A2_5 | um catálogo de coisas: jacques carelman

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UM CATĂ LOGO DE COISAS: JACQUES CARELMAN

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Paradigmas e antecedentes ambientais Biblioteca de Babel


inutilidade; inutilidade; método método catalográfico; catalográfico; índice. índice.

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UMUM CATÁLOGO CATÁLOGO DE DE COISAS: COISAS: JACQUES JACQUES CARELMAN CARELMAN


Este é um fragmento muito pequeno, quase irrisório. Diria até em suspensão, quase inútil. Mas como essa tese tem como fio condutor elogiar o inútil, assumir e dar conta do insignificante, a presença e constituição de um lugar para tal se torna irremediável. “Ó utilidade inesperada do que é inútil!” (HUGO, 2002, p. 846) Explico: ao buscar possíveis leituras nas prateleiras empoeiradas de um dos hexágonos da Biblioteca de Babel – já não saberia precisar qual o número dele – encontro, resgato um velho, não antigo, catálogo de coisas encardido (o catálogo, não as coisas). As coisas apresentadas e oferecidas nesse catálogo são instigantes: são inviáveis. A associação de várias dessas coisas inúteis, impossíveis, inutilizáveis, imprestáveis, com os demais fragmentos deste trabalho foi imediata. Por isso, a abertura de cada fragmento de cada zona da tese será ilustrada com a imagem de um desses objetos inviáveis. O catálogo em questão é um livro da editora Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, com data de publicação de 1976, cujo título é “Catálogo de objetos inviáveis” de autoria de Jacques Carelman e tradução de Elói de Castro.

Jacques Carelman.

Antes de abrirmos o livro, vamos ao autor: Jacques Carelman nasceu em 01 de novembro de 1929, uma semana depois da quebra da bolsa de Wall Street, e faleceu em 28 de março de 2012. Nasceu e viveu até os 27 anos na cidade de Marselha, quando, em 1956, se muda para Paris para trabalhar como dentista, profissão de formação. Na capital francesa logo se aproxima dos artistas e grupos literários, para os quais começa a desenvolver ilustrações, estudos de figurino, cenografia e projetos gráficos de folhetos, todos para o teatro. Em 1963 é convidado pelo escritor e poeta Raymond Queneau para ilustrar a nova edição, pela Gallimard, do já consagrado Exercices de style (1ª edição de 1947), livro precursor das experiências literárias do OuLiPo, onde o autor apresenta uma mesma pequena história de 99 formas diferentes. Para a nova edição Carelman colaborou com

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Livro traduzido para o português e publicado pela Nova Fronteira. Edição de 1976.


45 “exercícios paralelos de estilo pintados, desenhados ou esculpidos”. Esta parceria entre Carelman e Queneau renderia ainda uma adaptação em graphic novel do livro deste último Zazie dans le métro (Zazie no metrô, 1959), lançado em 1966. Deste momento em diante a participação de Carelman próximo ao OuLiPo é cada vez mais intensa, servindo inclusive de motivo para o convite, feito por Alfred Jarry, que o ilustrador integrasse o Collège de ‘Pataphysique1, como regente de Hélicologie. Voltando a Carelman, agora um artista e intelectual já bastante conhecido nas rodas universitárias e literárias da Paris do final dos anos 1960, o ilustrador ganha notoriedade com o cartaz produzido, e intensamente reproduzido, mostrando um soldado francês empunhando um cassetete, em resposta às investidas policiais contra as manifestações estudantis de maio de 1968. No ano seguinte, simultaneamente a sua entrada no Collège de ‘Pataphysique, Carelman lança seu trabalho mais importante: o Catalogue d’objets introuvables.

O cartaz e o livro, 1968 e 1969, respectivamente.

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O livro, traduzido para o português como Catálogo de Objetos Inviáveis, é uma paródia a um catálogo postal francês da empresa Manufrance do final do século XIX. A Manufacture Francaise d’Armes et Cycles de St. Etienne foi uma das pioneiras na divulgação

1 O Collège de ‘Pataphysique foi uma sociedade de pesquisas acadêmicas e inúteis, fundada em 1948 por Alfred Jarry e integrada por diversos pensadores, filósofos, escritores, poetas, artistas e cientistas, dentre eles M. Duchamp, I. Calvino, G. Perec, U. Eco, J. Baudrillard e M. Ernst. Uma das tantas explicações dadas pro Jarry para apresentar o Collège é “A ‘Patafísica está para a metafísica assim como a metafísica está para a física.” É deste agrupamento que “brotam” a OuLiPo e a OuPeinPo (Ouvroir de Peinture Potentielle), esta última fundada em 12 de dezembro de 1980 pelo próprio Carelman.


e venda de produtos através do envio de catálogos pelo serviço postal, principalmente armas de fogo e bicicletas, mas também vestuário, objetos de decoração, equipamentos para pesca, brinquedos e utensílios domésticos. Carelman utiliza, inclusive, a mesma linguagem visual e diagramação dos catálogos “autênticos”, declarando sua adoração e admiração na dedicatória (1976, p. 06) “Dedico este livro aos autores anônimos do antigo catálogo (...), que me proporcionaram as primeiras e inesquecíveis emoções poéticas.” A homenagem vem acompanhada de um retângulo com contorno de linhas pretas e seu interior completamente branco, vazio, subtitulado com os dizeres: “Uma faca sem lâmina, à qual falta o cabo. George-Christoph Lichtenberg2”.

Páginas de uma edição da Manufrance, década de 1910.

Ao abrir o livro/catálogo Carelman faz uma introdução que intriga o leitor desavisado (p. 03) Catálogo de objetos inviáveis e contudo indispensáveis aos praticantes das seguintes profissões: acrobatas, aeromodelistas, (...) caolhos, catatônicos, (...) padeiros, (...), pedestres, pedicures, (...), urbanistas, utopistas, (...), zen-budistas e a turma da pesada em geral.

A lista completa, com mais de 140 “títulos”, demonstra a clara tentativa de aproximação da linguagem e estilo Oulipiano, principalmente das listas catalográficas de Georges Perec, onde aparecessem alinhamentos sonoros, funcionais, elementos sérios abrindo caminho para elementos cômicos etc.

2 Lichtenberg, na verdade Georg Christoph, foi um físico e filósofo iluminista alemão (17421799) que também publicou diversos escritos satíricos e humorados, a maioria em forma de aforismos, questionando a seriedade das “disciplinas científicas”.

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A partir daí o catálogo apresenta 204 objetos identificados por nomes, códigos simples e uma brevíssima explicação/justificativa. Os objetos estão divididos em 22 categorias, que se agrupam em 5 grandes seções: TRABALHO: [A] Ferramentas e utensílios (23 itens), [B] Agricultura (4 itens), [C] Artigos de escritório (6 itens); A CASA: [D] Mobiliário (14 itens), [E] Artigos caseiros (28), [F] Higiene (16), [G] Torneiras (5), [H] Portas e fechaduras (6); OS LAZERES: [I] Armas (3), [J] Artigos de pesca (5), [K] Bicicletas (16), [L] Acessórios para automóveis (3), [M] Esportes (7), [N] Jogos e brinquedos (8), [O] Instrumentos de música (4), [P] Artigos para fumantes (5); O HOMEM, A MULHER, O ANIMAL: [Q] Vestuário (14), [R] Óptica e Prótese (11), [S] Artigos para animais (7); DIVERSOS: [T] Relojoaria (7), [U] Peças e armadilhas (3), [V] Invenções (9). Logo abaixo do índice uma frase de efeito,


típica de comerciais e articulados vendedores, prepara o leitor para o que vem a seguir: “Garantimos que todos os nossos artigos são absolutamente inutilizáveis.” (p. 06).

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Dando continuidade nas constituições contraditórias, e ironicamente complementares, iniciada pela ideia de catálogo de objetos inutilizáveis que são oferecidos como produtos de desejo e consumo, segue-se a contradição no uso do termo introuvables no título do catálogo: um objeto “introuvable” é uma coisa impossível ou muito difícil de encontrar ou achar; ou mesmo partindo para o termo traduzido para o português como “inviável”: tudo ali naquela seleção de objetos é inviável, ou seja, é um caminho por onde não se pode passar, transitar, acessar. Por ali é inviável ir, impossível passar. Ou seja, são objetos impossíveis se serem encontrados, por um caminho que não se vai, mas mesmo assim estão ali apresentados e, de uma certa maneira, acompanhados por uma espécie de linha-guia que perpassa todo o volume estendendo-se continuamente nos rodapés das páginas. Uma única linha contínua e interminável de citações diversas conduzindo e “amarrando” o percorrer do leitor. Citações que, além disso, reforçam a intenção de inutilidade útil proposta pelo criador do catálogo. Quanto mais as artes são cultivadas, mais existem objetos inúteis (provérbio chinês). No pampa argentino e nas planícies da Patagônia vivem em colônias inúmeros roedores cujo aspecto lembra coelhos e marmotas; esses animais cavam galerias que por vezes chegam a se estender por alguns quilômetros quadrados. Denominam-se viscachas e ao território que ocupam dá-se o nome de viscachería. Esse lugar é um depósito de objetos perdidos, onde se pode encontrar tudo o que se perde e pode ser transportado: relógios, facas, cartuchos, chaves, saca-rolhas, cachimbos, óculos, revolveres carregados etc. O animal, nesse caso, não age com um fim alimentar ou utilitário, mas realmente parece fazer uma verdadeira coleção. Esses objetos, completamente inúteis para eles, são reunidos e guardados apenas para seu deleite (Maurice Rheims). Um parafuso sem começo (Lichtenberg). Sonhar com uma vassoura significa que se tem um amigo que usa uma echarpe de cardos e cujas palmas das mãos estão sempre úmidas (John B.L. Goodwin). Mão para coçar: o substituto do cetro empregado pelos chefes nagôs para aplicar a justiça e com que se coçava a espinha dorsal nos casos difíceis (André Breton – Benjamin Perret). Um prego magro (Philippe Soupault). Escada: Um jardineiro de Ramsés III, tendo observado o movimento ascensional contínuo de uma perereca sobre um tronco de macieira, constatou a igualdade de seus pulos e teve a ideia de compensar a ausência de meios de aderência da pata humana por meio de horizontais mantidas entre duas hastes verticais (André Breton – Benjamin Perret). Sonhar com uma escada significa que uma noite a lua empoleirar-se-á sobre tuas costas, sussurrando que te ama (John B.L. Goodwin). No Brasil não há outono / mas as folhas caem (Carlos Drummond de Andrade). A amargura das máquinas de coser nas nuvens (Tristan Tzara). Loteria é mulher, pode acabar cedendo um dia (Machado de Assis). Vi uma caixa de correio num cemitério (Xavier Forneret). Farei como aquele que, por pobreza, chega por último à feira e compra as coisas já vistas e desdenhadas pelos outros (Leonardo da Vinci). Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino (Manuel Bandeira). Patíbulo com para-raios (Lichtenberg). Criemos objetos espantosos (Paul Nougé). Ganho a vida com meu pêndulo e tenho sobre o estômago um pequeno mostrador (Raymond Queneau). E há em todas as consciências este cartaz amarelo: “Neste país é proibido sonhar” (C. Drummond de Andrade). Relógio de vento (Cyrano de Bergerac). Filhos... Filhos? / Melhor não tê-los! / Mas se não os temos / Como sabê-lo? (Vinicius de Morais). Cadeira para sentar-se confortavelmente entre duas cadeiras (François


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de Lionnais). Ganhei (perdi) meu dia (C. Drummond de Andrade). Um costureiro famoso pensa em lançar costumes nas costas de velhos livros, encadernados em couro de bezerro (Guillaume Apollinaire). Aquário com vidro embaçado para carpas tímidas (Alphonse Allais). Eles confundiram a cruz do corpo da máquina com esta outra cruz, o guidom reto. Representaram Jesus com as duas mãos afastadas sobre o seu guidom, e observemos a tal propósito que Jesus pedalava deitado de costas, o que tinha por finalidade diminuir a resistência do ar (Alfred Jarry). Uma roda é feita de trinta aros sensíveis, mas é graças ao vazio central do cubo que ela gira (provérbio chinês). Brinquedos. Deveriam ser sempre científicos (Gustave Flaubert). Depois de morrermos, deveriam colocar-nos em uma bola, e essa bola seria de madeira de várias cores. Bastaria alguém tocá-la para conduzir-nos ao cemitério e os papadefuntos encarregados desse cuidado usariam luvas transparentes, a fim de evocar nos amantes as lembranças das carícias (Francis Picabia). Garfos muito pontudos pintados com curare (Pierre Dac). Cole tudo, mesmo o vento (Henri Michaux). A vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria (Machado de Assis). Oxalá o povo romano tivesse uma só cabeça (Calígula). As charruas de açúcar branco ou de vidro soprado ou de porcelana são um obstáculo à circulação (Henri Michaux). Uma máquina de escrever cartas de amor (Jacques Prévert). Dispositivo para escrever a mão. Compõe-se de um bastonete oco que se pode encher com líquidos coloridos, que escorrem por intermédio de um pedaço de metal em forma de ponta, com a extremidade macia, que, tocando levemente um papel, pode escrever palavras em qualquer língua, segundo o indivíduo. Modelo com reservatório. Como brinde, um frasco de líquido para escrever. Cores a escolher (Pierre Dac). Se você quer que alguém se cale, ponhalhe nas mãos uma caneta (trocadilho patafísico). A caneta-tinteiro torna-se pássaro (Jacques Prévert). O sabor dos objetos? Do ponto de vista analítico, o problema foi, com efeito, várias vezes evocado: “origem anal” (Maria Bonaparte). Inventei o raspa-ministro e tornei-me chefe (Tristan Tzara). Minha mulher com sexo de espelho (André Breton). Entre nossos artigos de ferragens preguiçosa, recomendamos uma torneira que pára de escorrer quando não a escutamos (Marcel Duchamp). Ele carrega seu fuzil de gelatina (Hans Arp). Sonhar com um anzol significa que sob uma cachoeira vais encontrar um quarto no qual um papagaio entorna um chá (John B.L. Goodwin). Fotografia: janelas abertas para um mundo sem portas nem janelas para mim” (Lúcio Sérgio Lins). Tobogã: as brincadeiras do elefante marinho Lulu sugeriram essa ideia aos palhaços do circo Loisset em 1877 (André Breton – Benjamin Perret). O mundo é talvez: e é só. / Talvez nem seja talvez (C. Drummond de Andrade). O piano laqueado de branco roia as mãos de um pianista cego (E.L.T. Mesens). Piano com teclas cortantes para pianista mártir (Chaval). Martelo ectoplásmico para enfiar as visões na cabeça (J.B. Brunis). O pregador de chucrute (que coloca os cravos-da-Índia nos chucrutes com um martelo de feltro macio) (Cami). Saca-rolhas movido pela força das marés (Alphonse Allais). Tinta incolor para analfabetos (Chaval). Como um móvel sem valor, expulsei-te de minha casa, com um chicote de cordas de escorpião (Lautréaumont). Móvel em perspectiva: inventado em 1943 por um marceneiro mexicano a quem se encomendara um armário com espelho, dando-lhe como modelo uma imagem de catálogo de grande loja (André Breton – Benjamin Perret). Um aparador Henrique II, dois aparadores Henrique III, três aparadores Henrique IV (Jacques Prévert). Convençam-se de que os famosos relógios de pulso de Salvador Dalí não são outra coisa senão o camembert-paranóico-crítico, terno, extravagante, solitário no tempo e no espaço (Salvador Dalí). Verme nas engrenagens de um relógio de pulso de madeira (Lichtenberg). Estenda a sua cama em verde (La redoute dês


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contrepèteries). Ele dera nomes aos seus dois chinelos (Lichtenberg). Em direção a uma mulher antípoda, o fio de prumo passa a ser para mim o meio de locomoção favorito (Jean Cocteau). Meninas, não aproximem suas mãos da pista do serrote (trocadilho patafísico). Transformador destinado a utilizar as pequenas energias desperdiçadas, como o excesso de pressão sobre um botão elétrico, a exalação da fumaça do fumo, a impulsão dos cabelos, dos pelos e das unhas, a queda da urina e dos excrementos, os movimentos de medo, de espanto, de tédio, de raiva, o riso, a queda de lágrimas, dos gestos demonstrativos, das mãos, dos pés, os tiques, os olhares duros, os braços que caem do corpo, o espreguiçar-se, o bocejo, o espirro, o escarro comum e de sangue, os vômitos, a ejaculação, os cabelos rebarbativos, o redemoinho, o barulho da assoadela, o ronco, o desmaio, a ronqueira, o canto, os suspiros etc. (Marcel Duchamp). Medidos para beijos (Charles Cros). Adaptarei à tua lâmina um belo cabo de ferro (La redoute dês contrepèteries). Máquina de costurar olhares (Tristan Tzara). Cronômetro para aumentar minutos (Henri Michaux). Os cavalinhos correndo, / E nós, cavalões, comendo (Manuel Bandeira). A cadeira de areia (Marcel Mariën). O caolho que compra um aparelho estereoscópico passa muitas vezes por imbecil (Chaval). Tenho tudo que não quero / Não tenho nada que quero (Manuel Bandeira). Sonhar com um calidoscópio significa que, se crês que domingo de manhã é segunda à tarde, cais ouvir uma máquina fotográfica cantar uma canção (John B.L. Goodwin). Xadrez (Jogo de). Imagem de tática militar. Todos os grandes comandantes eram bons nele. Muito sério para um jogo, fútil demais para uma ciência (Gustave Flaubert). Os inocentes do Leblon / não viram o navio entrar (C. Drummond de Andrade). Aparelho de descascar cérebros (Alfred Jarry). Falsas navalhas para pessoas que usam barbas falsas (Pierre Dac). Vaporizador: fabricado para agradar ao Rei Rhuner, que teve a ideia de espremer a casca de uma tangerina em uma chama (André Breton – Benjamin Perret). Classificar os pentes pelo número de seus dentes (Marcel Duchamp). As cabeças sem rodas, os desrodados, os deserdados das rodas, os antipoetas sem rodas, os operadores das rodas infernais dos carros bélicos, a roda de Ixion, as rodas anti-rodas dos homens sem imaginação, os marginais das rodas, os conspiradores das rodas, os reis das anti-rodas, os assassinos das rodas, os expulsos das rodas, os díscolos das rodas, os inimigos da roda da História (Murilo Mendes). Noite na cama. Sonho. Bons sapatos velhos / para os calos da alma, / e lá vou de viagem / ao fundo da minha vida! (António de Sousa). Mais nada / a dizer: só o vício / de roer os ossos / do ofício (José Paulo Paes). Amo os pássaros quando vêm pousar na ponta do meu cigarro aceso (Tristan Tzara). Com que ânsia tão raiva / Quero aquele outrora! / E eu era feliz? Não sei: / Fui-o outrora agora (Fernando Pessoa). Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia, / um olho andando, com duas pernas (Murilo Mendes). EPITÁFIO PARA UM BANQUEIRO: negócio/ ego/ ócio/ cio/ 0 (José Paulo Paes). E a música cessa como um muro que desaba, / A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos, / E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, / Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro, / E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça, / Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo... (Fernando Pessoa). O seu talento? O seu talento não passa de uma tapeçaria de ideias cristalizadas e esquecidas (Philippe Soupault). Os ondas lá fora despenteiam a praia (Murilo Mendes). O mundo samba na minha cabeça (Murilo Mendes). Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos (Fernando Pessoa). Não sou meu sobrevivente e sim meu contemporâneo (Murilo Mendes). ... o mais odioso na censura é que ela acaba por se instalar também dentro da gente (Rubem Braga). O animal é um feixe de respostas; o homem é um feixe de perguntas (Roger Garaudy).” (p. 8-130)


Com isso Carelman vai construindo, em ilustrações tipo gravura em metal, um arcabouço de objetos e explicações que se transformam em provocações diretas à sociedade do consumo, da obsolescência, da idolatria às coisas e marcas. Algumas das provocações são ingênuas, outras são ácidas, algumas são poéticas, outras políticas, tantas sádicas e tantas cômicas, algumas até incompreensíveis. Carelman tentou com seus objetos “inviáveis” (eles estariam mais relacionados com a noção de “machin” proposto por Baudrillard, uma pseudofuncionalidade dentro do seu “Sistema dos Objetos”) algo que Ordine coloca com tanta veemência em seu livro A utilidade do inútil (2016) Sinto-me compelido a sublinhar a importância vital dos valores que não se podem pesar ou medir com instrumentos calibrados para avaliar a quantitas e não a qualitas. E, ao mesmo tempo, reivindicar o caráter fundamental daqueles investimentos que não trazem retorno imediato e muito menos financeiro (...) No mundo em que vivemos, dominado pelo homo aeconomicus, certamente não é fácil compreender a utilidade do inútil. (p. 16-7)

Objetos que não servem para nada, pelo menos ao filtro da racionalidade tecnológica e produtivista, mas que, na sua inutilidade funcional e até surreal, colocam algo subjetivo e inquietante a se pensar. Objetos e intenção que mostram um parentesco muito direto com os ready-made de Duchamp, com as provocações da anti-arte do grupo Dada, com as aproximações à fantasia e à imaginação dos Surrealistas. Objetos que estão aí para outra coisa.

Páginas do catálogo de Carelman. Seção “O trabalho”.

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Atividades humanas são variadas e incontáveis. Algumas resultam em sequestros de aviões, outras viram fundos públicos ou até mesmo podem virar conversas. Pessoalmente, prefiro retirar (no original é utilizado o mesmo verbo de sequestrar) objetos comuns de seus usos regulares. É menos perigoso, mais honesto e infinitamente mais divertido! Meus objetos, ao contrário dos gadget (no original) adorados pela nossa sociedade do consumo, são perfeitamente inúteis (inutilisable, no original). Se me perguntassem, eu os classificaria poéticos, hilários, absurdos, filosóficos, engenhosos, mórbidos, imaturos, profundos, insignificantes... O leitor seria então solicitado a, dependendo do seu gosto, seu humor e sua cultura, riscar os adjetivos desinteressantes. (CARELMAN, 1997)


Enfim, por conta da similaridade de termos, questões e desejos desta tese com os de Carelman e seu catálogo, alguns objetos foram selecionados dentre os 204 para figurar como alegoria (inútil é claro) de cada fragmento deste trabalho. Uma figuração um tanto bizarra e absurda, como um reflexo em um espelho torto e quebrado. Algumas associações se deram por aproximação conceitual, outras foram simbólicas, algumas tentaram construir uma narrativa, umas poucas uma aura conceitual, algumas tantas se deram poéticas ingênuas e outras foram totalmente aleatórias e gratuitas. Mais uma possibilidade alheia a leituras lineares que pode ser feita com esse trabalho: uma busca pelos objetos abaixo nas páginas deste volume poderão conduzir e construir uma leitura absurda e interessante. A inutilidade na inutilidade na inutilidade.

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Um GUIA-ÍNDICE

A1_1 - Intenções Paradigmáticas

A1_2 - PPP

A1_3 - 1 método, 2 lados

A2_1 - Álbum de Figurões

A2_2 - Retorno a Biblioteca de Babel

A2_3 - E. Atget e C. Marville

A2_4 - G. Perec

A2_5 - Coisas de Carelman

A3_1 - Caixas e valises


B_2 - Tempos do Trapeiro

B_3 - Vestígios em Baudelaire

C1_1 - Caminhar

C1_2 - Colecionar

C1_3 - Cotidiano

C1_4 - Junkspace como condição

C1_5 - O Outro

C2_1 - Onde caminhas

C2_2 - Escadões

C2_3 - E. Chagas, F. Alÿs e G. Orozco

C2_4- G. Kuitca e J. Macchi

A2_5 ... 11

B_1 - Eis um homem


A2_5 ... 12

C2_5 - G. Matta-Clark

C2_6 - Há uma flâneuse?

C2_7 - Errantes de Paola

C2_8 - Persona(gens) Urbana(s)

C2_9 - Lina e o SESC

C2_10 - Esgotamento

C2_11 - 3 personagens

C3_1 - Caixa de trapos

C3_2 - Cronofotografia de rua

C3_3 - Psicogeografia

D_1 - Práticas Pedagógicas

D_2 - Experiência com Hipótese


A2_5 ... 13


A2_5 ... 14



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