e em vez das palavras de ordem, o hino brasileiro foi entoado com lágrimas nos olhos. Os policiais congelaram, em silêncio profundo, e os maloteiros, que já estavam com o pé na calçada, não tiveram mais coragem de dar um passo e recuaram para os carros-fortes. Então, cantando e comemorando, ocupamos a porta de entrada do Banco do Brasil e selamos definitivamente a greve.


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Quando lembro tudo isso e vejo esses movimentos narrados nos livros dos meus alunos, me pergunto quem era aquele garoto de cabelo espetado, magrelo e de coturno nos pés. O que ele pensava? O que eu sabia realmente? O que eu poderia ou viria a ser? Como tudo aquilo foi acontecendo? Como vim parar aqui hoje? Que importância tem esse processo de democratização que vivi para a história dos motoboys? Depois da greve, meu irmão Eliseu, que hoje trabalha no Instituto Paulo Freire, foi despedido do Banco Mercantil de Descontos por fazer parte de uma comissão que paralisou sua agência. Houve muitas demissões também no banco em que eu trabalhava. Eliseu foi embora do país, como muitos jovens nos anos 1980. Elias casou-se com uma mulher do prédio onde morávamos e se mudaram. Então, com 18 anos de idade, passei a morar sozinho no apartamento da Santa Cecília. Foi minha completa independência. Sempre me senti muito punk. Meu lema era tomar vodca e saber até onde ia minha liberdade, mas, para conhecer seus limites, você precisa chegar até eles. Passei a ficar conhecido no bairro durante algum tempo apenas pelo apelido de punk. Dava muitas voltas pelo centro velho, não faltava a um show de bandas punk e batia ponto nas galerias e lojas de discos. Enfim, virei frequentador das casas mais underground da cidade, como Carbono 14, Madame Satã — o templo da subcultura — e Ácido Plástico. Com os grandes movimentos de bandas punk e hardcore, os carecas apavoravam a periferia e as noites tenebrosas pelo centro velho da capital. Nunca tive medo de apanhar das gangues; era liso e me dava bem com todo mundo, conhecia a noturna e demoníaca cena underground paulistana. Por exemplo, corriam para a Ácido Plástico todas as vertentes do movimento punk, e se você “marcasse touca”, voltava




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para casa sem os dentes. A casa noturna, para o leitor ter uma ideia, era uma antiga igreja abandonada em uma rua escura atrás da Casa de Detenção de São Paulo, o antigo presídio do Carandiru. Enfeitada com uma cruz de néon azul, a igreja ficava no fim da rua, ao lado dos altos muros da prisão. Lotava de gangues vindas de todas as regiões da cidade. A coisa era feia! Todo mundo trajando preto, moicanos e cintos de metal, a própria visão do inferno. Porém, ao mesmo tempo, era a única forma de sentir viva a batida rápida do punk rock, com o sangue correndo nas veias e os olhos secos de fumaça. Creio que o movimento resistiu a alguns retrocessos e, com sua revolta vibrante estampada nos gestos, no vestuário e na música, buscava uma alternativa à mesmice medíocre a que se reduzira a vida dos jovens na cidade. Se por um lado pregávamos um movimento de cultura urbana apolítico e apartidário, ao mesmo tempo havia enraizamento na luta pela democratização política, pois não perdíamos um comício. Como em toda luta os lados estão visíveis, não poderíamos ficar indiferentes, então a integração dava-se junto à esquerda radical.6 Seja na música, seja na atitude, seja no comportamento, se olharmos com generosidade a juventude daquele período, podemos reconhecer um lugar de conflito para ela, que se situava em uma sociedade que passava por uma transformação profunda.

6 Em Revolução dos boys — a face oculta da cidade (2009), de Gilberto Lobato Vasconcelos, o leitor poderá encontrar mais referências a essa relação dos office-boys e dos contínuos com a política e os movimentos de revoltas juvenis dos anos 1970 e 1980 em São Paulo.


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X Eu ainda era estudante, em meados dos anos 1980, quando passei a colecionar revistas de moto e a me interessar por elas. Meu sonho era ter uma Yamaha DT 180, que era a minha cara. O emprego no banco até me dava algumas oportunidades, e, com um pouco de sorte, podia morar sozinho e frequentar um curso técnico de informática, mesmo assim era quase impossível naquele momento comprar uma moto. Portanto, era apenas um sonho distante. Não era comum naquela época um garoto vindo do fundão da periferia ter uma relação tão próxima com motos, nem me passava pela cabeça que um dia eu aliaria motos ao trabalho. Na verdade, era algo inimaginável, até porque, como eu estava cursando o técnico em processamento de dados, buscava outro tipo de horizonte para mim. Meu primeiro contato real com uma moto foi no próprio banco, quando um colega de trabalho, o Osvaldo Alexandre Jr., comprou uma motocicleta. Curtíamos a liberdade de acelerar pelas avenidas da cidade nos finais de semana. Naquela época, a ZN era a região onde se concentrava a maior quantidade de motos na noite de São Paulo. Meu sonho era voltar lá na periferia, onde eu deixara os velhos amigos, com uma moto; eu ficava horas imaginando isso. Para mim, a grana era curtíssima; pagava as despesas e o rango, e quando sobrava algum dinheiro, eu podia comprar alguns discos no final do mês. Ao lado do banco onde trabalhávamos havia um estacionamento de motos que, na década de 1990, viria a ficar conhecido pelos motoqueiros como a “Ilha”, uma clareira entre os altos prédios da rua Líbero Badaró, no centro de São Paulo. Era um canto de praça com um pequeno mirante para o Anhangabaú onde o pessoal se encontrava para bater papo enquanto esperávamos


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o horário de entrar nos bancos. Estacionavam lá suas motos, no mesmo local de que posteriormente os motoboys tomariam conta, e foi conversando sobre motos ali, com aqueles caras, que percebi que liberdade e motocicleta tinham algum tipo de relação muito íntima, e então compreendi por que eu era apaixonado por elas. Além de motos, também rolava um papo sobre as garotas e onde levá-las. Era esse o tal sonho de liberdade. O Sérgio, um desses caras, um dia foi mandado embora e encontrou trabalho em uma empresa de contabilidade próxima ao nosso banco, na rua São Bento. Nessa época, ele tinha uma Honda XL 250 e foi convidado por seu patrão para trabalhar de motoqueiro, uma vez que os office-boys da contabilidade não estavam dando conta do serviço. Daqueles caras, me lembro do Pedro, que me ensinou a fazer o serviço de contínuo e, sendo o primeiro dos demitidos, depois virou pedreiro. O Larry Jerry Ballock, que depois saiu e terminou a faculdade, não voltou a trabalhar em bancos e virou consultor. O Paulão conseguiu ir para outro banco, mas ficou por pouco tempo; hoje não imagino onde esteja. Creio que apenas Rodolfo, um japonês bacana que torcia pelo Santos junto comigo, tenha se mantido na carreira de bancário. Encontrei-o muitas vezes quando ia fazer algum pagamento na Nossa Caixa. Poucos ficaram. Em especial o Flávio Mello, que fez jornalismo e depois foi trabalhar no Jornal da Tarde. Da nossa seção só sobrou o Luizão, que ficou muito tempo ainda como chefe do setor e hoje deve ter se aposentado. A maioria tinha entrado como contínuo e só conhecia a rotina daquele banco, não tinha nenhuma outra especialização. O legal mesmo era que, naquela época, apesar de todas aquelas pressões, ainda mantínhamos nossas “fugas” e farras na Leiteria Alfa e começamos a explorar também outros lugares. Nosso passeio começava na Woodstock


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Discos da rua Dr. Falcão, onde íamos saber das novidades e ouvir música, e terminava invariavelmente na lanchonete do Bob’s da rua Direita. Mas entre um lugar e outro, passávamos pelo Museu do Disco, na Barão, pelo Mappin e pela galeria Presidente. A Galeria do Rock, na 24 de Maio, ainda nem existia. Às vezes, voltávamos com quatro, cinco ou até dez discos de vinil de uma vez. Íamos para o banco quase no fim do expediente na maior cara de pau! Um dia, conversando com Sérgio, ele comentou que havia começado a dar uma cobertura aos officeboys, que enrolavam muito na rua, e que o chefe dele gostou da rapidez com que o trampo era feito de moto e tinha sugerido que ele ficasse só como motoqueiro. Nessa época, as motocicletas eram utilizadas apenas para lazer, e combinar a máquina ao serviço era uma ideia nova. Eu não podia imaginar as avenidas cheias de motoboys de hoje. Como ele ganharia a mesmo salário da época do banco, topou a parada na hora. A contradição era que eu também queria experimentar isso, pois odiava aquela rotina do banco, então por um lado gostei daquele lance do Serginho, uma alternativa pra continuar a ganhar bem, porém, lembro que torci o nariz, pois na minha imaginação a moto não era para trabalho, mas para curtir a vida! Depois que saí do banco, nunca mais vi esse cara e a história desse motoqueiro caiu no esquecimento. Eu já estava a ponto de explodir com o banco. Por conta de irmos para o trabalho com cabelo moicano, coturnos nos pés e as malditas gravatinhas que o banco impunha, éramos os sujos e revoltados. Não aguentando mais aquela burocracia, certo dia tive uma crise e desci correndo para a rua, à deriva, andando pelo centro da cidade até a noite, quando voltei para casa. Faltei trabalho no dia seguinte e voltei na sexta. Fui direto para a mesa do diretor e, para minha surpresa, o cara em vez de me pilhar de broncas, simplesmente


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ficou me aconselhando a enfrentar as dificuldades e os conflitos da vida, lembrando-me de que eu era jovem e tinha futuro. Eu pensava, largado na cadeira, segurando a ponta da gravatinha: “Que futuro? O que ele sabe disso? Esse cara não passa de um cretino, e só porque é um diretorzinho ele pensa que pode ficar me dando moral!” E ele continuou naquele papo-furado, dizendo que naquele momento eu tinha uma posição estratégica no banco, pois era quem lidava na contabilidade com o fechamento do balanço, e isso me permitia ter uma visão panorâmica e galgar os degraus para futuras subchefias... Que belo esforço! Ele realmente não entendera nada da minha agressividade, já começava a ofender minha inteligência com aquelas baboseiras e coisas do tipo. Eu ficava pensando: “Existe um ser humano embaixo desse terninho alinhado? Será que ele não percebe que existe um mundo além dessas portas, ou ele é mais um daqueles burocratas trituradores de pessoas?” Com franqueza, expliquei as razões do meu desligamento, como aquela odiosa estrutura massacrante diária já não me interessava mais, e pedi que colocassem meu nome no topo da lista do próximo corte de funcionários. Saí da sala de cabeça erguida e com muito orgulho. Admirei minha coragem de enfrentar o destino e olhar para a frente, não tendo mais medo do futuro. Os colegas aguardavam do lado de fora e apertaram minha mão. Pouco depois veio o facão, e no dia 4 de fevereiro de 1986, após quatro anos na função, deixei para sempre aquela seção e o elefante branco que era o banco.

XI A máquina eletrônica que eu operava no banco para fechar os balancetes, uma Sharp modelo BA-1000, contabilizadora que mais parecia uma espécie de computador movido a cartões magnéticos, hoje provavelmente ocupa uma prateleira em algum museu. Descobri


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que aquela máquina era usada na contabilidade em algumas grandes empresas e logo achei um trabalho numa empresa distribuidora de produtos químicos em Pinheiros, atrás do Hospital das Clínicas, onde passei uns poucos meses. Pouco tempo depois, comecei a fazer estágios pela manhã em algumas empresas de informática. Logo surgiu uma oportunidade de me fixar em outra empresa, da área de computação. Saí da distribuidora e me tornei trainee — foi a última vez que trabalhei com contabilidade. Entrei nessa área, que então começava a despontar e ainda contava com poucos profissionais. Ganhava bem menos do que os programadores, mas sentia que estava dando os passos certos e que a oportunidade de trabalhar numa empresa que dava suporte a fábricas de computadores Prológica era um bom começo. Ali eu poderia me tornar um técnico em informática. Logo fui convidado por um cliente para trabalhar diretamente para ele, pois comprara um daqueles computadores que eu já dominava e precisava de um programador para operar. Não posso dizer que estava muito satisfeito: sempre fui bom e gostava de lógica computacional — até pensei em fazer faculdade —, mas, diferentemente de outros programadores, eu me interessava pelos resultados do meu trabalho. Incomodava-me ver que minha criatividade era usada para reestruturar e racionalizar os custos da empresa, o que terminava invariavelmente em corte de pessoal. Nunca curti o fato de, ao introduzir um novo processo na gestão da empresa, essa minha ação levar às decisões de dispensa de funcionários. Eu nem sempre sabia das coisas, mas sentia que as pessoas me temiam, por conta desse poder que a máquina tinha sobre a mente e o trabalho delas. Minha função era sistematizar, economizar, racionalizar e maximizar os lucros. Muitas vezes tive vontade de vomitar... Mas o amor veio me salvar.


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Em 1987, eu já era técnico em informática formado e trabalhava numa grande rede de lojas. Então, resolvi dar um tempo nos estudos, não tinha mais certeza do que fazer nem do que queria da vida. Estava meio frustrado; muita coisa havia acontecido naqueles últimos anos e eu já não via meu futuro com os mesmos olhos. Apesar de a área de informática naquela época ser uma das mais promissoras, eu continuava descontente. Diziam que eu tinha a sorte de ter escolhido a profissão na hora certa e que eu deveria seguir em frente, fazer faculdade para completar minha formação, que eu poderia chegar a ser um bem remunerado analista de sistema.. De certa forma, as pessoas tinham razão, mas eu era punk, anarquista, ateu, humanista e sei lá mais o quê, e odiava o que percebia como falsa aparência de normalidade e hipocrisia das pessoas em relação à vida. Não compreendo ao certo, mas se me sinto desconfortável com certa situação eu logo largo. Então, eu acabara de ganhar o mundo, mas não queria me prender a projeções de futuro. Precisava de tempo para viver, acho... Vou fazer aqui um parêntese e tentar compreender o porquê de algumas coisas. Afinal, quais eram as expectativas para um garoto da periferia no início dos anos 1980? Quais eram as principais fontes de informação? Creio que os jornais, a TV e o rádio não eram. Claro que essas fontes refletiam a realidade, mas faltava muita informação e era muita coisa distorcida. Ao contrário das outras famílias de pastores, eu e meus irmãos sempre buscamos no estudo uma forma de sair da ignorância e da pobreza, buscávamos outras referências além da Bíblia. Chegavam lá em casa alguns livros extraordinários, que meus irmãos traziam. Lemos também muita bobagem, mas havia muitos livros legais. Li, por exemplo, A náusea, de Jean-Paul Sartre, aos 14 anos e sinto


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orgulho disso até hoje. Curtíamos muito literatura brasileira, como Jorge Amado e seu Capitães de Areia, Érico Veríssimo com Olhai os lírios do campo, ou alguma coisa mais histórica, como A Coluna Prestes – rebeldes errantes, de José Augusto Drummond. Quantas vezes quebramos o pau por conta dos mais diversos assuntos, história do Brasil, política, música, já que minha mãe lecionava música e meus irmãos mais velhos sabiam tocar vários instrumentos. Gostávamos até de pintura. A Kedma gostava de pintar e todo mês comprava fascículos da coleção Mestres da Pintura, da Editora Abril, que a gente colecionava com prazer. Para ficar por dentro de assuntos mais atuais sobre ciência, lembro que fiz a assinatura mensal da National Geographic. Curtíamos música popular e samba. Elias, que começava a se interessar por teatro e foi ator por uns tempos, era conhecedor de samba e MPB, e nos anos 1970, ele e seus amigos black power formaram um conjunto e faziam bailes na Chácara do Padre, em Guaianazes. Mesmo depois que virei adolescente e passei a curtir rock, não via problema em conhecer outros estilos de música. Muitas vezes, eu e o Nêgo, junto com o Vagner, outro amigo nosso, caíamos para dentro da favela lá no Ermelino Matarazzo para ouvir os discos raros que os caras tinham por lá. O pai do Vagner fazia parte de uma roda de samba e passávamos longas tardes de sábado jogando sinuca enquanto ouvíamos o chorinho ao vivo pelas quebradas da avenida Imperador. Samba de raiz, blues, os sons dançantes da black music, sempre com James Brown e Tim Maia. Também ouvíamos muito Fundo de Quintal, Bezerra da Silva, Leci Brandão, Beth Carvalho, Almir Guineto e Zeca Pagodinho, e conhecemos o verdadeiro samba de roda antes de virar pagode e tema de novela. Estavam começando também os bailes funk em galpões alugados



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em São Miguel, e fomos a muitos furacões. Enfim, nas domingueiras, eu tinha uma preferência pelo samba rock, porque podíamos dançar sem parar. Foi nessa época que encontrei, numa edição da National Geographic, uma matéria falando do universo dos computadores e me senti motivado a estudar computação. Na loucura da cidade, em um dia de dezembro, com uma bela chuva de final da tarde, ao visitar uma amiga que estudava comigo, a Tânia, fui apresentado à sua melhor amiga, uma pequena menina muito linda que curtia visual dark. Para minha surpresa, aconteceu o que um dia teria de acontecer: eu me apaixonei à primeira vista. Seu nome era Tutte, que em italiano quer dizer tudo. Eu me apresentei: — Olá, eu sou o Neka!

Como já se sabe, em Portugal, neca tem o sentido de negação, ou seja, nada. Logo, alguma coisa aconteceu, Tutte e Neka. Tudo e Nada. Foi inexplicável, mas os opostos se atraem. Começamos a namorar naquele dia, e um ano e pouco depois estávamos casados. Feliz da vida com os preparativos do casamento, comprei todos os móveis, e os eletrodomésticos nós tiramos na loja onde eu trabalhava. Numa ensolarada manhã de quinta-feira, 31 de março de 1988, eu e ela fomos até o Cartório do Jabaquara para casar no papel. Além de nossos familiares, estiveram presentes alguns amigos. Não fizemos festa. Não tínhamos dinheiro e íamos começar do zero. De cartório, fomos para nosso apartamento de um quarto, que havíamos alugado no bairro de Mirandópolis, colocamos roupas mais leves e fomos passear de mãos dadas pelo Parque do Ibirapuera, que ficava perto do nosso novo lar. O dia estava lindo e as horas passaram vagarosamente com o amor no ar...


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XII Enquanto isto, em São Paulo começou a surgir o precursor do“motoboy”: o office-boy com moto. A mais antiga lembrança que tenho dessa nova profissão, além do meu colega de banco que passou a fazer serviço de boy com sua moto, foi relatada a mim por minha cunhada, que em 1986 era secretária executiva e disse ter usado os serviços de um office-boy externo. Tinham entregado a ela um cartãozinho. Ela me contou que o serviço era prestado por um motoqueiro de bigode, cavanhaque e jaqueta de couro com botas altas, com uma moto turbinada e um bauzinho branco preso na rabeta. Havia um adesivo no baú escrito “call boy” (algo como “chame o garoto” em inglês), com o número do telefone dos caras. Não saberíamos dizer a procedência nem a quantidade dessas pequenas empresas com dois ou três motoqueiros do início, mas apareceriam e desapareciam aos montes na capital em curtos espaços de tempo. As primeiras empresas de entregas rápidas começaram a surgir em meados dos anos 1980, contratando motoqueiros para prestar serviços a escritórios e outros tipos de clientes, disponibilizando “office-boys com motos”, mesmo que ainda não existisse estatuto legal para operarem como terceirizadores de serviços. Não havia ainda uma lei que regesse os contratos entre as empresas e os motoqueiros. Tal relação surgiu após a promulgação da nova Constituição do país, em 1988. O trabalho que era, a princípio, informal, passaria a ser caracterizado como serviço terceirizado. As empresas interessadas em reduzir custos começaram a contratar essas empresas de serviço de motos. Tanto os direitos quanto os deveres das empresas terceirizadas em relação aos clientes, assim como os dos trabalhadores assalariados que passaram


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dessa forma a fazer parte indireta da cadeia produtiva estavam submetidos à lógica do mercado, o que permitia que as tomadoras de serviço selecionassem os melhores preços sem se preocupar com a qualificação desse pessoal. A novidade diminuía drasticamente os custos, pois elas não tinham gastos adicionais com contratação de pessoal, que ficava sob responsabilidade das prestadoras de serviços, muitas vezes com os direitos básicos dos trabalhadores negados. Bancos e multinacionais também começariam a fazer uso do serviço de terceirizados, dispensando seus funcionários e contratando empresas interpostas para realizar os mesmos serviços. Antes disso, eram poucos os empresários no setor que se arriscariam a entrar nesse mercado, e somente quando essas grandes instituições começaram a terceirizar esses departamentos é que ficou claro o próprio conceito de mensageiro motorizado. O custo de manter uma frota de motos ainda era alto, então a mesma dinâmica de relação entre as empresas-clientes e as terceirizadas se aplicou ao contrato de trabalho com os mensageiros, e em vez de as prestadoras de serviços comprarem e manterem uma frota, elas simplesmente contratavam mensageiros com motos, usando mão de obra e automóveis de terceiros. Na prática, todos ganhavam, pois, como veremos adiante, era uma profissão nova que possibilitava que pessoas com pouca escolaridade pudessem entrar no mercado de trabalho e ganhar bem. Como não havia ainda uma regra geral para regular esse mercado incipiente; cada empresa praticava o preço de entrega que preferisse, o que deu margem ao aparecimento do motoboy. O nome motoboy ainda demoraria quase uma década para aparecer como denominação dessa nova profissão. No princípio, éramos chamados apenas de motoqueiros, porque foram os caras que curtiam motos e a liberdade


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de pilotar que começaram a buscar formas de usar as motos como instrumento de trabalho, incentivando o “crescimento da categoria como uma nova forma de uso do espaço urbano”, como diz o pesquisador da PUC, Roberto Shinji Ito. Essa informação é pertinente em relação aos motociclistas pioneiros, pois algumas empresas tiveram sua origem a partir da vinda desses motociclistas para o setor de entregas, pessoas que, após terem trabalhado como motoqueiros, abririam seus próprios negócios com o conhecimento que tinham sobre o uso racional da motocicleta. Apesar de no fim da década de 1980 a terceirização e a flexibilização nas leis terem permitido a criação do trabalho terceirizado, nem sempre a vida das pessoas melhorava. O contingente desse pessoal de serviços gerais, como foi o caso dos antigos contínuos e office-boys, foi sendo gradativamente substituído pelos terceirizados, e suas vagas desapareciam à medida que o número de motoqueiros crescia. Apesar de fazerem os mesmos serviços, a relação desses terceirizados com as instituições sempre foi desvinculada, por exemplo, por nunca ter havido promoção de um motoqueiro a um trabalho interno de um banco. Assim, estava cerrada mais uma porta para quem era pobre. Quem antes sonhava em começar em um banco como contínuo e crescer, só poderia ingressar nessas instituições tendo diploma de faculdade. Os contínuos e boys desapareceram quase por completo. As condições para o surgimento dessa nova categoria profissional não podem ser explicadas apenas pela gradual entrada no mercado de empresas que contratavam motoqueiros, para prestarem serviços. Deve ser observado também o aumento do trânsito na cidade. O tráfego urbano, com a entrada do Brasil no processo amplo da globalização, se tornou um dos principais entraves para


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a alta circulação do capital, e passou a ser um dos problemas mais importantes das grandes metrópoles. A solução apresentada pela motocicleta foi peça-chave para o incremento do comércio nos grandes centros financeiros e para a segurança no transporte de documentos e informações. Somente então bancos e grandes empresas começaram a confiar em nossos serviços e passaram a utilizá-los. Junto à lógica desse trabalho, uma enorme gama de novos serviços começou a ser realizada por motociclistas, e até mesmo novos negócios surgiram na cidade a partir da inclusão da moto na produção. Um exemplo clássico disso são as pizzarias, que ampliaram seu raio de atendimento com as motocicletas, proporcionando conforto e novos hábitos. O espaço da cidade transmuta-se com a mobilidade da moto, a flexibilização nas relações trabalhistas e o baixo custo operacional da motocicleta em relação a outros transportes. Essas são as principais razões que possibilitam explicar a explosão na contratação desses serviços a partir da década de 1990. Essas explicações, contudo, ainda não são suficientes para dar conta do surgimento da figura do motoboy — e da sua cultura — nos grandes centros urbanos. Acredito que foi preciso que os antigos motoqueiros e mensageiros motociclistas desconstruíssem sua autoimagem para que enfim a figura intrépida desse personagem altamente urbano pudesse emergir. Aqui, porém, já estamos no terceiro tempo do jogo, e para não atropelar nossa argumentação, vamos por partes. É necessário lembrar que a profissão foi formada no início, principalmente por trabalhadores que já tinham alguma experiência em outras profissões, como exbancários, ex-metalúrgicos, ex-operários de construção e assim por diante. Esse caldeirão, na verdade, era


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uma experiência à parte, e discutíamos muito a respeito das vantagens e desvantagens de cada profissão. Uma verdadeira abordagem sobre as dimensões sociais que esses motoqueiros percebiam em seu dia a dia, desbravando o trânsito e impondo uma marca de autonomia que lhes garantia – e ainda garante – uma possível voz a ser sempre ouvida, acontece justamente devido à relação com a motocicleta. Tal relação não pode ser compreendida se não estiver ao alcance do leitor a informação de fundo de que essa categoria foi construída a partir de uma diferença: o fato de as motos, em sua grande maioria, pertencerem aos próprios motociclistas. Isso permitiu que esses profissionais tivessem sua autonomia preservada e que se criasse uma cultura própria. Se as motos fossem de propriedade das empresas desde o princípio não existiria a categoria no formato que existe hoje. Ou seja, a motocicleta cumpre não só o papel de ser a ferramenta de trabalho do profissional motociclista, mas também, deixando a esfera do trabalho, é objeto de prazer e desejo, que pertence a outros campos da vida. Esse diferencial talvez explique as muitas soluções encontradas por esses profissionais no seu dia a dia, e daí sua independência. Sua atomização, que dificulta a criação de estratégias coletivizadas para a organização de seu trabalho, é um problema quase insolúvel. Apesar de os motociclistas não terem o controle dessa produção, o serviço prestado por eles é vendido no mercado como produto, ficando subordinado a uma relação empregatícia com seu empregador, e, assim, a uma eterna ambivalência em relação aos seus direitos e contratos. Explico: como é sabido, alguns motoqueiros são profissionais autônomos e atendem diretamente aos seus clientes, sem que dependam de um agênciador para tanto. Aprendem, assim, a embutir todos os seus custos


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no preço do serviço, mas esses motoqueiros ainda são minoria. A grande maioria, os motoboys, vive em uma situação sem saída, subordinada à lógica do mercado e dependente de um patrão. Ao ser admitido em uma dessas empresas, o motoboy se depara com a seguinte situação: com seu ganho, ele precisa manter tanto a moto como a si mesmo. Em geral, as empresas não registram logo de cara, o motoqueiro passa um tempo fazendo serviços esporádicos até o dia em que consegue um contrato fixo em alguma empresa-cliente. Quando é registrado, o motoqueiro tem direito a fazer outro contrato de locação para sua motocicleta, somando o ganho do contrato do aluguel da moto com o salário, e daí tira sua sobrevivência, mas se qualquer custo a mais aparecer com a moto ele é obrigado a tirar do seu ganho se quiser continuar rodando. Existem outras maneiras de contratação também, como os muitos motoboys que passam a vida toda apenas trabalhando de esporádico, assinando contratos de autônomo sem ser autônomo na realidade, pois, lembre-se, ao disponibilizar sua força de trabalho e sua ferramenta ele se terceiriza e muitas vezes abre mão dos direitos trabalhistas para poder competir no mercado. Muitos profissionais nem sequer sabem que têm direito a um contrato pela locação da moto e passam a vida trabalhando como se fossem empregados, ganhando só o salário. É uma confusão, e em cada lugar encontramos diferentes situações. Nosso objetivo neste livro é mostrar que sem o transporte de moto não haveria o negócio de entregas rápidas tal como conhecemos hoje. Quem detém o meio material para a realização de tal negócio é o motociclista. No entanto, como explicar o fato de que eles sejam os grandes prejudicados? Se der problema, as respostas


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recebidas nas empresas variam de acordo com a situação: “a moto é sua, você se vira” ou “você é meu empregado, portanto, me respeite”. Essa ambivalência se estende assim por toda a teia de produção, o empregador se eximindo muitas vezes de suas obrigações e dando ao profissional sua liberdade, com sua própria moto e a responsabilidade única por seu próprio destino. Ao assinar um contrato de locação de seu veículo com a empresa e outros tipos de contrato de trabalho, esse misto de empregado-patrão, já que ele é proprietário do meio de transporte e ao mesmo tempo subordinado ao regime de contrato trabalhista, cria contradições e vícios difíceis de sanar, como a forma injusta de transpor suas perdas para o valor do serviço. Essas perdas se acumulam com o passar dos anos sobre o faturamento do motoboy, e o motoqueiro fica refém de um sistema que o explora indecorosamente. Um problema a ser levantado pode não estar relacionado ao fato de o motociclista ser o dono da moto, mas sim ao fato de que ainda não estão claras para ele as vantagens e particularidades da profissão e a forma concreta de se tornar um profissional competente e valorizado. Talvez daí venha uma explicação relacionada ao acolhimento que a categoria deu àquelas pessoas que não tinham outra oportunidade na vida, que perderam seus empregos e foram tentar a sorte como motoboys, que, mesmo desconhecendo completamente a realidade das ruas e a direção defensiva, permanecem na profissão, aumentando ainda mais os problemas do setor. Penso que muitos de nós pararam nessa profissão com esperança de voltar às antigas ocupações. Éramos motoqueiros antes de tudo, e muitos na primeira oportunidade sonhavam encontrar algum tipo de sobrevivência sem deixar de andar de moto. Isso significava que, vendo a profissão como lugar de passagem, nunca houve um forte compromisso com a


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coletividade, o que deu margem à relativização dos direitos e à falta de uma identificação com a função. Esse não pertencimento, como se não fizessem parte de uma categoria, contribuiu para que a mesma não fosse bem vista pelos próprios motoqueiros, outra relação intrinsecamente ligada com a razão dos acidentes e principalmente com a dramática luta diária do motociclista contra os automóveis no meio do trânsito. No fundo, havia a urgência cotidiana de se obter o sustento e competir pelo melhor, alcançando seus resultados. É necessário, porém, transpor a falta de compromisso com a especificidade desse trabalho, em sua dimensão coletiva ou política, e compreender que esse compromisso tem relação direta com a lógica da produção e do engajamento do trabalho na complexidade da vida moderna. Ao conversarmos com qualquer motoqueiro, os riscos da profissão sempre aparecem no meio da narrativa. Ou seja, fica evidente o paradoxo: o alto risco de perder a vida em acidentes e ao mesmo tempo o prazer único que vem da liberdade de pilotar uma moto. E isso é inenarrável!

XIII Comprei minha primeira moto no final de agosto de 1988. Era uma Vespa 200/E ano 86. Estava praticamente zero quilômetro. Ela fora comprada por uma construtora para os funcionários fazerem o serviço externo, mas, depois que a empresa passou a usar serviços de motoboy, tinha ficado encostada em um galpão. A partir de uma dica de um amigo, fui lá e a adquiri. No princípio, foi apenas para meu lazer. Não imaginava que minha primeira moto seria justamente uma Vespa e que fosse um dia trabalhar com ela. Nessa época, eu estava juntando dinheiro para comprar outra moto e, então, como o preço era irrecusável,


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paguei. Havia certa nostalgia nesses modelos de moto — que me interessam até hoje. Curti muito aprender a andar de moto com ela. Descobri em seguida que pilotar sem capacete não era mais permitido, levei duas multas e fui imediatamente obrigado a comprar um. Meu primeiro capacete Wind foi um modelo aberto que os motoqueiros apelidaram logo de peruzinho da Sadia. Além de aprendermos na marra a usar capacete, algo de que os motoqueiros não gostavam, pois era muito bom o vento na cara, havia os mata-cachorros, que até hoje ninguém suporta em moto, e tivemos também que aprender a não retirar os espelhos. Depois de alguns tombos, aprendi que o chão é liso e que para tomar um róla7 é mais fácil do que se imagina. Cotovelos e joelhos ralados, eu ia por aí fazendo gingas com minha Vespa preta. A princípio eu estava tranquilo, meu casamento ia bem e dava para pagar as contas. Mas em meu emprego na rede de lojas de eletrodomésticos do Jean Bittar as coisas já não eram como antes e eu percebera que com o passar do tempo eu ficara desatualizado, e se um dia eu saísse dali, dificilmente encontraria um emprego igual ou melhor que aquele. Na área, de computação, tudo muda muito rápido. Vi então que quem era dessa área, como eu, não podia parar de estudar, pois rapidamente você poderia ficar fora do mercado. As empresas estavam contratando apenas quem já possuía diploma ou cursava faculdade. Naqueles quase três anos que fiquei lá, acabei me atrasando. Teria que dar um grande salto se quisesse continuar a trabalhar com computação. Então, dias antes de eu sair daquele emprego, tive uma discussão com o gerente, pois não concordava que eles não fizessem mais investimento em novos computadores, 7 Gíria usada para expressar as quedas em alta velocidade em que o motociclista sai rolando pelo asfalto.



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e como aqueles equipamentos não davam mais conta do recado, acabava sobrando para mim, pois tinha que fazer parte dos apontamentos e cálculos com as próprias mãos. Nada era on-line como hoje, e o computador em que eu trabalhava era um trambolho. No início de 1989, de novo tomei a iniciativa de pedir meu desligamento do emprego, e dessa vez sem perspectiva de futuro, porém sem medo. Jamais senti qualquer terror de ficar desempregado, mesmo estando casado. Creio que a ideia de procurar trabalho de moto veio de uma conversa que tive com um motoqueiro, que, quando eu trabalhava na rede Jean Bittar, sentou ao lado do computador e me contou como era seu trabalho. Ele trampava numa agência de publicidade muito conhecida e passava por lá às sextas-feiras ao final da tarde para retirar o disquete com os preços promocionais, que eu preparava para fazer parte do nosso anúncio no jornal de domingo. Por conta de ele ter ido muitas vezes lá, ficamos amigos e conversávamos sobre motos, pois na época eu estava me preparando para comprar a minha. Puxei assunto sobre sua profissão e ele começou a me passar o esquema de trabalhar de moto na rua. Era coisa fácil. Mas tinha que ser motoqueiro, pois, às vezes, eles pegavam umas roças, e se a moto quebrasse o cara tinha que se virar sozinho. Tinha também suas vantagens, como não ter que aguentar a cara do patrão o dia inteiro e nem ter que ficar olhando para as quatro paredes de um escritório. Conforme ele ia falando, eu ia acompanhando seu roteiro: buscar disquetes, documentos, fotos e outros materiais leves nos clientes e fornecedores e levar com rapidez para a agência, pois lá eles fechavam as mídias e mandavam para a gráfica ou para a TV os anúncios prontos. O trabalho dos motociclistas era dar cobertura a toda essa logística, não importando as condições do


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tempo ou do trânsito. Achei interessante e vi ali uma possibilidade de ganhar a vida como motoqueiro e ainda gozar a antiga liberdade de andar pela cidade, como nos meus tempos de office-boy. Eu disse para ele: — Putz! E vocês ainda são pagos para andar de moto?!

Às vezes penso que não vale a pena resistir às coisas belas. Lembro-me da gravidez da minha esposa, um presente que não esperávamos e que recebemos com muita alegria. Para mim, foi uma mudança muito grande em pouco tempo. E, com espanto, vi a barriga dela começar a crescer. Éramos muitos jovens ainda e de repente, tivemos que começar a ter responsabilidade. Com o nascimento do Lucas, nosso filho, acabamos lidando muito bem com a situação. Ela já não trabalhava e recebíamos nossos amigos com alegria e prazer nos finais de semana em nosso apartamento para ouvir música, assistir a filmes e comer pizza. Não tínhamos do que reclamar. Essa foi uma época muito boa para termos tempo com outras preocupações. Meu trabalho agora se resumia a sair de casa de manhã de moto até a Copeg, uma fotocopiadora perto da avenida Paulista, onde eu encontrava um trabalho de entregas com motocicleta. Parecia trabalho de office-boy, mas não era a mesma coisa. Desde o meu primeiro dia como delivery, já comecei com uma baita dor de cabeça por conta do barulho no capacete, e tive que me acostumar com o trânsito pesado. Era um serviço que não exigia quase nada além da moto, do capacete, do baú (às vezes também necessário), da carteira de habilitação e do imprescindível guia de rua, que nem todos usavam. Quando meu filho nasceu, no final de 1989, até pensei em não continuar mais naquele trabalho, porque eu sentia no dia a dia com os motoqueiros que havia sempre uma sombra rondando nossas cabeças; mesmo naquela época muitos motociclistas já


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morriam no trânsito violento da cidade de São Paulo, e eu sabia a dor que poderia causar caso sofresse um acidente. Ao final do dia, colocávamos a capa de chuva e nos mandávamos, com a saudade imensa de casa — não víamos a hora de chegar junto à família. Ainda éramos muito poucos. A profissão nem mesmo tinha nome. Naquela época, São Paulo era praticamente só dos automóveis, e apenas cerca de 3 mil motoqueiros trabalhavam como entregadores. Não tínhamos nenhum destaque em relação a outros motociclistas que circulavam pela cidade, deslocando-se para ir ao trabalho ou a lazer. No início do ano seguinte, um dos motoqueiros que conheci na fotocopiadora saiu e foi trabalhar em outra empresa só de motoqueiros que prestava serviços para grandes escritórios e bancos. Eu passaria a ser chamado de mensageiro motociclista. Quando fui ver essa empresa em que meu camarada estava trabalhando, fiquei surpreso com a quantidade de motos que tinha por lá: quase trinta motoqueiros! Percebi que o negócio tinha futuro e cresceria cada vez mais. Alguns até já trabalhavam com contratos e tinham remuneração fixa, além de receberem altas comissões por serviços extras. Nessa nova empresa, tive meu primeiro registro como mensageiro motociclista. Ali eu passaria os próximos dez anos da minha vida.

XIV Mais que ficar indo e vindo, levando e retirando documentos e fotocópias, o trabalho de mensageiro que eu executava agora tinha outras obrigações. Costumo dizer que comecei minha carreira como delivery, depois virei mensageiro motociclista e terminei um dia como motoboy. Mas não são somente nomes para a mesma coisa.


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O bate e volta dos deliverys, seja entregando cópias ou lanches e pizzas, não exige muita estratégia. É muito diferente de um mensageiro, que precisa construir seu cotidiano conforme o trampo vai pegando. O dia vai passando e o mensageiro vai mudando suas táticas, encaixando os trampos, mudando os roteiros e criando novas estratégias. Nem mesmo os motoboys esporádicos têm de enfrentar os mesmos problemas. No início, a categoria ainda não era formada em sua maioria por motoboys, como hoje; nem mesmo existia tal palavra. Acontece que contratar um motoqueiro para fazer um serviço era muito caro. No meu trabalho mesmo, muitos caras como eu entravam e só aos poucos iam trabalhar nos contratos. Os contratos, no caso, eram os postos de serviço terceirizados dentro de grandes empresas e bancos. Assim, quando entrei, fiquei na reserva para ir suprindo os motoqueiros quando algum faltava ou quebrava a moto. O legal era que os motoqueiros nos tratavam bem e até ensinavam o trabalho, a fim de que, quando eles faltassem, o serviço fosse bem feito. Minha primeira substituição para valer foi no lugar do Grecco, um negão que ficou muito meu amigo; mesmo muitos anos depois de termos saído da categoria, ainda nos falávamos. Fiquei uns dois meses em seu lugar, pois ele havia sofrido um acidente e ficara afastado. O contrato dele era em um banco e fui lá fazer a substituição e tocar seu roteiro. O que me impressionou foi como as pessoas que trabalhavam no banco vinham perguntar como o Grecco estava; eu não podia dar nenhuma informação e, apesar de ainda não o conhecer, vi que ele tinha o maior respeito. Esse era um diferencial. O acidente foi até um pouco grave: ele quebrou o maxilar. Quando o Grecco voltou, fui substituir outro cara, o Neno.


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No começo, havia uma grande amizade entre os motoqueiros, e todos tinham uma grande preocupação em evitar acidentes. Na maior parte formadas por motoqueiros experientes, as empresas se estruturaram para atender bancos e multinacionais. Como eu disse, só foi possível o crescimento do setor quando essas instituições deram um voto de confiança necessário para que o transporte de malotes, até mesmo com cheques e valores, passasse a ser feito por nós, motoqueiros. Na verdade, elas deram o lastro para seguirmos adiante. Logo eu estava ganhando mais do que quando trabalhava de operador de computadores, e não havia razão para deixar de trabalhar de moto, já que era um trampo que não tinha patrão na sua orelha enchendo o saco. Ficava na rua o dia todo, fazia novas amizades e, o mais importante, dava para eu dar meus rolés sem precisar dar satisfação a ninguém. Em meu primeiro acidente, quebrei apenas a clavícula. Os acidentes não acontecem sem razão. Não existe acaso. Apesar de serem imprevisíveis e muitas vezes poderem ser evitados, são a melhor demonstração de como os homens são falhos. Eu tinha acabado de entrar na empresa e substituía um motoqueiro que tinha sofrido um grave acidente, um entre os muitos em que ainda me envolveria. Claro que desde que aprendera a andar de moto eu já tinha levado muitos tombos e saído ralado, mas foi um grande susto quando me vi atingido por um carro na via paralela à rodovia Anchieta. Eu estava a milhão quando acelerei pela via livre. Tinha um cara fazendo uma manobra irresponsável e ele me atingiu no outro lado da pista. O carro acertou a traseira da minha moto e eu voei uns 50 metros pela pista. A moto foi parar mais longe ainda. Rolei pelo asfalto feito um carretel e fiquei lá estrebuchando; me levantaram pelos


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braços e me retiraram da pista com a clavícula quebrada — meu braço e ombro esquerdos vieram encostar-se à orelha —, além das fatídicas raladas pelo corpo inteiro, que todo motoqueiro sabe como são. Algumas vezes, por exemplo, por conta da má utilização dos freios, de uma falha direta de pilotagem ou ainda por inexperiência, não reconhecemos todas as armadilhas do trânsito, o que pode fazer com que beijemos o asfalto. A primeira vez em que voei foi naquele dia. Depois de passar embaixo da alça da rodovia, na Vila das Mercês, já quase chegando ao meu destino, o Centro de Computação do Banco América do Sul, a única coisa de que me lembro é de um automóvel que fazia a meia-lua bem na minha frente. Como diz um verso do Poeta dos Motoboys, que fala muito dessa realidade, “coisas assim ensinam na guerra, a minha vida vale mais que a sua entrega”. Naquela instituição ninguém tomou conhecimento do meu drama e, assim, a partir daquele acidente, percebi nossa fragilidade. O motorista também não assumiu nenhuma responsabilidade, dizendo que olhava pelo retrovisor, aguardando um momento para manobrar, e não viu que eu me aproximava em alta velocidade. Mas naquele local era proibido o retorno, e como nunca pude processá-lo por ter quase me matado, as coisas ficaram por isso mesmo e passei quatro meses sem poder subir numa motocicleta. Depois ainda sofri mais outras tantas porradas, das quais perdi as contas. O acidente mais grave que sofri foi quando eu tinha um contrato em um outro banco e meu trabalho se resumia a dar apoio à logística da agência do banco que ficava dentro do Centro Operacional, em Santo Amaro. Era um daqueles contratos filés, a gente quase não precisava se preocupar com a correria, já que o trabalho de fato era ficar de prontidão para qualquer


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emergência que aparecesse por lá. Naquela manhã, fui até Alphaville buscar um malote de cartões de clientes do banco que tinham acabado de ser processados. Na volta, vim pela pista central da Marginal Pinheiros e s’imbora. Ao chegar próximo à antiga ponte do Morumbi, descobri que a pista de acesso havia mudado com a construção da nova ponte. Fiquei em dúvida se valia a pena parar e dar um quebrão ou ir adiante, até a ponte João Dias, já em Santo Amaro. Parei no acostamento da pista para decidir. Próximo às obras, os tapumes fechavam os canteiros, impedindo a transposição para a outra pista. Haviam mudado a logística do acesso à ponte e fiquei pensando como faria pra chegar ao outro lado da avenida Nações Unidas, porque não queria gastar tempo e gasolina andando oito quilômetros até a próxima ponte. Como eu estava muito próximo às armações da construção da ponte, e as pistas se afunilavam junto aos tapumes, ficou difícil sair dali e seguir adiante. Decidi seguir em frente, mas não cheguei a engatar a segunda marcha: fui jogado longe por um caminhão que vinha por trás. Não deu tempo para nada, ele mal teve tempo de parar. Carros e caminhões passavam ali em alta velocidade e fiquei prensado entre as rodas traseiras do caminhão e o guard-rail. Bati na roda e fui arremessado em um turbilhão para trás. Da moto não sobrou nada. Caí de costas no asfalto em brasa. O malote ficou destruído e os cartões todos espalhados pela pista. Mas saí com vida. A primeira sensação que se tem depois do primeiro impacto é de que ainda não acabou, que outras porradas ainda virão, e sua mente o direciona a sair dali imediatamente. Ainda zonzo, tentei me levantar para sair do alvo. Dei sorte, porque o caminhão brecou bruscamente e os carros que vinham atrás pararam — um inferno, as freadas.


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Minha perna esquerda ficou aberta, levantei a cabeça e vi a ponta do osso branco. As pessoas saíam dos automóveis e vinham na minha direção. Quando você vê o mundo de baixo para cima, o que tem a fazer é aguardar o socorro, nesse caso, com o asfalto quente como fogareiro e mantendo a respiração para não apagar. Nesse momento, a cabeça já está longe, você pensa: “Puta merda, como vou fazer para pagar o aluguel? Quanto tempo vou ficar sem trabalhar? Como vou fazer para arrumar a moto?” Aí começam os pesadelos, antes mesmo de se chegar ao hospital... Essa é a cabeça de um motoboy. Sem falar que a família, a essa altura, se já foi avisada, entra em desespero. Quando não, é um Deus nos acuda! Passar três dias internado parece uma eternidade. Alguns motoqueiros que tinham contratos na própria rede hospitalar faziam questão de me visitar e dar uma força. Mas dor é sempre dor. Acho que sofri mais com as costas raladas que com minha perna engessada, que ficava pendurada em uma única posição. Na mesma ala hospitalar tinha um homem que caíra de uma laje, e ele gritava a noite inteira. Lembro que os médicos já tinham aplicado até morfina e ele ainda sentia muita dor... Não sei se ele ficou melhor, mas depois de um dia com várias juntas médicas em volta dele, na noite seguinte ele foi levado embora para o Hospital das Clínicas. Motoboy, pedreiro, cada profissão tem seu risco. Agora era me recuperar, e fui levado para casa. Nessa época, nós já estávamos morando na rua dos Democráticos, em São Judas Tadeu. Uma das sócias da empresa, dona Augusta, foi lá me ver e disse que eu não precisava ficar preocupado, parte do meu ordenado seria paga normalmente e quando eu voltasse iria recuperar meu contrato. Quantas vezes eu agradeci por esse dia não lembro. Estar


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em uma empresa de responsabilidade, com registro em carteira e uma boa estrutura de apoio ao motociclista acidentado era um privilégio. Como disse, apesar de tudo eu tinha sorte. Outras empresas simplesmente abandonam seus funcionários. Fiquei despreocupado e em recuperação por oito longos meses. Para um motoqueiro acostumado ao agito do dia a dia, oito meses eram anos; não via a hora de voltar. Aproveitei aqueles meses para fazer algo que havia muito tempo eu não fazia: ler muito e ficar com meu filho, que já estava com 2 anos. Logo, os ossos, a tíbia e o perônio, ficaram novamente colados e eu voltei a andar, mas não fui mais o mesmo depois daquele acidente. Passei a ter o hábito da leitura; li tanto nesse período que até cheguei a tentar escrever. Aconteceu meio de repente, sozinho no silêncio da madrugada, a mesa da cozinha vazia e uma folha em branco. O que ia para o papel não tinha nenhuma ordem ou sentido, pois eu nunca tinha escrito nada em minha vida, mas também não era hora ainda, eu acho. Senti que se eu desejasse escrever de verdade, acima de tudo, deveria estudar; faltava uma formação. Guardei numa gaveta aqueles escritos esquisitos que fizera quando passava as noites acordado lendo e olhando as estrelas. Pensando bem, um dia poderiam virar um livro. Mas não foi isso o que aconteceu. Eu simplesmente não pensei mais neles, e depois que a vida voltou ao normal, voltei a trabalhar.

XV Havia muito eu já tinha trocado de moto. Como disse, comecei com uma Vespa, mas ela não era muito prática e a manutenção era bem mais cara que a das motos normais. Tirei então no consórcio uma Honda 125 cilindradas, zero quilômetro, que, como se sabe, foi o modelo de


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moto adotado pela categoria para o trabalho. Naquele período, tive várias motos. Era normal ver os motoqueiros ficarem fazendo rolos.8 Tinha motoqueiro que dividia o tempo de trabalho apenas negociando, e nesses rolos sempre se fazia uma grana extra. Esse mercado acabou depois que a moto se popularizou e ficou muito barata. A razão de a categoria adotar esse modelo de motocicleta está em sua relação custo-benefício, sua fácil manutenção e o gasto com combustível, que é muito baixo em comparação com as outras cilindradas, além de ser uma moto prática para pilotagem. Uma 125 cc consome em média 1 litro de gasolina a cada 35 quilômetros, ideal para quem roda o dia todo. Percebemos isso muito cedo, mas durante um bom tempo ainda havia muitos motoqueiros usando outros modelos, já que a moto sempre foi utilizada também para o lazer. Mas com todas essas vantagens, esse modelo acabou dominando o cenário. É também muito lógico que a moto acabe sendo investimento para quem tem pouca grana e quer seu próprio negócio. Como eu estava vacinado, montei numa zero quilômetro e fui trabalhar em outro contrato, em outro banco, na avenida Paulista; eu chegava por volta das 10h e saia às 18h. Assim, tinha outros trampos de manhã que me ajudavam nas despesas e aumentavam meu faturamento, como a entrega da Gazeta Mercantil no bairro e alguns malotinhos que acabava encaixando durante o dia. Em média eu tirava em torno de cinco a seis salários mínimos. Não era muito, já que outros mensageiros na empresa chegavam a tirar até dez salários mínimos. Esse era o sonho de qualquer cara que quisesse levantar um bom dinheiro trabalhando de moto, ter uma moto nova e a oportunidade de fazer um bom faturamento. Traduzindo para hoje, eu tirava em torno de R$ 2.400,00, o que 8 Trocas.


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equivalia ao salário de alguém que tinha no mínimo uma faculdade. Mas isso foi naquele tempo... Confesso que a vida estava sossegada. O ruim mesmo era levantar cedo. O jornal era entregue no ponto às 5h30 da madrugada, e tínhamos que estar lá. Eu fazia a região da Saúde e do Jabaquara, indo do Parque do Estado até o lado de cá do Aeroporto de Congonhas. Se não chovesse, antes das 9h eu já estava em casa tomando um segundo café reforçado e me preparando para ir para o contrato do banco. Quando estava calor, colocava um bermudão e saía com a moto abarrotada de jornal. Quando chovia, tínhamos que embalar pacientemente os jornais, um a um. Em um dia assim, você pode pensar que nada vai acontecer com você, mas é aí que você se engana. Em 1993, precisamente numa segunda-feira de maio, depois do dia das mães, tive uma experiência bastante traumática quando saí de madrugada para ir trabalhar. Anos mais tarde, eu a transformaria em um conto. Guardei então em sua forma original aquilo a que naquele momento eu procurava dar vazão, as agruras da minha vida de motoboy e o ódio que sentia pelo descaso e pela impotência nos quais éramos lançados. Esse conto passou a se chamar Ditão e Grillo, os apelidos dos caras que aquele dia, com armas em punho, levaram minha moto e tiveram um destino muito parecido com o de qualquer marginal: dITÃO e Grillo A vida bandida Um cara um dia saiu para trabalhar, mas ele não sabia o que o esperava. — Esse é o vez e quando... Que vou dizer é um lance assim... Bem... bem, o que te espera? Senti isso aquela manhã, quando passei pela porta de casa e fui trabalhar e quase num volto, com um balaço! Hoje sinto um nó apertado no peito e meu


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cérebro ferve quando penso nisso, o mochilão nas costas e um silêncio zuado nos ouvidos e a tua vida passa nuns segundos... Tipo uma luz do poste da rua penetrando pelo vidro da janela, você saindo sossegado do seu lar e o sol ainda nem nasceu, e você fica ali na penumbra, aguardado o momento certo de botar o pé na rua, mas nem... Tava escrito. Aquela manhã não acendi a luz da cozinha, não queria acordar ninguém. No quarto escuro Sapotira ainda oprimindo um sonho debaixo das cobertas e meu moleque no berço e, coisa estranha, que o dia nem começou e já sentimos isto... Tava cismado o bagulho, mas como saber? Eu poderia não ter ido aquele dia, mas fui... Ele fica em silêncio, tenta retomar: — Você fica imaginando mil coisas. Mas não sabe nada ainda. Desci pra garagem pra pegar minha moto e cair no mundo. As chaves na mão, você para no parapeito e pensa, o que pode te acontecer? Um inesperado sempre tá à espreita, e persegue você atrás da sua mente, quando você acelera no corredor. Mas você não quer pensar nisso, então você se manda. Acelera fundo. Atravessa o tempo. Fura o tempo, anula. Não espera nada, sem temer você parte que o dia é longo. Num lance assim eu nem sei, eu saí e fechei a porta... Não olhei pra trás. Os caras colaram em mim com uma CB 400. Levanta gesticulando as mãos e é visível nesses gestos sua angústia ao narrar o incidente: — Fui pra batalha, não tem vacilo não! A gente não tem como escapar, é enfrentar esse dia a dia, fui eu pro correcorre. Agora, logo de manhã, meu irmão?! Cara! Num pode ser, pensei na hora. O asfalto estava molhado da chuva da noite anterior, a capa e a bota no pé é uma guerra, você pensa “ninguém sabe quem volta e quem fica estirado”. Agora nem bem tirei a moto das grades lá embaixo da garagem, passo o cadeado no portão, a moto ligada pra rua acelera meu último pensamento foi: “pego meus jornais no ponto e”... Então, o dia te amanheceu, os caras páah... me metem o cano na cara e me levam a minha magrela. E o pior... Que isso fica te martelando a cabeça por dentro!


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Com certeza deve ter provocado muita dor, ele continua: — Foi de encomenda, tenho certeza! A quadrada na sua cara, e vem aquela primeira sensação de impotência... Depois um sentimento de revolta sobe e te consome por dentro... Amargura, desespero e ironia juntos e tu pensas “nem tava paga ainda!”. Mas fez uma troca: A moto pela sua vida! Já mais calmo, senta-se de volta e começa a narrar como foram as coisas a partir dali: — Depois é voltar pra casa. O B.O.9 em mãos e você anda zonzo pelo meio da rua a pé, não querendo ainda acreditar... “É começar tudo de novo”, um pensamento te consola. Aonde você chega a tua galera tá comentando, dão apoio e uma força. Fica ainda aquele zum-zum-zum, depois a notícia já passou e aquilo cai no esquecimento. “Roubaram a minha moto”, eu digo, seco, quando perguntam. Sua pressão abaixa e seus pensamentos vão passando pro submundo, você olha o carnê com as prestações ainda pra serem pagas e um ódio sobe pelos brancos dos olhos, tudo isso aqui é a cidade, Perus, Caieiras, Freguesia, Heliópolis, Socorro, Capão, Osasco, Taboão, a capital. Você não sabe aonde vai ser. Não importa, tem Guarulhos, tem entrega? Você abraça. “Esse, meu irmão, é o mundo cão, e motoboy é cachorro loko, e vive em outro quem não é junto com o seu”, disse o cara que entrega o jornal junto comigo. E eu penso: e se foi tu, malandro, que passou essa fita? Ele queria apenas me consolar, e eu no veneno, já corria nas minhas veias esse ódio... E esses caras, o Ditão e o Grillo, montados numa cebezona quatrocentas, o berro na cinta, te pegam num beco. Assalto “Puxa vida, o que faço agora, me pergunto, antes de me dar conta de que a rua não tinha saída. Minha mente silencia por um segundo, tentado pensar rápido em como sairia dessa; pois, eles se aproximam, o garupa tem as mãos enfiadas no bolso... Que enrascada, onde eu estava? Quando vi já era tarde e colaram a moto em mim, o garupa sacou a arma. Congelei. A ferramenta apontada e o cara foi gritando: 9 Boletim de Ocorrência policial.


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— Sai, sai... fora! A frieza que vi na cara da morte. O portão da casa do cliente fechado não dá fuga, você se dá conta de que a rua não tem saída, é madrugada, numa ruela assim num bairro distante, uma CB roncando lento... Levaram minha moto...” Após narrar esses fatos ele começa a roer as unhas, e o pesadelo voltando em relances: — Tudo vira contra você, não cabe mais tanta porcaria e ódio na tua cabeça e “eu aqui nessa merda desse trampo”, enfiando a cabeça nesse capacete o dia todo. Finalmente você chora e tenta esquecer. Ele deixa enfim as unhas, a respiração volta ao normal: — Esse é o meu corre... Eles uma hora pagavam, eu pensei, e os escambau... Mas eu deixei quieto, nem fui atrás não. Eu ia me virar agora com uma moto que eu montei em cima de um quadro velho. Ganhei a vida, melhor assim... “Meu, tenho filho, tou pagando, tenho aluguel”, nada disso adianta... Eles montaram nela e saíram fora. Aquele Grillo que fazia o piloto, eu o conhecia de longe, ele era da área. Acabou morto embaixo de um caminhão na Avenida do Estado. Antes agonizou um tempo lá no Hospital do Jabaquara. “Adiantou num farol”, me falaram. Ele era desses caras que fazem as correrias erradas e ainda dava uma de migué numa boca de porco10 ali perto na Cupecê. “Êita pôrra”, fico pensando, esse mundo é o cão. Já o Ditão, que sacou o ferro, veio de garupa e foi quem foi montado na minha moto. Fiquei sabendo depois que ele foi uns dos pivetes que, naquela guerra do PCC, anos atrás, acabaram fuzilados na noite atrás dos muros da Polícia Civil. Mas se for verdade, não foge à realidade. Você se mata de trabalhar e vêm uns pilantras desses e te levam sua ferramenta de trabalho. Faltando ainda vinte e quatro prestações e isso... O que fazer? Bom, agora era ir pra correria. Tinha que ir pra luta, me virar. Tinha que ir lá pegar um motor com o João, descolar um quadro na oficina do Zé, e na Ponte dos Remédios, con-

10 Pequenas empresas que agenciam motoboys por hora.


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seguir uns docs11 com um despachante amigo meu. João me veio com um zerado de fábrica, agora tinha muito que ralar pra pagar as contas. O Zé apareceu com um eixo oitentinha, ralado até as horas... Mas acabei pegando. Acabei dando uns tapas na carenagem e joguei em cima um kit 90. Isso é barra, não tinha como não ser, você pensa, e a família? Então, tinha que continuar. Tinha que descer pras bocas pra pegar umas peças. Tinha que não sentir culpa ao comprar ali umas bengalas no balcão (na sua frente o balconista joga assim de qualquer jeito as peças), por um preço mixo e sem nota. Sem nota e sem nada, saí com elas debaixo do braço. Era só entrar na loja e comprar. Tinha que não sentir nada e também que não sentir pelos outros. “Má sorte”, se pensa nessa hora, para aliviar a culpa. Mas no fundo você sabe... Uma hora a vida melhorava, “e se aqueles putos lá na firma conseguem uma pá de contratos, também chego lá”, era nisso que a gente pensava. É lógico que a gente pensa na grana e se fode com esses trampos, só sobra roça! E a motinha que montei nem rendia, a vontade de destruir ela era grande. Queria jogar no poste. Pegar o amortecedor e bater nela. Ruim de pegar, fazer curva, pneu furando toda hora e os contratos passando de montão... Andando desse jeito é que eu não ia. Deixando na mão... Uns caras fazendo uns rolos e tu pensa... “vai virar, tem que virar...”. Bom, o tempo passou, até que um dia consegui, depois de muito trabalho, recuperar meus contratos. Exausto, corre a palma da mão no rosto em sinal de reserva: — Chorar é que não, mas fazer o quê? Depois se mostra esperançoso e abre um pequeno sorriso no canto dos lábios: — Então eu também ia chegar lá. Como saco de pancada nesses trabalhos aqui eu tenho que pagar o aluguel, comprar os baratos do meu bebê, então foda-se! Um monte de gente querendo ditar seu ritmo: “Põe isso aqui no seu roteiro!”,“Passe lá no sei onde!”, “Põe gasolina naquele posto...”. Meu, eu queria falar aqui e agora, sou página virada, aquilo que aconteceu, 11 Documentos.


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isso passou, marcou pacas, mas tenho certeza que você não sabe o que é isso, se não viu a cara do cano. Sinto que toda minha desgraça começou ali, naquele dia, não devia ter saído pra trabalhar!... Então. Se liga, não é que uns meses depois eu vejo minha moto estacionada na frente do Mappin, na Praça Ramos, dá pra acreditar? Os caras passaram ela, meio que estava já zoada, mas era ela sim, eu a reconheceria de longe, lembro dela ainda zerada lá em casa na garagem! E havia pensado que eles tinham picotado ela! Era ela, vermelha e com todos os amassadinhos e arranhões que fiz nela! Corri para um posto policial na esquina da rua Barão de Itapetininga. Então, para minha surpresa, o policial que chamei pediu para eu virar a moto para conferir o chassi. Virei inclinando-a pra ele ver o número do chassi, e ele disse: “Sinto muito cara, sua moto já foi, essa aí os elementos pinaram12 o número do chassi e não tem como...”. Como assim, eu disse. Não pode ser, mas é ela? Meu estômago dobrou... Que porra... Sentei por uns tempos nas escadarias do Teatro Municipal e fiquei remoendo em silêncio, o guarda ficou plantado lá, imaginando que talvez eu voltasse e colocasse fogo na “minha” magrela... Isso, cara, não tem palavras – pelo menos é uma informação que tenho desde pequeno, que sinto no silêncio, e aquela coisa e não poder fazer nada... — na mira a boca negra do cano gelado... Olhando-me fixo nos olhos ele fica em silêncio, depois torce a cabeça para os dois lados, relaxando os músculos do pescoço, ouve-se um estalo e ele não diz mais nada por uns instantes, depois volta-se para mim e conclui: — Quando passei na porta naquela manhã estava frio lá fora. Ergui o esqueleto da cama, fui jogar uns jornais lá no bairro, e aí aquilo, e minha vida desabou, é isso, cara...

12 Apagar a numeração do chassi.


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XVI Em 16 de fevereiro de 1992, cerca de um ano antes daquele episódio do assalto, minha mãe morreu. Recebi a notícia sem estar preparado. Era um dia normal de trabalho e, como sempre, eu passei em casa na hora do almoço. Ao fechar o portão e desligar a moto, minha esposa veio, pegou minha mão e me levou para dentro. Choramos longamente aquela tarde. Minha mãe estava hospitalizada por conta de sua saúde muito debilitada e tínhamos ido visitá-la em Sorocaba, onde meus pais e irmãos menores foram viver depois de se mudarem de São Miguel Paulista. Triste não é só lembrar sua morte. Mas também a forma estúpida que ela morreu. Uma semana antes nós tínhamos ido visitar minha família. Fizemos um churrasco no quintal e até estávamos bastante descontraídos. Por muito tempo controlando uma diabetes, ela foi ficando debilitada e nesse dia estava com uma tosse leve e com a garganta bastante inflamada. Como havia sempre religiosos por perto, ela não ficava sozinha, e alguma pessoa muito simples indicou a ela que colocasse uma ponta de sal na língua, para aliviar a tosse. Ao final da tarde, quando nos preparávamos para partir, ela tinha piorado bastante. Recomendamos que no outro dia alguém a levasse ao médico, o que foi feito. O médico não conseguiu diagnosticar imediatamente e naquela semana ela ficou internada. O sal havia destruído parte do seu organismo e a saúde dela não se recuperou mais. Ficamos desolados e ela até chegou a voltar para casa. Mas não houve jeito. Foi internada novamente. Na última vez que a vi fiz um retrato dela. Sentado ao seu lado na cama, seu sorriso largo tinha algo de perspicaz. De vez em quando, eu parava de desenhar e a olhava em silêncio, enquanto seu olhar inocente se perdia pela janela do quarto.



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XVII Durante um curto período me afastei da empresa para decidir o que fazer da vida. Como eu e minha esposa curtíamos muito o SESC Pompeia, nos matriculamos em alguns cursos de artes. Matriculei também meu filho em um programa de educação infantil mantido por eles chamado Curumim. Comecei fazendo desenho e pintura nas oficinas ministradas pelos artistas plásticos Carlito Contini e Roberta Fortunato. A Tutte já fotografava, então se matriculou no curso de fotografia, e naquela época esses cursos já eram excelentes. O SESC Pompeia sempre foi um caldeirão cultural e eu já o frequentava desde os tempos em que movimento punk agitava a cidade. Ali fiz muitos amigos e, em 1993, depois de estudar com aqueles artistas, tive o prazer de conhecer e trabalhar com o artista Eng Goan, um ceramista vindo da Indonésia responsável pelo ateliê de cerâmica que estava preparando um projeto de pesquisa para uma grande exposição naquela instituição. A exposição se chamaria “Homenagem a Gaudí” e reuniria várias técnicas: cerâmica, vidro, tapeçaria etc. O interessante foi que, ao conhecê-lo, ele imediatamente me contratou para organizar a equipe que trabalharia na exposição. Aquela seria a minha primeira experiência profissional com cultura, mas naquele momento eu ainda não sabia disso. Comecei amassando barro. Amassar barro era fazer o reaproveitamento da argila que sobrava das oficinas e endurecia. Vários tonéis cheios até a boca de argila seca e dura, que estavam lá há anos, tinham que ser umedecidos para que o barro ficasse em ponto de uso. Por isso, sempre dizia, quando eu voltasse um dia a trabalhar de moto eu estaria totalmente renovado, aquela experiência com aquele artista oriental foi um verdadeiro aprendizado espiritual. Amassado o


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barro, tínhamos um grande estoque de argila fresca. Era pôr a mão na massa. Então comecei a chamar meus amigos todos que curtiam artes para aprender a fazer cerâmica e mexer no forno de queima. Aqueles que gostavam de tapeçaria podiam ser instruídos pela artista plástica Anabela Rodrigues, que foi se juntar a nós no projeto, ensinando a galera a fazer esculturas e rendados. Assim, criamos um espaço onde todos podiam se desenvolver e aprender alguma linguagem. Tínhamos passado por algumas experiências políticas bastante frustrantes naquele tempo. Lembro que quase todos ali estavam desempregados e desiludidos com a vida e, ainda por cima, havia a grande expectativa criada em torno da campanha presidencial de 1989. Como o Collor venceu, todos ficaram sem rumo. Por isso, quando as oficinas começaram, havia um certo baixo astral. Enfim, vivíamos o último refrão dos anos 1980, a década perdida. O país afundava e não havia esperança de sairmos da recessão criada pelo Plano Collor, mesmo depois dos caras-pintadas e de a população ter ido às ruas pedir o impeachment do primeiro presidente eleito em 29 anos. É preciso dizer aqui, no entanto, que aquele momento era de ressaca moral. Assim, aquela galera encontrou nas oficinas do SESC Pompeia um refúgio e ninguém ali reclamava de amassar barro. Passamos meses desenvolvendo o projeto. A ideia era que nós reproduzíssemos a experiência que o arquiteto catalão Antoni Gaudí realizara na Espanha, quando construiu o Parque Güell e a famosa Igreja da Sagrada Família em Barcelona, ao trabalhar com o lado orgânico da forma, abrindo a possibilidade de qualquer cidadão expressar a linguagem artística acumulada pelos artífices catalães, participando todos assim da criação, porque ele acreditava no potencial que cada pessoa tem para a arte. Em 29 de abril de 1993 inauguramos a


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exposição, e minha equipe já contava com mais de trinta pessoas envolvidas, aprendendo a fazer cerâmica, a derreter vidro e a tecer. A exposição foi um sucesso e tomou todo o espaço do SESC Pompeia. Quando saímos de lá, cada uma daquelas pessoas, ao voltar para sua vida, levou consigo uma experiência única; ninguém saiu dali o mesmo. Quem estava sem trabalhar logo conseguiu voltar ao mercado. Quem tinha desistido de estudar logo redescobriu o valor dos estudos e voltou para a escola. Aquela experiência nos marcaria para sempre, possibilitando que retomássemos nossa vida. Alguns meses depois, já em 1994, o Planalto lançaria o Plano Real, acabando com a inflação e voltando a dar estabilidade à economia. Eu voltaria a estudar um ano depois. Antes de voltar a trabalhar de moto, ainda fiquei um tempo como garçom. Foi uma última tentativa de não voltar a trabalhar de moto, mas eu continuava a pilotar nesse período, e como ainda encontrava meus amigos motoqueiros, sempre balançava, sabia que o dinheiro que entrava era imbatível, até que voltei, mesmo porque, eu não era mais o mesmo e sabia o que queria fazer da vida.

XVIII Passado quase um ano, voltei a trabalhar na Moto Service. Primeiro tive uma longa conversa com a dona Augusta e expliquei por que queria voltar. Como ela sempre foi muito direta com os motoqueiros desde que a empresa começou – lá na rua da Consolação –, eu sabia que ela entenderia as razões por que eu decidira me afastar. Ela percebeu que andava meio desorientado por ter perdido minha mãe recentemente e, por isso, quando passei um tempo fora, foi como se soubesse que eu precisava de um tempo para pensar.



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Mostrei a ela alguns dos desenhos que fizera e até cheguei a vender para ela umas peças de cerâmica que eu havia criado quando fiz meu curso de cerâmica no SESC. Nessa conversa, deixei clara minha intenção de voltar a estudar; ela sabia que eu já tivera outras profissões e até me sugeriu que eu não voltasse para a rua e ficasse no suporte da empresa. Mas insisti: eu adorava andar de moto e não queria ficar preso em escritório cuidando de logística. Como não tinha mais dinheiro para nada, precisava do dinheiro que os mensageiros ganhavam para poder tocar meus projetos. Ela me recontratou, com a condição de que não fizesse mais tantas comandas de serviço juntas, uma vez que ela já conhecia meu histórico de acidentes. Passei então a fazer um contrato em uma empresa na qual, em vez de eu rodar o dia inteiro, podia fazer rapidamente meu trabalho e depois me acabar de ler e estudar. Desde que sofrera aquele grave acidente, eu tinha retomado meu hábito de leitura. Havia descansado bastante durante aquele período; passava as horas apenas vendo meu filho crescer, pintando e tentando escrever. Preenchi meu tempo assim, com muita arte, e tomei João Cabral de Mello Neto como meu poeta de cabeceira. Quando voltei, os motoqueiros vieram me cumprimentar. Muitos ainda não me conheciam. A empresa não parava de crescer. Pelo menos mais uns trinta caras novos haviam entrado e agora havia mais de 150 mensageiros motociclistas na empresa. Por essa razão, a empresa, mais uma vez, mudara de endereço, para um prédio com garagem na avenida Santos Dumont, na Ponte Pequena. Não fiquei muito tempo sem contrato: logo a Augusta achou um contrato com o meu perfil. Fui alocado no Bank of Boston, e a partir dali, por um bom tempo, eu seria o motoqueiro exclusivo do personal banking, na matriz do banco, que ficava, de novo, na rua Líbero Badaró. Lá tive até


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o prazer de conhecer pessoalmente o atual presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que na época era o presidente do Banco no Brasil. Sinceramente, quando falo para as pessoas que tudo isso aconteceu, até fico em dúvida. Mas aconteceu. Como eu já tinha experiência em banco, pude compreender os processos introduzidos por ele naquela instituição, que a transformaram numa das mais rentáveis do mundo, levando seu presidente ao posto que ele ocupa hoje. Pergunto-me, principalmente, qual empresa de motoboy, ontem e hoje, tem uma relação dessas com seus empregados. Sim, porque há um diferencial aqui que não pode ser visto como uma coisa menor. Fazia parte da filosofia da Moto Service, naquilo que ela se propunha como um atendimento completo aos clientes, tratar os motoqueiros com respeito e dignidade, e como todos trabalhavam bem, as empresas-clientes raramente tinham alguma reclamação. Nosso serviço de qualidade aparecia nos resultados das empresas, assim, não havia quebra de contrato e, quando precisávamos de algum reajuste (lembrem-se, a inflação era galopante nessa época), eles sempre nos davam. Isso fazia com que a empresa estivesse entre as melhores do mercado, apesar da grande concorrência. Crescíamos a uma ordem de 30% ao ano. Mas não eram apenas nossos contratos que engordavam nossa conta-corrente, já que quanto mais contratos a empresa tivesse em carteira, maiores eram as possibilidades de os mensageiros “casarem” serviços, baseando sua logística na parceria empresa-mensageiro-empresa. O mercado estava cada vez mais aquecido. Logo depois do Plano Real, a economia passou a crescer no nosso ritmo. Quase todos os bancos tinham mensageiros motociclistas e nós tínhamos quase todos


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os bancos como clientes, e a Ilha, na rua Líbero Badaró, onde estacionávamos as motos, estava cada vez mais abarrotada de motoqueiros. Chegou um dia que ficou impossível estacionar ali, nem os pedestres conseguiam passar. Veio então a Associação Viva o Centro e acabou com ela, mas isso foi mais para a frente. Por enquanto, quero me concentrar num recente “encontro” com alguns amigos motoqueiros daqueles tempos. Tivemos um longo papo sobre alguns aspectos do nosso dia a dia na Moto Service e na categoria. Tentamos principalmente descobrir as razões do sucesso e do fracasso do modelo de trabalho que montamos ali. Não digo que foi um papo muito feliz, já que foi mais para saudosista. Mas creio que, para além de tudo que está sendo dito aqui, ao reavivarmos nossas memórias, menos que simples lembranças, o que descobriremos é a possibilidade da construção do nosso passado, que é o que interessa. E ele é verdadeiro porque é nosso. O que notamos então foi que não só se destruiu com o tempo aquele modelo de trabalho, criando espaço para o surgimento do motoboy, mas a própria possibilidade de se inventar outra maneira de organização do trabalho, o negócio de entregas rápidas. Assim, escrevi a seguinte narrativa, na qual conto como eram as coisas por lá: Cláudio, Leonel, Boy e Paulo Pequim “Eram várias, R1, CBR, Hornet, Bandit etc...” Começa aí, Leonel... — Xii, mano... Não sei... Num lembro bem, mas esse lance não foi logo depois que mudamos para a avenida Santos Dumont (um dos locais onde a Moto Service operou entre 94 e 96)?! Lembro que comprei minha primeira CBR 600 cc naquela época, paguei à vista e foi logo depois que saímos lá do sobradão (que ficava na rua Tomaz de Lima) lá na Liberdade.


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— Ah, sim, eu lembro, fazia meus trampos e recolhia os malotes do Sudameris e nos cruzávamos lá por Santo Amaro — diz o Pequim. — Eu tava nessa época no contrato do personal banking, aí dava para fazer meus encaixes. Claro que não ganhava como o Cláudio. Depois ele pegou a dele também, lembra, uma R1 azul! — Feita pra nós, né? Cada máquina... Mas não era do mesmo ano, a minha era zerada. Só isso já contava tudo, depois a empresa mudou ali pra Ponte Pequena. Lá no sobradão tinha ficado muito pequeno, e depois fomos pro prédio novo, foi quando o Boy montou a oficina no fundo... — Tinha ficado pequeno mesmo, Leonel — diz rapidamente o Boy. Não ficamos nem dois anos e mudamos de novo. — No começo fomos só eu e Cláudio que pegamos aquelas motos. Que máquinas! Depois um foi comprando, outro também, e até o Augusto foi lá e pegou uma. Logo desistiu e pulou pra uma Shadow 1.200 cc metalizada, era mais a cara dele, não? (O outro sócio da empresa chamava-se Augusto, mas apesar dos nomes, os sócios não eram irmãos.) — E aquela oitocentas, Suzuki, aquela com a qual você chegou por lá uma vez, era sua? — Não, eu disse, era de um amigo. (Depois esse meu amigo viria a falecer e seu pai vendeu a moto, que ficara estacionada na garagem do prédio. Ele morrera dormindo e se chamava André – isso eu não digo a eles.) O Boy foi por esse tempo o mecânico da empresa. Ele tinha parado de trabalhar na rua e montou a oficina que atendia aos motoqueiros da empresa. Como a empresa cresceu, foi preciso que montássemos uma oficina que atendesse exclusivamente aos nossos motociclistas. Claro que a Augusta e o Augusto deram uma força e ele foi fazer alguns cursos de mecânico. Nessa época, já eram mais de cem caras trabalhando e não podíamos depender de serviços externos. Então a manutenção era feita na própria empresa.


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— Cheguei a ter várias motos– disse o Leonel. – Uma para o trabalho, outra para o lazer, e para pegarmos o contrato da distribuição do Sudameris, tirei um Ford KA zero naquele pacote que fizemos com a revendedora. O pátio ficou lotado de KA, foi quando eles lançaram esse carro. Como a empresa ficava na Armênia, dávamos saída direto para as zonas Sul, Norte, Leste e Oeste. Tudo muito rápido. — Quando a gente começou... — Lá no centro velho? — Sim. A empresa ficava numas salinhas no andar de um prédio. Nossas motos a gente largava no canteiro central, na Consolação. — Putz! Ali, marcou, levavam sua moto... — Agora, quantos já éramos... No começo, eu lembro, eram uns vinte ou trinta caras, aí teve o Plano Collor, lembram? Quem ficou daquela primeira turma? O governo tomou o dinheiro de todo mundo, não teve jeito, foi uma quebradeira, e um monte de motoqueiro foi pra rua, mas foi bom, não é, Leonel, pelo menos deu uma peneirada. — É, tinha muito moleque no começo... — A Augusta, para não fechar as portas, chamou a gente e jogou em pratos limpos. Então, a gente concordou que os caras que fossem solteiros deveriam ir embora... E você, Silveirinha? — Ah... escapei. Meu filho tinha acabado de nascer. Pelo menos, depois disso não paramos mais de crescer. Já faz tempo... hein, que corte! Teve sorte quem era casado, lembra? “Era maldito, os motoqueiros não tinham essa imagem que têm hoje!”, disse-me em voz baixa o Pequim, que até agora não tinha falado quase nada. — Foi o jeito que a empresa encontrou pra não fechar, a economia esfriou geral — falei. — Mas também para não pôr nenhum pai de família na rua — disse Leonel. — Os que eram solteiros, depois da crise, voltaram... Alguns.


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— Quando veio o Plano Real — entrei no assunto — eu tava de bem, tinha meus contratos e até virava noite cobrindo os malotes, era muita hora extra, fora as ordens de serviço, e também não podemos esquecer das entregas de fim de ano... — Nossa! Foi com essa grana que juntei que comprei aquela moto. A gente se pergunta agora o que aconteceu? Como foi que afundamos? — Fiz meu investimento a tempo — disse o Pequim. — Ainda bem, pra mim maluco não tem vez, quem ganhou, ganhou, eu tirei muito, eu, o Cláudio, o Leonel, o Boy, o Michel, o Mineiro, essa é a diferença... Agora esses caras acabaram com o mercado, foi isso sim que fizeram... — Quem trampava direito tinha vez, era segurar os contratinhos, dar um trampo — disse o Cláudio. — De boa, sem querer cortar sua fala, Leonel, fala aí, dia de semana a gente rodava até as horas com as 125 (cilindradas), eu tinha uma MLzinha nessa época, massa, e nos fins de semana montávamos nas motos e pegávamos a estrada. Cara, colava um monte de motoqueiro no pedaço, vinha de Itaquera, tinha cara que vinha de São Matheus, COHAB II e até Parque Novo Mundo, e naquele baita sol de macacão de couro, e custavam uma grana esses equipamentos... Jogávamos em cima e íamos até a praia, a gente descia ziquezagueando pela Imigrantes, ninguém pegava, mas também caíamos pra outros lados. Saíamos dando uns rolés fortes, acelerando em umas cidadezinhas de que nunca ninguém ouviu falar aí pelo interior, pegávamos a Rodovia Bandeirantes, Anhanguera e sumíamos, a gente não era de empinar as motos... Na verdade, o que interessava eram as melhores pistas, aquele tapete, e as curvas, claro, mas era tudo família, ninguém tava lá pra zoar ninguém, era sentir a velocidade, a adrenalina a mil, mas também tinham as crianças em casa, eu também dava meus rolés com meus moleques pelo bairro. O Cláudio não... Ah, esse sempre foi mulherengo, andava com as minas na garupa... Vi que esse papo duraria horas, então, puxei novamente o assunto.


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— Agora, e aquela nossa ideia de nos associarmos à empresa, lembram? — Foi... Confesso que até hoje não entendi muito bem como foi aquilo tudo — respondeu Silveirinha. Na verdade, tudo começou quando a Moto Service ainda era na avenida Santos Dumont. Como se sabe, o custo principal de qualquer empresa de entregas rápidas é a folha de pessoal. E para manter a empresa competitiva, esses custos precisam ser muito bem controlados. No entanto, existem outras formas de organização do empreendimento. Exemplo claro disso são as cooperativas. Nelas, os custos com a folhas são reduzidos por que, em tese, as pessoas que operam o serviço não são contratadas, mas cooperados autônomos, sem quaisquer vínculos empregatícios. Nesse sentido, dificilmente uma empresa que contrata e registra seus motociclistas concorre em pé de igualdade com essas cooperativas, já que elas podem oferecer um preço bem menor. Até 1994, poucas empresas concorriam no espaço mais fechado dos contratos com bancos e multinacionais. Essas instituições solicitavam uma contrapartida à contratação de terceiros, como já discutimos antes. No entanto, as coopergatos13 começaram a penetrar nesse espaço e tomar os contratos das empresas do setor que os detinham. Obviamente, não em pé de igualdade. Por outro lado, a pouca — ou nenhuma — fiscalização sobre as pequenas empresas de entregas rápidas criou a figura fictícia do motoboy esporádico. Como se tratava de pequenas empresas familiares, ou às vezes de algum motoqueiro que se aventurava a virar empresário, eles simplesmente colocavam o preço que bem entendiam, para atrair a clientela, desconsiderando qualquer parâmetro, mesmo por que esses motoboys nunca

13 Gíria que designa as cooperativas de fachada, que se utilizam do estatuto de cooperativa para burlar a fiscalização e não pagar os direitos trabalhistas de seus funcionários.


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eram registrados e não representavam custos diretos. E, mais uma vez, não dava para concorrer com esses preços. Estávamos numa situação muito delicada. As grandes empresas do setor precisavam se mobilizar. Mas não ache o leitor que essas informações estavam na ordem do dia. Muitos empresários não tinham nenhuma consciência do que estava acontecendo, e muito menos a maioria dos mensageiros —poucos discutiam isso. Porém, e aqui quero mais uma vez mostrar a diferença, na Moto Service, essa era uma discussão corrente. Tanto que um dia solicitei uma reunião à diretoria e apresentei algumas propostas discutidas pelos mensageiros, para avaliação da empresa. Estávamos interessados em chegar a uma solução juntos, antes que o cerco se fechasse. Uma solução que nos colocasse em um patamar que não fosse alcançado por nenhuma outra empresa. Em vez de enxugarmos os quadros, como era a ameaça que começava a fazer sombra no batente de nossa porta, acolheríamos aqueles motoqueiros que agora entravam no mercado e os agenciaríamos. Mas o que foi feito? Para se ter uma ideia do que acontecia naquele tempo é preciso conhecer a empresa por dentro, e um dos motoqueiros que melhor representava esse espírito era o Leonel. Esse cara era mensageiro motociclista desde o tempo que tudo começou, lá atrás, em meados dos anos 1980. Hoje ele tem seu próprio negócio, mexe com caçambas de entulhos, trabalha com seu caminhão e os filhos já estão grandes. Aprendemos muito com ele, que era sempre aberto e não puxava o saco. Mostrava ter consciência de sua autonomia e capacidade de trabalho. Daqueles motociclistas que conheci quando entrei na Moto Service em 1988, era o que ganhava mais por ano! Além dele, trabalhavam na empresa seus irmãos, Michel e Armando, e Edvaldo, seu cunhado. Na verdade, todos que trabalhavam na Moto Service eram gente boa. Assim como eu, a maioria da galera fora apresentada. Para trabalhar lá, então, se o cara pisava na bola, a chefia primeiro chamava quem havia apresentado o cara e dava um toque. Se o cara continuasse no erro, era dispensado. Era uma técnica simples de convívio social, que os antigos motoqueiros, que faziam parte de alguns


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motoclubes, implantaram na empresa. Naquele tempo, nossa opinião era levada em conta, tínhamos uma boa relação com a patroa e éramos sempre consultados. Sabíamos que ela sempre nos ouvia antes de tomar alguma decisão. A gente se reunia e discutia o que dizer. E como ela sempre ouvia a opinião do Leonel, jogávamos nossas demandas pra ele, mostrando as vantagens de a empresa estar ao nosso lado. Tanto que o Boy, o Leonel e os outros caras da velha guarda tinham um princípio que era muito respeitado, que herdamos dos primeiros motoqueiros formadores da nossa categoria: antes de tomarmos qualquer serviço, devíamos calcular os custos, as despesas com a moto. Também colocávamos o valor da mão de obra e só então chegávamos ao preço final do serviço. Acertado o preço, o o trabalho era aceito e feito com eficiência; não eram esquecidos os desgastes das peças e a alta dos combustíveis, que a toda hora comiam o ganho do motoqueiro. Claro que essa era um tipo de mentalidade ligada à constante alta inflacionária. Como a cada dia os preços estavam os olhos da cara, tínhamos que estar atentos, e a remarcação dos preços era diária. Coisas assim, que foram esquecidas, destruíram nossa categoria por dentro. Hoje vemos que os motociclistas já não sabem fazer isso e, exatamente por esse motivo, qualquer um que entra vai dando o preço que quer. Hoje quase pagamos pra trabalhar. Entendo até mesmo a razão da raiva de alguns velhos companheiros. — Tão ferrando com a própria vida — diz Silveirinha, que hoje tem um bar e faz pinta de aposentado. — Por isso está uma lástima, “tudo cabaço” — diz Cláudio, ainda irado. — Pode dizer aí, Eliezer, quando fizemos a categoria a patroa chamava: “E aí, pessoal, vamos rever os contratos, chegar a um preço melhor, me passem seus custos (calculávamos), vamos negociar com o cliente.” Era nóis... — Nós tínhamos uma enorme autonomia, e fazíamos jus a ela. Os motociclistas faziam parte da vida da empresa — digo. — E hoje — diz o Leonel —, quem desses caras que estão aí já viu um contrato?


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— E quando alguém se quebrava? — corta o Pequim. — Juntávamos e dávamos uma força, ninguém ficava descoberto, e a empresa ajudava se a coisa apertava quando roubavam uma moto ou quando o cara se quebrava e tinha que passar uns meses em casa... — Os brações14 que entravam na empresa não duravam, se corriam com a gente, logo estavam montados em uma moto nova, saíam do aluguel, casavam e apareciam de carro novo. Quem acredita que o João Rosa sustentava duas mulheres... (risos). Esse entendia do assunto quando era motoqueiro! — diz Silveirinha, tirando uma. — Não zoa o cara. Se liga aí... Se o cara abraçava seu contratinho, acordava cedo, montávamos um bom esquema pro cara. Aprendia a negociar, senão era paulera, e a Ivani não passava o serviço numa segunda chamada — completou o Paulo Pequim. — O Cláudio era só na manha do gato, debaixo do braço a pastinha zipada cheia de O.S. e outras entregas, no baú, sempre uns malotinhos. Os clientes dele eram os melhores, podia chover ou fazer sol, o moleque arrebentava de comandas no fim do mês. Cumprimentei todos na hora de ir embora naquele dia, quando paramos para trocar uma ideia e relembrar os velhos tempos em que ganhávamos muito dinheiro e éramos verdadeiros profissionais. Nós não achávamos que os malotes e os contratos caíam do céu! Sabíamos como era difícil trazer um novo contrato para a empresa. Eles sabiam que davam duro, “era tudo responsa”, e que parte daquele sucesso se devia à nossa participação nos rumos da empresa. — Quando tinha, era um ou outro que não dava valor. Pensavam sozinhos, perdiam o bonde, atrasavam o malote, queimavam o fio com o cliente, aí dançavam... A Ivani deixava os caras a ver navios — lembrou o Leonel.

14 Motociclista inexperiente.


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Certa vez, subimos eu, o Leonel, o Paulo Pequim, o Armando, o Boy e o Cláudio até a sala da chefia. A Augusta sempre perguntava: “Como estão vocês, e os clientes?” O Augusto, o outro sócio da empresa, cuidava mais da logística e convivia mais com a gente, deixando as decisões com a Augusta. “Satisfeitos? Vamos lá...” Sempre tratávamos diretamente com ela. Algumas vezes, quando estava para estourar uma greve, quando os motoqueiros faziam assembleia lá na Ilha, éramos nós que levávamos as reivindicações. Naquele dia ela não teve coragem de nos atender, mas nós também não estávamos ali para trazer qualquer reivindicação, e sim para obter uma resposta direta sobre um projeto que eu levara a ela e que vínhamos discutindo havia meses. O Leonel, que subira na frente, veio já com a resposta: — Ela não quer outra reunião; eles fecharam com os caras do LevEntrega. A coisa é bem maior, todas as empresas do setor vão entrar nessa proposta, e a Moto Service não tem como ficar de fora... Balancei a cabeça, não acreditando no que ouvia. Apesar de tudo, o Paulo Pequim, que não via com muito agrado esse lance de participação no lucro da empresa, também se sentiu desesperançoso. Todos nos retiramos. Ela pedira um tempo. Dissera-nos que voltássemos a procurála em janeiro, após as entregas de Natal. Marcamos outra vez na oficina do Boy. Discutimos mais uma vez sobre essa possibilidade de a empresa abrir o capital. Passou o fim do ano. Leonel também balançou a cabeça e disse: — Deixa quéto. Vamos tocar o barco, não há nada a fazer, os caras são fortes pra caramba. Eles têm até avião! Na verdade, eles não tinham. Descobrimos mais tarde. Foi tudo uma grande jogada de marketing. O tal LevEntrega se espalhou como uma febre, e quase todas as empresas do setor passaram a trabalhar com essa logística. O cara que criou o LevEntrega era muito ligado ao transporte aéreo e tentava implantar um sistema de porta a porta no Bra-


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sil, se utilizando de uma plataforma baseada nas empresas de entregas rápidas. A ideia dele era criar uma só empresa a partir de uma associação entre as empresas do segmento de motos com as de cargas, numa espécie de novo Correio. Ficamos em silêncio e descemos a escada de volta ao refeitório, onde nossas marmitas esquentavam. Os cara-pálidas, engravatados, dariam a logística. A gente levaria e entregaria as encomendas pra onde desse ou fosse, pensei. De certa forma, essa foi uma tentativa dos empresários de organizar o setor, uma vez que não havia como controlar os preços e evitar a concorrência desleal. Mas as coisas não são tão simples assim. Eles tinham culpa nessa história: Um dia apareceu por lá um sujeito com cara de bom amigo. Brasília velha, batendo as latas. Pegou dez contos de alguém para comprar um saco de gasolina e voltou segurando as calças. Depois que botou a gasosa, ele subiu a ladeira de volta de marcha a ré. Nós estávamos sentados no pé das escadas, eu, o The Flash, que era conhecido assim por que cruzava toda a cidade a 100km/h, e o Flávio Silveira, que já naquela época chamávamos de Silveirinha. Sem pedir licença, ele passou por nós. Somos testemunhas do dia que a figura do Sr. Antonio Brilhante colou na nossa categoria. Primeiro, ele foi lá Moto Service, quando era no sobradão da rua Tomás de Lima, na Liberdade, depois abriu uma porta de escritório na Sé, para funcionar a sede do sindicato de fachada. Ninguém foi com a cara daquele Brilhante. Na Liberdade, a gente se reunia na cozinha e ficava se perguntando qual era a dele. Um tempo depois de ter montado um escritório na Sé, disse que já era o nosso sindicato. O mundo é realmente cheio de espertalhão. O Brilhante é desse mundo. Fomos tirar satisfação com a dona da empresa. Ela riu e disse: — Não se preocupem. Isso pode até dar certo, ele está só querendo ajudar. Vocês deviam ir lá, ele foi do sindicato dos taxistas, tem experiência, e agora (que correram com ele de


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lá) ele percebeu que vocês tão formando uma nova categoria e que alguém precisa “defender” vocês. Nessa época éramos pouco mais de 5 mil motoqueiros, todos registrados no Sindicato dos Condutores de São Paulo. Não tínhamos com o que nos preocupar. Não parecia que o cara de tiozão metido a motoqueiro, com um colete velho de couro e bigode torto, querendo parecer ser de algum motoclube, fosse um dia dar problema pra cima dos motoqueiros. Não era motoqueiro, logo se via, pois nunca tinha subido numa moto. Com os combustíveis comendo nosso salário todos os dias, a inflação acabando com os contratos e a necessidade de termos reajustes mais adequados à nossa realidade, os empresários confiaram no Brilhante. “Alguém convidou o Brilhante?”, perguntaram um dia. Não, ninguém tinha convidado. Mas ele chegou no dia em que as empresas não podiam mais depender dos insignificantes reajustes salariais dos motoristas de ônibus da capital. Nossos contratos estavam vinculados à Convenção Coletiva deles para fazer os reajustes. Daí que, para os empresários do segmento de motofrete darem uma mãozinha ao Brilhante, foram dois pulos. De outra forma, ele nunca teria aberto o Sindicato dos Mensageiros Motociclistas. Lembro até o dia em que estávamos atrás do balcão, aguardando o horário pra fazer os malotes do Banco Nacional, e a Augusta saiu da sala dela com um fax que acabara de receber na mão: — “Brilhante!” — disse ela, em voz alta — Esse Brilhante é demais, conseguiu! O tal fax era uma cópia estatutária da fundação do Sindicato dos Mensageiros, com registro em algum cartório na capital. A questão é que quando se coloca a raposa para tomar conta do galinheiro sempre dá nisso. O tempo foi passando, e em vez de o sindicato ser uma instituição de fiscalização e defesa dos nossos interesses, para coibir o abuso das empresas que abriam a cada dia sem manutenção dos registros dos funcionários, era mais um aparelho de subordinação e chantagem, ao qual aqueles que “quisessem” poderiam se associar, sem esperar nada em troca. Os que “não quisessem”, tudo bem, o


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sindicato estava lá para isso, ou seja, para receber a propina, não importava de onde viesse. Mas era tarde. Os empresários já haviam criado a cobra que os comeria. Assim, o tal LevEntrega se tornou apenas mais um paliativo inventado no meio empresarial para não enxergar a própria miopia. A ruína da categoria já estava à vista, aquele modelo desapareceria e os motoboys já começavam a tomar conta do mercado. O preço dos serviços despencava pela tabela. Nós mesmos, mensageiros e motoqueiros, acabamos com a LevEntrega. Afinal, ninguém ali levaria ou entregaria uma mercadoria ao preço de R$ 3,00. A ideia deles era trabalhar no atacado, competindo com os Correios, e tentando baixar os custos por meio de uma estreita logística montada a partir da rede de empresas associadas. Mas a tabela de preço deles era fora da realidade dos mensageiros motociclistas. Por isso, deixávamos a encomenda no balcão, pois no mesmo tempo poderíamos fazer as dos nossos clientes ao preço da comanda de R$ 26,00! Um dia, enquanto participava de um congresso, tive o prazer de conhecer o cara que havia inventado o LevEntrega. Seu nome era Ubira, e falamos de nossas tentativas de modificar a organização do trabalho de entregas rápidas. Ele me pareceu um cara bacana. Sem vencedores, os serviços de entregas seriam cada vez mais desvalorizados e todos perderiam. Mesmo as empresas que controlavam o mercado de entregas rápidas naquele período — como a Moto Service, a Moto Forte e a Força Tarefa, entre outras — desapareceriam. Falei para o Ubira: — Velho, sinto te dizer, mas você se equivocou quando criou seu negócio. Mesmo porque também sonhamos um dia em expandir a nossa empresa. Mas diferentemente de você, tínhamos a consciência de que as motocicletas pertenciam aos mensageiros, e creio que foi aí que você se enganou: ao julgar que os patrões mandavam na gente. Ninguém te contou que aqui nesse setor as motos são dos motociclistas, e que quando eles se organizam eles podem tudo? — Ele fez cara


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de branco. Não me deu uma resposta que pudesse acalentar seu desgosto, disse que deixara de ganhar 2 milhões de reais. Todas essas pessoas e empresas estão hoje sumidas do mapa, nós não. Nós estamos na correria. O Renato Fofão, só porque eu falava de política enquanto a gente separava os roteiros e dividia o bolo de entregas, não gostava de mim. O sonho do Paulo Pequim não era um dia a gente ter nosso sindicato, nós sabíamos que ninguém faltaria ao trabalho pra correr atrás de sindicato, só se o cara não fosse motoqueiro. Ninguém mais deu muita atenção, a coisa correu e cada um foi para um lado. O Leonel foi um grande amigo e companheiro. Não preciso dizer mais nada, vocês devem imaginá-lo por si. O Cláudio avançou um tempo ainda, não fosse o alto custo para manter sua nova Speed Kawazaki ele teria ido longe, mas perdemos os contratos, e não tive mais notícia dele. Aquele que apelidamos de The Flash ainda trabalhou por um bom tempo, creio, se não foi o primeiro mensageiro que se aposentou deve ter sido um dos primeiros, e, para nossa sorte, deixou seu filho, ótimo motociclista, em seu lugar. Às vezes a gente leva bronca, outras a gente perdoa e quer ser perdoado, mas não guardo mágoas da Augusta e do velho Augusto, que eram sócios na Moto Service. Hoje todos devem rodar aí pela cidade, vendo como nossa categoria cresceu. — O cara veio mansinho, veio meio sapeando, passou pelo bar, mas a gente tava nas mesas, alguém disse “vem que tamo facinho”... Ê esse Brilhante, meu, que era aquilo... era foda. “Sorriso gordo de baiano safado”, mas aí, o lance é que quem não fez nada fomos nós – disse o Pequim. — Quem ia faltar ao trampo pra correr atrás de sindicato? Aqui é correria, e se você cola por aqui você ainda pode ouvir: “O Grecco mora em Diadema, encaixa ele, pede pra ele fazer esse malote!” Víxi, a Ivani era f... Era ela quem controlava os motoqueiros, ela gritava o dia todo: “Pequim (ela chamava da janela) vai até Paulista, deixa seu malote do BCN lá com o Eliézer, ele tava cobrindo a Vilma (motomina, grande amiga e confidente), pega os malotes dela e depois passa no Banco América do Sul, que


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ela te passa o serviço, faz o roteiro dela da tarde, vai, que o Eliezér tá lá embaixo na oficina do Boy esperando.” — E aí, Manuel, me diz um velho camarada, quem decorava o guia dominava o barato, fala aí, Leonel, cada um na sua, e todos na dele, o mapa da cidade na cabeça, ê pois, as motos andavam, viu... Ziííuuuuumnnnnn... Os escapamentos...

XIX Em outubro de 1999, numa tarde abafada e com muito trânsito, eu tomaria uma decisão que mudaria totalmente minha vida. Foi muito difícil encontrar forças para descrever as razões que me fizeram parar, naquela tarde, e pôr fim a uma agonia que havia me tomado havia alguns meses. Havia um tempo eu vivia atormentado por um dilema. Tinha que tomar uma decisão de vida, que implicaria, por um lado, responder a algumas questões que eu levantava em relação à tentativa da prefeitura de regulamentar a categoria dos motoboys, e por outro, como deveria me posicionar, tendo consciência dos problemas em que me meteria ao me envolver com essas questões. Será que eu realmente devia defendê-las? Não sabia se era isso que eu queria como projeto de vida, me envolver com política. A minha posição como homem representava uma postura que significava assumir diante do mundo uma responsabilidade que eu não sabia se estava preparado para assumir. Daí que, ao me encontrar diante dessa porta, se deveria abri-la ou não caberia a mim, mas, como dizem os filósofos, essa condição de possibilidade já estava dada, e eu percebi que não teria escolha,pois já me encontrava diante dela. Quando nos deparamos com um problema assim, geralmente pensamos na família, em nossos filhos e, principalmente, no amor que nos une. Por


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esse motivo, finquei pé e deixei que tudo se resolvesse por si. Mas não foi possível. Na verdade, foi impossível ficar indiferente. Para que vocês possam compreender meu dilema, teremos que fazer um pequeno recuo no tempo, mais precisamente até o início de 1996, quando eu me preparava para prestar o vestibular. Como ao retonrar para a Moto Service havia escolhido um contrato que me proporcionasse tempo para estudar, trabalhei para o escritório da Bracel, uma multinacional francesa. Claro que era um contrato em que poucos desejariam trabalhar, uma vez que se ficava preso dentro da empresa o dia todo. Para mim era perfeito, pois passei a levar meus livros para lá e pude me concentrar nos estudos. Ao escolher aquele contrato na Bracel, sabia de antemão que não poderia fazer encaixes e serviços de outros clientes. Assim, meu ganho estaria limitado apenas àquele contrato. Porém, lá, eu saía no máximo duas vezes ao dia, um banco à tarde e um cartório qualquer pela manhã. Era um contrato que nenhum motoqueiro queria. Mas aquele contrato se tornaria minha ponte para a universidade. Lá, éramos eu, duas secretárias, uma copeira e um segurança. Uma das secretárias era bilíngue, a copeira cuidava de tudo e o segurança passava o dia dormindo na garagem da frente. Ou seja, era a paz necessária para cair de cara nos estudos. A empresa ficava numa casa alugada no alto da Lapa, e os diretores ficavam mais na França do que no Brasil. Assim, quando decidi me matricular no cursinho pré-vestibular, encontrei naquelas moças um apoio inesperado. Tive muita sorte, as três não só me ajudaram a estudar as apostilas como me tratavam bem e em dias de muito calor deixavam que eu entrasse na piscina, nos fundos, completamente nu.


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Para mim, era um investimento. Não podia pensar em dinheiro em curto prazo. Tive que me esforçar muito para ganhar ritmo de estudo e passar no vestibular. Fui recompensado, enfim, pelo esforço. Após dois anos, acabei entrando na USP. Minha primeira tentativa foi frustrada. Fiz minha inscrição no curso de cinema e por pouco não passei. Era muito difícil, e se eu quisesse tentar novamente teria que dobrar meu horário de estudo, sem a garantia de passar. O curso de cinema tinha apenas 15 vagas e era ministrado durante o dia. Eu viveria do quê? Enfim descobri minha vocação para a filosofia, então prestei vestibular novamente. Em 1997, entrei na Universidade de São Paulo. Confesso que tive um baita apoio, tanto da família, que compreendeu minha escolha e não pôde mais contar com o alto salário que recebia quando tinha vários contratos na Moto Service, tanto daquelas meninas na Bracel, que foram um estímulo a mais para que eu prosseguisse. Incentivado pela ideia de que eu podia ir aonde quisesse, e já estudando à noite na faculdade, saí da Bracel e fui para o personal banking do Bank of Boston. Achei que era hora de ganhar dinheiro para me manter na faculdade e bancar os custos da carreira de fotógrafa que minha mulher seguia. Por isso, nesse novo posto passei a encaixar serviços. Além de fazer todas as entregas e atender aos pedidos dos gerentes, por fora eu tinha um malotinho do Banco Sudameris. Quando sobrava um tempo, fazia várias comandas de O.S.15 que a Moto Service me passava. No final de 1998, meu casamento estava quase terminando. Aproveitei para mudar de ares e fui morar sozinho — aluguei um novo apartamento nos Jardins. Estava tudo em ordem, exceto pelos meus estudos na USP, que eram 15 Ordem de Serviço.


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muito puxados. Como eu havia assumido muitas dívidas, cada vez mais eu tinha que fazer serviços por fora para bancar o padrão da minha nova vida, o que me deixava menos tempo pra estudar. Até que um dia a casa caiu no Boston. A Cristina, que me passava os serviços da gerência, flagrou uma Ordem de Serviço de outro banco na fatura que a Moto Service mandara. Pegou muito mal, foi uma mancada da empresa, pois nunca aquela comanda poderia aparecer junto às faturas do Boston. Assumi a bronca da firma, apesar do erro deles, e fui trocado por outro mensageiro. Dali em diante, até encerrar meu trabalho na Moto Service, passei por dezenas de outras empresas-clientes. No dia dos Motociclistas, em 27 de julho de 1999, eu me desliguei definitivamente da Moto Service. Nesse período em que eu dividia meu tempo entre as correrias do dia a dia de mensageiro e estudava à noite na USP, passei a questionar todas as condições a que os motoqueiros estavam submetidos. Claro que eu era da velha guarda, tinha o maior respeito entre os motoqueiros, e a empresa sempre pôde contar comigo. Mas as condições do mercado de entregas rápidas a cada dia pioravam e a concorrência se tornava cada vez mais feroz. Perdíamos quase todo dia um novo contrato, e as coopergatos pagavam propina deslavadamente às chefias dos bancos, que passaram a ignorar se os motoqueiros eram ou não registrados, retirando nossos contratos e oferecendo as essas pseudocooperativas. Algumas delas faziam leasing para adquirir lotes imensos de motos com a condição de colocar no mercado centenas de motociclistas sem experiência e ganhando salário. Isso barateava absurdamente os custos operacionais, pois, depois de algum tempo, eles se desfaziam dos contratos de leasing e as motos ficavam destruídas, sem


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qualquer manutenção. Sem contar as inúmeras mortes causadas por esse tipo de exploração do trabalho dos motociclistas, como tão bem comprovou a experiência do Marcelo Veronez, Poeta dos Motoboys, em sua narrativa. Contratando assim trabalhadores motociclistas para colocar no mercado, esses empresários não só aumentavam as altas margens de lucros à nossa custa, como não se responsabilizavam pelas ações desses motociclistas sem experiência no trânsito. Morriam mais e mais motoboys e a situação piorava com a falta de respeito e de ética motociclística. Discutíamos cada vez mais dentro da Moto Service qual seria a solução, mas ninguém apontava uma. Atrevo-me a dizer aqui que quando a Moto Service optou pela parceria com a LevEntrega perdeu uma chance extraordinária de encontrar uma solução corajosa e, juntamente com seus profissionais, apontar uma saída. Como o leitor pode ter percebido, nas conversas com os motoqueiros, na narrativa anterior, havia um forte potencial dentro da empresa para enfrentarmos juntos qualquer crise que viesse — e vencermos. Nunca saberemos o que poderia ter acontecido se houvesse tempo de amadurecimento daquelas discussões que iniciamos lá atrás. E se, antes de aparecer aquele empresário com uma proposta da LevEntrega, a própria crise nos levasse a uma união em torno de um projeto? Era isso, pelo menos, que estava se delineando antes da chegada dele. Mas nunca saberemos. Mas há algo que poderíamos saber: a partir da necessidade de repensar o modelo de negócios do segmento de entregas rápidas, buscamos encontrar outra base jurídica e vislumbramos uma nova lógica de crescimento, ou seja, criamos um novo modelo. Para isso, a solução que apontávamos naquelas discussões era que devíamos



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buscar outra forma de contratação: em vez de tornálos empregados, torná-los profissionais com autonomia, e para isso devíamos agenciá-los, oferecendo-lhes suporte e preparando-os para atender à forte demanda que surgia pelos serviços de motoboy, sem vinculá-los diretamente à estrutura da empresa, mas passando a representá-los de forma associativa, com orientação e assessoria aos clientes. Desse modo, eles se tornariam profissionais liberais. Exigia-se, assim, um compromisso mútuo de crescimento. Achávamos que, partindo da particularidade da empresa, poderíamos atuar sobre a totalidade do mercado. Caminho totalmente inverso ao que foi tentado e não realizado pelos empresários que idealizaram a LevEntrega, que partira da totalidade para o particular; da venda de uma imagem de empresa para o mercado que não tinha nenhuma base na realidade particular do profissional motociclista; de uma imagem inadequada desse profissional. Meu pensamento amadureceu com a longa experiência que tive, principalmente com aqueles motociclistas. Até hoje eles têm muito a nos ensinar, principalmente em relação à direção defensiva, conceito tão pouco explorado, que pode salvar a vida de uma motociclista.16 Eles sobreviveriam à carnificina que se tornaria o trânsito da cidade de São Paulo nos anos subsequentes. E estão todos vivos aí, para contar suas histórias. Voltando aos números, dos cerca de 3 mil profissionais motociclistas de quando comecei a trabalhar de moto, ao chegar ao final da década de 1990 esse número chegava à estimativa de cerca de 80 mil a 90 mil motoqueiros 16 Só posteriormente difundido pelo CETET – Centro de Treinamento da Empresa de Engenharia de Tráfego do Município de São Paulo , esse conceito já era aplicado empiricamente e repassado oralmente pelos antigos mensageiros motociclistas.


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cruzando a cidade diariamente. Para mim, o fato de ter entrado nessa profissão e ter passado diversos apertos, acidentes, roubo à mão armada e até ficar preso em escada de incêndio, era compensado por uma enorme quantidade de experiências felizes, como o prazeroso sentimento de pilotar uma moto por um dia em algumas cidades vizinhas para fazer uma entrega e ainda o fato de algumas vezes ter ganhado muito bem para realizar um trabalho assim. Fez de mim um defensor irreparável e interlocutor que a categoria não tinha ainda visto em sua história. E digo isso sem modéstia; ao contrário de antes, hoje não temo mais represálias, os atores sindicais têm seus papéis bem definidos, e não posso influenciar em nada mais a direção que eles possam tomar, ainda que tenha, por conta da história da categoria, se constituído uma trama de questões que deixamos aqui em aberto, para ser revelada por um historiador mais autorizado no futuro. Voltemos ao contexto que me levou ao dilema, naquele dia, de ter que passar para uma perspectiva comunitária de ação sobre o destino de toda a categoria, deixando de lado uma visão pessoal e pessimista, pois tinha deixado de acreditar que outros poderiam fazer aquilo que eu estava destinado a fazer.

XX O caso do “maníaco do parque”, que em meados dos anos 1990 havia manchado definitivamente a imagem da categoria, fez com que aparecêssemos na mídia com essa máscara de marginal — sem rosto. Nem mesmo nos perguntaram se tínhamos nomes e qual eram nossos sonhos sob o capacete. Os fatos que vieram a seguir, no final daquela década, foram a gota d’água. Depois de um dia seco de inverno, com muita poluição, ficamos sabendo pelos motoqueiros que moravam na


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região leste que na noite anterior, após uma fechada no trânsito, um motoqueiro irritado com seu dia de trabalho e com a insistência da motorista que dirigia o automóvel em levar a reclamação do motoboy até a delegacia mais próxima, entrara numa discussão em plena Marginal Tietê. Após esse incidente, divulgado pela imprensa, o governador Mario Covas ligou para o prefeito Celso Pitta, pedindo providências contra esses “marginais”. Imagina se fosse com sua filha, deve ter dito o governador, preocupado com o índice de acidentes e de desrespeito no trânsito. O caso dizia muito sobre a perspectiva da motorista, que se vira sozinha, à noite, em plena Marginal, cercada por dezenas de motoqueiros com as caras pretas de poluição. Os motoqueiros, compreendendo a razão do rapaz — que corria o risco de, além de não ser justamente ressarcido pela barbeiragem da motorista, ficar sem a moto quando fosse conversar com o delegado. Só pediram para que eles se acertassem; um cheque resolveria tudo. Ela, porém, não queria ser contrariada, e em vez de ir lá fazer o B.O., para que seu seguro cobrisse o prejuízo, sozinha, chamou a polícia e disse estar sendo constrangida e correndo risco de vida. A galera que tinha parado para saber do caso correu antes de a polícia chegar, mas não antes de os repórteres noticiarem. O prefeito chamou o secretário, que solicitou ao diretor de departamento de trânsito que chamasse os representantes da categoria, os empresários das empresas de motos (SETCESP), os empresários do setor das montadoras, os presidentes das cooperativas, os comandantes do policiamento de trânsito e o representante do sindicato dos motociclistas (SIMMESP), no caso, em pessoa, o Senhor Brilhante. Isso tudo aconteceu


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em menos de duas semanas. Eles queriam regulamentar o setor, disseram nossos patrões, quando estiveram nessa primeira reunião, e falou-se em muitas coisas, inclusive em colocar coletes nos motoqueiros e impedir que motos acima de quatro anos circulassem a trabalho na cidade. Segundo disseram, fora o próprio Brilhante que viera com aquelas ideias. O clima esquentou na Moto Service. Ninguém ali estava interessado em pagar mais taxas além dos encargos de IPVA etc. Ao saberem disso, os motoqueiros se revoltaram. Como o Brilhante nunca fora motoqueiro, qual era o compromisso dele com a categoria? Nenhum! E foi nesse clima que deixei a Moto Service. Quando pedi as contas dessa vez, eles me mandaram embora, como fizeram com muitos outros que não tinham mais os polpudos contratos dos bancos. Eles perdiam motoqueiros, clientes e a cabeça. E foi assim que nós todos começamos a sair, a colocar em prática os projetos pessoais com o dinheiro que tínhamos ganhado aqueles anos – alguns colocaram a empresa no pau,17 aumentando ainda mais os custos dela e inviabilizando-a cada vez mais como empresa. Uma pequena correção: nós vírgula! Eu não tinha nenhum tostão guardado quando o barco afundou! Eu estava estudando, bebendo e fumando muito. Nos finais de semana, em vez de lavar a moto, eu saia à noite, não dormia e já não tinha mais ninguém. Na USP, as coisas começaram a piorar, e piorariam ainda mais com a decisão que eu tomaria. Enquanto Leonel, Cláudio, Boy, Pequim, João Rosa, Mineiro, Armando e todos os outros punham em prática suas ideias e largavam a profissão de motoqueiro eu continuava no batente. E pior, ao sair da Moto Service, tive que virar motoboy. 17 Foram processados na Justiça Trabalhista.


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A nova empresa em que comecei a trabalhar era a Alta Express, na Radial Leste, o maior corredor de motociclistas da América Latina. Lamentavelmente, o cara que dirigia a empresa era espertalhão, chegou tarde ao mercado, aprendeu rápido como as empresas de motoboy cresciam e se deu bem à custa dos motoboys. Por um lado, eu tinha que fingir que gostava do marketing deles. Por outro, odiava cada vez mais toda a situação, a sensação de impotência diante de uma condição social que só poderia ser vencida pela união dos motoqueiros. Mas qual união? Era bastante difícil organizar qualquer greve; numa empresa de motoboy é praticamente impossível! Certa vez, quando nossos contratos na Moto Service ficaram defasados por conta da inflação, como estávamos havia um tempo sem reajuste no preço da hora de serviço, voltamos a nos reunir em nosso ponto de encontro na Ilha, na Líbero Badaró. Sabendo os horários de cada um, nos encontrávamos lá principalmente à noite. “Hoje a cobra vai fumar”, pensei. A Ilha naquela noite ficou lotada de motos, foi um ponto de referência para todos nós, porque era onde discutíamos abertamente nossas diferenças e semelhanças com outros motoqueiros, conhecíamos a realidade das empresas. Era onde nos abraçávamos e, no dia seguinte, competíamos entre nós. Fazia um tempo que os bancos não ajustavam os contratos de acordo com o aumento dos combustíveis. Organizamos, então, nossa primeira grande greve, que começaria em 48 horas, caso os sócios da empresa não pressionassem os bancos. Levamos nossa pauta, e a empresa, que ainda era na Liberdade, levou nossa proposta no dia seguinte aos bancos. Em 24 horas, tivemos os primeiros retornos. Eles haviam conseguido nosso aumento. A Ilha guarda na memória outras dessas empreitadas. Mas em certa ocasião caímos na besteira de, em vez de mandarmos


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cinco representantes, como havíamos feito da outra vez, por conta de terem entrado muito mais motoqueiros na empresa e ter ficado uma baita confusão, decidimos todos falar com a Augusta e marcamos na noite seguinte uma assembleia com a presença dela. Nessa noite lembro que apareceu por lá também o tal do Brilhante. Nós o tocamos de lá. Mal chegamos para negociar e ela percebeu nossa fragilidade. Na frente de todos nós, comentou como ajudara cada um ali: — Para este eu adiantei o 13º, para pagar uma dívida. — Para aquele, as férias, para trocar de moto. — Para aquele outro, que vai casar...

E assim foi... Saímos humilhados e sem aumento, mas aprendemos a lição. Pena que isso só acontecia na Moto Service. Éramos motoqueiros experientes e podíamos até errar, porém aprendíamos rapidinho com os erros cometidos. Nas outras empresas, os motociclistas tentavam a mesma sorte, mas não sabiam que quem mandava no galinheiro era o patrão: cometiam o erro de organizar movimento dentro da empresa, sob as vistas dele. E pior: marcavam as reuniões em dia de pagamento, quando todos estavam ali para pegar o salário e loucos para ir logo para casa. Ou seja, ser patrão de motoboy era mamata. Agora, você quer realmente conhecer a categoria? Escute essa. Um dia, estava num guichê de uma repartição e vi que o carinha na minha frente usava uma jaqueta da mesma empresa que eu. Perguntei a ele desde quando estava com a gente, e ele respondeu que estava na empresa havia cinco meses! Cinco meses? Fiquei me perguntando em que tipo de acordos aquele cara estava se envolvendo na empresa para que nós nem sequer o conhecêssemos. Como poderíamos organizar


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uma categoria em todos os dias cada um dos motoqueiros ia para um lado diferente do jogo? De que adiantava trabalharmos “juntos”, se nem nos víamos? Estupefato com aquela verdade, me dei conta, quase desmaiando no pé do motoqueiro perto de mim: enquanto na fábrica os peões estão juntos, almoçam juntos e pensam juntos, logo, fazem greves juntos, nós simplesmente estamos fodidos! A lógica do espaço do trabalho do motoboy não permite que ele se organize! Nunca essa categoria fará uma greve salarial! (Que pena, jamais saberá o sabor da vitória, pensei, lembrando as greves dos tempos de bancário.) Compreendem minha agonia agora? Trabalhando na Alta Express, sem registro em carteira, tendo depressão todos os dias! Eu estava alienado numa lógica terrível de um trabalho em que eu não era mais do que um subproduto, vendido no mercado por uma merreca, e poderia morrer a qualquer hora embaixo de um ônibus e não deixar absolutamente nada para minha família. Cansado de tentar me suicidar pelas ruas, naquela tarde, quando faltavam dois dias para o prefeito assinar o tal Decreto, a vida me cobrou sua dívida. Saber era saber, e tinha um preço. Eu sabia que fizera poucas escolhas até então e poderia contar na mão quantas tinham sido as decisões que mudaram o rumo da minha vida de fato. Nossas reais decisões de vida são raras. E ali estava ela, uma decisão a ser tomada, a porta a ser aberta, que eu haveria de tomar e enfrentar as tramas lançadas por ela para sempre. Ao trabalhar de moto, pude ver de perto a realidade dos motoboys. Ali, naquele decreto que o prefeito assinaria, não havia nada que pudesse salvá-los, apenas enquadrá-los num sistema rígido de regras, que a muito custo poderia padronizá-los em uma categoria fictícia, mas não lhes daria uma nova identidade, não procuraria sanar suas necessidades, nem mesmo consideraria suas próprias determinações.


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Quem foi consultado para que eles lançassem aquele projeto e o que deveria ser feito para resolver os reais problemas da categoria? Rodei a cidade naquela manhã como se fosse um zumbi, não sei quantas entregas fiz, ou se as fiz. Eu sabia que a ideia estava amadurecida na cabeça, argumento por argumento, que aquele decreto não se sustentaria. Havia uma cópia do projeto de lei circulando pelas empresas. Os diretores nos mostraram e não havia nada nele que fizesse sentido. Tanto era assim que, passados dez anos, nada do que era proposto ali se concretizou, e os motoboys e as motogirls resistiram àquele projeto. A minha ideia naquele momento era escrever a um jornal e expor os motivos pelos quais o decreto-lei que a prefeitura estava prestes a baixar não tinha fundamento. O decreto, que era uma necessidade, tornou-se uma obra de oportunistas, que viram a possibilidade de lucrar com isso. Muitos empresários foram “dar seus palpites”, teve gente querendo que motoboy tivesse taxímetro, e, como eles não conheciam nosso trabalho, basearam-se numa lei que regulamentara — com sucesso — os táxis na capital, e acreditavam piamente que aquilo seria aplicado a nós também. Naquela tarde, eu vinha pela Doutor Arnaldo em direção à avenida Paulista, onde há uma bifurcação, e eu precisava justamente tomar aquela decisão naquele dia — o tempo estava passando. Se eu mantivesse a esquerda, passaria por baixo do túnel que ia parar na avenida Paulista. Se escolhesse a direita, cairia na Consolação. Meus olhos estavam já totalmente embaçados, então tomei a decisão; não sei por que, virei à esquerda... Saí na Paulista. Se eu não tivesse optado por esse caminho, viveria o resto de minha vida sabendo que podia ter sido diferente, que eu poderia ter me dedicado a escrever.


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Parei, então, no estacionamento da rua Padre Manoel, ao lado de um restaurante onde havia algumas mesas absolutamente vazias. Sentei-me numa ao fundo, tirei meu palm top e o coloquei sobre a mesa, chamei a garçonete, pedi um café, avisei que todas as vezes que eu solicitasse, ela deveria me trazer outro, e escrevi o artigo que estava em minha cabeça. Respirei fundo, abri uma página em branco no computador e comecei um artigo de cerca de cinquenta linhas no qual eu convidada a população a fazer uma reflexão sobre o decreto do prefeito Celso Pitta. Minha esperança era de que ele lesse o artigo enquanto estivesse comendo seus brioches pela manhã. E quando fosse assinar o Decreto, pensasse duas vezes antes de selar o destino de toda uma categoria. Primeiro, perguntava ao leitor do jornal como poderiam os fiscais autuar sobre os motociclista. Quem faria isso? Como determinar os limites da cidade? Quais motoboys trabalham e moram na cidade? E os que não moram, podem trabalhar e se cadastrar? E com essa pressa, quem fiscalizaria? Por exemplo, quando o táxi pega seu cliente na calçada, podemos observá-lo tranquilamente. Por acaso o motoboy, com seu mochilão, também será observado dentro da empresa, pois não há como determinar quem é motociclista ou motoboy? Quando vier de uma cidade vizinha fazer trabalho aqui, nessa cidade, ele vai pagar as taxas. Sim, porque com essa tecnologia de comunicação, não importa onde é a firma, o trabalho pode ser feito aqui na Paulista e a empresa ficar onde bem entender que não há como enquadrá-lo. E as empresas daqui, como é que ficam? Como os perueiros ilegais estavam sendo alvejados (porque naquela época os perueiros tinham acabado de passar por uma ostensiva


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regulamentação no futuro —, seriam tirados definitivamente das linhas, que seriam entregues aos grandes empresários de coletivos), os motoqueiros que não fossem se cadastrar também seriam alvejados? E, por último, já que um programa de regulamentação baseado nos táxis, categoria tão diferente da nossa, fora usado, por que foi retirado do decreto o capítulo no qual eram estabelecidas as formas de cobranças (UTs) das viagens? Perdeu-se a oportunidade de oferecer algo real aos motoboys, ou seja, não foi criada a UTM — Unidade Tarifária Motofrete —, que possibilitaria o reajuste da hora do serviço, temporariamente, contra a inflação. Chamando a atenção para esses e outros pontos, terminei o artigo e peguei minha mochila. Agora era escolher uma edição. Tirei a sorte e deu Estadão. O motoboy Eliezer tinha uma última entrega a fazer naquela noite, quando saiu para pegar sua moto estacionada ao lado do Conjunto Nacional. Chegando ao edifício do jornal, disse ao segurança na portaria que tinha urgência em entregar um computador de mão ao editor, e falei o nome do editor que eu lera ali numa edição que estava sobre a mesa da recepção do jornal. Pensei: “Motoboy entra em qualquer lugar nessa cidade, camaradas!” Convencer eles a publicarem não foi difícil. Vários repórteres leram o que estava escrito em meu computador de mão e discutiram entre si. Depois, veio o subeditor-chefe e disse que ainda faltavam 10% de aprovação para que o artigo fosse publicado. Como não tinha ali um cabo para transferir o arquivo, ele solicitou que assim que chegasse em casa eu enviasse por e-mail, que naquela época eu já tinha, e eles fariam de tudo para publicar. Não sei o que aconteceu com meu artigo, nem sei onde foi parar. O que sei é que no dia da assinatura do decreto-lei,


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o repórter Flávio Mello veio me procurar para repetir minha opinião quando estive na redação do jornal. Era coincidência demais: o repórter enviado para cobrir aquele evento era meu amigo do banco, que trabalhara comigo na seção de contabilidade, e, de fato, enquanto conversávamos sentados em uma mesa do lado de fora, lembrando nossos dias de bancários e como acabávamos nos encontrando em situações tão inusitadas, no saguão do lado o prefeito fazia as cerimônias aos convidados. Aproveitei para me desculpar com meu amigo, por perder a cabeça aquela vez no banco, quando não aceitei que a promoção fosse dada a ele e não a mim, o que causou a crise que resultou em minha saída. Enfim, naquele dia eu disse como eu fora parar lá, envolvido com os motoboys, como eu havia desistido da minha carreira de programador de computadores e como estava sendo uma grande luta para termos reconhecimento. Se o plano do prefeito desse certo, com certeza eu teria razão em acreditar que, em pouco tempo, as fábricas estariam vendendo motocicletas padronizadas (como queria a lei) diretamente aos empresários, deixando os motoqueiros fora do negócio e colocando um monte de gente sem experiência para trabalhar, correndo o risco de morrer no trânsito e ainda por cima ganhando uma ninharia, o que prejudicaria a todos. Ele ficou impressionado, pois não sabia que os motoqueiros eram os donos de 99% das motocicletas que rodavam na cidade, e que apenas poucos trabalhadores motociclistas que eram empregados das transportadoras tinham moto própria. Isso dava um outro caráter ao processo. Um último dado antes de terminar este capítulo. Naquela manhã, depois da “festa”, o decreto foi assinado em um departamento de trânsito da prefeitura, longe dos olhos do público e dos mensageiros que protestavam em frente à sede da Prefeitura. Conversando com os empresários do setor


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de motos, joguei um verde para um dos diretores de uma das fábricas de motos presente ao evento: disse que trabalhava na Alta Express e que tínhamos planos de expandir os negócios. Falamos em adquirir um lote de mil motos padronizadas e contratar alguns trabalhadores motociclistas para servirem a nossa empresa. E não é que o pato caiu de boa? Tenho até hoje o cartão dele amassado entre meu papéis, e ele não deve desconfiar de nada até hoje. Ou seja, o jogo estava armado para cima dos motoqueiros. Naquela oportunidade, também tive o prazer de me juntar pela primeira vez à luta dos motoboys, ao ser convidado para participar da Associação dos Mensageiros Motociclistas do Estado de São Paulo por seu próprio presidente.

XXI No dia seguinte à assinatura do decreto eu não voltarei mais à empresa de motoboy. Fui direto para a associação, para iniciarmos um plano de resistência aos projetos da prefeitura. Nessa época, somente a AMM (Associação dos Mensageiros Motociclistas) batia de frente contra a regulamentação dos motoboys. Reunimo-nos na Barra Funda, no apartamento do Ernane Pastore, que era quem presidia a associação. A casa dele servia de escritório para a associação e ponto de encontro do grupo de mensageiros e motoqueiros que estavam organizados. A associação era muito nova e ainda estava se estruturando, levada à frente pelo próprio presidente, que eu já conhecia dos tempos de Moto Service, quando trabalhávamos juntos, antes de a empresa entrar em crise, quando chegou a ter cerca de trezentos funcionários. Portanto, já tínhamos alguma


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experiência em organizar as reivindicações dos motociclistas e creio que o movimento dos motoboys nasceu ali, pois pela primeira vez os motoqueiros resolveram criar uma associação para defender a categoria. Durante aqueles meses que se seguiram ao decreto fizemos várias manifestações públicas, como motopasseatas pelo centro da cidade e na avenida Paulista. E, da minha parte, a princípio achei que não era mais possível ficar contra a regulamentação, uma vez que o decreto passava por cima da Câmara Municipal, e não haveria a possibilidade de mudar substancialmente nada, já que não houve um debate público anterior a ele. Eu insistia que a prefeitura cometera um erro ao não ouvir a categoria. Assim, discordava da forma como fora feita a regulamentação. No entanto, não me oporia a ela diretamente porque, simplesmente, como havia apontado no artigo que enviara ao Estadão, eu sabia de antemão que a regulamentação estava fadada ao fracasso. Tratava-se agora de gerir o estrago, antes que houvesse vítimas, e esperar que um dia tivéssemos algum vereador que fizesse outro projeto de lei que fosse mais a nossa cara. Mas isso, infelizmente, jamais aconteceu. Minha lógica era também que, ao forçar a regulamentação, a prefeitura nos obrigava a nos auto-organizarmos, e isso não era de todo mal, olhando por essa perspectiva. E de fato ela forçava. Lembro de uma tarde, ao final do dia, quando os motoqueiros se reuniam para trocar ideia na oficina do Boy, antes de zarparmos cada um para sua casa, em que contamos até 27 comandos da polícia de trânsito na capital. Não era brincadeira. Junto com o pacote da negociação, a prefeitura de São Paulo recebeu como parte pela assinatura a doação de cinquenta motocicletas das fábricas de moto, para serem usadas pela polícia militar na


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busca e apreensão dos motoqueiros que não estivessem com a documentação da moto em ordem ou com a manutenção em dia. Inacreditável. Sofríamos uma grande pressão (tanto psicológica quanto financeira) todos os dias e ninguém fazia nada, chegavam a parar a gente duas vezes num único dia em blitz de polícia. Os atrasalados18 metiam multa na gente e ainda perdíamos o dia parados nas barreiras policiais. Na verdade, aquilo se tornara uma grande perseguição, mas éramos lisos: criamos nossos próprios códigos e, assim, conseguíamos escapar. Talvez os motociclistas de hoje não tenham ideia do que passamos, mas se o cerco fechasse era correr que a polícia vinha! Pois é, para onde íamos tinha comando! Depois de uns meses, vimos uma das imagens mais absurdas – que sequer foi citada pela impressa local: o pátio da Companhia de Engenharia de Trânsito do Município de São Paulo, na avenida Marquês de São Vicente, tornara-se um mar de motos apreendidas e empilhadas, umas sobre as outras, ao ar livre. Muito motoqueiro que eu conheço não conseguiu mais recuperar sua moto. Enquanto isso, a venda de motos novas crescia vertiginosamente! Fiquei quatro meses na associação. Meu FGTS pelos dez anos de trabalho na Moto Service se esgotava. As manobras da prefeitura para obrigar os motoqueiros a se cadastrarem tornavam-se cada vez mais duras, pois os policiais também passaram a mudar suas estratégias. Os motoqueiros resistiam, mais vi muito motoboy novo correr para o balcão da prefeitura, com medo de não poder trabalhar. Os cursos nos CFCs (Centro de Formação de Condutores) ficavam lotados. Em vez de pessoas experientes explicando direção defensiva e outras técnicas de 18 Gíria comum usada pelos motoboys para designar algo que interrompe a ação. Um acontecimento que “empata” ou “atrasa o lado” do motoboy.


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sobrevivência no trânsito, havia apenas boçais formadores, que nem mesmo sabiam subir numa moto, tentando explicar o inexplicável – os motoboys aproveitavam para tirar uma soneca! E pior: era ano eleitoral. Salvadores da pátria e oportunistas se lançavam a vereador como candidato dos motoboys! E adivinha onde eles começaram pregando? Claro, dentro das salas de aula e dos espaços de formação, nesses centros arrumados para “ensinar” os motoboys. Estavam, em plena luz do dia, tratando os motoboys como um bando de carneirinhos! Era também uma máquina de ganhar dinheiro em cima da categoria. A patifaria corria solta. Assim, por um lado, cada vez mais tínhamos diversas frentes de batalha, porém, carecíamos de estrutura suficiente para defender todas essas frentes. Lutávamos para sermos recebidos pelo prefeito e termos direito a sentar à mesa onde eram decididas as ações que no fundo estavam prejudicando a todos. Dessas reuniões no departamento de transporte da prefeitura participavam os empresários do segmento de entregas rápidas, os do setor das duas rodas das fábricas de motos e peças e os técnicos que apoiavam explicitamente o Brilhante e a política de repressão da prefeitura. Não tínhamos um veículo de comunicação com toda a categoria para esclarecer isto, então, ficávamos reféns de tudo o que eles decidiam e aplicavam a seu bel-prazer. Um pouco antes de toda aquela discussão surgir em torno da regulamentação, uma jornalista e um publicitário haviam criado um pequeno jornal chamado O Motoboy. Um deles me procurou quando eu já estava na associação, com uma proposta de transformar o jornal numa revista. Uma vez feito isso, poderiam me pagar para trabalhar com eles, já que os anúncios de jornal


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naquele momento não pagavam nem mesmo o trabalho deles. Então teríamos uma revista mensal, e eu também receberia uma coluna nessa revista, para que pudesse discutir os problemas da categoria. Como não via a cor do dinheiro havia algum tempo, aceitei. Também realizaria o velho sonho de trabalhar em uma edição. Antes de fazer filosofia na USP, cheguei a prestar vestibular para cinema na USP, como já contei aqui, e para jornalismo na PUC. Para cinema não passei. Para a PUC cheguei a passar mas não fui fazer minha matrícula, já que o curso custava uma grana – achei melhor fazer mais um ano de cursinho e tentar filosofia. Durante um tempo, auxiliei a associação, enquanto apenas escrevia para a revista. Mas chegou um momento que não dava mais. Além de discordar das estratégias políticas adotadas, eu apoiava a ideia de fomentar a criação de um novo sindicato de motoboys, já que a justificativa da prefeitura para não nos receber era não termos “legitimidade”. (Porém, não se tratava de legitimidade, mas de uma postura política negativa sobre nossa representação, isolando a AMM das decisões, o que, em qualquer situação social em que houvesse uma representação legitimada, constitucionalmente, era legítimo sentarmos à mesa para representar os mensageiros e motoboys. É a mesma situação dos professores do estado de São Paulo, por exemplo, que têm em uma associação, a APEOESP, uma forma de representação, para defendê-los inclusive em questões salariais diante do Estado.) A AMM, com razão, contestava na justiça a legitimidade do Sindicato dos Mensageiros Motociclistas do Estado de São Paulo como representante oficial da categoria, já que a assembleia de fundação dessa entidade fora descaradamente fraudulenta. Nessa época, portanto, corria no Ministério Público uma ação movida pela Associação contra o Sr. José Antonio


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Brilhante, que naquela época tinha feito uso indevido das assinaturas dadas pelos motoqueiros em um curso oferecido pelo “seu” sindicato para os motoqueiros da Moto Service para, com isso, fundar o sindicato. Com essas folhas de assinatura (ele retirara o cabeçalho e ficara apenas com as assinaturas), ele dera entrada no cartório, dizendo ter havido uma “assembleia” de fundação que nunca houve. Ou seja, havia três boas razões para responsabilizar esta pessoa tanto pela aparição dos motoboys em empresas irregulares, como pela regulamentação que, em vez de sanar as reais causas da degradação da categoria e a consequente vitimização dos motoboys no trânsito, estava interessada apenas em nos vender. A primeira é que, como se sabe, esse senhor nunca fora motociclista, então não tinha conhecimento de causa e não tinha o apoio dos motoqueiros na rua. Segundo, seu sindicato não tinha legitimidade para nos representar, apesar de tentar nos convencer de que ele era o único que podia falar oficialmente pela categoria (embora os patrões tenham confiado na pessoa dele para que fosse possível a categoria ter uma Convenção Coletiva própria, o que só foi possível porque eles ofereceram dinheiro para que ele abrisse o sindicato) – assim, pelo menos, era o que aguardávamos a justiça decidir. E em terceiro lugar, a AMM tinha muito mais associados do que o SIMMESP, já que a qualquer momento poderíamos botar o pé na rua e fechar o trânsito, enquanto o sindicato não tinha força política nenhuma para barrar os ditames de um prefeito que fora destituído por duas vezes de sua função e ainda em vida responderia a vários processos de corrupção e lavagem de dinheiro. Então, de repente, me vi fazendo política – sem, no entanto, ter escolhido ser político.


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Depois de uma viagem a Blumenau, em que fui fazer uma matéria sobre a fundação dos sindicatos dos mototaxistas — que começavam a se estabelecer naquela cidade —, eu me desliguei da Associação dos Mensageiros Motociclistas. Nessa viagem para o Sul, aproveitei para ter uma longa conversa com as lideranças locais sobre o panorama político na cidade de São Paulo e sobre as categorias que estavam nascendo. Com isso, não havia mais clima de continuar na associação. E a partir desse ponto passei a atuar na revista Motoboy Magazine, o antigo jornal O Motoboy. A princípio correu tudo bem na minha ida para lá, e até tivemos algumas grandes vitórias, se pensarmos que a revista se resumia a três pessoas trabalhando. Eu escrevia, fotografava, editava e ainda ajudava a vender anúncios. O Oscar Gonçalves ajudava a fazer as entrevistas, cuidava dos contatos comerciais e gerenciava. E um motoboy nos ajudava fazendo de tudo. A jornalista caíra fora e o Oscar passara a gerir o negócio. Desse modo, tive a oportunidade de fazer diversas viagens pelo Brasil e conhecer a realidade da categoria em outras cidades e estados. Para mim, antes de tudo foi um grande aprendizado, conheci por dentro diversas empresas com culturas completamente diferentes — algumas eram sérias e outras, grandes picaretas. E ainda que tivéssemos que passar noites acordados em porta de gráfica para poder entregar as revistas nas datas (a revista era distribuída gratuitamente e era o único veículo de comunicação de grande circulação da categoria — outros veículos viriam a aparecer e desaparecer sem deixar rastros), era interessante desenvolver um trabalho de conscientização tanto dos motoboys quanto dos empresários do setor.


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Assim, tínhamos um bom respeito aonde íamos e ainda podíamos nos posicionar sobre alguns pontos, em relação aos quais sindicatos e associação não estavam em condição de se posicionar. Iniciamos diversas discussões na categoria e cobríamos quase todos os eventos do segmento, até que numa dessas oportunidades tive o prazer de entrevistar e conhecer o Sr. Luis Nakama, que era diretor do Departamento de Transporte Público (DTP) da Secretaria de Transporte e que era diretamente responsável pela implantação da regulamentação do motofrete na capital. Termo que ele mesmo cunhou, na tentativa de bolar uma nova designação para a categoria, que se diferenciasse daquelas que os motociclistas utilizavam. Estávamos em março e naqueles seis meses a regulamentação tinha chegando a um impasse. Muitos empresários que agenciavam motoboys, estavam boicotando o processo, já que tinham dúvidas se o motofrete iria pegar. Era então o momento em que ou a regulamentação entrava com força total e “fechava” a categoria, ou o processo poderia correr o risco de estagnar, como aconteceu de fato. No entanto, apesar da preocupação da prefeitura em manter o cadastramento aberto (ela havia determinado uma data-limite, apenas para obrigar os motoboys a correrem para se cadastrar; não havia interesse em limitar o acesso a ela), isso não podia ser anunciado, como o próprio Nakama deixou claro numa conversa, afinal, as lojas de motos tinham interesse em continuar a vender muitas motos. O óbvio interesse político por trás estava ligado ao segundo fato: era ano eleitoral e a regulamentação do motofrete deveria constar na agenda política, para um segundo mandato, como uma realização da gestão Maluf-Pitta.


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Vendo agora, a figura do motoboy tornava-se, assim, o centro de uma trama de interesses em torno de sua categoria profissional. O tempo também era um inimigo. A associação todo dia saía na rua. Os empresários, que também liam a revista O Motoboy, tomavam consciência dos artigos e matérias que produzíamos. Sabiam inclusive que, se de fato a regulamentação fosse só no nosso município, poderia ainda haver uma nova ameaça de concorrência desleal, com empresas dos municípios vizinhos atuando aqui – como eu já havia previsto lá atrás, em meu artigo no jornal. Assim, foi em meio a todas essas discussões que criei o conceito que passei a chamar de profissionais motociclistas. Como disse, aquele ano era determinante para o futuro da categoria. Em conversa com o Sr. Nakama, discutimos muitos pontos e expusemos nossas divergências sobre a regulamentação. Com uma visão mais ampla sobre o profissional motociclista, chegamos a alguns pontos que convergiam e a um consenso sobre os encaminhamentos que deveriam ser tomados sobre o processo de regulamentação. Deixei de lado uma postura de acusar a gestão e apontar seus equívocos, quando passara a tábua rasa sobre a categoria, a fim de que, no futuro, a prefeitura se comprometesse a fazer um amplo estudo de prospecção, para conhecer a fundo os serviços de entregas por motos, e então chamasse os representantes para discutir um projeto comum para todo o setor. Como Luis Nakama era um engenheiro técnico, ele tinha uma visão desvinculada da politicagem e pensava a cidade em sua totalidade, compreendendo a necessidade de uma profunda discussão sobre a mobilidade da motocicleta e uma revisão sobre o tratamento geométrico das ruas e avenidas para promover um melhor uso do espaço


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público. Então, propus a ele que criássemos um fórum de debate, a fim de discutir publicamente aquelas questões, e que seria ao mesmo tempo uma oportunidade de o poder público ouvir os motoboys. Ele não só topou como propôs me ajudar no que fosse preciso para que eu organizasse o fórum.

XXII O primeiro passo estava dado. Receberia dias depois um convite para participar da próxima reunião agendada da comissão de regulamentação do motofrete no DTP. O passo seguinte era convencer Oscar da necessidade daquele fórum, já que eu precisaria do apoio da revista para sua realização. Mas ainda faltava o mais importante: um nome para o Fórum Nacional, já que, como se tratava de questões que tocavam profissionais em todo o Brasil, aquele era um momento único. Como por meio da revista eu mantinha contato com os poucos sindicatos que existiam naquela época, achei importante envolvê-los e chamálos para a discussão — já que não se tratava apenas de debater a regulamentação, mas a própria profissão. E, finalmente, seria a primeira vez em nossa história que todos os representantes dos sindicatos poderiam se reunir em São Paulo para um encontro nacional. Após o carnaval, que fora na passagem de fevereiro para março, aconteceria em São Paulo, no Autódromo de Interlagos, a 1ª Etapa de Motovelocidade do GP Brasil. Como nossa meta, na revista, era cobrir todos os acontecimentos do mundo das duas rodas, trazendo informações para nossa categoria, tomei a incumbência de naquele domingo de manhã cobrir aquela corrida.


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Como era a primeira vez que eu assistiria a uma corrida de motos, fiquei bastante feliz, coloquei um bermudão, óculos escuros (sou fãs deles), peguei a máquina fotográfica e capacetes. Coloquei meu filho na garupa e fomos ver as máquinas roncarem na pista. Lógico que minha cabeça estava ali a trabalho, mas meu corpo era pura descontração. Eu sabia que poucos motoboys se interessavam por aquelas colunas de esporte, diferentemente dos antigos motoqueiros, que compravam suas próprias revistas de moto, então realizava um antigo sonho como leitor de revista de motociclismo. Nessa época, já tinha sido apresentado a vários diretores das montadoras de motos, então ficamos na torre, onde rolava um bufê, conversando com eles e olhando de binóculos os pilotos fazendo o circuito. Como só havia adultos, Lucas, meu filho, disse para descermos para os boxes, onde poderíamos ver as motos de perto. Então descemos e nos enfiamos no meio daquele monte de gente que trabalha e curte motovelocidade. Tiramos várias fotos e fomos para o guard rail ver as motos passando a milhão pela reta dos boxes. Como ainda faltavam muitas baterias, fiquei por ali conversando com os mecânicos e pilotos, tirando fotos e fazendo entrevistas. Em um desses bate-papos, sem qualquer pretensão, falei para os mecânicos que eu vinha da categoria dos motoboys. Eles foram legais, me deram atenção, e, por acaso, eu já estava falando de política. Como no universo das duas rodas, quando eu falava nas categorias, eles pensavam em termos de cilindradas, vi então que fazíamos parte de mundos totalmente distantes, e eles não compreendiam muito minhas angústias. Naquele momento, em 2000, os pilotos de motovelocidade também estavam começando a discutir novas regras para


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os campeonatos e patrocínios para haver mais profissionalismo nas corridas de velocidade, por isso, um deles disse “que deveria haver mais união entre os motociclistas profissionais”. Vindo de alguém que pratica o motociclismo, aqueles pilotos e mecânicos não estranhariam nunca o que eles acabavam de dizer. Para mim, aquelas palavras mostravam o outro lado da moeda! Para alguém como eu, que, com meus botões, procurava um conceito que tivesse a maior abrangência possível, para colocar sob o mesmo teto todas as designações que encontrara país afora para os serviços de motoboy e mototáxis, aquela nova informação caiu como uma luva. Fiquei bastante aliviado quando ouvi aquilo e fui pesquisar no site das Federações de Motociclismo para conferir. De fato, aquele conceito pertencia a eles. Naquela semana, depois de pensar em diversos nomes para o 1º Fórum Nacional, eu estava bastante confuso em relação a adotar “motociclistas profissionais” para o Fórum, uma vez que já havia um sindicato no Rio Grande do Sul que utilizava esses dois termos juntos, e não era só esse o problema, pois eles tinham acabado de usá-los para a fundação daquele sindicato, e outros ainda seguiriam por esse caminho, porém sem conhecer a realidade de todo o universo das duas rodas, pelo menos naqueles primeiros anos. As atividades profissionais que faziam uso da motocicleta naquele momento já tinha se diversificado em duas grandes categorias, a de motoboy e a de mototáxi. Os mototaxistas espalharam-se rapidamente por todo o Brasil e, em poucos anos, tornaram-se uma profissão bastante consistente. Eram categorias irmãs, embora tivessem funções completamente diferentes (ainda que muitos mototaxistas fizessem também serviços de motoboys).


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O nome motoboy, como a atividade profissional de entrega de documentos e todo tipo de apetrechos, foi criado em São Paulo e se popularizou por todo o Brasil. Mas, na verdade, isso só foi possível porque esse motoboy tornara-se a síntese do profissional motociclista urbano em qualquer cidade que, com uma moto própria e sua flexibilidade para encontrar soluções, ganhava cada vez mais espaço no mercado para fazer suas entregas e atender à clientela, e o nome se estabeleceu definitivamente no imaginário popular. Desse modo, ao intuir a necessidade de termos todas essas categorias juntas, batizamos o 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas, que aconteceria em julho daquele ano. A fim de que não restasse dúvida sobre nossa escolha, comuniquei a algumas pessoas sua razão, já que não podíamos nos referir a esses profissionais com a mesma denominação de outra categoria que fazia apologia à velocidade e se diferenciava em número e grau da nossa — no caso, os pilotos de motovelocidade e de teste. Essa razão me pareceu bem simples, ainda que até hoje alguns ainda insistam em não considerar, de um ponto de vista global, as categorias dos profissionais motociclistas como uma só. Sem conhecer esse conceito, essas pessoas fazem uso do termo “motociclistas profissionais” para designar todos os motoboys, mototáxis, mensageiros, courriers, deliveries, motoentregas etc. como uma única classe, sem levar em conta o próprio termo ao qual esses profissionais estão vinculados. Ou seja, a moto, no caso dos profissionais motociclistas, é o meio para sua atividade principal, não o fim. É sua ferramenta de trabalho, não sua finalidade. Para os motociclistas profissionais, pilotos de motovelocidade e de testes das fábricas de moto, a motocicleta não é o meio, mas o próprio fim de sua ação; seja pelo prazer da


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competição, seja pela técnica que utilizam para desenvolver ainda mais esse veículo automotor. Dessa diferença, nasceu um conceito que, além de tudo, marca um território de pertencimento recíproco. Cabe agora a essas categorias profissionais firmarem seus espaços a partir desses termos. O 1º Fórum já nasceria, portanto, em meio a uma discussão que apontava o futuro da categoria. E com a presença dos sindicalistas, a própria categoria tomava seu destino em suas próprias mãos. Quando, enfim, levei a proposta ao diretor da revista, vimos que não era possível bancarmos sozinhos o fórum. Então, fechamos diversas parcerias com o intuito de custear o encontro. Encontramos na própria associação das montadoras de motos (ABRACICLO) o apoio que faltava à realização. Assim, nasceria, junto com essa oportunidade, o 1º Salão do Motoboy, uma feira de motos e peças voltada para os profissionais motociclistas, idealizada e organizada pelo editor da revista Motoboy Magazine, que a cada dia encontrava mais reconhecimento na categoria. Uma tarde, enquanto corríamos para dar conta dos primeiros preparativos do Fórum, eu recebi um telefonema que, pela abordagem, me deixou totalmente surpreso: — Alô, eu queria fazer com o Eliezer? — disse o motoboy. — Pois não, sou eu, diga. — Mano, você tá louco, você fica escrevendo filosofia pra motoboy! — Como assim? — Aqui quem fala é o Alemão... — Velho, eu apenas escrevo para clarear as mentes, não sei escrever diferente... — Motoboy não lê nem jornal — disse ele, irritado. Alemão, na verdade, era motoboy e poeta, e de tanto eu escrever difícil (de propósito), parecia ter, afinal, atingido meu




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objetivo na revista: pelo menos UM motoboy naquela cidade sabia ler! Ri enquanto ele esbravejava do outro lado da linha... — Olha — falei —, essa revista é dos motoboys. Por que você mesmo não vem aqui e põe a boca no mundo? — Eu faço poesia... — disse ele — Legal, cola aqui a qualquer hora, vamos conversar, tem muita coisa pra fazer e estamos sozinhos... Vamos marcar um café?

Aldemir Martins, o Alemão, apareceu um dia por lá e pudemos nos conhecer. Ele acompanhava de perto toda a movimentação política dos motoboys e estivera nas manifestações que fizemos contra a regulamentação quando eu estava na AMM. Conversamos longamente sobre os problemas da categoria. Como ele viera do ABC e tinha uma posição firme de esquerda, discordava do modo como estavam sendo feitas as coisas. Achei aquilo interessante e incentivamos ele a se envolver mais com a classe, já que era motoboy e não se sentia representado, para que viesse participar também dos debates no 1º Fórum. Assim, naqueles meses vimos surgir uma nova liderança na categoria. Em poucos meses, o Alemão organizou um monte de motoboys e a revista O Motoboy parecia um bunker cheio de motoboys, capacetes, capas de chuva, baús. Passamos a apoiá-los e eles criaram assim a União dos Motoboys do Brasil (UMAB), uma organização não governamental para representar todos os motoboys do país. Esse era o sonho deles. O 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas chegava, assim, com várias frentes, com muitos motoboys envolvidos na luta e com a participação de todos os sindicatos que representavam os motoboys e mototáxis do Brasil, menos, claro, o SIMMESP, sindicado do Brilhante,


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aqui de São Paulo. Atingimos, graças ao trabalho duro dessa galera, do Oscar e de muitas pessoas que compreenderam a importância daquele primeiro grande encontro para debater os problemas da categoria, nossa meta. Antes de finalizar este capítulo sobre a história da categoria, é necessário ainda relatar aqui um dos lances decisivos para que pudéssemos organizar o encontro. Como disse, ao conhecer o diretor do Departamento de Transporte Público, durante uma entrevista que concedemos à Rádio Eldorado FM, ele me convidou para a reunião da comissão que estava conduzindo o processo de regulamentação na cidade de São Paulo. Essas reuniões mensais aconteciam desde que o prefeito assinara o Decreto e dela participavam os representantes do setor e as autoridades envolvidas em cada etapa da regulamentação. Os empresários tinham mais cadeiras, pois, além do presidente do sindicato patronal (SETCESP), vinham sendo convidados para acompanhar alguns empresários donos de cooperativas e representantes do setor das duas rodas. As autoridades eram compostas pela assessoria do secretário de transporte e pelos comandantes do policiamento de trânsito, que estavam ali para receber instruções sobre a ação da polícia durante o processo. Era difícil dizer que eu me sentaria ali naquela mesa para argumentar a favor da realização daquele debate público, mas também para contrapor as estratégias que eles estavam seguindo a partir das informações que o presidente do Sindicato dos Mensageiros (SIMMESP) passava para eles. Para nossa surpresa, o representante do sindicato, o senhor Brilhante, a princípio se recusou a sentar à mesa quando me viu. Começou logo dando escândalo. Eu, que era bem-vindo e estava ali a convite, tinha as melhores intenções de


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promover o debate, buscando, com essa iniciativa, que o poder público ouvisse os pontos de vista dos motoboys. E o Sr. Luis Nakama, diretor do DTP, a fim de encontrar meios para que a regulamentação saísse do impasse criado pela recusa da maior parte da categoria em se cadastrar, via nessa oportunidade uma forma de levar a opinião pública para o debate da questão. Com isso, me apresentava à mesa como colaborador da revista e organizador do Fórum. Brilhante, ainda em pé, jogou o estatuto do sindicato sobre a mesa, dizendo-se o representante oficial da categoria e o único a ter a legitimidade para representá-la. E recusou-se a sentar. Mesmo com os outros insistindo com aquele “deixa disso”, senão a reunião não continuaria. Vendo então que era comigo a parada, pedi a palavra. E disse: — Brilhante, não se trata aqui de sabermos se esse ou aquele tem legitimidade para falar em nome dos motoboys. Tampouco está em questão, para que essa reunião aconteça, se temos à mesa o representante “oficial” da categoria. Mesmo porque, ninguém aqui está pondo em dúvida sua representação, não se trata disso.

Nesse momento ele parou. Não sabia o que dizer, tentando acompanhar meu raciocínio. — Trata-se — continuei falando pausadamente — de sabermos quem tem representatividade. E, como nós sabemos, você não tem. A categoria é muito grande, e se fôssemos esperar que você registrasse todos os trabalhadores, só acabaríamos com isto daqui a vinte anos...

Não precisei continuar argumentando. Ele sabia que o Baixinho (era como eu chamava o Ernane, da AMM, na época) já havia queimado ele na categoria. Sentou-se, então, com o rabo entre as pernas, e não abriu mais o bico. Naquele dia presenciei como eram feitas as


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coisas por lá e vi atônito cada um daqueles senhores dar seu voto a favor do posicionamento do comandante da Polícia de Trânsito, que deu seu diagnóstico sobre a atuação dos motoboys em São Paulo e ordenou mais rigor nas batidas. Era, enfim, a solução final para eles. Mas, como eu disse, era ano eleitoral.

XXIII Ao relatar esses fatos hoje, posso confessar que quando saí daquela reunião eu sabia (ou pressentia) de antemão que tivemos ali uma grande vitória, que infelizmente não pude compartilhar com ninguém naquele momento. Meu cálculo era que, ao endossarem a realização do 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas, além de desmoralizar o falso presidente do sindicato dos motoboys perante os outros atores envolvidos na regulamentação (afinal, Brilhante sempre fora “cachorro morto” para nós, motoqueiros), os ânimos a partir dali iriam se arrefecer. Mas também, e foi justamente nesse ponto que baseei a minha estratégia, como eu sabia que em julho já estaríamos dentro da agenda eleitoral, com menos de três meses para as eleições municipais, dificilmente os políticos jogariam a polícia para cima da gente. De fato, durante a realização do Fórum, no mês de julho, no Instituto Dante Pazzanese, o panorama político era outro. E, numa última tentativa, a prefeitura estendeu ainda mais o prazo do cadastramento, mas já era hora de jogar a toalha. O prefeito fora quase cassado. Brilhante, depois disso, nunca mais botou os pés na rua. A “regulamentação do motofrete” se estendeu ainda pelas gestões seguintes dos dois prefeitos eleitos. Apenas uma pequena parte dos motociclistas se enquadrou na lei. Enquanto isso, nas ruas, os motoboys resistem até hoje.


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Neste conto, escrito em 2001, adiciono ao nosso livro a história de Miltinho, amigo que tinha moto e morava próximo à casa do finado tio Nôno, que me deixou saudades, em Diadema: Miltinho Se o diferente é o oposto do incerto, Miltinho era o meio-termo. Não tinha nada de diferente de ninguém, mas corria pelo certo. Seu irmão, Cassiano, era responsabilidade sua — tirava o dia pra cuidar do menino. Mas se seu dever era educar o caçula, Miltinho era quem, na verdade, precisava de mais educação. Deixava as cuecas sujas no chão do banheiro, largava a escova de dente no tanque cheio de roupa encardida, sentava de cara pra tevê e ia comendo durante todo o dia. Chegava da rua, dava um mijão na tampa da privada. Fio-dental pela casa toda, a mesa nem se fala, ele deixava coberta de porcariadas, às moscas, os cinzeiros cheios mofando por dias, uma nódoa cobria a casa. Além de tudo, nunca houve o dia em que se habituou a lavar uma simples louça (não fossem as vizinhas!). Mas ele era bom motoboy. Lembro-me até de sua mãe falando, quando estava viva: “Que menino porquinho. Meu Deus, nem parece que criei você!” Como outro qualquer. Mas essas “qualidades”, acima de tudo, serão sempre dele, leiamos. — Porquiiiinho...? — choramingava o irmãozinho quando acordava pela manhã e ficava perambulando pela casa. Chamavao assim desde cedo porque gostava de imitar o pessoal da rua, que subia na mureta atrás da casa pra chamar o Miltiiiiiiiiinho. Mas Cassiano esticava ainda mais o i... — Porquiiiiiiiiinho... Alguém ia lá na janelinha da porta sem vidro e dizia: – Vai trabalhá não? Mas Miltinho só levantava após o meio-dia. Pela manhã, “só tirar atraso”. Desculpava-se sem qualquer necessidade, referindo-se ao fato de ter que dormir enquanto


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tomava conta do moleque de dia. Ainda pela madrugada, quando voltava da pizzaria, caia às vezes de botas, capa de chuva e tudo num sofá torto que ficava embaixo de um armário desengonçado preso à parede da escada que dava para o lado de cima do sobradinho construído com o suor da sua mãe, que um dia voltara da Bahia, após um casamento fracassado, e terminara seus dias num cubículo de empregadas numa mansão, ali no Jardim Paulistano. Enquanto os filhos cresciam, eles viviam na parte de baixo da casa de blocos que tio Domêio ajudava a construir. No pequeno cômodo ainda não cabiam todos. Por isso, quando ele vinha ajudar na construção tinha que dormir lá fora no quintal. Tio Domêio tinha o costume de estender uma rede velha embaixo da laje onde hoje Miltinho guarda sua moto. Quando chovia, ele estendia uma lona de plástico preta até o chão, para conter a água. Hoje Miltinho ainda guarda essa técnica. Nessa época, dona Terezinha não tinha com que se preocupar, pois, de manhã, quando saía, deixava comida para os três. Depois passou a dormir no emprego e tio Domêio passou a ficar com os meninos até levantar as paredes do quarto de cima. Esse tio era chamado assim desde criança. Filho do meio de seu Antonio e dona Maria, os avós maternos, que os meninos nunca chegaram a conhecer no sertão da Bahia. Mas Domêio era um consolo. Até então, era a força que dava à irmã mais velha, quando o pai das crianças desapareceu no mundo. “Filho a gente nunca esquece o nome”, mas de tanto vó Maria chamá-lo assim, para disfarçar a parca memória que ainda lhe restava, Domêio foi ficando, por conta da avó chamar dona Terezinha, mãe dos meninos, de “minha filha Terezinha, mais velha”; e o filho mais novo de “meu Cazuza, mais novo”. Então o tio, que era “o do meio”, ficou Domêio. (Isso começou depois que passou a morte do “mais novo”. Talvez fosse uma forma que ela encontrara pra não se referir mais aos nomes, mas também nunca esquecer a perda do caçula da família. Já dona Terezinha batia perna com apenas um pensamento: levantar a obra. E também, da mesma forma como veio parar em São Paulo, o tio Domêio foi ficando. Ficando e gostando, e logo resolveu sair de casa.


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Domêio deixou os dois cômodos e foi morar com uma mulher do outro lado de Diadema. Miltinho foi o que mais sentiu sua falta, mas nada disse. Depois que assumiu tudo, acostumou-se de cara a lidar com o impacto, igual a quando, logo depois de adoecer, a pobre mãe “foi para o céu”. “Foi pro céu!”, dizia ao maninho Cassiano, na hora de pôr ele para dormir. Milton era bem mais velho, tinha mais do que o dobro da idade do irmão. Porém, depois do falecimento da mãe, recorreu ao juizado de menores para que seu irmão ficasse em casa, talvez por um medo inconsciente de vê-lo se perder numa instituição de caridade para menores. Assim cresceu Cassiano, miudinho entre os arroubos do mundo. Na imensa favela, todos sabiam a história dos dois meninos, e um sentimento de culpa que não tinha por onde nem porquê, apenas com a companhia do irmão e o carinho das “tias”, ou melhor, das vizinhas, que fizeram uma corrente de apoio ao motoboy e ao irmãozinho órfão. Descobriu cedo que ficar sozinho significava abrir mão das zoeiras de moleque da rua. E de tudo mais que o futuro podia oferecer a um garoto da periferia. Ele queria ser completamente livre, mas o fato é que já tinha tomado um rumo. Não tinha volta. Tinha que se virar sozinho e cuidar do irmão. Juntou uma grana que sua mãe deixara e comprou uma DT 180 cc, toda cabritada, não demorou pra aprender a pilotar, mas apanhou muito pra aprender a consertá-la. No quintalzinho, sentado sobre uma lata velha de tinta, Cassiano acompanhava a aventura do irmão. Miltinho gostava de chamá-lo —“Cassiãããnn” — para mantê-lo sob as vistas. O menino tinha uns olhos perdidos no mundo e um tanto deixava para olhar as molecadas das redondezas, que corriam em bando pelos becos da favela em alta velocidade numa gritaria danada. E foi numa tarde abafada dessas que Miltinho entrou pela viela subindo em primeira marcha até o portão de sua casa. Acelerou antes de desligar. Quando punha a moto para dentro, no canto da laje, ao lado do tanque, era porque tinha que esperar o entardecer, até o horário de a pizzaria abrir. Então tombava no sofá com as pernas abertas. Quando não, deixava a moto travada do lado de fora e entrava rapidamente


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em casa, bebia algo e já logo saía outra vez acelerando, deixando um rastro de fumaça pelo ar. Um sentido de gratidão, de quem recebe e apenas silencia a alma, foi o que sentiu quando passou pelo pequeno Cassiano sentado ali. O tempo passava, pensou, “logo o menino ia ter que ir à escola”. Um dia perguntou ao menino “se ele não sonhava com o futuro, ser alguém na vida”. O garoto, que tinha os olhos longe, enquanto o irmão inclinava a moto pra medir o óleo, respondeu do ombro da janela: “Se não se sonha com o futuro, morre-se no presente.” Coisas assim a gente só ouve da boca de um guri. Mas foram estas as palavras do pequeno Cassiano ao irmão motoboy. Saiu pra trabalhar fritando com aquilo na cabeça. O capacete no cuco preso às orelhas, o mochilão encardido nas costas e um cigarro no canto da boca; quando chegou ao asfalto abaixou a viseira e acelerou grandão. Entrou na Rodovia dos Imigrantes. As dores nas costas voltaram mais fortes nesse dia, então ele puxou a mochila pra frente, apoiando-a sobre o tanque da moto. Agora que ele conseguira umas entregas extras, só pensava em dar um jeito de conseguir trocar de motinha, e já calculava a possibilidade, que lhe permitiria ao menos não ter que trabalhar de segunda a segunda na pizzaria. Aquelas entregas à noite estavam acabando com ele. Sem contar os corres pra fugir do risco de ficar em fogo cruzado na boca da favela. Então sonhava. Mas, com o trânsito, logo esse pensamento ganhou sumiço e o tempo bom acendeu sua expectativa de chegar logo àquela sexta-feira em que daria o cano no patrão e sairia com aquela mina que conhecera no pancadão do domingo. A calça apertada na bundinha, o umbiguinho de fora da blusinha, só ia pensando nela agora, com certeza ele só pensava nela, “o lance bolava”, e disse, sorrindo, seu nome. A pista quente ainda soprava uma poeira fina que entrava pela viseira, o vento seco de inverno ia apertando os olhos. Na Ipiranga, o tempo abriu e viu que seu dia também voara e ele só tinha mais uma entrega a fazer. Dessa forma, era domar as curvas e pinar a segunda, pra escapulir dos faróis vermelhos. Mas tocar sem medo no corredor ainda era o grande


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risco. Ganhava seus segundos e a cada minuto deixava um pra trás, dizia consigo, hasta la vista, baby, dando um quebrão pra direita, sumindo atrás de um automóvel e fritando o freio dianteiro diante de um policial parado na esquina. “Ô atrasalado”, dizia. Bloco na mão, saca a caneta, olha, torce o pescoço, coça o canhão pra impor respeito, mas sabe que a moto acelerada aguarda no ponto morto. Se o tira tem um dia cansado ele te esquece, se tem capitão ele avança, se te tira do trânsito, anota teus dados, faz perguntas inúteis e te lasca uma multa. Miltinho é do tipo que fica calmo por fora. Por dentro do capacete, ele sempre está fulo: “Maldito f.d.p.”, pensa, dando uma risada nervosa, quando parte acelerando e torcendo para que o cabo do velô, que quebrou pela décima segunda vez, não o deixe na mão numa hora dessas! Um bração cola do lado, arrastando os espelhos dos carros e um motorista xinga: “Mais uma vez? Seu corno!”, e põe a cabeça pra fora pra ajeitar o retrovisor. “Hoje é assim”, pensou Miltinho, “dormiu, vem outro cara e te zoa.” Mas também tinha os camaradas, que estão de boa, como esse que viu Miltinho quando atravessou o Mercado, na Zona Cerealista, já próximo ao local da sua entrega, o motoqueiro deu um guincho pra tirar um carro quebrado do meio da pista e comentou: “Putz, hoje tá punk rock.” Era ir pras cabeças, as costas doendo pelas horas maldormidas no sofá, de dia fazendo um bate-e-volta na firma do Zelão e à noite correndo pela pizzaria. Abaixo do grau e no leva e trás pensava em Cassiano, sozinho ou no vizinho, mas sempre sozinho. À tarde cuidava de deixar sempre um desses cobertores à mão e a TV ligada; pedia sempre, que a coisa esfriava na Serra do Mar, para que o menino não saísse para o quintal. Mas a friaca vinha e congelava as paredes e o vento da madrugada fazia tremer as telhas finas dos vizinhos; nem todos tinham como pôr uma laje. Hoje, nem sempre assim, “mas ele, ao entregar aqueles envelopes, tiraria seus 30 pilas”, pensou, era pegar ou largar, senão eles não passavam mais os trampos e ele ficaria na rua. Sentado agora na recepção de um edifício, aguardando aquele tiozão de camisa branca assinar os documentos, pensou


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novamente no que o Cassiano dissera, o que era mesmo? Puxa pela memória. “Futuro?”, disse, lembrando os olhos fundos do moleque... Pra que queria saber daquilo, “futuro”?, perguntava-se Miltinho. Teria ouvido aquilo na televisão? Sentia que o moleque mudara muito depois de tudo que acontecera.. Aquela tarde, na volta pra casa, acelerou macio, deixando a raiva e a cidade pra trás, pelo retrovisor. “Soul Favela, Soul a Norte, Soul a Leste... a Zona é forte”, tocava uma música ao longe quando entrou no bairro. “Como tudo isso ficou feio”, pensou, lembrando da sua infância: quando chegara havia tanta arvorada. Agora, só bala perdida.

XXIV Hoje, em São Paulo — capital e região metropolitana —, a categoria é uma das principais forças políticas e é formada por milhares de motociclistas. Acredito que minha participação na história da categoria, que começou no início dos anos 1990, ao trabalhar como mensageiro motociclista na Moto Service, me deu uma experiência de vida que em outro lugar eu não teria. Aprendi a respeitar e a ser respeitado no convívio com os motoqueiros que trabalhavam comigo. Nunca, no entanto, esperei ser totalmente compreendido, já que os problemas que afetam os motoboys são extremamente complexos. Também não me preocupo com isso, pois acredito no potencial desses profissionais e na força essencial de sua categoria — um dia eles se emanciparão. Confesso que percebi cedo que existia um lugar para atuar nessa categoria, e já que minha própria história de vida se entrelaçava na história dela, aceitei esse destino, mas não me agarrei a ele. Afinal, nossa luta sempre foi pelo reconhecimento e por condições melhores. Independentemente de quem suba num palanque para fazer a defesa desses profissionais motociclistas, sempre deverão se pautar pelo bom-senso e pela


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autonomia desses profissionais em escolherem suas formas de representação. Paguei um preço pelo caminho que escolhi, mas tive muitas recompensas em termos de aprendizado e de reconhecimento pelo meu trabalho como pensador. Agora, ao ser convidado para organizar este livro com o Coletivo canal*MOTOBOY, também sou um escritor da categoria. Percebi, entretanto, com mais clareza, a multiplicidade de pontos de vistas, como cada uma daquelas pessoas que sacrificaram sua vida sobre as duas rodas tinha algo a dizer quando decidimos contar aqui a história dessa categoria, que se encontra em pleno desenvolvimento e apenas iniciou sua jornada em busca de uma autêntica cidadania, o que, como os leitores devem ter também percebido, tem ainda muito chão pela frente. Assim, já que nossas histórias relatam o próprio surgimento da categoria, julguei que seria muito importante mostrarmos como se enraizaram as lutas, e como tivemos que nos organizar para evitar que elas fossem destruídas em sua essência pela ganância e pelo despreparo dos que não tinham condições de defendê-las. Foi desse modo, por exemplo, que nosso objetivo passou a ser dar voz aos motoboys e às motogirls, acreditando que, uma vez que pudessem ser ouvidos, esses trabalhadores incansáveis pudessem ter um futuro melhor, coisa que só eles podem conquistar a partir de uma reflexão sobre os problemas e dilemas com os quais lidam diariamente na sua vida profissional. Tal visão, que nasceu dentro da experiência proposta pelo artista Antoni Abad com seu projeto ZEXE.NET canal*MOTOBOY, se desdobrou na Semana de Cultura Motoboy, organizada no âmbito do movimento dos motoboys que participam desse coletivo. Agora, com este livro, pudemos expor pontos de vista de diversos motoboys e ex-motoboys que entendem a importância da categoria para a sociedade.


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Após a realização do 1º Fórum Nacional, em 2000, quando os motoboys começaram a se organizar em torno da UMAB e a discutir a criação de um sindicato dos motoboys, aos poucos comecei a me desligar do dia a dia de lutas, já que meus estudos exigiam-me cada vez mais. E se antes eu acreditava que fundar um novo sindicato era uma solução, passei a ter sérias dúvidas sobre esse caminho quando iniciaram o processo de fundação de um sindicato de motoboys na capital, o Sindimoto. No entanto, não compartilhei com o Aldemir, o Alemão, seu presidente, esse meu ponto de vista, pois, desde o fórum, no qual ele conheceu sindicalistas de outros estados e teve uma participação ímpar nos debates, quando eles começaram a se mobilizar eu senti que o caminho deveria ser lutar dentro do antigo sindicato dos mensageiros (SIMMESP), obtendo credenciamento naquela instituição e forçando seu presidente, o Brilhante, a fazer uma eleição justa. Mas Alemão estava convencido de que o mais correto seria desmembrar o sindicato dos mensageiros, que era estadual, de sua base em São Paulo e, a partir do movimento dos motoboys, fundar outro sindicato. O que foi feito até com certo louvor. Minha vida particular a essa altura já estava totalmente destruída, meus parentes todos longe, meu casamento havia muito estava acabado e, por conta da minha participação no movimento dos motoboys, a universidade pedira meu jubilamento, ou seja, eu perderia a única coisa que construíra com enorme sacrifício em todos aqueles anos. Ao sair da revista O Motoboy e bater lata em empresas de motoboy, eu apenas tentava sobreviver e mandar uma pensão para o meu filho. Foi quando conheci o Miltinho, em uma dessas bocas de porco, e escrevi aquele conto sobre sua vida de motoboy.


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Desse modo, vejo como fazia sentido toda minha angústia quando, no final de 2002, pensei que tudo estava acabado e tive que encostar minha moto antes que ela me jogasse embaixo de um caminhão — na minha moto não restava quase mais nada, a não ser um motor que começava a bater, um quadro elástico que às vezes me deixava sem a corrente e uma caixa de direção zoada, que não dava segurança na hora das freadas. O desligamento da profissão não era apenas uma derrota ou uma consequência natural, como acontecera a muitos outros que passaram por ela, que dela tiraram seu sustento e depois procuraram outras formas de sobrevivência, tendo-a como categoria de passagem. Como alguns ex-motoboys que conheço, percebi na pele a dificuldade de sobreviver no trânsito com a moto em pandarecos, derrotado pelas péssimas condições de trabalho numa empresa de motoboy sem estrutura, mas que continuo a considerar porque os motoboys que ficam são como irmãos para nós. Enfim, eu me voltaria para os estudos. Levava comigo a certeza de que, se algo não fosse feito, seria perdida uma parte da história da categoria, e se não houvesse uma reflexão sobre os processos que levaram à sua desestruturação, ela jamais descobriria seu incrível potencial humano. Além disso, seria esquecida a parte da resistência que fizemos para evitar que fôssemos enganados por abutres que, motivados pelas sucessivas tentativas de regulamentação de nossos serviços, se aglutinaram em torno da categoria a fim de se apropriar do capital que girava nas mãos dos motoqueiros. Se não houvesse outro caminho, a categoria nunca encontraria sua verdadeira emancipação. Assim, em fevereiro de 2002, entrei com um pedido de solicitação de bolsa-moradia na Universidade de São Paulo, a fim de voltar aos estudos. Naquele mesmo ano, entrei com um recurso, que ganhei em segunda estância,


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para recuperar meu número de matrícula, depois que fora jubilado. E em outubro, já com minha vaga recuperada, passei a ser residente do CRUSP - Conjunto Residencial dos Estudantes da USP, onde moro até hoje, enquanto preparo meu projeto de mestrado, com a novidade, agora, de que trouxe meu filho para morarmos juntos, já que ele passou para o curso de Letras na universidade, o que me deixou muito feliz. Em outubro daquele mesmo ano, abandonei definitivamente a profissão de motociclista e vendi o que restara da minha moto a um garoto da favela São Remo, para ele entregar pizza, pelo valor de R$ 300,00. Foi tudo o que restou dela.

XXV Com as mãos nos bolsos e uma tristeza no coração, eu mais uma vez recomecei minha vida. Mas tinha a história dos motoboys. Então, durante uma greve na Universidade, sentei e comecei a escrever um romance. Ele se chamava Linha 10 e era uma ficção sobre meus dias de motoboy e a história de uma categoria que acabara de nascer. O romance, que ainda tenho numa gaveta à espera de uma editora, ficou entre os dez primeiros títulos no concurso Nascente da Universidade de São Paulo, recebeu ótimas críticas, mas ainda não emplacou. Talvez eu mesmo tenha deixado ele lá até ter tempo e discernimento19 para transformá-lo em uma obra sem idealizações, mas tudo tem sua hora e lugar. Quem sabe ele não vira um filme primeiro! Em 2003, eu finalmente consegui uma bolsa-trabalho na Universidade, que me dava a oportunidade de estu-

19 Lembrando Nietzsche em suas inumeráveis tiradas: “Tudo que era garantia de um mundo ideal se desvanece a partir do ‘discernimento’ (Einsicht) de que o verdadeiro, o bem, o belo são idealizações.”


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dar, mas tinha ainda esperança de fazer um estudo mais ampliado sobre os motoboys. O curso de filosofia, por ser muito difícil e conceitual, não me dava oportunidade de me voltar para os motoboys nem para a cidade, e meus contatos com as lideranças estavam cada vez menores. Estava completamente preso dentro dos muros da Universidade, voltado para a abstração e para leituras dos filósofos. Por um lado, eu realizava finalmente o sonho de uma vida inteira, que era me dedicar às coisas do pensamento e do desenvolvimento humano. Preenchia meu tempo integralmente com os estudos e minhas notas melhoravam a cada semestre. Por minha história de vida até era chamado pelo nome pelos meus professores, que sempre me perguntavam sobre a luta dos motoboys. Mas não me sentia realizado, e o romance que escrevera não tinha naquele momento subsídios suficientes para que eu lutasse pela sua publicação. Assim, naquele ano, como eu sempre falava dos motoboys às pessoas que conhecia, num papo com uma amiga do curso de antropologia ela me disse que naquele semestre estavam formando vários grupos de estudos no curso de Antropologia Urbana e que um deles iria estudar os motoboys em São Paulo. Como ela conhecia uma das pessoas desse grupo, sugeriu que eu fosse levado até lá. O curso, ministrado pelo professor José Magnani, foi uma excelente oportunidade para seus alunos realizarem um primeiro estudo antropológico sobre os motoboys. Quando os alunos do grupo me convidaram para participar das discussões e eu me dispus a apoiá-los, dando-lhes informações preciosas sobre as características dos motoboys e onde poderiam encontrá-los em momentos mais sociáveis, cuidando assim de evitar que os pesquisadores intercedessem na lógica do trabalhos e da correria do dia a dia de um motoboy. Outro cuidado, agora em relação


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às informações que passava, era para que meu olhar não influenciasse o trabalho dos pesquisadores antes que eles fossem às ruas. Assim, tinha certeza de que aquele grupo estava bastante interessado e podia me oferecer uma nova visão sobre algum aspecto da categoria que eu ainda não conhecia! No final do ano, o trabalho deles foi apresentado com louvor para os alunos da faculdade, sucesso que se deve também ao professor, que incentivou o grupo, mostrando aos integrantes as peculiaridades dessa nova classe de profissionais, que formavam uma tribo urbana e que mantinham com a cidade de São Paulo uma relação bastante complexa, rica em dimensões, que, numa metrópole como a nossa, se inscrevem a partir dos espaços ocupados por esses profissionais motociclistas na malha da trama urbana. O trabalho apresentado pelos alunos Augusto Astiel Neto, João Mutaf e Silvia Avlasevicius, do Curso de Ciências Sociais da USP, intitulado “Pelo espelho retrovisor: motoboys em trânsito”, foi posteriormente colocado pelo professor no site do NAU - Núcleo de Antropologia Urbana. Em 2004, eu continuava a me encontrar com aqueles pesquisadores, principalmente com o Augusto Astiel, que viraria um grande amigo e companheiro e foi quem liderou o grupo de estudos antropológicos. Um belo dia, o Astiel me procurou e me disse que um artista espanhol achara a nossa pesquisa na internet e enviara e ele um e-mail, dizendo-se interessado em realizar um projeto de arte contemporânea com os motoboys. Ele queria oferecer uma oportunidade para que os motoboys falassem de si mesmos na internet, usando celulares para o envio de fotos e vídeos. A princípio, achei muito estranho aquilo, não sabia ainda as reais intenções daquele artista e achei melhor esperar: era ver pra crer. O artista chamava-se Antoni Abad, e naquele ano apresentaria sua primeira experiência de


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arte usando celulares com a comunidade de taxistas na cidade do México. O Augusto, que continuava a falar com ele, disse que em breve ele viria ao Brasil e fazia questão de me conhecer, pois, segundo o Augusto, eu era o cara que o artista procurava para realizar esse projeto no Brasil. Como eu conhecia as discussões estéticas envolvidas em um projeto como esse e como tinha um profundo conhecimento da categoria dos motoboys, ele propôs um contato. Assim, enquanto eu levava adiante meus estudos e todos os dias ia ao Museu de Arte Contemporânea da USP, onde tinha uma bolsa trabalho e realizava minha Iniciação Científica em curadoria de arte, esse artista, que também se tornaria um grande amigo, viajava o mundo, realizando seus projetos com diversos grupos marginalizados pela sociedade, como as prostitutas em Madri, os ciganos na Espanha e os cadeirantes em sua própria cidade, Barcelona. Eu acompanhava atentamente esse desenvolvimento, mas ainda com uma dúvida na cabeça: o que aconteceria em São Paulo quando ele desse aos motoboys celulares ligados à internet? Era uma pergunta cuja resposta eu não conhecia, e precisei viver essa fascinante experiência para saber. Em Barcelona, ao formar o grupo de cadeirantes para mostrar os obstáculos que as pessoas com deficiências físicas encontram na cidade para se locomover, o artista ofereceu uma ferramenta absolutamente revolucionária aos participantes do projeto canal*ACCESSIBLE (Canal*Acessível): junto à tecnologia de envio de fotos, a mídia era feita com um dispositivo de geolocalização, ou seja, era a primeira vez que eu via o uso do GPS para um uso social. Ao lado das fotografias, que muitas vezes denunciavam abusos no trânsito, como alguém que deixa um carro sobre a calçada, impedindo a passagem de uma pessoa com deficiência, vinha um mapa


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mostrando exatamente o local onde elas foram tiradas. E como muitas daquelas fotos eram de escadas e batentes de locais públicos e privados, foi montado um mapa da cidade acessível, uma verdadeira evidência de que uma comunidade específica estava mostrando ali as limitações impostas pela falta de uma política pública voltada para as diferenças. Aquilo encheu meu coração de alegria. Todos os dias eu visitava o canal*ACCESSIBLE para ver como os cadeirantes estavam se saindo em Barcelona. Pelas suas fotos, também conhecia aquela cidade cuja história, quando estávamos preparando o projeto da exposição do Gaudí, no SESC Pompeia, eu tivera que estudar. Era tudo maravilhoso, e, sem saber, já estava apaixonado pela ideia do projeto em São Paulo, mas não conseguia imaginar de que forma aquilo que os cadeirantes faziam – inclusive apresentando o mapa feito por eles à prefeitura de Barcelona, para que modificasse os espaços públicos onde havia obstáculos – poderia ajudar na ideia que eu sonhava poder realizar com o projeto do Antoni no Brasil. Como os motoboys se apropriariam dessas ferramentas? O que eles apontariam? Como iriam lidar com ela? Quais seriam as preocupações deles na hora que formassem o grupo participante? Finalmente, em 2006, o Antoni Abad veio ao Brasil e tive a oportunidade de conhecê-lo. Mas ele pouco falou dos cadeirantes, que eram minha maior curiosidade. Ele falou sobre os motoristas de táxi da capital mexicana, que, nas palavras dele, eram nossos hermanos, por conta dos problemas que esses lutadores enfrentavam para serem reconhecidos pela sociedade e pela precariedade com que o trabalho lá era feito, com muitos distúrbios causados por táxis clandestinos e ausência de regulamentação da profissão por lá. Nesse sentido, éramos muitos marginalizados e parecidos.


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Quando o artista que teve a ideia de dar celulares a uma comunidade sem voz quando esteve em São Paulo anos antes, e que vinha, nesses anos, tentando realizar o projeto aqui, mas não conseguia encontrar patrocinadores por conta do grande preconceito em relação aos motoboys, finalmente pareceu ter achado uma parceria para realizar o projeto, recebemos a notícia de que começaríamos a desenvolver os trabalhos. Recebi, assim, o convite para ser curador-adjunto do projeto, que seria realizado no Centro Cultural São Paulo, local em que eu passara parte da minha vida estudando nas bibliotecas, assistindo filmes e peças teatrais e onde durante a minha juventude tinha visto as primeiras apresentações de bandas punk rock. Ou seja, eu estava em casa, e sabia que o lugar era perfeito para o canal*MOTOBOY nascer! O nome canal*MOTOBOY já estava na cabeça do artista havia muito tempo. Mas ele esperou pela primeira reunião com os organizadores para nos consultar. Então, pouco mais de um mês antes de abrirmos a exposição, ele chegou ao Brasil, trazendo consigo sua esposa, Glória, e na primeira reunião no CCSP para discutirmos o projeto tive o prazer de conhecer uma das pessoas que mais me influenciaria desde que o projeto nasceu: o motoqueiro Ronaldo. O Ronaldo era o profissional ideal. Aquele que correspondia, em minhas horas de meditação, a única forma de deixar escapar a mente da rotina pesada de motoboy. Ele era autônomo e não tinha patrão. Organizava seu dia a dia, mudava várias vezes suas estratégias para poder atender a todos os seus clientes, usava seu celular para fazer o serviço e ainda tirava ótimas fotos. Imagino que essas características sejam qualidades do profissional do futuro. E esses não são elogios vãos; nas fotos dele


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podíamos ver aquilo que Merleau-Ponty dizia em relação ao movimento do pensamento: uma certa “solidariedade entre o observador e o observado”,20 ou seja, por trás dos seus cliques, havia o pensamento de alguém que sabia a posição que ocupava no espaço da cidade – e essa posição, o Ronaldo nos revelava, é única! O que digo é que não acreditávamos em nossa sorte, já pelas fotos dele víamos que os motoboys proporiam imagens inusitadas da cidade. Mas até aquele momento eu apenas sabia da existência do Ronaldo a partir das fotos que ele enviava para uma página de testes que o Antoni criara em uma de suas viagens ao Brasil, antes de fundarmos o canal*MOTOBOY, quando ele teve a oportunidade de conhecer o Ronaldo. Desde o princípio, tinha uma preocupação de que aquele ponta de lança seria fundamental para haver uma parceria na hora de organizar o grupo de motoboys do projeto, ele deveria ter um caráter forjado nas ruas, com experiência e dedicação de anos e conhecimento das complexas relações da nossa categoria: o Ronaldo tinha tudo isso e, mais que tudo, tinha o carisma necessário para liderar os motoboys e a humildade de reconhecer o grande papel que deveria ser desempenhado dali em diante, representando toda a categoria, como uma pessoa sensata e crítica. Nesse sentido, a categoria teve uma grande sorte em tê-lo como profissional motociclista à frente do canal*MOTOBOY. Vou agora terminando nosso pequeno livro. Deixo ao leitor a curiosidade de saber mais sobre os motoboys, sobre o canal*MOTOBOY e sobre as atividades culturais do nosso Coletivo, que, a partir desse projeto do Antoni Abad, vem realizando diversos projetos com os motoboys. Para isso, deixo também um convite para uma visita ao nosso canal na internet. Lá, todos os dias, o leitor poderá acompanhar 20 Maurice Merleau-Ponty, O olho do espírito.


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a jornada diária de Ronaldo e de todos os motoboys e motogirls, seus companheiros, que enviam flashes ao vivo da cidade, e nessa saga mostram outro lado da metrópole. Dando uma visão aprofundada de pessoas que abrem um tempo em seu dia a dia no trânsito para contar um pouco sobre a realidade em que vivem dentro do espaço urbano. Que dão um tempo em seus afazeres para mostrar seus saberes. Mais importante ainda é que, para a própria existência dessa categoria naquilo que ela tem de mais essencial, na sua própria especificidade, nesse caminho que fizemos, ficou evidente que esses profissionais são mais do que meros mensageiros, são sujeitos de suas próprias histórias, também têm sua própria mensagem. Como aquela que faz de nós, motociclistas, portadores de uma visão única sobre nossa cidade que se abre para um novo tempo. Foi muito difícil chegarmos até aqui. Muito trabalhoso. Tivemos que rodar muitos caminhos, e depois de batermos muita cabeça, descobrimos essa oportunidade, quando juntamos esses motoboys e ex-motoboys escritores que, com muita dedicação e perseverança, contaram um pouco como nasceu essa grande categoria. Justamente porque o que nos une é o desejo de sermos livres. Assim, da clara certeza que brota quando dois motociclistas se encontram e conversam entre si, e trocam experiências, quando cada qual coloca seu capacete e a solidão da mente invade os pensamentos ao mesmo tempo em que cruzam a cidade, esses pensamentos se encontram e realizam a esperança de que, um dia, quando encontrarmos outra forma de organização social do nosso trabalho, realmente todos sejam livres.


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E em nosso site estão todos os registros dessa experiência inusitada na qual vemos simples motoboys transformarem-se em críticos das condições de vida dos motociclistas e das preocupações ambientais, do ponto de vista único que a motocicleta lhes proporciona. Pela manhã fazem suas entregas, à tarde dão entrevistas e palestras, promovem debates e, em breve, vão preparar sozinhos a esperada 2ª Semana de Cultura Motoboy. Realizam paralelamente a isso a expectativa de mostrarem suas capacidades e sua cidadania participativa, o desejo de emancipação que propõem a todos os profissionais do futuro, porque a ele esses motociclistas pertencem.

XXVI De certa forma, na vida algo sempre nos escapa. Caso tenhamos esquecido aqui de citar alguém ou algo, que nos perdoem a imperfeição, mas considerem também o tempo corrido, porque, como vocês sabem, vida de motoboy é correria. E, para finalizar, volto àquilo que estava tão evidente nos versos de Octávio Paz, que eu repetia, na tentativa de decifrar seu enigma, e que parecia mostrar que nem tudo estava acabado; naquele momento em que pensei que minha desistência era definitiva, e nas situações mais difíceis da minha vida, uma força inconsciente me segurava e fazia com que eu não me perdesse no mundo ou enlouquecesse. Assim, minha luta nem mesmo começara, mas já havia, de algum modo, uma última missão. Aliás, sempre haverá: “Sem entender, compreendo: Também sou escritura!”


Imagens: índice e créditos P.19

A gente se vira do jeito que dá foto: Beiço - canal*MOTOBOY

P.25 Manifestação na Avenida Paulista foto: Ronaldo - canal*MOTOBOY P.30-31 Corredor foto: Ronaldo - canal*MOTOBOY P.32-33 Oficina Ação Educativa foto: Acervo canal*MOTOBOY

Dia a dia foto: Beiço - canal*MOTOBOY P.38-39

P.44-45 Cartaz improvisado – 1ª Semana de Cultura Motoboy foto: Beiço - canal*MOTOBOY P.48

Os 12 Trabalhos – Filme de Ricardo Elias foto: Divulgação

Baú foto: Andréa - canal*MOTOBOY P.51

P.54-55

1ª Semana de Cultura Motoboy foto: Neka - canal*MOTOBOY

P.56

Junior 13 foto: Djalma - canal*MOTOBOY

P.62

Reunião foto: Acervo canal*MOTOBOY

P.64-65

1ª Semana de Cultura Motoboy cartaz: Acervo canal*MOTOBOY


P.69 Motoboys e Motogirls foto: Acervo canal*MOTOBOY

Oficina foto: Ronaldo - canal*MOTOBOY P.75

P.78-79 Acidente fatal foto: Ronaldo - canal*MOTOBOY P.84

Zexe.net foto: Acervo canal*MOTOBOY

P.86-87

Recorte do jornal O Estado de São Paulo foto: Acervo canal*MOTOBOY

P.88-89

Recorte do Jornal da Tarde foto: Acervo canal*MOTOBOY

P.94-95

P.97

Incêndio destrói exposição no Centro Cultural São Paulo foto: Antoni Abad - Acervo do artista Entrevista para TV foto: Antoni Abad - Acervo do artista

P.98-99-100

Prêmio Orilaxé – Theatro Municipal do Rio de Janeiro foto: AfroReggae – Divulgação P.106-107 Página do canal*MOTOBOY na Internet imagem sitio: Antoni Abad

P.111

Palavra-chave: água foto: Andréa - canal*MOTOBOY

P.114

Capa de revista – Japão foto: Andréa - Acervo pessoal

P.119 Familia foto: Andréa - Acervo pessoal P.124-125 Rap dos Motoboys vídeo: Acervo do artista P.130-131 Poeta dos Motoboys foto: Acervo do artista P.136 Marginal Tietê imagem: canal*MOTOBOY


P.138

Raio X foto: Fábio Ascempcion - Acervo pessoal

P.145 Janis Joplin fragmento: Jordana - Acervo pessoal p.150-151 Minha vida foto: Jordana - Acervo pessoal p.163

Carteirinha da Biblioteca da USP foto: Neka – Acervo pessoal

P.166 Dia a dia na periferia foto: Baiano – canal*MOTOBOY P.174-175

p.178

p.182

P.199

P.208-209

Com 14 anos, em Ermelindo Matarazzo foto: Neka –Acervo pessoal Futebol de várzea foto: Neka –Acervo pessoal Chuva foto: Ronaldo - canal*MOTOBOY Punks foto: Neka –Acervo pessoal Ácido Plástico/SP zines: Neka - Acervo pessoal

p.218 A náusea – Jean Paul Sartre capa livro: Neka - Acervo pessoal p.229

Painel foto: Edson – canal*MOTOBOY

P.247 Desenho da minha mãe Geni desenho: Neka P.248-249

p.250-251

Amigos na abertura da exposição Gaudi no Sesc Pompéia foto: Neka –Acervo pessoal 1ª manifestação do impeachment do Collor foto: Tutte –Acervo pessoal


p.255

P.268-269

P.278

P.304-305

P.316-317

P.334

Manifestante foto: Tutte –Acervo pessoal Kátia e Neka foto: Kátia Lima – Acervo pessoal Manifestação na Praça do Patriarca – jan/2009 foto: Neka - canal*MOTOBOY 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas foto: Revista Motoboy – Fragmento “Miltinho” desenho: Marcelo Salete Foto pessoal foto: Neka – Acervo pessoal



Sobre o autor Eliezer Muniz dos Santos, o Neka, como é chamado pelos amigos, sempre se interessou por tudo relacionado à cultura de rua. Professor, escritor e curador, exerceu as mais diversas profissões, mas foi como motoboy, entre 1988 e 2002, que descobriu que a liberdade era mais que andar de moto. Encontrou, então, um jeito de ser livre, e deu um tempo no trampo de motoboy para se dedicar aos estudos. Soube, finalmente, que a verdadeira liberdade é compartilhada. Hoje é formado e licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo. À frente do movimento dos motoboys desde os anos 1990, articulou e organizou, na capital paulista, o 1º Fórum Nacional dos Profissionais Motociclistas, que, em 2002, reuniu pela primeira vez todos os sindicalistas do Brasil para discutirem os problemas da categoria. Em 2007, já formado, deixou a política de lado e passou a se dedicar à cultura motoboy. No mesmo ano, foi convidado para a curadoriaadjunta da exposição “Motoboys transmitem de celulares, canal*MOTOBOY”, de Antoni Abad, no Centro Cultural São Paulo. Em 2008, organizou a 1ª Semana de Cultura Motoboy, juntamente com o Coletivo canal*MOTOBOY, que chacoalhou o Centro Cultural Popular da Consolação. Apaixonado por motocicletas desde que se entende por gente, seu grande sonho é ver um dia todos os profissionais motociclistas respeitados em sua liberdade de seguir em frente em busca de seu destino, sem que precisem, para isso, perder a vida no trânsito por conta da pressa do patrão. Hoje leciona Filosofia em uma escola da rede pública na periferia enquanto organiza da 2ª Semana de Cultura Motoboy.


Este livro foi composto em Akkurat. O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m². Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m². Impresso pela Prol Gráfica em maio de 2010. Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha nessa obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro de identificação do próprio contato. A editora está à disposição para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.



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