C2_10 | tentativa de esgotamento de um lugar

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TENTATIVA DE ESGOTAMENTO DE UM LUGAR

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Mecanismos Incorporadores Saco (elogios)


vidavida cotidiana; cotidiana; passagem do tempo; passagem do tempo; etnografia urbana. etnografia urbana.

mecanismos incorporadores mecanismos incorporadores saco (elogios) saco (elogios)

TENTATIVA DE DE ESGOTAMENTO TENTATIVA ESGOTAMENTO DE DE UMUM LUGAR LUGAR


Georges Perec tem voz nessa tese. Georges Perec é um Trapeiro. Ele vive uma Cidade em que descreve. Vive na Cidade. Faz a Cidade em que vive, faz a cada olhar, refaz em cada nova linha que utiliza para escrever sobre Ela, descrevendo-a. Ele constrói uma Paris possível a cada novo texto que fala dela. A cada novo olhar, recolhe e resgata rastros de banalidade deixados no cotidiano da Cidade. Recolhe e coleciona. Cataloga, inventariando toda e qualquer coisa sem razão ou valor suficiente que avalize tal ação. Ao lançar um olhar curioso sobre essa Cidade, o Trapeiro Georges Perec distende o tempo e as coisas banais do nosso dia a dia e traz à tona uma possibilidade de fazer a cidade enquanto não se faz nada, apenas recolher os trapos. Essa intenção não é passageira, momentânea, fugaz, experiência gratuita. Perec elabora e assume essa postura lentamente. Constitui esse corpo Trapeiro com o tempo. Ele coloca tal atitude em forma de orientações a um “trabalho prático”, no capítulo dedicado à “rua” em seu livro “Espécies de Espaços” (Espèces d’espaces, 1974). Na atividade prática proposta, deveríamos Anotar o que se vê. Aquilo que seja importante. Sabemos ver o que é importante? Há algo que nos chame a atenção? Nada nos chama a atenção. Não sabemos ver. Deve-se ir mais devagar, quase torpemente. Obrigar-se a escrever sobre o que não interessa, sobre o que é mais evidente, mais comum, mais apagado. [...] tratar de descrever a rua, do que é composta, para que serve. As pessoas na rua. Os carros. Que tipo de carros? Os imóveis: anotar se são confortáveis, ou mais senhoriais; distinguir entre os imóveis de moradia e os edifícios oficiais. As lojas. O que vendem as lojas? A inexistência de lojas de alimentação. Ah! sim, há uma padaria. Perguntar-se onde as pessoas do bairro fazem as compras. Os cafés. [...] Os demais comércios: antiquários, vestuário, hi-fi etc. Não dizer, não escrever <etc>. Obrigar-se a esgotar o tema, inclusive se existem aspectos grotescos, ou fúteis, ou estúpidos. Entretanto não temos olhado nada, somente repertoriamos o que há muito tempo havíamos repertoriado. Obrigar-se a ver com mais sensibilidade. (PEREC, 1999, p. 84-5)

Ele constata, já naquele momento, nossa ignorância em ver a Cidade. Condenamos nosso ato de ver ao puro condicionamento mercadológico e espetacular. Vemos o mundo com olhos objetivos, mecanizados, procuramos e decodificamos apenas o funcional e utilitário. Fica evidente a consequente relação que temos com a construção da Cidade. Um olhar utilitário e mercadológico constrói Cidades do mesmo tipo. Para Perec devemos nos obrigar a ver com mais sensibilidade, um “ver” que não é funcional, fisiológico e um mero sentido do corpo mecanizado. Ele solicita “enxergar” a Cidade: Descobrir o ritmo [...] Ler o que está escrito nas ruas [...] Decifrar um pedaço de cidade, deduzir evidências [...] Decifrar um pedaço de cidade. Seus cirtuitos [...] As pessoas na rua: de onde vêm? [...] O tempo passa. (PEREC, 1999, p. 85-8)

Continuar. Até que o lugar se faça improvável. Até termos a impressão, durante um brevíssimo instante, de estar em uma cidade estrangeira ou,

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E esse ato consciente deveria ser realizado à exaustão. Forçar o corpo ao seu limite, o lugar ao seu limite. Estressar o sistema. Conduzir o conjunto a um estado crítico, até o ponto onde a aparente estabilidade funcional e organizacional que envolve o lugar se fragilizar. Sem deixar o corpo ceder, fazer o lugar se mostrar,


melhor ainda, até naõ entendermos o que acontece e o que não acontece, que o lugar se converta em um lugar estrangeiro, que inclusive não saibamos que isto se chama uma cidade, uma rua, imóveis, calçadas... (PEREC, 1999, p. 88)

Inutilizar o lugar, revelar seu verdadeiro estado. Colocá-lo cru e totalmente disponível à leitura, sem máscaras, empecilhos, representações espetaculares, imagens préestabelecidas. Enxergá-lo na sua essência, vulgaridade, realidade, possibilidade. Retirar tudo, até não sobrar nada. Esgotar o lugar. E, mesmo assim, chegar ao fim e constatar que tal esgotamento não consegue ser completo, total. Sempre surgirá uma nova camada de inutilidade, de possibilidade de esgotamento. Sempre haverá algo novo a ser esgotado, graças a passagem do tempo, do nada acontecendo. E é nessa resistência ao esgotamento justamente que se mostra a potencialidade da experiência, sua riqueza como narrativa de um lugar, leitura e escritura da Cidade, experiência e construção da vida cotidiana. Experiência que Perec, incorporando o Trapeiro, resolveu realizar e transformar em texto. Executar uma tentativa de esgotamento de um lugar parisiense, estressando a Place Saint Sulpice, no 6º arrondissement da Paris dos anos setenta, durante três dias consecutivos. Forçar e recolher os trapos. Tal experiência foi publicada em forma de texto originalmente no número especial Pourrissement des sociétés de 1975 da revista Cause Commune, fundada em 1972 por Jean Duvignaud (que “aparece” no texto em determinado instante), Paul Virilio e o próprio Perec. Texto que logo em seguida seria lançado em forma de livro pelo editor Christian Bourgois.

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Texto contendo a descrição e catalogação de tudo o que Perec conseguiu “enxergar” através das janelas dos cafés da Saint Sulpice, durante os três dias de outubro de 1974, Tentative d’épuisement d’un lieu parisien apresenta um Trapeiro em ação. Felizmente esse texto acaba (2016) de ser traduzido para o português, por Ivo Barroso e publicado pela Editora Gustavo Gili Brasil. É ainda possível encontrar essa experiência em francês, língua de origem, inglês (traduzido por Marc Lowenthal em 2010), espanhol (traduzido na Espanha por Maurici Pla em 2012 e na Argentina por Jorge Fondebrider em 1992), italiano (traduzido por Eileen Romano em 1989) e alemão (traduzido por Tobias Scheffel em 2010).

Capa do livro de Perec publicado no Brasil pela Gustavo Gili, 2016.


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Uma história impossível de Paris?

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No topo: capas da edição francesa e das traduções internacionais. No centro: Foto da Place Saint Sulpice na década de 1970, num dia de outono. Autor desconhecido. Ao lado: Perec no Café de la Mairie, escrevendo e fumando. Na página seguinte: trecho do texto “Tentativa...” traduzido por Ivo Barroso.

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Paris – biografia de uma cidade


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Apesar da introdução a esse elogio já estabelecer e pontuar as questões e argumentações que justificam sua presença como fragmento na tese, sinto ainda a necessidade de tentar esgotar alguns pontos recorrentes nos discursos, meus e de Perec, sobre essa experiência tão pertinente aos objetivos pretendidos, sobre a incorporação do Trapeiro como forma de apropriação da Cidade. É justamente com esse espírito que Perec, acompanhado de um caderno de anotações, sai de casa numa sexta-feira de um final de outono parisiense do ano de 1974, caminha até a Place Saint-Sulpice e procura um lugar para se acomodar e observar. Durante três dias seguidos (18, 19 e 20 de outubro) Perec se instala em cafés, tabacarias e bancos no entorno da praça para observar e registrar em seu caderno tudo o que acontecia a seu redor. Sua tarefa: tentar esgotar o lugar, tirar tudo o que fosse possível dali. Ele vai anotando, em distintos momentos do dia, tudo o que estava ao alcance do seu olhar: os acontecimentos cotidianos da rua, a circulação de veículos, pessoas, animais, nuvens, a passagem do tempo. Seu caderno vira uma lista de todos aqueles fatos mais insignificantes da vida cotidiana. No domingo, após quase 60 páginas de notas e registros, Perec tem uma coleção de imagens, instantes, gestos; nas suas mãos um texto composto por fotografias escritas, um catálogo de ações, momentos de mais ou menos luz, pessoas caminhando e carregando coisas, carros estacionando ou partindo, turistas, ônibus de turistas, voos de pombos, objetos e jeitos. A documentação não tem regra nem cadência, as coisas são registradas de acordo com a afetação dos sentidos do autor, sem ordem, hierarquia ou periodicidade. É impossível saber quanto tempo passa entre um registro e outro; eles podem ter acontecido simultaneamente, com segundos de intervalo ou até mesmo longos minutos. Apenas alguns elementos, registrados repetidamente, fazem as vezes de um metrônomo poético: os ônibus de transporte coletivo de linha são transformados em seus números de registro – 63, 87, 96 etc. – e um automóvel Citroën “dois cavalos” de cor maçã verde transformam-se em ritmo narrativo e marcador da passagem do tempo. Em um momento Perec inclusive se pergunta “Porque conto os ônibus que passam? Sem dúvida, porque são reconhecíveis e regulares: marcam o tempo, dão ritmo ao ruído de fundo. Em última instância, são previsíveis”1. Perec assume um papel de iniciação de um etnógrafo, estabelece a presença contemporânea do vouyer urbano; um contemplador e narrador da cidade, um Trapeiro. Dá continuidade à estirpe genealógica de E. T. A. Hoffmann, Edgar Alan Poe, Charles Baudelaire, André Breton e Louis Aragon2. Narra, assim como seus antecessores, a realidade que nos escapa. Lança-se no vazio, minusculariza a realidade, dá valor ao ordinário e ao inútil. Para Perec o nada é infinitamente rico que nada pode esgotá-lo, nem mesmo sua ação indiciária narrada no texto. Retoma também, na própria atitude, o personagem convalescente de Poe, assistindo o movimento da multidão através da vitrine de um café, e marca poeticamente a passagem da cidade industrial com sua multidão homogênea de uma sociedade do trabalho, utilitária e higienista do final do século XIX, para uma cidade pós-industrial com sua

PEREC, 2016. p. 32.

2 De Hoffmann ver “A janela de esquina do meu primo”; de Poe ver “O homem da multidão”; de Baudelaire ver “O pintor da Vida moderna”; de Breton ver “Nadja” e de Aragon ver “O camponês de Paris”.

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multidão multicultural de uma sociedade do bem-estar, consumista e turística do final do século XX. E nessa tentativa de esgotamento daquele lugar, Perec joga e manipula uma discussão sobre a presença do Tempo na cidade contemporânea. E não é a primeira vez que o Tempo se torna uma questão nos seus textos: em “O homem que dorme” o autor faz várias tentativas de parar o tempo, reduzi-lo ao máximo. Já aqui, sua narrativa tenta exprimir, descrever e espacializar o Tempo na cidade. O 63. São cinco para as duas. Os pombos estão pousados no patamar central da praça. Voam todos de uma vez. Quatro meninos. Um cachorro. Um fugaz raio de sol. O 96. São duas. (PEREC, 2016, p. 60)

Do começo ao fim do texto vemos um Trapeiro preguiçoso nos fazendo um convite derradeiro: ir à cidade e estar nela, estar quieto e contemplá-la3. Talvez assumir esse lugar e esse tempo desconfortáveis, assumir a pausa nessa cidade que não para e estar nessa cidade que não é nossa.

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Place Saint Sulpice, 1974. Foto de Pierre Getzler.

3 Como uma resposta a esse convite, há uma interessante especulação visual na internet, produzida pelo artista multimídia Yann Chapotel, em 2013. Link para acesso: https://www.youtube.com/ watch?v=ZEliPV-0sVU


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