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EUGÈNE ATGET E CHARLES MARVILLE

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Paradigmas e antecedentes ambientais Biblioteca de Babel


fotografia fotografia de rua; de rua; processo processo catalográfico; catalográfico; narrativas narrativas urbanas. urbanas.

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EUGÈNE ATGET E CHARLES MARVILLE EUGÈNE ATGET E CHARLES MARVILLE


Se para Baudelaire, o artista-repórter Sr. G (Constantin Guys) foi o primeiro Flâneur da Cidade moderna, o fotógrafo Eugène Atget será considerado aqui o primeiro Trapeiro da Cidade moderna. A fotografia revelou um apego inveterado ao lixo, a coisas repugnantes, dejetos, superfícies esfoladas, bugigangas estranhas, kitsch. Assim, Atget especializou-se nas belezas periféricas de veículos estropiados, vitrines vistosas ou fantásticas, na arte brega dos cartazes de lojas e dos carrosséis, ornatos de pórticos, curiosas aldravas de porta e grades de ferro batido, ornamentos de gesso na fachada de casas desmanteladas. O fotógrafo – e o consumidor de fotos – segue os passos do trapeiro, um dos personagens prediletos de Baudelaire. (SONTAG, 2004, p. 93) Quase sempre Atget passou ao largo das <grandes vistas e dos assim chamados lugares característicos>, mas não negligenciou uma grande fila de fôrmas de sapateiro; nem os pátios de Paris, onde da manhã à noite se enfileiram carrinhos de mão; nem as mesas com a louça suja ainda não retirada, como existem aos milhares, na mesma hora; nem o bordel da rua..., o nº 5, algarismo que aparece, gigantesco, em quatro diferentes locais da fachada. Mas curiosamente quase todas essas imagens encontram-se vazias. (BENJAMIN, 2012, p. 108)

Vida Jean-Eugène-Auguste Atget, ou simplesmente Eugète Atget, nasceu no dia 12 de fevereiro de 1857 na cidade de Lisbourne, interior da França, filho de um fabricante de rodas e carroceiro viajante. Logo aos cinco ou seis anos1 ficou órfão de pai e mãe, sendo criado em Bourdeaux pelos avós. Ainda muito jovem foi indicado para o sacerdócio, mas prefere uma vida mais independente e por isso alistou-se como marinheiro em um rebocador à vapor com destino ao Uruguai. Apesar de sempre contar histórias de viagens e trabalhos no mar, aquela foi sua única viagem. De volta a Paris, em 1879, tentou carreira no teatro como ator no Conservatório de Arte Dramática, aprovado apenas na segunda tentativa de seleção. Teve sua formação interrompida pelo serviço militar, onde permaneceu durante quatro anos como cabo, sem nenhuma ascensão de patente. Viveu uma juventude pobre como ator ambulante, na companhia de um grupo teatral que se apresentava de forma mambembe nas vilas e arredores de Paris, onde atuava na maioria das vezes em papéis secundários por conta do sotaque sulista e postura e estrutura corporal retraída.

1 Não existem documentos oficiais para a maioria das informações biográficas de Eugène Atget. O que se sabe foi obtido, a muito custo e pesquisa, pelos biógrafos e estudiosos do fotógrafo, em conversas e entrevistas com colegas, vizinhos, clientes e membros de instituições públicas que conviveram com Atget.

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Desenho mostrando Atget vestindo um figurino de cena. Autor anônimo.


Em 1882 dirige e edita os quatro números da revista humorística “Le Flâneur”, onde publica uma caricatura. Em 1886, ainda no teatro, conhece a atriz Valentine DelafosseCampagnon, com quem se casa logo em seguida e vive até o final da vida. Abandona definitivamente o grupo teatral e o teatro em 1888 e se estabelece num pequeno apartamento no 17bis da Rue Campagne-Premièr, em Montparnasse, no XIVº arrondissement de Paris com a esposa e enteado. Nesse momento tenta algumas vezes ser admitido nas escolas de pintura da cidade, mas é sempre rejeitado. Em 1890 (data da foto ao lado, em que está sentado em uma cadeira num jardim, de autor desconhecido) começa a fotografar, de forma autodidata, produzindo materiais visuais que servem de estudo para pintores e escultores, principalmente árvores, flores e pequenos objetos. Por conta da criação da “Comission du vieux Paris” em 1897, Atget começa a fotografar sistematicamente a cidade. Entre 1898 e 1900 produz duas séries em paralelo: uma delas trata da vida urbana, chamada “Paris pittoresque”; e outra dedicada às paisagens panorâmicas e aos detalhes arquitetônicos, intitulada “Le vieux Paris”. Neste período V. Porcher, editor e impressor, compra 80 imagens do álbum “Petits Métiers de Paris” (uma referência direta às gravuras dos “Les Cris de Paris” [Os gritos de Paris] do século XVIII, principalmente de François Boucher e Edme Bouchardon) e imprime e comercializa em forma de cartões postais. Nesse momento Atget se intitulava “Auteur-Éditeur d’un recueil photographique du vieux Paris” [Autor-Editor de uma recompilação/coleção fotográfica da velha Paris]. A placa indicativa na sua porta apresentava: “Documents pour Artistes” [documentos para artistas]. Tanto a palavra “recueil” quanto a “documents” serão reconsideradas mais adiante. Em 1900 abandona momentaneamente a “Paris pittoresque” e aprofunda-se em uma variação da série “Le Vieux Paris”, a série “L’Art dans le vieux Paris”, fotografando balcões, cercas, portas, aldravas, placas publicitárias das fachadas das lojas. Simultaneamente, entre 1906 e 1915, produz a série “La Topographie du vieux Paris”, sendo supervisionado, mesmo sem ser oficialmente contratado, pelos bibliotecários da Bibliothèque Historique de la ville de Paris. Atget caminha de arrondissement a arrondissement “catalogando” ruas e esquinas antigas, produção fotográfica destinadas às instituições e órgãos municipais de preservação do patrimônio. Retoma a série “Paris pittoresque” em 1910, organizando a antiga e atual produção em seis álbuns temáticos produzidos e costurados manualmente, preparados como portfólio e mostruário para seus clientes.

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Com o advento da Primeira Guerra Mundial, Atget interrompe totalmente sua produção, por conta da morte do enteado e da dificuldade de conseguir materiais e insumos fotográficos. Entre 1921 e 1925 Atget conhece e se relaciona com os vizinhos Man Ray, Giorgio de Chirico e Berenice Abbott, membros do futuro grupo dos Surrealistas, que compram seis ou dez ampliações que são publicadas em 1926, sem menção da autoria, na revista “La Révolution Surréaliste”. Em 1927 Berenice Abbott, jovem fotógrafa americana que estudava em Paris e trabalhava como assistente de Man Ray, fotografa o velho fotógrafo e compra dele 1.797 clichês, que são levadas aos Estados Unidos e posteriormente revendidas, juntamente com 10.000 ampliações feitas por Atget, para o acervo do Museum of Modern Art de Nova York em 1968.


Eugène Atget, por Berenice Abbott, 1927.

Valentine morre no final de 1926 e Atget no dia 4 de agosto de 1927, alguns meses depois da sessão de fotos de Abbott. Campo de referências Metodológicas Os trabalhos de Atget e Proust são, na França, os dois últimos grandes esforços para alcançar uma totalidade não no sentido de uma obra de arte total, mas numa exploração total de um mundo. Éric Hazan (AUBENAS, LE GALL, 2007, p. 10)

Placas e letreiros pintados em tábuas de madeira penduradas por correntes foram substituídos por grandes painéis metálicos e luminosos; pequenas vitrines segmentadas

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Atget fotografou Paris durante 30 anos. Fotografou a cidade ícone da virada do século XIX para o XX. Fez mais de 10.000 registros de um território urbano em exponencial transformação, modernização. O fotógrafo presenciou, com sua lenta e também com seu corpo, mudanças não só dos espaços físicos urbano e privado, mas nas relações humanas, comerciais, políticas e culturais resultado da crescente industrialização, automatização do trabalho, avanços tecnológicos e científicos, novas formulações do consumo. A Paris medieval, “chacoalhada” pelas obras recentes do Barão Haussmann, começava a sentir os “benefícios” do novo. Os parisienses estavam fascinados pelo novo. O interesse geral estava nos grandes, arejados, limpos, iluminados boulevards haussmanianos e nas novas, brilhantes, sedutoras, completas lojas de departamentos em imóveis reformados que ocupavam quadras inteiras da cidade. A modernização da cidade conquistava, convencia, hipnotizava. E no seu movimento, muitas vezes avassalador – literalmente, ia deixando pelo caminho um rastro de escombros, resíduos, restos, inconveniências, inutilidades. Tudo o que pudesse atrapalhar, atrasar, dificultar tal movimento era rejeitado, menosprezado, abandonado à própria sorte, desprotegido e desamparado para definhar e desaparecer na sua “insignificante” existência.


e abarrotadas indistintamente com produtos perderam os olhares para as grandes vitrines envidraçadas e transparentes com constantes novos produtos destacados; esquinas, vielas, pátios internos insalubres, sombrios e pouco funcionais perante a nova velocidade da cidade foram demolidos ou “esgarçados” para dar lugar a novas, largas, ensolaradas, higiênicas ruas; balcões, escadas, lambris, aldravas (alças de ferro pesadas para bater nas portas como campainhas), maçanetas de um estilo “fora da moda” foram trocados por elementos “da moda”, mais leves, mais funcionais; os veículos puxados por tração animal, lentos, “fedorentos” e “irracionais” foram atropelados pelos novos, velozes e confortáveis bondes elétricos e carros movidos à motor de combustão; os pequenos trabalhos, vendedores ambulantes com seus produtos à venda na rua, teatros de marionete, barracas de feira, as “velhas” prostitutas... todos esquecidos e rejeitados pelo consumidor seduzido pelo novo, rápido, eficiente produto/serviço moderno. Atget poderia ter acompanhado esse movimento modernizador que seduzia a maioria, mas preferiu manter a baixa velocidade, ou mesmo ficar parado, vendo o que ficava para trás, o que era rejeitado. Talvez, e ressalto aqui o “talvez”, Atget tenha se identificado com essa “categoria”, com os rejeitados. Talvez por ele ser também um rejeitado, um reincidente fracassado. Talvez visse ali um reflexo de si. Talvez sentisse a necessidade de dar valor àqueles trapos de modernização, por simples transferência da sua condição àqueles objetos e pessoas. Talvez... Ou talvez não. Talvez tivesse sido mera conveniência, proximidade, inércia. Talvez... Pouco importa... o que importa é que Atget o fez. Provavelmente o primeiro “ser moderno”, ou que presenciou o nascer da modernidade, que tinha perante si uma máquina fotográfica e registrou aqueles elementos deixados para trás, aqueles trapos. Certamente não o primeiro a perceber esses trapos e registrá-los, pois temos, por exemplo, Baron Taylor (1820-1878) com suas litografias, Adolphe Martial Potémont (1827-1883) com suas gravuras em metal, Hippolyte Bayard (1801-1887) fotografando as obras do “prefeito” parisiense Rambuteau para uma “Nova Paris”, com andaimes, escombros e novas ruas sendo abertas, Charles Nègre (1820-1880) e as fotografias da île St. Louis entre 1851 e 1854, especialmente dos Petits Métiers, Henri Le Secq (1818-1882) e as fotografias de casas em demolição, das gárgulas e torres da Notre-Dame, e também Charles Marville (1813-1879) o fotógrafo oficial do prefeito Barão Haussmann (que veremos adiante). Mas Atget foi o primeiro fotógrafo moderno a reconhecer, recolher e colecionar os “dejetos” da modernização da cidade, da sociedade, da vida. Eugène Atget foi “o” Trapeiro, talvez o primeiro.

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Atget caminhava pela cidade e se locomovia de bonde e metrô sempre carregando seu pesado equipamento, obsoleto e ultrapassado tecnologicamente, (máquina, lentes, tripé de madeira, caixa com vários clichês de vidro de 18x24 cm preparados) que ultrapassavam os 20 quilogramas. Normalmente fazia os disparos fotográficos no começo da manhã, por conta da luz mais suave e da pouca movimentação nas ruas, que atrapalharia e obstruiria partes do elemento a ser registrado. As fotos foram feitas, na sua grande maioria, de um ângulo um pouco mais baixo que o usual (máquina na altura do peito do fotógrafo), porque Atget sentava em sua caixa de equipamentos enquanto fotografava. Ou seja, todo o processo de escolha do tema, de deslocamento pela cidade, de preparação do equipamento, de absorção de luz para efetivação dos disparos fotográficos, era bastante demorado. Demandava tempo. Tempo de ir e de ficar. Tempo de perceber e de registrar. Tempo.


O primeiro detalhe do procedimento metodológico de “exploração de um mundo”, dos trapos, estabelecido pelo Trapeiro Atget é o tempo despendido, é a solicitação à presença e atuação do corpo, é a lentidão, é a paciência. O que faz o trabalho de Eugène Atget ser único não é nem o apelo pictórico de suas imagens de uma Paris desaparecida, nem sua maestria técnica, grande mesmo assim: em ambos os casos ele foi superado por outros fotógrafos, antes e depois dele. A grande conquista de Atget é a sua construção metodológica de um universo totalmente particular. (BEAUMONT-MAILLET, 2000)

Atget caminha pela cidade como o trapeiro: lentamente observando – como o trapeiro e sua lanterna –, revirando os instantes “esquecidos” e as sobras da modernização, capturando-as em longas exposições dos clichês à luz suave da manhã – assim como o trapeiro utiliza seu gancho – e carregando nos ombros o pesado resultado de um longo período de coleta, nas horas em que os outros ainda descansam e se preparam para o vindouro dia produtivo – repetindo o trapeiro e seu saco/cesto preso às costas. Chegando em casa, no estúdio sem muita estrutura – assim como o trapeiro em seu barraco – Atget dava continuidade à “construção metodológica” com o procedimento do Trapeiro-Colecionador. De acordo com suas aquisições fotográficas Atget criou listas catalográficas, séries e álbuns estabelecidos a partir de critérios temáticos específicos decorrentes do tipo de objeto fotografado: Atget os colecionava. As fotografias dos objetos (entendidos num amplo sentido) não eram simples registros, eram itens de uma coleção. Intenção catalográfica e colecionadora que fica evidente e é explicitada pelo próprio fotógrafo quando escreve, em 12 de novembro de 1920, uma carta endereçada a Paul Léon, então diretor da secretaria de estado de Beaux Arts (uma espécie de departamento governamental que trata da preservação do patrimônio e da cultura), oferecendo seu arquivo: Senhor,

Essa enorme coleção, artística e documental, está concluída. Posso dizer que tenho toda a Velha Paris. Caminhando à velhice, ou seja, em direção aos 70 anos de idade, sem ter nenhum herdeiro ou sucessor, estou ansioso e preocupado com o futuro desta bela coleção de clichês que podem cair nas mãos de um desconhecedor de seu valor e, finalmente, desaparecer sem beneficiar ninguém. Eu ficaria muito feliz, senhor Diretor, se você pudesse se interessar por esta coleção. Naturalmente, você não pode considerar a minha oferta sem qualquer referência ou informação sobre minhas coleções e a minha pessoa. Como informação: eu vendi minha coleção inteira de testes 18 x 24 para o museu de esculturas do Musée Trocadéro. Vendi todo o melhor de “pittoresque”, ruas antigas, velhas esquinas, ao Sr. Courboin, curador do gabinete de gravuras da Biblioteca Nacional, vendi toda coleção “Architecture et

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Tenho recolhido por mais de vinte anos, por meu trabalho e iniciativa individuais, por todas as velhas ruas da antiga Paris, clichês fotográficos, formato 18 x 24, documentos artísticos da bela arquitetura cívica dos séculos XVI ao XIX: os velhos alojamentos, casarões, casas históricas ou curiosas, as belas fachadas, belas portas, belos entalhes, as aldravas, fontes antigas, escadarias de estilo (madeira e ferro fundido); os interiores de todas as igrejas de Paris (conjunto e detalhes artísticos: Notre-Dame, St. Gervais et Protais, St. Séverin, St. Julien le Pauvre, St. Étienne Du Mont, St. Roch, St. Nicolas du Chardonnet, etc, etc).


Ornaments” para a Grande Biblioteca de Londres, Board of Education [na realidade o Victoria & Albert Museum e a Biblioteca Britânica] e, fragmentos da coleção à Biblioteca de Belas Artes, à Biblioteca de Artes Decorativas e ao Sr. André Michel, curador do Louvre. Finalmente, deixo à disposição, senhor Diretor, após uma simples palavra sua, minhas referências sobre a Velha Paris e todas as explicações que o senhor tiver o prazer de perguntar. Peço-lhe, senhor Diretor, que receba minhas saudações mais respeitosas2. E. Atget (AUBENAS, LE GALL, 2007, p. 40, tradução e grifos do autor)

Atget refere-se à sua produção fotográfica utilizando a palavra “coleção” por sete vezes na carta. Uma ideia que aqui se refere a duas realidades: uma delas são os clichês fotográficos propriamente ditos (“os negativos”), naturalmente únicos e insubstituíveis; a outra, mais significativa para nossa argumentação, são os objetos acumulados por meio da fotografia (fachadas, portas, fontes, etc.) e reunidos em forma de séries temáticas. Dinâmica consciente reforçada pela frase “eu tenho toda a Velha Paris”, postura típica de acumulação e de domínio que caracteriza um colecionador e sua coleção. Para Guillaume Le Gall (2007), um dos pesquisadores contemporâneos de Atget e responsável pela reoxigenação das leituras de suas fotos, Atget foi um “Flâneur-arqueólogo e colecionador” (leia-se Trapeiro-Colecionador). Le Gall (2007) chama-o de arqueólogo seguindo o raciocínio da linhagem de antiquários, eruditos e arqueólogos do século XIX, para quem o estudo e o conhecimento de algum objeto se concretiza, com máxima segurança, pelos atos da enunciação, acumulação, numeração e sobreposição, ou seja, uma coleção3. O pesquisador dá continuidade dizendo (2007, p. 40) “Ao assumir uma coleção por meio do registro/representação fotográfico, Atget transforma um objeto material – um monumento – em um documento figurado/gráfico.” Pois, para o arqueólogo, a representação dos objetos/documentos originais é mais importante do que possuir o próprio original. Atget, ao fotografar os objetos e as situações urbanas ordinárias, executa uma ação colecionadora, ou uma “operação técnica” como anuncia Michel de Certeau ao refletir sobre nosso processo de registro e manutenção da história. Para este autor, um de nossos figurões, o ato de colecionar é uma “operação técnica” que consiste em “fazer objetos: copiar, associar, classificar”. (CERTEAU, 1982) Copiar considerado por ele como “Le geste de mettre à part” [O movimento de separar]. Ou seja, a retirada do objeto colecionado de seu lugar e status originais, resgatando-o, reproduzindo-o, transcrevendo-o ou, no nosso caso, fotografando-o. A transformação do assunto fotografado (seja ele um objeto, uma cena, um personagem urbano, um detalhe arquitetônico, uma paisagem) em documento, em item da coleção.

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A descrição e a enumeração das características do objeto [neste caso via documentação fotográfica] ajudam, dão instrumento lógico e capacitam o colecionador a ordenar e classificar as séries de objetos, a princípio completamente distintos uns dos outros. Alain Schnapp (AUBENAS, LE GALL, 2007, p. 41)

2 Em resposta a esta carta, o Sr. Diretor autorizou à secretaria adquirir, por 10.000 francos, um total de 2.126 clichês fotográficos de Atget. 3 Em uma carta enviada ao Victoria & Albert Museum, na ocasião da transação de clichês e ampliações em 1912, Atget acrescenta uma lista detalhada dos objetos acumulados através das fotografias.


As fotografias dos “assuntos” rejeitados pela passagem da modernização na cidade de Paris, acumuladas e colecionadas por Atget são então, dentro de um perfeito movimento catalográfico, ordenados e classificados. De acordo com estudos aprofundados da historiadora norte-americana Maria Morris Hambourg, analisando detalhadamente os cadernos, agendas e anotações de Atget que foram preservadas, o fotógrafo possuía um método preciso para organizar, ordenar, manipular e revisitar sua grande coleção: 1. Separação das imagens por assuntos, acarretando a definição e organização de séries, dentro das quais Atget ordena as fotografias pela data e hora do disparo (algumas são separadas inclusive pelas estações do ano) e numera cada clichê e ampliação nessa sequência; 2. Atget estabelece, com isso, 5 principais séries: Paysages-Documents [PaisagensDocumentos]; Paris pittoresque [Paris pitoresca]; Environs [Entornos/Margens]; Art dans le vieux Paris [Arte na velha Paris]; Topographie du vieux Paris [Topografia da velha Paris]. 3. No interior dessas grandes séries Atget organiza sub-séries: A série “Paysages-Documents”, por exemplo, tem dentre as sub-séries: a intitulada “Intérieurs” [Interiores]; a sub-série “Saint-Cloud” [Saint-Cloud] e também a “Versailles” [Versailles]. Já na série “Topographie...” temos uma sub-série intitulada “Tuileries” [Tuileries] e várias outras exclusivas das ruas de cada um dos arrondissement. Há também as sub-séries “independentes”: “Les Parcs parisiens” [Os Parques parisienses] e “Sceaux” [Sceaux], por exemplo. 4. Atget, então, cruzava as séries e reorganizava as fotografias em álbuns temáticos, confeccionados artesanalmente: pátios, detalhes decorativos, fortificações, interiores, aldravas, etc. No final dos álbuns, e às vezes no canto das páginas, indicava cuidadosamente os dados de seus clientes, com nomes e endereços dos artistas, artesãos, decoradores, ilustradores, arquitetos, colecionadores, editores e outros potenciais compradores que se interessariam por cada imagem, inclusive anotando os preços que deveria pedir por cada uma delas. Alguns dos títulos dos álbuns: “L’Art dans le vieux Paris” [A Arte na velha Paris]; “Intérieurs parisiens” [Interiores parisienses]; “La Voiture à Paris” [O Veículo em Paris]; “Métiers, boutiques et étalages de Paris” [Trabalhos, lojas e mostruários de rua de Paris]; “Zoniers” [Moradores da “Zone”]; “Fortifications de Paris” [Fortificações de Paris]. 5. Os álbuns eram organizados de duas formas: álbuns de “referência”, com temas mais abrangentes, e outros menores e melhores encadernados e editados para provavelmente serem publicados posteriormente. Campo de referências Iconográficas Seria impossível reproduzir aqui todo o acervo da coleção de Atget, por isso apresentaremos apenas algumas imagens que podem servir como “isca” e fio condutor para uma busca posterior mais interessada, principalmente, como sugestão e indicação, na boa amostra das imagens de Atget se que encontram no acervo digital Galica, da Biblioteca Nacional Francesa (BnF), especialmente no endereço http://expositions.bnf.fr/ atget/index.htm

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Vale ressaltar que todos os títulos das fotografias foram dadas por Atget. Os nomes de alguns edifícios fotografados já não são mais os atuais.


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Marchand d’utensiles de mÊnage, 1899


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Magasin, avenue des Gobelins, 1925


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Marchand de nougats, 1900


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Boutique Journaux, Rue de Sèvres, 1910–11


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Cour de Rouen, 1915


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Au Tambour, 63 quai de la Tournelle, 1908


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Rue Laplace and Rue Valette, 1926


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Chiffonnier dans la Avenue des Gobelins, 1900


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Joueur d’Orgue, c. 1898-99


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Place Saint-MĂŠdard, 1900


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Heurtoir, 18 rue du Cherche Midi, HĂ´tel Commines-de-Marsilly


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Coin rue de Seine, 6eme, c. 1924


Intérieur de M. F., négociant, rue Montaigne ; la cuisine, 1910

Petite boutique fruits, 124 rue Mouffetard, 1910

La Bièvre, passage Moret, 1900

Intérieur de Mademoiselle Sorel, de la Comédie-Française, 99 avenue des Champs-Elysées, 1910

Boutique, 63 rue de Sèvres, 19101911

Rue Galande, 1899

Algumas considerações dignas de nota sobre as fotografias • “Ambos [Busoni e Atget] eram virtuosos e ao mesmo tempo precursores, têm em comum um modo incomparável de abrir-se às coisas com o máximo de precisão. (...) Atget foi um ator que, descontente com sua profissão, retirou a máscara, para então dedicar-se a, igualmente, desmascarar a realidade.” (BENJAMIN, 2012, p. 107) • “As fotos que tiro são simples documentos.” Eugène Atget. • “Esses lugares [vazios] não são solitários, e sim privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou locatários.” (BENJAMIN, 2012, p. 109)

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• Atget estava mais preocupado, diferente dos outros fotógrafos, com o enquadramento do que com os efeitos de suavização do foco, tão na moda naquele momento; por exemplo, nas imagens do álbum “Petits Métiers de Paris” o fundo e o cenário ficam borrados ou desaparecem, e nas diversas cenas urbanas das ruas, pátios, becos, os elementos narrativos desvanecem, dando preferência para a arquitetura e as decorações da cidade antiga. • As fotos de Atget devem ser vistas sempre referenciadas pelas solicitações dos clientes: Para solicitações de órgãos públicos, os “sujeitos” são objetos específicos, em close-up, sem obstruções visuais. Já para os pintores e demais artistas, arquitetos e colecionadores, eram coletadas imagens a partir de pedidos mais heterodoxos e particulares aos seus interesses de utilidade e temática. Alguns dos artistas clientes de Atget: André Derain, Léonard Foujita, Maurice de Vlaminck, Maurice Utrillo, Moïse Kisling, André Dunoyer de Segonzac, André Dignimont (quem solicitou a série de fotografias das prostitutas do XIXº arr.), Édouard Detaille, Luc Olivier Merson, Robert Delaunay e Georges Braque. As fotografias dos trapeiros (principalmente aquelas feitas na “Zone”) e demais “dejetos” urbanos nunca foram vendidas a nenhum cliente. • Três curiosidades compositivas: o álbum “Petits Métiers de Paris” mostra os corpos e os produtos, muitas vezes sobre o próprio corpo, dos ambulantes e vendedores de


rua (fotografados inicialmente na Place Saint-Médard); as fotografias dos quiosques dão a eles uma aparente transformação antropomórfica, “reproduzindo” os corpos cobertos de produtos dos “petits métiers”; o álbum “Métiers, boutiques et étalages de Paris” tenciona e borra os limites entre interior e exterior com as mesas e mostruários de frutas e outros produtos invadindo as calçadas, ou então as transparências e reflexos nas velhas vitrines das lojas. • “As fotos parisienses de Atget são de fato as precursoras da fotografia surrealista, a vanguarda do único destacamento verdadeiramente expressivo que o Surrealismo conseguiu pôr em marcha. Ele foi o primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional. (...) Ele purifica essa atmosfera, ou mesmo a liquida: começa a libertar o objeto da sua aura, o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica.” (BENJAMIN, 2012, p. 107) • O interesse dos Surrealistas pelas fotografias de Atget é evidenciado quando interpretase tais imagens com uma representação do onírico no cotidiano, da imaginação coexistindo com a realidade – inquietações fundamentais daquela vanguarda artística de começo de século XX. Basta considerarmos as imagens de ruas vazias, fachadas impenetráveis, claraboias abertas, janelas abertas para locais sombrios, interiores incompreensíveis, objetos destacados que ganham uma densidade de desuso, numa estranha presença, do cotidiano ao cotidiano, passando pelo onírico e surreal, numa fantástica dialética de uma técnica do século XIX com um olhar estético do século XX. Um entorno diário sem embelezamento e realidade cotidiana apresentado sem ressaltá-lo. Uma aparência de sonho vivido. • “Atget é um maníaco, um caminhante solitário que colecionava visadas como peças de museu.” Waldemar George, Revista Arts et Métiers Graphiques, 1930. (AUBENAS, LE GALL, 2007, p. 47) Aproveitando a alegoria do Trapeiro Como consideramos aqui Eugène Atget o primeiro Trapeiro da cidade moderna, aproveitaremos a alegoria para reforçá-la com outra alegoria. O trapeiro sempre teve que disputar os restos da cidade em processo de modernização com um rival, um outro oponente também interessado naqueles restos abandonados. Não estou falando de outro trapeiro, pois nos manteríamos na mesma categoria. O trapeiro tem como oposto extremo outro personagem urbano, um “oficial”, “institucional”: o gari urbano. Enquanto este elimina os restos indesejados, o outro se apropria deles, resignificando-os.

Sim, Atget compartilhava temáticas e cenários com Marville. Mas enquanto o primeiro se dedicava a recolher e colecionar os rastros da modernização parisiense como forma de reflexão e memória, o segundo apenas registrava, institucionalizava, financiado pelo próprio Barão Hausmann, as transformações da cidade como forma de propaganda e documentação progressistas.

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Tendo essa alegoria em mente, é possível encontrar essa “oposição” em Atget: ao lado dele, muitas vezes considerados “irmãos”, personagens da história da fotografia que produziram obras semelhantes em tempos um pouco distintos (40 anos), temos Charles Marville. Mas, se analisarmos rapidamente a vida e obra deste último, veremos que a semelhança é aparente. Assim como o trapeiro e o gari, as ações se confundem mas são essencialmente opostas.


CHARLES MARVILLE Nascido Charles Bossu (trocou por Marville em 1832), no dia 17 de julho de 1813 (44 anos mais velho que Atget), filho de pai alfaiate e mãe lavadeira, vive uma infância com bastante conforto por conta da grande expansão dos negócios familiares de comercialização de tecidos e aviamentos. Foi dispensado do exército por uma má formação do estômago. Em 1838 entra no L’Athénée de Beaux-Arts [Ateneu de Belas Artes] para estudar pintura e ilustração. Desde então trabalha com editores ilustrando, com xilogravura, livros e produzindo letras capitulares e ornamentos de página. É convidado como gravurista para a revista L’Illustration, mas a invenção do Daguerreótipo acaba retirando trabalhos dos gravuristas. Casa-se, não legalmente, em 1843 com a suíça Jeanne Louise Leuba e nunca tiveram filhos. Tenta inscrever alguns quadros de pintura nos salões de arte, mas nunca foi selecionado. Troca a xilogravura pela litografia, e produz uma série de retratos de exilados da revolta de 1848. Em 1850 torna-se fotógrafo já utilizando o negativo “calotype”. No ano seguinte começa a trabalha como fotógrafo do Musée du Louvre. Quando Napoleão III assume o poder, chama Marville para fotografar a cerimônia, o casamento imperial e o batismo dos seus filhos. Tendo prestígio por conta da admiração do imperador, Marville, como fotógrafo do Louvre, documentou coleções inteiras de desenhos, esculturas e pinturas. Inclusive vai à Itália para fotografar novas e possíveis aquisições do museu francês. Por fim, é contratado como “fotógrafo da cidade de Paris” no período da “gestão” do Barão Haussmann. Sua produção pode ser dividida em cinco grandes categorias organizadas pelo fotógrafo, mas sem nenhum cuidado com catalogações, organizações, ordenações ou qualquer outro procedimento que possa assemelhar sua intenção a de um colecionador. Raramente datava seus negativos ou registrava qualquer ação ocorrida durante as saídas para documentação. Os 5 grandes “álbuns” são: • Les Calotypes [Os calótipos (tipo de processo de sensibilização química dos primeiros negativos inventados por William Fox Talbot)]: Fotografias panorâmicas e generalistas, apresentam a cidade, à distância, sempre próximas ao rio Sena.

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• Les Monuments [Os Monumentos]: Grandes fontes, catedrais, igrejas, edifícios sede das Mairies [espécie de prefeitura] dos recém-criados vinte arrondissements, ruínas e reconstrução do Hôtel de Ville após o grande incêndio de 1871, colunas monumentais, o novo palácio da justiça, o novo tribunal de comércio, novas cadeias, escolas, liceus, pavilhões de marcados, a construção da Ópera de Garnier, edifícios de teatros, o pavilhão da exposição universal de 1878. Todos registrados com fotografias neutras, clássicas, institucionalizadas. O vazio humano é requisito técnico e funcional, mas quando o ser humano está presente, está longe, e serve apenas de escala humana. • Les Espaces Verts [Os Espaços Verdes]: À pedido de Napoleão III, que queria uma Paris mais arejada e com a presença “romântica” da natureza exatamente como Londres,


Haussmann sistematiza um “plano urbano” e cria vários parques e praças em diversas escalas hierárquicas e os “distribui” pelas regiões da cidade. Para documentar tais paisagens verdes em formação ou consolidação, reformuladas e novas, foram detalhadamente fotografados por Marville. • Le Mobilier Urbain [O Mobiliário Urbano]: A nova cidade, moderna, precisa fornecer “serviços” urbanos modernos, funcionais e práticos. O mobiliário urbano projetado vem para suprir essa necessidade. E Marville registra todos, sem exceção, como uma lista: Postes de luz alimentados à gás; arandelas e colunas de luz urbana; mictórios públicos (os famosos Vespasiennes); abrigos e pontos de bonde; quiosques e bancas; as famosas colunas Morris; placas e painéis informativos; fontes e chafarizes.

Urinoir système Jennings, Plateau de L’Ambigu, c. 1865

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• Les Rues [As Ruas]: Os órgãos públicos responsáveis pela execução dos projetos modernizadores de Haussmann solicitam a Marville que documentasse – durante 1865 e 1868 – os edifícios que seriam demolidos para a modernização da cidade, principalmente para a abertura das novas ruas e dos Grands Boulevards que cruzam estrategicamente toda a cidade. Existem nesse “álbum” algumas imagens, essas datadas pelo fotógrafo com a indicação 1877, mostrando as renovações daqueles locais fotografados há 10 anos.


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Les Halles centrales, 1867

Place Sainte-Geneviève et Êglise St. Etienne du Mont, c. 1865-69


Rue de Constantine (4eme Arrondissement), 1866

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Rue Soufflot, c. 1853–70


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Rue de Tilsitt, vers l’avenue de Wagram, 8 eme, c. 1877

Rue Champlain, 20eme Arrondissement, 1877–78


HĂ´tel de Ville, 1871

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Boulevard Henri IV, Bastille, s/d


Dando um passo atrás, olhando além de Atget Deste momento em que estamos até a produção de narrativa da cidade desenvolvida pelo fotógrafo-trapeiro já se passaram mais de um século. Muitas outras narrativas de cidade, muitos outros fotógrafos de rua já as produziram após Atget. Antes dele também. Claro que não com a especificidade e peculiaridade que o transformaram aqui no Trapeirocolecionador. Tirando esse grande detalhe, o fotógrafo francês não foi o único, nem o primeiro, nem o último a fotografar a cidade com algum interesse além do puro registro. Ele faz parte de um conjunto de fotógrafos de rua, da história da fotografia de rua. É verdade que Atget está destacado nesta tese – pelos motivos e justificativas apresentados anteriormente – mas não podemos negar e desconsiderar esse conjunto, essa história, essa linha do tempo. Tentativa de “linha do tempo” dos fotógrafos de rua, narradores do espaço público, morada do outro Linha sem um começo nem um fim registrados aqui, foi elaborada com a pontuação e ordenação no tempo de fotógrafos que têm a cidade e a rua como elementos de registro e narrativa. Mas estas duas ações, pontuação e ordenação, foram construídas a partir de coletas despretensiosas, mas interessadas, daqueles elementos enquanto outros assuntos e questões dessa tese eram estudados. Assim como o Trapeiro-colecionador, os fotógrafos de rua foram recolhidos, acumulados e colecionados. Por se tratar de uma coleção de elementos, trapos, recolhidos durante outros percursos, a linha não é inteira e muito menos completa. Ela apresenta lacunas, como toda coleção, como toda história, afinal. Não espere, portanto, encontrar a história da fotografia de rua retratada nessa linha. Não “a” história, mas certamente “uma” história. Uma que me afetou, me provocou, me fez querer recolher tais fragmentos, tais trapos.

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Dessa coleção de objetos (fotógrafos de rua) organiza-se a linha do tempo, onde são, então, ordenados de acordo com o critério estruturador da própria intenção: o tempo. Mas qual tempo? Do fotógrafo (nascimento e morte)? Da sua produção? Esta linha, por ser parcial e interessada, foi estruturada, portanto, a partir de um ponto específico: a produção e a figura de Eugène Atget. Mas, ao debruçarmo-nos sobre a sua vida e obra – o que também aconteceria se debruçássemo-nos sobre qualquer conjunto de obra de um fotógrafo, ou mesmo de um artista – tive uma grande dificuldade de reduzir sua obra a um ponto a ser inserido na pretendida linha do tempo. Afinal, a obra de um fotógrafo é um conjunto, um coletivo de elementos já dispostos no tempo, questão que tornaria a execução e leitura dessa linha do tempo bastante mais complexa e hercúlea quando aplicada a mesma lógica na inserção do conjunto de obras daqueles outros fotógrafos “recolhidos”. A alternativa evidente a ser tomada para sanar essa questão seria a escolha de uma imagem síntese que representasse todo o conjunto da obra de Atget e de todos os outros “recolhidos” e posicionados antes e depois dele. Da obra de Atget, que foi estudada acima, essa escolha não seria de todo complexa, mas, e a escolha da imagem síntese de todos os outros fotógrafos? O conjunto de obra de cada um deles teria que ser devidamente investigado para se ter condições de fazer tal escolha. Outra tarefa hercúlea e impossível considerando a temática e os objetivos dessa tese, que não é “a” história da fotografia de rua, mas “passa” pela história da fotografia de rua.


A decisão tomada perante esse impasse, sem desistir da elaboração da pretendida linha, é um movimento típico de um colecionador que contempla sua coleção: remover os objetos colecionados de sua posição funcional no mundo, dando-lhes outro caráter, estabelecendolhes outro valor. Decidi, então, escolher a imagem que fez com que Atget fosse convidado e destacado nessa tese: a fotografia do trapeiro em frente à sua carroça na Avenue des Gobelins, feita na manhã de um dia do ano de 1900. Essa foto se torna o ponto de partida para a execução da linha do tempo, ela será a representante da obra de Atget. Ela que carregará a estratégia de ordenação da linha do tempo. Com um detalhe: ela é inserida na linha exatamente no ano de 1900, mas como já mencionei anteriormente, não tenho condições de fazer essa mesma escolha para todos os outros fotógrafos “colecionados”, então decido olhar para essa data e dar-lhe um outro valor, um outro sentido. Explico: considero o ano de 1900 na vida do fotógrafo, ou seja, Atget tinha 43 anos quando fez este registro. Portanto, o critério para a inserção de todos os demais fotógrafos-trapos na linha do tempo será o ano de seus respectivos 43º aniversários, liberando a escolha da imagem fotográfica ou qualquer outro elemento de suas obras da necessidade de serem aprofundadas, fundamentadas e justificadas. Os fotógrafos-trapos, mesmo assim, serão representados, numa intenção indiciária, por uma de suas fotografias que compõem meu acervo, minha coleção. As escolhas dessas imagens, reforço, não são fundamentadas em estudos aprofundados da obra de seus autores, mas sim baseadas em critérios ilustrativos de um colecionador.

1844

Hippolyte Bayard (1801-1887) Les Moulins de Montmartre, 1839

1856

Charles Marville (1813-1879) Urinoir en ardoise à 3 stalles, s/d

1861

Henri Le Secq (1818-1882) Tour Saint Jacques, 1853

1863

1880

John Thomson (1837-1921) The Temperance Sweep, 1887-8

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Charles Nègre (1820-1880) Petit chiffonnier, 1851


1886

Marc Ferrez (1843-1923) O amolador, Rio de Janeiro, 1899

1900

Eugène Atget (1857-1927) Chiffonnier dans la Avenue des Gobelins, 1900

Alfred Stieglitz (1864-1946) The Terminal, 1892

1904

Eugene de Salignac (1861-1943) A one-legged newspaper boy and other newsies, 1906

1907

Paul Martin (1864-1944) A porter at Billingsgate Market, 1893

1908

Vincenzo Pastore (1865-1918) Vendedor de vassouras em rua do centro da cidade, 1910

1912

Arnold Genthe (1869-1942) The Toy Peddler, Chinatown, San Francisco, 1896-1906

1920

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Klass (Claro) Gustav Jansson (1877-1954) Rua 15 de novembro em direção à Sé, 1914

1933

Paul Strand (1890-1976) Wall Street, 1915


1937

André Kertész (1894-1985) Meudon, 1928

1941

Berenice Abbott (1898-1991) Hotdog man Ney York, 1936

1942

George Brassaï (1899-1984) sem título, série Paris de Nuit, 1938

1944

Lisette Model (1901-1983) sem título, série New York, s/d

1945

Pierre Verger (1902-1996) sem título, série Mestre Vitalino, 1947

1946

Walker Evans (1903-1975) sem título, série Subway Portrait, 1938-40

1955

Robert Doisneau (1912-1994) Un petit endroit discret, 1953

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1951

Henri Cartier-Bresson (1908-2004) Rue de Cléry, Paris, 1952


1963

1966

Alice Brill (1920-2013) Vendedor de balões em feira livre, 1953

Diane Arbus (1923-1971) Woman with White gloves and a pocketbook, 1956

1967

Jerome Liebling (1924-2011) sem título, série London, s/d

1969

Vivian Maier (1926-2009) sem título, s/d

1971

Garry Winogrand (1928-1984) sem título, 1970

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1977

Lee Friedlander (1934) sem título, série Reflections, s/d


1981

Joel Meyerrowitz (1938) New York street, 1964

1983

Vito Acconci (1940) Blinks, nov. 23, 1969, afternoon, Greenwich Street, 1969

1986

Mark Cohen (1943) Flashed white socks and shadows, s/d

1987

Cristiano Mascaro (1944) São Vito, série Luzes da Cidade, 2003

1990

Mario Cravo Neto (1947-2009) sem título, 1960

1992

1996

Manolo Laguillo (1953) Industrial x Padre Claret, Barcelona, 2011

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John Davies (1949) Stockport viaduct, 1986


1997

Pelle Cass (1954) sem título, série Selected People, 2008

Bob Wolfenson (1954) SP*01, série Anti-fachada, 2003

1998 Thomas Struth (1954) sem título, 1970

Peter Turnley (1955) Brasserie de l’Isle Saint-Louis, série Love Letter to Paris, 1993

2005

Nelson Kon (1962) Ruínas da Barra Funda, 1997

2017

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Tuca Vieira (1974) 008 Jardim Francisco Mendes São Paulo, série Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e seus arredores, 2016

2020

Edson Chagas (1977) sem título, Luanda, série Found, not taken, 2013

Peter Funch (1974) Posing Posers, série Babel Tales, 2006


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