Sebastião Pé-na-Estrada

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2010


To “My” Children...


rummmmmmmm... lá íamos nós de novo pela estrada afora: eu, a Charlote e o Príncipe-Encantado rumo à casa da Vovó-Gato. Da nossa casinha, nas montanhas geladas do norte, até a casa ensolarada da vovó, lá embaixo, na praia, são quase novecentos quilômetros. Eu fico enjoado dentro do carro, mas me comporto como um lorde inglês.


propósito, para quem não me conhece ainda, meu nome é Sebastian, mas pode me chamar de Sebastião mesmo. Sou um gato persa e esta história não é “para inglês ver”!


aímos de casa na hora prevista. E parece que o resto da cidade também, porque chegamos todos juntos à alfândega, na fronteira. Sair da Suíça é fácil, difícil é entrar. Então, depois do primeiro de uma série de pequenos engarrafamentos de veraneio, rumamos ao sul: oba! Içar velas e levantar âncoras!


a auto-estrada, infestada de carros, carrinhos e carrões, vê-se de tudo um pouco. Bem pouco, diga-se de passagem, porque a velocidade é inimiga da apreciação, como diria Charlote, minha dona. À medida em que vamos descendo o rio, a quantidade de carros vai diminuindo e a natureza vai tomando conta da viagem.


estrada começa a estreitar até virar uma rua simples de mão-dupla. A rua vira um riozinho calmo. Que termina em um riacho, uma pequena nascente, singela, borbulhante, onde tudo começa: a casa da gente.


urante a viagem rumo ao sul, o sol vai chegando mais perto e as årvores começam a crescer atÊ o verde virar plural com nome e sobrenome: verde-claro, verde-escuro, verde-piscina, verde-ågua, verde-militar, verde-bandeira, verde-abacate, verde-esmeralda...


Vovó-Gato mora com o Vovô-Gato e eles têm um Netinho-Gato, levado-da-breca! O Netinho-Gato tem uma Mãe-Gato. A Família-Gato é como se fosse a minha própria família, por isso todos eles têm o mesmo sobrenome. A casa da Família-Gato é grande o bastante para abraçar todos nósde um só vez.


inda bem, porque quando a gente chega lá, é o maior chamego: beijinho para cá, presente pra lá, abraço-apertado com ele, cheiro-no-cangote daquele outro... uma gataria geral!


casa da Família-Gato não tem janelas de biscoito, nem telhado de chocolate, nem paredes de marzipã, mas é uma delícia. Foi o Vovô-Gato quem planejou e construiu a casa todinha. Do chão até o teto!


uando a gente chega, ocupa o andar de cima da casa, que era onde moravam os Bisavós-Gatos. A Vovó-Gato pensa que os Bisavós-Gatos moram no céu, mas, cá entre nós, eles ainda moram no andar de cima da casa. Mas o único que sabe disso sou eu... shhh! Segredo secreto. Além do mais, isso é assunto para outra história...


Vovô-Gato estava dodói, mas finalmente ficou bom! Ele e a Vovó-Gato tiveram o câncer. Coitadinhos. Eu sei disso porque ficava escutando as conversas debaixo da mesa, no maior respeito. Também sei que o câncer é uma doença grave. As pessoas morrem de medo dele porque a maioria dos doentes não consegue se recuperar.


s médicos dizem que ainda não sabem como a gente pega o câncer, mas eu acho que depende bastante do que a gente coloca dentro da gente seja pela boca, pelo nariz, pelo ouvido, pelo umbigo, pelos olhos, pelo cérebro, pelo coração...


a minha opinião de gato, o câncer é uma doença de dentro-para-fora: a gente leva ela para dentro da gente (em forma de lata, porcaria, xantana, aditivo, corrosivo, glutamato, carbonato, raiva, revolta, poluição e maquinação), e para se livrar dela tem que se virar do avesso, de dentro para fora, mudar completamente de vida.


em essa mudança de dentro para for a não há quimioterapia, radioterapia, meditaçã, zen, novena ou reza forte que dê jeito! Ufa, ainda bem que o Vovô-Gato e a Vovó-Gato ficaram bons porque eles são umas fofuras! Nós estamos indo até lá para festejar a boa notícia em família!


primeira parada na estrada a gente nunca esquece: “pipi-café-chiclé”... Ufa, a planície padana italiana, mundana e fashion ficou para trás junto com seus carros de grife e suas pessoas de luxo. Agora vamos encarar umas montanhas pela frente: os Apeninos.


ontanha na estrada é sinônimo de curvas. Muitas delas. A estrada praticamente vira uma serpente cheia de voltas, um novelo-de-lã-emaranhado, uma macarronada... hum, que fome! Entre uma curva e outra, túneis. Muitos túneis. Longos, curtos, largos, estreitos. Todos iluminadíssimos. Cenário de ficção científica.


ossa espaçonave de rodas saiu de um buraco negro no espaço sideral para um planeta verde que flutuava na nossa frente. Nossa missão agora é de apreciação, então a velocidade tem que ser lenta, mesmo que os demais veículos literalmente voem ao nosso redor!


egundo meu amigo-gato Roquefort, gatos são seres galácticos, extra-terrestres enviados de outros planetas, infiltrados entre nós para nos ensinarem a amar outros seres. Concordo com ele! Atenção: gravidade zero! Vejo biscoitos deliciosos flutuando na minha frente: nhac!


por falar em coisa estranha... Eis uma montanha esquisita passando do lado de fora da minha janela. Ela é feita de lixo. De longe parece uma montanha comum, mas não é. É só um monte de lixo mesmo. Em cima, as gaivotas denunciam a verdadeira identidade do monstro montanhoso.


á medo só de olhar. Imagina morar em cima disso! As pessoas compram, compram e compram. Depois jogam tudo fora. Um movimento cíclico que não acaba mais. Uma doença, um vício, uma droga! Então, tudo que elas jogam fora se transforma em montanhas de lixo.


Charlote, minha dona, me contou que as montanhas de lixo de hoje viram as colinas residenciais de amanhã. “Basta construir casas e prédios, plantar umas gramas, colocar uma placa chique e todo mundo compra casa em cima do que foi, um dia, uma descarga de lixo”.


ior que filme de horror. Depois, todo mundo fica doente de câncer e não sabe o motivo. Credo! No Brasil, ainda tem muito espaço para esconder as montanhas de lixo, mas o fato de não ver o lixo não faz com que ele desapareça. Ele está lá... poluindo tudo.


qui, na Itália, não tem mais onde esconder o lixo que as pessoas produzem diariamente. Se fosse na Alemanha, eles já teriam pago para algum país pobre “processar” o lixo deles. De todos os bichos que eu conheço, o único que não recicla, não se transforma e produz lixo e poluição é o bicho-Homem!


iuíííí... toda vez que o trem que passa na ferrovia ao lado da estrada aposta corrida com a nossa nave espacial de rodas, a gente perde. Mas não tem importância, porque estamos quase chegando na casa da Família-Gato!


base da dieta da Família-Gato é mediterrânea, ou seja, muita azeitona, azeite, peixe, mussarela, tomate, brócolis, pimentão, couve-flor e tudo bem orgânico, diretamente do jardim do Vovô-Gato. As frutas e verduras do pomar dele são tão gostosos que já ficaram famosos: “Produtos Artesanais de Giulius”! Eu e minhas idéias brilhantes...


O Vovô-Gato planta e a Vovó-Gato cozinha! Perfeito! A coisa mais gostosa que a Vovó-Gato prepara é o nhoque de batatas com molho de tomates do pomar de casa. Hummm... quando a gente chega lá, tem sempre alguma coisa gostosa para comer. Uma maravilha!


s comidinhas que a Vovó-Gato cozinha são muito mais quentinhas que qualquer outra. A Charlote fala que é porque ela coloca muito amor no cardápio, então a comidinha dela fica tão quentinha que preenche o frio do estômago e do coração, ao mesmo tempo.


la também fala que a gente teve muita sorte de ter uma família assim: amorosa, unida, carinhosa, que mora em uma casa espaçosa, com uma horta maravilhosa, onde a gente pode plantar e colher tudo o que a gente quiser e puder. Ai, ai... já estou sonhando com os quitutes da Vovó-Gato.


é-na-Estrada, porque deixamos a entrada de Roma para trás. Vejo os últimos quilômetros da nossa viagem, a nossa frente, e eu já estou sentindo o cheirinho do mar. Olha lá ele! Verde sem fim e bem brilhante. Eu acho o mar lindo! De longe. Um peludo como eu nem passa perto da areia da praia.


as admiro a Charlote e o Netinho-Gato porque eles entram no mar logo que chegam na praia e sĂł saem lĂĄ de dentro na hora de ir embora para casa. Uma vez atĂŠ perguntei para eles se eles eram peixes. E sabe qual foi a resposta? Blup!!!


utra coisa que eu gosto do mar é a brisa. Hum... que delícia! É tão gostosa que tem até cheiro. A brisa do mar chega lá na casa da Família-Gato, entra pela janela e me cutuca embaixo da cama, onde eu me escondo para dormir sossegado.


uando a brisa entra pela janela, eu fico doido e saio flutuando como um tapete mágico. Melhor que o cheiro de brisa do mar só o cheiro de casa, da casa da gente, onde a gente chega e parece que entrou em um ninho de passarinho de tão aconchegante e acolhente. Olha a casa da Família-Gato ali, gente!


hegamos! O Príncipe-Encantado estaciona a espaçonave e todo mundo vem falar com a gente. Sou um astro, uma celebridade. Todos querem me tocar, me abraçar, me beijar. Não distribuo autógrafos, somente sorrisos. Então ganho muitos elogios: “- Hum, como ele é fofinho! - Hum, como ele é lindo!”


o meio deste abraço coletivo familiar, percebo que tem outro felino entre nós! Um gatinho bem pequenino e cheio de energia. Ele é muito criança ainda e vai precisar de uns ótimos conselhos para cuidar da Família-Gato. E, por coincidência, eu sou excelente conselheiro, além de gato-mais-velho.


orte do gatinho! E sorte minha também, porque agora vou ter companhia! “Muito prazer, gatinho, eu sou seu primo mais velho! Meu nome é Sebastião, como é o seu? Venha aqui que eu vou ensinar algumas coisas para você crescer como um autêntico gato feliz... aceita um chocolate suíço? Miau!”




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