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TRAPEIROS CONTEMPORÂNEOS (3/3) GORDON MATTA-CLARK

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Mecanismos Incorporadores Saco (elogios)

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resignificação; nesgas urbanas; reality properties: fake estates.

mecanismos incorporadores saco (elogios)

TRAPEIROS CONTEMPORÂNEOS (3/3) CONCEITO, CORPO, ESPAÇO


Arquitetura e Arte têm, vez ou outra na história da civilização moderna, alargados seus discursos, contaminando-se mutuamente1, e desconstruído seus limites disciplinares que demarcam e especificam cada uma delas. Momentos de limites claros e protecionistas, momentos de limites difusos e rarefeitos, e até momentos de ausência e transgressão total a qualquer nuance de limite. Independente da validade destes limites, das possibilidades e impossibilidades desse trânsito sobre essa fronteira tão tênue e subjetiva, a Arquitetura e a Arte sempre estiveram próximas e lindeiras nas construções culturais, sociais, estéticas, éticas e, especial para este texto, urbanas e cotidianas. E mesmo não considerando qualquer juízo ou valor sobre esse limite, é inegável que esta vizinhança disciplinar fornece o empréstimo de questões conceituais, críticas, formais e reflexivas uma a outra, em ambos os sentidos. A Arquitetura se aproveita de questões pertinentes à Arte para benefício e reforço de discursos, assim como o caminho contrário também se estabelece. Isso se evidencia, e acirra o debate da fragilidade daquela fronteira disciplinar, quando a Arte, nos idos dos anos 1960, abandona os espaços institucionais dos museus, galerias e ateliers e parte em direção à Cidade, ao espaço público, ao cotidiano urbano. Essa sensibilização de esvanecimento das fronteiras entre as duas disciplinas, quase como uma duplicação espectral diante de um espelho, abre-nos a possibilidade de observarmos através desse espelho, ou para mudar a analogia, olharmos por sobre o muro, talvez até já inexistente, que separa Arquitetura da Arte, principalmente a parte dessa última voltada aos espaços e discussões urbanas. Artistas vêm tratando, intervindo e refletindo sobre o espaço da Cidade, a partir de suas práticas artísticas e descompromissados com diversos “entraves” disciplinares inerentes e caracterizadores da Arquitetura. E isso nos provoca: O que tais artistas estão fazendo com a Cidade, que questões estão levantando, como as estão levantando? Que reflexões, críticas e especulações fazem esses “estrangeiros”, mas vizinhos, perante esse objeto que sempre foi, ou esperava-se que fosse, pelo menos pelos arquitetos mais protetores da pureza da disciplina, de exclusividade da Arquitetura? Que se estabeleça aqui uma alteridade, não apenas urbana, mas também disciplinar. Conviver, co-existir com a Arte e os artistas na Cidade pode nos apresentar caminhos válidos para a investigação do viver urbano tão caro aos arquitetos. Olhemos por sobre o muro, pois Foram os artistas que me ensinaram a observar com seriedade os objetos que não pareciam merecedores de interesse, ou que eram de interesse somente dos especialistas. Os artistas modernos demonstraram que meros fragmentos colhidos do cotidiano de um determinado período podem revelar seus hábitos e sentimentos; que devemos ter a coragem de tomar pequenas coisas e alçá-las a grandes dimensões. (GIEDION, 2004, p. 31)2

2 Siegfrid Giedion, arquiteto e crítico chave nas discussões com Le Corbusier acerca do movimento Funcionalista nos CIAMs, foi aluno de Heinrich Wölfflin (1864-1945), historiador e crítico de arte suíço, professor também de Walter Benjamin.

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1 A arte de vanguarda dos anos 1910-1930, a exemplo do Cubismo, ou mesmo o Neoplasticismo anos mais tarde contaminaram os discursos de Le Corbusier e seus contemporâneos da nascente arquitetura racional-funcionalista. Ou então as explorações arquitetônicas e urbanas empreendidas pelos grupos de arquitetos pós-CIAM nos anos 1950 e os coletivos radicais do Archigram, Superstudio, Archizoom, Antfarm etc, nos anos 1960, que contaminaram os discursos artísticos com considerações espaciais e urbanas.


Além disso, a Arte apresenta uma característica peculiar e incontestável, que acrescentará uma carga fundamental nesse observar por sobre o muro. A Arte é, sem sombra de dúvida, pelo menos aos olhos do autor desta hipótese, o campo primordial, o objeto inicial das reflexões, a ação máxima do ser humano, quando pretendemos estabelecer a proposta da inutilidade. A Arte é inútil por excelência, ou como seca e taxativamente nos apresenta Oscar Wilde, no prefácio do seu livro O Retrato de Dorian Gray, “Toda arte é perfeitamente inútil.” (2009, p. 03); ou mesmo a sensível provocação de Théophile Gautier, ao apresentar e justificar sua admiração pelo amigo Charles Baudelaire, Só é realmente belo o que não serve para nada; tudo que é útil, é feio, pois é a expressão de uma necessidade e as do homem são ignóbeis e nojentas, como sua natureza pobre e enferma. O lugar mais útil de uma casa são as latrinas. (GAUTIER, 2001, p. 23)

São nessas duas capacidades da Arte, a inutilidade primordial e o experimentar urbano, que pretendo me debruçar. É na essência inútil da Arte que enxergo possibilidades para construirmos pontes, conexões, vislumbres aproximativos, entre a Cidade e o Homem, nos dando evidências de uma concreta e efetiva apropriação do espaço urbano pretendida em todo este trabalho. Mas não vou estabelecer um labirinto conceitual aprofundando e confrontando tantos discursos e críticas à Arte que nos envolvem atualmente, coisa que demandaria uma outra infinidade de estudos. Minha intenção é mais humilde e observadora, é ser um colecionador, produzir uma aproximação catalográfica. Enfim, é potencial ao discurso proposto, olharmos para além da disciplina urbana, além da Arquitetura, além do Urbanismo. Observar a Arte, ou pelo menos mínimos fragmentos de ações artísticas. Reconhecer em outras mãos, não especialistas, mas inúteis, agenciamentos de ações de investigação e apropriação honestas, subjetivas, conscientes, em busca de um esclarecimento e autonomização do sujeito perante o espaço urbano contemporâneo. Vislumbrar em algumas ações artísticas recentes caminhos factíveis para uma incorporação do Trapeiro. Perceber, dentro do nosso tempo, nossa contemporaneidade, artistas e obras de arte que representem e efetivem a alegoria que venho estruturando como hipótese fundamental, como pontos mais recentes dentro do “Tempos do Trapeiro”, talvez até estabelecer algumas imagos de Trapeiros do século XX/ XXI. Com esse desejo científico, durante os percursos e desvios de pesquisa e investigações realizadas, não só para este trabalho, encontrei alguns artistas que, com suas ações, suas obras, apresentaram-me características daquele homem que aqui pretendo explicitar, via alegoria do Trapeiro. Com isso, me vi estabelecendo um cenário real da apropriação da alegoria. Me dei conta que deveria seguir os passos sugeridos pela ação especulativa de Charles Baudelaire, que, em 1863, no texto O Pintor da vida Moderna, observou e constituiu um olhar crítico sobre os desenhos de Constantin Guys, o aproximando da sua alegoria pretendida naquele momento: a figura do Flâneur.

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Como já vimos em outro fragmento dessa tese, Baudelaire observa, inventaria e disseca os desenhos e esboços do Sr. G., produzidos expeditamente nas ruas das cidades, resultantes das buscas do “artista-repórter” por assuntos elegíveis a matérias dos jornais enquanto circulava pelo espaço urbano e seus movimentos cotidianos. Nesse ato de inventariar, Baudelaire reconhece e “descobre” características de um olhar curioso que lhe parece único, original, moderno. O poeta-crítico vê no artista-repórter a personificação da figura do Flâneur.


Assim como Baudelaire (2010) fez com o “observador apaixonado” (p. 30), o “homemcriança” (p. 28), o “eterno convalescente” (p. 28), o “solitário dotado de imaginação ativa” (p. 35), farei também com o Trapeiro. O que vem a seguir são artistas-colecionadores. Colecionadores de Cidades, de fragmentos resignificados como discurso de vida urbana cotidiana. Eles serão reunidos, apresentados e algumas de suas obras inventariadas, como forma de explicitar a dimensão alegórica do Trapeiro. Tais inventários não se destinam a construção de um guia de recomendações, posturas ou ações prontas a serem reproduzidas ou transformadas em atitudes e métodos de apropriação da cidade. São construções de processos de leitura e olhar crítico sobre nossas relações com os espaços urbanos, mas que podem vir a se tornar estratégias de reprodução e métodos de incorporação do Trapeiro.

1. rastros e vestígios na/da cidade (C2_3)

Edson Chagas, Francis Alÿs e Gabriel Orozco

2. mapas, leituras no tempo (C2_4)

Guillermo Kuitca e Jorge Macchi

3. conceito, corpo, espaço (C2_5)

Gordon Matta-Clark

ITEM No. 1 –

GORDON MATTA-CLARK

Empunhando o número 05 dentro da coleção de figur(ões)inhas, Gordon Matta-Clark nasceu em Nova York no dia 22 de junho de 1943, batizado Gordon Roberto Echaurren Matta, filho dos artistas plásticos Roberto Matta, ilustrador e pintor surrealista Chileno, e Anne Clark, pintora norte-americana filha de Teeny Duchamp, esposa de Marcel Duchamp. Viveu toda sua infância e início de juventude, com algumas visitas esporádicas a Paris e ao interior do Chile, pelas ruas do Greenwich Village de Manhattan, quando se mudou, em 1962, para a cidade de Ithaca para estudar arquitetura na Cornell University. Durante todo seu período de formação, o programa de Arquitetura da Cornell era coordenado pelo arquiteto e teórico Colin Rowe, importante crítico do Movimento Moderno e de Le Corbusier, autor do livro/”tratado” “Collage City” onde assumia o contextualismo e uma relação mais próxima entre Modernidade e Tradição, principalmente no planejamento e desenho urbanos.

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Matta-Clark se formou no final de 1968, tendo viajado durante um ano para estudar Literatura Francesa na Sorbonne, em Paris. Em 1969 se aproxima dos artistas da LandArt, principalmente Robert Smithson e Dennis Oppenheim, auxiliando-os na produção,


instalação e documentação de algumas obras para a exposição Earth Art, ocorrida na mesma Cornell University. Após o contato direto com essa produção artística, que rejeitava a mercantilização da arte, assumia o processo e o discurso conceitual como estratégias criadoras e se amparava nos registros fotográficos e fílmicos (documentais e colagens), Matta-Clark retorna a Nova York em 1969, agora para o bairro do SoHo, em meio a uma profunda crise fiscal, social e urbana. Nova York no início dos anos 1970 enfrentava uma onda severa de violência urbana, esvaziamento populacional, evasão de investimentos corporativos e comerciais e uma “guerra” intelectual entre planejadores urbanos, na figura de Robert Moses, e moradores dos bairros mais antigos e consolidados, na figura da jornalista Jane Jacobs. Ocupando embasamentos de edifícios desvalorizados e grandes lofts abandonados no SoHo, Matta-Clark se envolve com vários grupos de jovens artistas e acaba por nunca exercer oficialmente a carreira de arquiteto, apesar de projetar e executar vários projetos de reformas e intervenções em apartamentos, lofts e galerias de arte. Em 1971, trocou seu nome por “Clark”, sobrenome de sua mãe, e fundou, juntamente com a fotógrafa e bailarina Carol Goodden, sua “esposa” e autora do famoso retrato do artista com seus cabelos eriçados, e a vídeo-artista e performer Tina Girouard, o espaço artístico-gastronômico FOOD, na 112 Greene Street. O “restaurante” tinha como premissa a combinação do alimentar-se e do criar artístico, produzidos coletivamente. Os jantares, muitas vezes comandados pelo próprio Matta-Clark, se transformavam, no decorrer da noite, em eventos artísticos. Apresentações performáticas, projeções de vídeos e exposição de fotos, desenhos e pinturas nas paredes do restaurante eram frequentes e tratadas sem muito rigor curatorial ou programático. O FOOD fechou suas portas por conta da dificuldade financeira e gerencial, além do “desinteresse” de MattaClark gerado pelos intensos movimentos de produção de obras comissionadas pelo artista, em 1974, mesmo ano do término do relacionamento com Goodden. Dois anos depois, o artista conhece a produtora audiovisual Jane Crawford, com quem se casa em maio de 1978, poucos meses antes de morrer em decorrência de um câncer no pâncreas recém diagnosticado, em 27 de agosto de 1978, aos 35 anos de idade. Além da fundação e atuação na cena artística jovem do SoHo novaiorquino, Matta-Clark participou intensamente do grupo “Anarchitecture”, reunido informal mas periodicamente no loft/estúdio do artista entre 1973 e 1974, culminando com uma exposição realizada no espaço da 112 Greene Street entre março e junho de 1974, estranhamente não documentada de nenhuma forma. Mesmo assim, as discussões e reflexões geradas pelo grupo foram essenciais para a posterior produção artística de Matta-Clark. Segundo ele,

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a Anarquitetura pretende solucionar nenhum problema. (...) Estávamos pensando mais sobre vazios metafóricos, intervalos, lacunas, espaços desperdiçados, abandonados, esquecidos, deixados para trás (...) Por exemplo o lugar que você para e encosta para amarrar os sapatos. (In: ATTLEE, 2007)

Em uma carta escrita de Europa, endereçada a Carol Goodden e ao grupo “Anarchitecture”, contendo reflexões, ideias e indicações para a futura exposição, Matta-Clark é enfático (ATTLEE, 2007) “1º. Um objeto na entrada da exposição: Um cartaz branco com os dizeres: <Nothing Works>” reforçado mais adiante pelo comentário “Uma reação ao crime fundamental/primordial dos lutadores-desenhadores Modernos.”, opondo-se a todo o ethos do utilitarismo modernista. Adiante na carta manipula a famosa frase de Sullivan <FORM FOLLOWS FUNCTION>, como um espelho distorcido de trocadilhos típicos de


Matta-Clark, tornando-se “FORM FALLOWS1 FUNCTION”, que pode ser interpretado como uma crítica a que uma adesão rígida a certas ideias formais irá restringir a utilidade de um objeto ou edifício. Ou então, a de permitir que a aparência do objeto possa sugerir novos e espontâneos usos. Matta-Clark encerra esta carta com a frase (ATTLEE, 2007): “(...) uma máquina para NÃO morar com um trecho de <Vers une architecture> de Le Corbusier mostrando a máquina pura/virgem onde ele queria que todos nós vivêssemos”. O artista sempre demonstrou explicitamente em entrevistas uma crítica aos processos e paradigmas funcionalistas e racionalistas da arquitetura: Projetar moralidade é válido. Os problemas funcionais foram escolhidos porque parecia ser o rompimento mais crítico com a Beaux-Arts, aquele lixo histriônico. Foi válido naquele momento. Mas quanto tempo faz isso? Setenta anos desde qualquer tipo de reavaliação mais radical tenha sido feita? (In: ATTLEE, 2007)

Ou mesmo em anotações em seus cadernos, lembranças para si mesmo: Uma resposta ao projeto cosmético: Conclusão através da remoção Conclusão através do colapso Conclusão através do esvaziamento (In: ATTLEE, 2007)

Questões que ficam evidentes em quase todas suas obras mais icônicas, os famosos “cuts”, onde executa e documenta cortes e subtrações em edifícios condenados, abandonados e/ou esquecidos: Bronx Floors: Threshole (1972), num antigo cortiço do Bronx de NY; Bingo (1974), numa casa condenada do subúrbio de Niagara Falls, NY; Spliting (1974), dividindo ao meio uma casa em Nova Jérsei; Day’s end (Pier 52) (1975), ilegalmente executado em um galpão da borda portuária de Manhattan; o emblemático Conical Intersect (1975), comissionado pela Bienal de Paris para ser executado em um edifício de século XVII em processo de demolição no bairro do Marais em Paris, para dar lugar ao então polêmico Centre Georges Pompidou; Office Baroque (1977), em um edifício de escritórios em Antuérpia; Circus or the Caribbean Orange (1978), em um edifício de Chicago. Mas, de toda sua produção artística, amplamente investigada e interpretada por críticos de arte e acadêmicos da arquitetura, outras quatro obras menos conhecidas, que têm em comum o espaço urbano e não o arquitetônico como as obras acima, serão inventariadas aqui como exemplos das experiências do Trapeiro contemporâneo: os registros em vídeo “Substrait (underground dailies)” (1976), “City slivers” (1976) e “Sous-sols de Paris (Paris underground)” (1977); e a obra-processo-conceito “Reality Properties: Fake Estates” (1973-4).

1 Uma tradução mais literal da palavra “fallow” poderia ser “terreno baldio”, “terra não cultivada” ou “o intervalo nas plantações ou entre as trocas de culturas, quando deixa-se o terreno arado mas não semeado”. 2

Projetos financiados pela concessão de bolsa na Fundação John Simon Guggenheim Memorial.

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Puros registros documentais2, tanto em SUBSTRAIT (UNDERGROUND DAILIES), filmado em 1976 com película 16mm com som, variando cenas preto e branco e cenas coloridas, quanto em SOUS-SOLS DE PARIS (PARIS UNDERGROUD), filmado em 1977


com equipamento Super 8 com som e preto e branco, Gordon Matta-Clark se aventura pelos subterrâneos das cidades de Nova York e Paris, respectivamente, explorando a complexidade dos espaços subsolos, em uma mistura de arqueólogo (escavando e revelando), geólogo (mapeando “cavernas”) e etnógrafo urbano (habitantes ausentes, suas infra-estruturas, seus rastros subterrâneos, ou mesmo os habitantes roedores da cidade). Os dois filmes apresentam, em 30 e 26 minutos respectivamente, cenas de ruínas arquitetônicas, garagens abandonadas, túneis de esgoto, águas pluviais, metrô e rotas das antigas revoluções (em Paris), porões, criptas e ossários das catacumbas parisienses, cemitérios clandestinos, fundações, etc. Matta-Clark e seus amigos acompanhantes revelam, em cenas sombrias e silenciosas, apenas interrompidas pelos fortes fachos de luz das lanternas dos investigadores e ruídos abafados da cidade ou do funcionamento de algum equipamento subterrâneo ativado pela cidade lá de cima, o outro lado das cidades: os fundos, os subterrâneos, o que está por trás. Por trás de todo o funcionamento urbano e da prometida racionalidade e praticidade das cidades em acelerado processo de modernização. O que vemos nas cenas desses filmes é o lado sujo, mas necessário, que é escamoteado, disfarçado, escondido, mantido em segredo, de locais emblemáticos e simbólicos dentro da “imagem” que ambas cidades produziram, ou pretendiam produzir, como forma de evidência de seu progresso e evolução modernizadora: o bairro entorno da Ópera em Paris e as áreas em torno da Grand Central Station, ou da 13th Street em Manhattan.

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Substrait (underground dailies), NY, 1976.

Sous-sols de Paris (Paris underground), 1977.


City Slivers, 1976.

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Um exercício documental explorado de maneira distinta no filme CITY SLIVERS, filmado nas ruas e calçadas de Nova York durante o ano de 1976. Usando fita isolante preta, Gordon Matta-Clark cobre parcialmente a lente da sua câmera Super 8, fragmentando o enquadramento das cenas filmadas em estreitas tiras verticais. Cenas curtas, coloridas e sem som algum, que oferecem vislumbres da vida urbana cotidiana, captando o ritmo sincopado e as texturas da cidade: vemos, como voyeurs escondidos observando pelas frestas, nesgas da cidade, vistas aéreas de avenidas cheias de taxis amarelos, o Empire State Building reinando no horizonte de Manhattan, pessoas se deslocando em esquinas, calçadas e portas giratórias dos grandes edifícios. Vemos a arquitetura estática contrastada pelo fluxo entrecortado do tráfego de veículos e pedestres. Diferente dos filmes anteriores, aqui temos uma documentação dos movimentos ordinários e cotidianos da cidade como exercício poético e visual de Matta-Clark, certamente experimentando os vazios e recortes arquitetônicos sendo deslocados para o espaço urbano.


Mas o trabalho de Matta-Clark que mais nos interessa nesse momento – talvez o menos interessante dentro do mercado da arte – é a “obra”, ou seria melhor dizer, materiais de uma coleção inacabada e não processada pelo artista, chamada REALITY PROPERTIES: FAKE ESTATES, de 1973-4. Uma “obra” que coloca em evidência um debate sobre as vicissitudes da propriedade e do capital numa sociedade onde qualquer pedaço de poeira e terra é assumida ter um alto valor e forte poder de troca, onde a terra, o território é commodity. Em outubro de 1973, após completar 30 anos, Matta-Clark foi convidado pela amiga Alanna Heis, curadora e produtora artística, a acompanhá-la em um leilão de bens imobiliários no Hotel Roosevelt, onde a prefeitura da Cidade de Nova York ofereceria propriedades que, por pleitos, falta de pagamento de impostos ou simples abandono de seus proprietários, passaram para as mãos do Estado. O artista aceitou o convite prontamente, pois já estava familiarizado a visitas a órgãos públicos em busca de autorizações e demais licenças burocráticas para as reformas e ocupações dos lofts no SoHo, e também por se sentir fascinado e intrigado com os registros abstratos e “incompreensíveis” gerados pelo sistema burocrático enquanto pesquisa e coletava materiais para a exposição do “Anarchitecture”. Durante as sessões de oferta de imóveis variados em localizadas variadas, Matta-Clark se deparou com alguns terrenos peculiares, os “gutterspaces”. Lascas, nesgas, fatias de terra impensáveis sob o ponto de vista urbano e construtivo sendo oferecidos em leilão por preços que variavam entre U$ 25 a U$ 75. Demonstrações cômicas e trágicas da irracionalidade do “real estate” (Bens imóveis ou Mercado Imobiliário), que aplica um valor monetário em parcelas inúteis, inacessíveis e irregulares (tanto em sua forma quanto em sua lógica legal) em esquinas aleatórias do Queens. Adjetivos utilizados pela própria empresa leiloeira nos catálogos distribuídos durante as sessões. Todos inúteis, impossíveis de serem ocupados por qualquer instalação imobiliária por conta de suas dimensões irrisórias (30 centímetros de largura), muitos deles inacessíveis sem a invasão de propriedades alheias. Tais nesgas eram os resultados acidentais da colisão entre a “urbanização” e a “paisagem rural”. Restos decorrentes da “passagem da modernização”, como poeticamente percebido por Baudelaire (1971). São lotes inúteis desenhados como depósitos de frações desalojadas dos vizinhos “maiores”, de alinhamentos impostos, racionalizados e abstratos sobre o território real, irregular e temporal. Alinhamentos rurais refletem água, desníveis, condições do solo; a grelha urbana racionaliza a paisagem e suprime obstáculos topográficos e outras esquisitices naturais. Propriedade é propriedade, é claro, mas como ela é mensurada e vendida muda profundamente uma vez que a paisagem rural é urbanizada. (KASTNER, 2005, p. 36)

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O fascínio de Matta-Clark por tais nesgas foi instantâneo, basta pensarmos nas questões pontuadas em “Anarchitecture”. Aqueles “espaços entre lugares”, “vazios demarcados por fronteiras”, fatias de cidade abandonadas, mereciam sem resgatados, resignificados, colecionados. Uma coleção de nesgas, de pequenos pedaços de cidade, de trapos imobiliários resultados da modernização e racionalização do território urbano. Bens Reais (Reality Properties), concretos, transformados pela racionalidade em Propriedades Fictícias (Fake Estates), impróprias e inapropriáveis.


Nos meses seguintes, ele e seu assistente Manfred Hecht, participaram de alguns leilões, adquirindo ao todo 15 desses “lotes estranhos”, trapos imobiliários; Catorze no Queens e um em Staten Island3: 1. Reality Properties: Fake Estates4 – “Little Alley” (1974)

Quadra 2497, Lote 42

Forma retangular. Dimensões – 0,85 x 30,5 m

2. Reality Properties: Fake Estates – “Borden Avenue” (1973)

Quadra 209, Lote 160

Forma triangular. Dimensões – 0,8 x 6,2 x 6,3 m

3. Reality Properties: Fake Estates – “49th Street (with dogs)” (1973)

Quadra 138, Lote 107

Forma trapezoidal. Dimensões – 0,35 x aprox. 30 x aprox. 31 x 1,9 m

4. Reality Properties: Fake Estates – “Jamaica Curb” (1974)

Quadra 10142, Lote 15

Forma retangular. Dimensões – aprox. 0,9 x aprox. 70 m

5. Reality Properties: Fake Estates – “Long Alley” (1973)

Quadra 3398, Lote 116

Forma retangular. Dimensões – 0,71 x 108,2 m

6. Reality Properties: Fake Estates – “Maspeth Onions” (1973)

Quadra 2406, Lote 148 (inacessível)

Forma quadrilátero irregular. Dimensões – 1,25 x 1,6 x 1,5 x 1,8 m

7. Reality Properties: Fake Estates – “Woodside Driveway (no dogs)” (1973)

Quadra 2286, Lote 110

Forma retangular. Dimensões – 0,3 x 29 m

8. Reality Properties: Fake Estates – “Glendale Sliver (behind houses)” (1973)

Quadra 3660, Lote 140 (inacessível)

Forma trapezoidal. Dimensões – 0,43 x 0,8 x aprox. 42,7 m

4 O nome oficial da coleção de nesgas nunca foi estipulado por Matta-Clark. Quando mencionado por ele, usava termos genéricos como “os lotes”, “meus terrenos”, “aqueles espaços no Queens”. Entre amigos e contemporâneos de Matta-Clark a coleção era chamada de “Fake Estate”, “Fake Estates”, “Realty Positions: Fake Estates”, “Gordon’s real estate Project”. O nome atual foi oficializado por Jane Crawford e os curadores do Guggenheim Museum de Nova York, no momento da aquisição de alguns dos painéis montados.

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3 A sequência, a numeração, os diagramas e mapa geral de localização apresentados a seguir foram produzidos pelos editores do livro “Odd Lots: Revisiting Gordon Matta-Clark’s Fake Estates” (2005). Os nomes dados aos lotes e a colagem e montagem em painéis dos documentos e fotos foram realizados em 1992 pela viúva de Matta-Clark, Jane Crawford.


9. Reality Properties: Fake Estates – “Sidewalk grass” (1973)

Quadra 1107, Lote 146

Forma retangular. Dimensões – 0,34 x 0,56 m

10. Reality Properties: Fake Estates – “Long Island City (Grassy parking place)” (1973)

Quadra 556, Lote 103 (inacessível)

Forma trapezoidal. Dimensões – aprox. 4,6 x 3,35 x 5,05 x aprox. 3,35

11. Reality Properties: Fake Estates – “Rego Park (cement parking)” (1973)

Quadra 3165, Lote 155 (inacessível)

Forma trapezoidal. Dimensões – aprox. 13,1 x 0,86 x 13,4 x 1,8 m

12. Reality Properties: Fake Estates – “Maspeth Lawn” (1973)

Quadra 2366, Lote 241

Forma triangular. Dimensões – aprox. 2,1 x aprox. 4,9 x aprox. 4,27 m

13. Reality Properties: Fake Estates – “Long Island City (behind stores)” (1973)

Quadra 624, Lote 141 (inacessível)

Forma retangular. Dimensões – 0,3 x 30,5 m

14. Reality Properties: Fake Estates – “Staten Island” (1973)

Quadra 1224, Lote 12

Forma retangular. Dimensões – 0,6 x 7,67 m

15. Reality Properties: Fake Estates – “?” (1973)5

Quadra 672, Lote 106 (inacessível)

Forma triangular. Dimensões – aprox. 5,2 x aprox. 4,6 x aprox. 7,0 m

Ao observar tais formatos e dimensões, algumas perguntas se fazem presentes e incômodas pela evidente falta de respostas, mesmo após exaustivas pesquisas de suas origens em documentos oficiais6: Porque essas nesgas não foram incorporadas nos terrenos adjacentes no momento do reparcelamento? Porque elas foram mantidas na lista de lotes para cobrança de impostos? Foi uma ação intencional ou o resultado de uma incompetência burocrática? O que importa aqui é que nosso Trapeiro Contemporâneo as encontrou e “salvou”. Assumiu a posse, como um colecionador. Após a aquisição nos leilões, Matta-Clark reuniu uma série de documentos, matrículas, vias de taxas e impostos, plantas cadastrais do parcelamento de cada um dos seus 15 itens da coleção de nesgas. Com plantas e endereços em mãos, o artista/trapeiro foi à

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5 Lote “doado” por Matta-Clark para seu amigo Jaime Davidovich em 1975, enquanto filmavam o material do vídeo “Queens Project” (7 min. | preto e branco | com som). 6 Ver detalhes desta pesquisa na tese de doutorado apresentada por Julia Buenaventura em 2014 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.


procura e resgate dos lotes, visitando e fotografando minuciosamente, quando possível, cada um deles. Matta-Clark pretendia resignificar todo aquele material em uma obra de arte conceitual, assim como explicou para o jornalista Dan Carlinsky, da coluna Bens Imobiliários do jornal The New York Times, em artigo publicado no dia 14 de outubro de 1973: A obra de arte consistirá de três partes: uma documentação escrita da parcela de terra, incluindo dimensões precisas e sua localização, e talvez uma lista de ervas daninhas que crescem lá; uma fotografia em escala 1:1 da propriedade, e a propriedade em si. As duas primeiras partes serão apresentadas na galeria, e os compradores da obra de arte deverão adquirir também a escritura do lote. (...) Eu compro pequenas propriedades porque elas são manipuláveis – eu consigo pendurar as fotografias numa parede de galeria. Eu tenho uma peça que mede 1 pé por 95. A fotografia terá 1 por 95 pés. Terá que ser uma longa parede. (...) Outra parcela que comprei me parece, pelo catálogo, que não consigo nem acessá-la, o que não é um problema para mim. Essa é uma qualidade interessante: alguma coisa que pode ser possuída mas nunca experimentada. Isso é, em si, uma experiência. (In: KASTNER, 2005, p. 45. Tradução livre do autor)

Apesar de não ter sido editada e concluída por Matta-Clark, a coleção de nesgas do artista/trapeiro é singular e representativa, mesmo com uma história mitificada pelos amigos e críticos e cheia de furos e lacunas. O valor está exatamente na sensibilidade do colecionador em perceber aqueles trapos imobiliários (contraditoriamente reais e abstratos) que resistiam perante a modernização cartesiana e racionalizada do espaço urbano. “Objetos” esquecidos, invisíveis, mas reais e presentes no cotidiano da cidade que, se e quando observados e manipulados com a astúcia do Trapeiro, evidenciam e expõem as fronteiras fictícias criadas pela racionalidade, fronteiras arbitrárias que revelam propriedades sem bens, cuja existência só pode ser comprovada mediante o documento, que suplanta a própria coisa referenciada. Ou seja, bens possuídos que só

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Infelizmente nada disso foi concretizado. Logo depois de realizado o minucioso inventário, Matta-Clark guardou todo seu acervo, sem edição alguma, em uma caixa de papelão e a deixou as cuidados de Norman Fisher, amigo e colecionador, que demonstrou grande interesse e admiração pelo conceito e potência do porvir da obra e prometeu-lhe manter os pagamentos fiscais de cada um dos lotes em dia. Com a morte inesperada de Fisher em 1977, a caixa de papelão e seu conteúdo (mais uma vez desprezado) foram encaminhados a Tina Girouard, responsável pelo espólio. Esta, sabendo do valor possível que o conteúdo da caixa poderia ter, tenta devolvê-la a Matta-Clark, sem sucesso. Após a morte, também prematura e inesperada, de Matta-Clark no ano seguinte, Tina acabou por entregar o material de “Fake Estates” para a viúva Jane Crawford. Mas como Crawford conhecera Matta-Clark apenas em 1976, este trabalho era praticamente desconhecido por ela. A caixa, guardada em um closet, só foi reaberta e manipulada novamente em 1992, por conta de uma exposição retrospectiva de Matta-Clark no museu valenciano IVAM. Naquele momento descobriu-se que nenhuma das taxas e impostos devidos pelas propriedades dos lotes haviam sido pagos durante aqueles quase 20 anos, fazendo com que as parcelas e nesgas voltassem ao poder municipal. É nesse momento que o material “cru” foi editado, organizado e montado como conhecemos hoje, inclusive sua nomenclatura foi inventada e “oficializada”.


podem ser vistos e experimentados de fora, literal e metaforicamente. Metáforas tão apreciadas por Matta-Clark. O que eu queria era, basicamente, designar espaços que não poderiam ser vistos e certamente não ocupados. Comprá-los foi a minha visão pessoal sobre a estranheza da existência de linhas de demarcação de propriedade. A propriedade é onipresente. A noção comum de posse é determinada pelo fator do uso. (Gordon Matta-Clark em entrevista a Liza Bear para a revista Avalanche, 1974. In: KASTNER, 2005, p. 65. Tradução livre do autor)

Trapos imobiliários deixados para trás como erros do sistema... Encontrados, mas não levados. Colecionados.

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O erro, longe de se mostrar a si próprio, mostra o sistema em conjunto. Um lote normal apareceria como autônomo, como se, inclusive, pudesse existir num outro lugar da cidade, do mundo, fosse independente de sua trama. Enquanto um lote anormal revela que seu pedaço de terra é único, não pode ser repetido, o que leva de imediato a especular sobre sua história; já não é um número de pés ou metros quadrados, mas um passado que implica a acordos e desacordos que deixaram seus rastros nos cortes. (BUENAVENTURA, 2014, p. 27)


Mapa do Queens de 2005, com indicações da localização de 14 dos lotes de “Fake Estate”. Elemento gráfico especialmente produzido para compor o livro “Odd Lots...”

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Pasta de papel com esquemas formais e dimensionais dos lotes, onde MattaClark guardava parte dos documentos e fotografias das nesgas urbanas adquiridas.


Lote 1 Reality Properties: Fake Estates -

“Little Alley” (1974)

Quadra 2497, Lote 42

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Forma retangular. Dimensões do lote – 0,85 x 30,5 m


Lote 2 Reality Properties: Fake Estates -

“Borden Avenue” (1973)

Quadra 209, Lote 160

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Forma triangular. Dimensões do lote – 0,8 x 6,2 x 6,3 m


Lote 5 Reality Properties: Fake Estates –

“Long Alley” (1973)

Quadra 3398, Lote 116

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Forma retangular. Dimensões do lote – 0,71 x 108,2 m


Lote 6 Reality Properties: Fake Estates –

“Maspeth Onions” (1973)

Quadra 2406, Lote 148 (inacessível)

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Forma quadrilátero irregular. Dimensões do lote – 1,25 x 1,6 x 1,5 x 1,8 m


Lote 9 Reality Properties: Fake Estates –

“Sidewalk grass” (1973)

Quadra 1107, Lote 146

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Forma retangular. Dimensões do lote – 0,34 x 0,56 m


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