Revista Argumento - Ed. nº 18

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Aos leitores Diversos magistrados conectados e debruçados em estudar e analisar processos judiciais, com vistas a identificar e monitorar demandas repetitivas ou com potencial de repetitividade. Assim é o Centro Nacional e os Centros Locais de Inteligência da Justiça Federal, que foram instituídos pela Portaria nº 369, de 2017, da Corregedoria Geral da Justiça Federal, com os objetivos de aperfeiçoar o gerenciamento de precedentes e estimular a resolução dos conflitos ainda na origem e, assim, evitar a judicialização indevida. Uma suposta ilegalidade na técnica adotada por pescadores do Rio Grande do Norte para a pesca da lagosta, utilizada desde meados dos anos 1970. Servidores públicos que tiveram seus nomes inscritos no Serasa, por solicitarem empréstimos consignados e os órgãos municipais aos quais estavam ligados, apesar de recolherem os valores, não repassaram ao banco credor. Beneficiários da pensão por morte que, ao terem o pagamento do valor cessado, entraram na Justiça Federal, simplesmente por desconhecerem que, desde 2014, o benefício passou a ser temporário. Essas e outras demandas ganharam novos rumos no Judiciário devido à atuação dos Centros de Inteligência, cujos funcionamento, objetivos, impactos e resultados podem ser conferidos na reportagem de capa desta edição da Argumento. A 19ª edição também traz matérias sobre projetos inovadores na área de Tecnologia da Informação, que buscam melhorar a gestão de processos e aumentar a produtividade e a celeridade processual, por meio do uso de smartphones, e sobre o dia a dia e os desafios dos oficiais de Justiça. Traz, ainda, matérias sobre o abandono das ferrovias brasileiras, outrora essenciais à economia nacional, e o fim do conflito judicial, após 15 anos, no Território Indígena Pankararu. Além dessas, a atual edição contém um artigo do desembargador federal Élio Siqueira, sobre os 30 anos da Constituição Federal, e uma reportagem sobre os servidores do TRF5 que são irmãos, na seção Extra-autos. A seção À Luz dos Direitos é ocupada pelas cores, pela arte e pela alegria que a fotógrafa Roberta Mariz encontrou nas ruas do Recife Antigo, durante o evento Rua!, permeada por textos do juiz federal Francisco Barros. Em Sentir, o desembargador federal Edilson Nobre confessa saudades da Guerra Fria devido às divergências políticas que têm provocado uma guerra virtual e de narrativas. Abram a revista e aproveitem a leitura! Isabelle Câmara Editora


Expediente Presidente Des Fed Manoel Erhardt Vice-Presidente Des Fed Cid Marconi Corregedor-Regional Des Fed Paulo Cordeiro Desembargadores Federais Lázaro Guimarães Paulo Roberto de Oliveira Lima Vladimir Carvalho Rogério Fialho Moreira Edilson Pereira Nobre Júnior Fernando Braga Roberto Machado Carlos Rebêlo Júnior Rubens Canuto Alexandre Luna Élio Siqueira Leonardo Carvalho Edição Isabelle Câmara Projeto gráfico André Garcia Textos Christine Matos, Cínthia Carvalho, Débora Lôbo, Felipe Oliveira, Isabelle Câmara, Jennifer Thalis, João Bosco Coelho, Juliana Aguiar, Ananda Barcellos e Sarah Porto Apoio à Pesquisa Gabinete da Revista Capa André Garcia e Rachel Hopper Revisão Joana Carolina Lins Pereira e Nivaldo Vasco Fotografias Juliana Galvão e Roberta Mariz Editoração André Garcia e Rachel Hopper @TRF5 Portal TRF5: www.trf5.jus.br Twitter: http://twitter.com/TRF5_oficial Curta nossa fanpage: https://www.facebook.com/TRF5a Instragram: trf5_oficial Fale conosco: argumento@trf5.jus.br

Ilustrações Júlia Arruda Apoio Francisco Macena e Alessa Lira Jornalista Responsável Isabelle Câmara DRT/PE 2528


Sumário

À Luz dos Direitos

Uma rua vestida de cores. O Recife Antigo em arte e alegria, pelas lentes da fotógrafa Roberta Mariz

24

Veredicto

8

Os 30 anos da Constituição Federal, em artigo do desembargador federal Élio Siqueira

Sociedade e Direitos

34

Fundamentais

40

Hoje abandonadas, as ferrovias brasileiras são a alternativa mais competitiva e menos poluente em um país dependente do transporte rodoviário

Justiça Federal em Pernambuco determina desintrusão dos não índios da Terra Indígena Pankararu

4 Extra-autos

Eles já dividiram os mesmos pais e brinquedos. Mas, hoje, dividem o mesmo ambiente de trabalho: os servidores do TRF5 que são irmãos

10 Justiça Digital

TRF5 desenvolve projetos na área de Tecnologia da Informação para melhorar a gestão de processos e aumentar a produtividade

15 Capa

Centros de Inteligência da Justiça Federal reúnem magistrados em torno de um único objetivo: prevenir e evitar a judicialização indevida

47 Transparência

Acordar de madrugada, transitar em terrenos acidentados, ter portas fechadas na cara. Conheça a desafiadora rotina dos oficiais de Justiça

51 Em dia com a Lei

Panorama das decisões judiciais do TRF5

52 Sentir

O desembargador federal Edilson Nobre confessa saudades da Guerra Fria


Extra-autos

Entre irmãos Alguns servidores do TRF5 compartilham, além do mesmo ambiente de trabalho, a mesma família. Pessoas que ingressaram no Tribunal especialmente por se sentirem motivados pelas conquistas daqueles com quem já dividiram a casa, o quarto, os brinquedos e até as brigas: os irmãos Sarah Porto


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Emmanuelle e Amanda. Geraldo e Ricardo. Ana

“Ricardo pediu o meu currículo para sugerir aos res-

Carla e Adriana. Geraldo e Gileno. As semelhanças

ponsáveis. Quando ele levou para a Direção Geral, o

entre essas duplas ultrapassam os laços sanguíneos

meu perfil se encaixava exatamente na demanda do

ou os sobrenomes em comum. Servidores do Tribu-

momento. Os passos seguintes ao andamento do pro-

nal Regional Federal da 5ª Região – TRF5, os quatro

cesso de remoção foram rápidos e, em menos de um

duetos de irmãos trilharam diferentes jornadas pro-

mês, eu estava aqui”, relembrou o irmão mais velho.

fissionais para hoje desfrutarem, além da convivência

A volta de Geraldo para o Recife permitiu não

familiar, do mesmo ambiente de trabalho.

só a congregação familiar total, mas, também, o es-

Geraldo Alves da Silva Júnior, 44, é bacharel em

treitamento dos laços entre os irmãos, após 17 anos

Ciências Militares (Academia Militar das Agulhas Ne-

de separação física. “O nosso trabalho aqui no TRF5

gras – Aman) e o irmão mais velho de Ricardo Cesar

permite que sejamos ainda mais unidos, pois nos

Almeida da Silva, um ano mais novo, que, por sua

possibilita usufruir as férias, os feriados e o recesso

vez, é formado em Ciências Contábeis e graduando

juntos, estando com a nossa família. Basta que nos

em Design de Interiores. O primogênito hoje atua na

organizemos e todo mundo pode participar”, ressal-

parte administrativa do Gabinete do desembargador federal Vladimir Souza Carvalho, mas, para chegar à sede do TRF5, contou com um apoio especial do irmão mais novo. Aos 19 anos, Geraldo saiu de casa para começar um novo desafio no Rio de Janeiro (RJ). Envolto na carreira militar, apenas em 2004 prestou o concurso para o Tribunal Regional Federal, porém da 2ª Região. Convocado em 2006, a possibilidade de permuta entre os tribunais despertou ainda mais o desejo do servidor em voltar para casa, após tantos anos distante na terral natal. Um concorrido concurso de remoção nacional ainda representava um entrave à reunião familiar, fazendo com que os caminhos dos irmãos parecessem longe do almejado reencontro. Três anos após a posse de Geraldo no Rio de Janeiro, surgiu na sede no TRF5 a necessidade de uma pessoa especializada para realizar a condução do projeto de padronização dos processos administrativos. Foi a grande chance de Geraldo ser requisitado:

As irmãs Amanda (esq.) e Emmanuelle moram juntas até hoje e saem de casa, juntas, para trabalhar, enchendo a mãe de orgulho


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tou Ricardo, destacando que, apesar das personalidades bem diferentes, ambos têm costumes bem parecidos, como o de fazer atividades físicas. Enquanto Geraldo é adepto da corrida, Ricardo é praticante de futevôlei. “Tivemos poucas oportunidades de sair juntos na juventude devido aos caminhos que a vida levou. Hoje, tentamos correr atrás do tempo perdido. Trabalhar no mesmo lugar nos possibilita mais encontros”, complementou o primogênito.

Gileno (esq.) e Geraldo desfrutam a maior parte do tempo livre juntos, pois além do ambiente de trabalho, dividem a mesma paixão por música, festas de cultura popular e futebol

A trajetória de Amanda até a atuação no TRF5

Seguindo o roteiro de situações inusitadas para,

também teve influência direta da irmã mais velha,

enfim, trabalharem juntos, os caminhos profissionais

Emmanuelle. Hoje lotadas no mesmo andar do Tri-

dos irmãos Geraldo e Gileno pareciam fadados a não

bunal, a escolha da caçula pela sede do Tribunal foi

se cruzarem. Se o caso de Emmanuelle e Amanda

tomada a partir da experiência positiva da irmã, que

só foi resolvido quando as esperanças já quase não

passou no concurso em 2008, motivando-a pela op-

existiam, o dos irmãos Ferreira de Lima beirou o ina-

ção. O que as irmãs não esperavam é que a nome-

creditável, uma vez que Gileno foi nomeado somente

ação de Amanda fosse tão dramática, apenas seis

no último dia de validade do concurso, deixando toda

dias antes do vencimento do concurso que havia sido

a família, principalmente o irmão Geraldo, apreensiva,

realizado em 2012. “Ela ficou até com raiva de mim no

porém orgulhosa desta conquista.

começo, pois a sede (do TRF5) demorou muito para

Geraldo Ferreira de Lima Júnior, 50, é formado

chamar e, se ela tivesse feito para a Seção Judiciária

em Ciências Econômicas e foi convocado para atu-

de Pernambuco (SJPE), teria sido chamada antes. Ela

ar no TRF5 em 1989. Gileno Ferreira de Lima, 46, é

ficou numa colocação que talvez não desse para ser

bacharel em Ciências Contábeis e foi nomeado em

chamada, baseada nas nomeações dos anos anterio-

1996. Apesar das diferenças físicas, ambos compar-

res, mas aos 45 minutos do segundo tempo, deu tudo

tilham a paixão pela música, pelas festas da cultura

certo”, explicou Emmanuelle.

popular e tradicional e pelo time do coração, fazendo

Amanda e Emmanuelle moram juntas com a mãe. De origem humilde, as irmãs enchem a mãe de orgu-

com que, além do laço profissional, tenham a maior parte do tempo livre desfrutada em conjunto.

lho ao saírem de casa para trabalhar no TRF5. Inau-

“Há quatro anos nos programamos para usufruir

gurando uma nova geração na família, elas garantem

as nossas férias juntos, para aproveitar e viajar com

que o labor no Tribunal só agrega à relação entre elas.

nossa família. Trabalhar aqui nos permite esse plane-


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jamento. É muito bom podermos trabalhar no mesmo

Mais fraternidade

lugar, pois, depois que nos tornamos adultos e temos

O TRF5 é um ambiente, curiosamente, cheio

nossa independência, a ponto de sair de casa, natural-

de irmãos e irmãs. Além dos anteriormente citados,

mente nos afastamos, mas trabalhar aqui possibilita a

compõem o quadro de servidores do Tribunal outros

nossa convivência contínua de novo”, disse Geraldo,

fratres, tais como Marcone e Sebastião Campelo;

lembrando, ainda, que a união entre eles é fundamen-

Sandra, Simone e Solange Valença; Jaelson e Joel

tal para servir de exemplo aos filhos de cada um.

Rodrigues; Francisco e Eduardo Soares; Sidney e Sil-

Servidora do TRF5 desde a sua inauguração, Ana

vio Barros; Ulisses e Fernando Ferraz. Para o diretor da

Carla Vila Nova de Oliveira partilha do local de trabalho

Subsecretaria de Pessoal, Onaldo Mangueira, é extre-

com a irmã mais nova, Adriana, há 22 anos. Antes

mamente salutar a presença de irmãos trabalhando

disso, dividiram a graduação em Direito na Faculda-

no âmbito do TRF5. “Quando chega um novo servidor

de de Direito do Recife (FDR/UFPE) e, hoje, seguem a

que já tem um irmão trabalhando no Tribunal, o mais

carreira no Tribunal, levando, para além das paredes do órgão, assuntos e interesses comuns do âmbito laboral. De traços físicos e de personalidades diferentes, Ana Carla inspirou a irmã mais nova a seguir mais um caminho semelhante ao seu. “O fato de eu ver ela bem posicionada, de ter conseguido passar num bom concurso, com boa oportunidade de fazer uma carreira no Tribunal, me fez querer trabalhar no TRF5”, destacou Adriana. Perto de se aposentar, Ana Carla se emocionou ao relembrar o trajeto de quase 30 anos de dedicação ao Tribunal. Contando com família de fato e de consideração, formada durante essas déca-

O trabalho no TRF5 uniu mais ainda os irmãos Geraldo (esq.) e Ricardo, que procuram usufruir de férias, feriados e do Recesso do Judiciário juntos

das, a servidora asseverou que todo o trabalho feito

antigo ajuda apresentando o ambiente, as pessoas,

em prol da Justiça tem como objetivo a satisfação do

os eventos aqui realizados. Facilita também para nós,

público. “Sempre procuramos melhorar o serviço da

pois, quando temos dificuldades de nos comunicar-

Justiça, a prestação jurisdicional para o público. Sou

mos com um no dia a dia, o outro facilita esse con-

muito grata de poder dedicar o meu trabalho a um

tato”, destacou o diretor, enfatizando que todos os

órgão que evoluiu tanto, durante todos esses anos”,

irmãos são do quadro de pessoal efetivo do Tribunal e

finalizou.

lotados em setores distintos.


Veredicto A Constituição que é ou a que foi sem nunca ter sido? Élio Wanderley de Siqueira Filho Desembargador federal do TRF5

A comemoração dos trinta

pelo país nas últimas décadas, um momento a ser

anos da Constituição Federal de

celebrado, por tudo que ela representou e representa

1988 é, inegavelmente, a despeito

para o encontro do Brasil consigo e o seu compro-

de todos os percalços vivenciados

misso com o futuro. Mas reclama dos operadores do


Direito e dos cidadãos reflexões sobre a sua efetivida-

nas esferas federal, estadual e municipal, juram cum-

de, como um instrumento valioso e imprescindível à

prir os seus ditames, no exercício de seus mandatos

consolidação e ao aprimoramento do Estado Demo-

ou de seu múnus público. No entanto, os gestores e

crático de Direito.

parlamentares, via de regra, tão logo tomam posse, já

A Carta Constitucional, apesar de suas vicissitu-

envidam esforços para reformá-la. Às vezes, na pró-

des, traduziu o sentimento plural da sociedade, à épo-

pria disputa eleitoral, eles se comprometem a tal ini-

ca, trazendo significativos avanços em várias áreas,

ciativa. Qual seria a legitimidade para esse proceder?

como nas garantias dos direitos fundamentais, na estruturação do Estado, no desenvolvimento sustentável, no fortalecimento dos três Poderes, no combate às desigualdades regionais e sociais, entre outras.

O juramento teria sido mera

Hoje, ainda são inúmeros os dispositivos que não foram regulamentados e, consequentemente, postos em prática, como aquele que trata do imposto sobre grandes fortunas.

É interessante cha-

retórica? Sem dúvida, é possível a modificação de dispositivos constitucionais, havendo, no próprio texto da Carta Magna, a previsão dos instrumentos para promovê-la (observadas, entre outras, as vedações materiais, no referente ao poder

mar a atenção para o fato de que, em que pesem as

constituinte derivado, representadas pelas cláusulas

sucessivas emendas que, em certa medida, a desca-

pétreas, a exemplo da separação dos Poderes). Mas

racterizaram e a afastaram dos valores que nortearam

não seria razoável que, diante do juramento que foi

a sua concepção, com ampla participação direta ou

exigido como condição para a posse, houvesse o di-

indireta da sociedade, muitas de suas regras sequer

ferimento dos efeitos das aludidas alterações para o

foram testadas, efetivamente implementadas, para

mandato subsequente, como mecanismo necessário

que se pudesse dizer que, de fato, eram inadequadas

para assegurar a fidelidade ao compromisso assumi-

e ineficazes. Hoje, ainda são inúmeros os dispositi-

do?

vos que não foram regulamentados e, consequente-

Enfim, como dizia Millôr Fernandes, “livre pensar

mente, postos em prática, como aquele que trata do

é só pensar”! Que a nossa Constituição Cidadã, tão

imposto sobre grandes fortunas. Alguns já foram su-

plena e tão atacada, continue como norte de nossos

primidos ou alterados, sem que se tentasse aplicá-los

destinos e, principalmente, da atuação de nossos

na realidade fático-jurídica. É o caso, por exemplo, da

agentes políticos! Que os Poderes, harmônicos e in-

limitação dos juros em doze por cento ao ano.

dependentes, com seus sistemas de pesos e contra-

Revela-se tão importante o respeito aos parâme-

pesos, desempenhem seus misteres, sem sobreposi-

tros ditados pela Lei Maior que os agentes políticos,

ção de um sobre os outros, zelando pelo bem comum

no âmbito dos três Poderes (inclusive o Judiciário),

e pelo interesse público!


Justiça Digital

A Justiça na ponta dos dedos Projetos inovadores do TRF5 buscam melhorar a gestão de processos e aumentar a produtividade e a celeridade processual com a ajuda de smartphones e da tecnologia Christine Matos Você conseguiria imaginar,

nossas vidas, revolucionando a forma como vivemos

há alguns anos, que, ao invés de

e trabalhamos. Trata-se de inteligência similar à hu-

usar os dedos, poderia usar a voz

mana, aplicada para desempenhar tarefas altamen-

para programar um despertador

te complexas, algo que vem revolucionado diversos

no seu smartphone? Mais próxima

campos de atuação, como a medicina, por exemplo,

da vida real do que se imagina, a

que já fornece diagnósticos utilizando a Inteligência

Inteligência Artificial e suas diver-

Artificial. E no Judiciário não é diferente; ela passa a

sas aplicações estão infiltradas em

ser inserida em ferramentas que vão diminuir o tempo


11

de tramitação de processos, facilitando o trabalho de

magistrados, servidores e usuários da Justiça Federal

servidores e magistrados, além de ajudar a aprimorar

na 5ª Região, que abrange os estados de Pernambu-

a prestação jurisdicional.

co, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Alagoas e

E a Justiça Federal no Rio Grande do Norte

Sergipe, a Subsecretaria de Tecnologia da Informação

(JFRN) não perdeu tempo, promovendo um hacka-

do Tribunal Regional Federal – TRF5 elencou 20 pro-

thon (maratona de programação) durante a Campus

jetos estratégicos. Chamados de Top 20, as soluções

Party, realizada no mês de abril, em Natal. A compe-

foram elaboradas pela equipe de TI do Tribunal para

tição contou com a mentoria da diretora da Subse-

resolver problemas do dia a dia, aumentar a produtivi-

cretaria de Tecnologia da Informação (STI) do Tribunal

dade e a celeridade processual tão almejada pelos ju-

Regional Federal da 5ª Região – TRF5, Fernanda Mon-

risdicionados. Entre os Top 20, destacam-se os proje-

tenegro, e dos supervisores Ricardo Schmitz (STI) e

tos “Gestão na Ponta dos Dedos”, “Solução Mobile”,

Giselle Schmitz (Secretaria Judiciária), que puderam

“Busca Fácil” e “PJe 2.x JEF”. Um dos projetos terá o

tirar dúvidas e orientar os participantes. Com o tema

uso da Inteligência Artificial, nesse momento em fase

“Justiça na ponta dos dedos”, os participantes da dis-

de estruturação.

puta foram desafiados pela JFRN a criar uma solução

As soluções inovadores vão agilizar os procedi-

com o uso da inteligência artificial e manipulação dos

mentos de trabalho e modernizar a gestão nos Ga-

dados, para análise do Processo Judicial Eletrônico

binetes de desembargadores do TRF5 e nas Varas

(PJe), garantindo celeridade no trâmite das ações. A

Federais da 5ª Região. Havia um gargalo nos Gabi-

proposta vencedora, feita por uma equipe de quatro

netes e varas, assim como, para novos magistrados,

jovens, foi a de uma raspagem dos dados de petições

a necessidade de conhecer melhor o acervo de pro-

iniciais, visando a aplicar informações estatísticas de

cessos existentes. O desembargador federal Leonar-

probabilidade de determinada ação receber provimen-

do Carvalho apresentou a demanda, e a equipe da

to jurisdicional favorável ou não. Fernanda Montene-

STI desenvolveu o “Gestão na Ponta dos Dedos”. O

gro também integrou a comissão de jurados.

painel da ferramenta integra informações dos diver-

“A Justiça Federal no Rio Grande do Norte, mais

sos sistemas processuais, físicos e eletrônicos, além

uma vez, demonstrou seu pioneirismo ao se tornar a

de utilizar indicadores originários de outras soluções

primeira instituição do Judiciário a participar de uma

(Metas 2018, Correição, Justiça em Números, Produ-

edição da Campus Party. Tivemos oportunidade de

tividade e Teletrabalho). As soluções de Analytics (BI)

expor as nossas inovações para toda a comunidade

colocam as informações à disposição do usuário final

e, com os hackathons, termos como legado soluções

com diferencial de qualidade e rapidez, possibilitando

importantes para agilizar e ampliar o acesso judicial”,

autonomia na busca e no tratamento das informações

avaliou o diretor do Foro da JFRN, juiz federal Marco

e gerando maior interatividade com as soluções.

Bruno Miranda. No TRF5, para resolver diversas demandas de

O desembargador federal Leonardo Carvalho, que coordena o projeto “Gestão na Ponta dos Dedos”, re-


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velou que, ao tomar posse no TRF5, em 2017, sentiu a necessidade de conhecer melhor o acervo de processos que recebeu. O Portal BI (Business Inteligence) gerava inúmeros relatórios, mas careciam de uma informação gerencial mais adequada. “Precisava de uma plataforma que viabilizasse uma visão gerencial do meu acervo. Quantos processos de cada matéria, qual era o ramo do Direito, em quanto tempo o processo estava sendo julgado, em média, a partir de sua distri-

O desembargador federal Leonardo Carvalho é o idealizador do projeto Gestão na

buição para a sessão de julgamento, Ponta dos Dedos, que facilita o acesso a informações processuais, viabilizando uma em quantos dias é publicado o acór-

visão gerencial, via monitores de televisão distribuídos pelos gabinetes

dão. Então, a plataforma já dá um panorama de cum-

perspectiva de trabalhar com maior eficiência e todos

primento das Metas do Conselho Nacional de Justiça

esses parâmetros foram eleitos com base no Plane-

(CNJ). Ele gera esses dados. Essa é uma solução que

jamento Estratégico da Justiça Federal”, destacou

está sendo aplicada nos gabinetes, e a equipe de in-

Carvalho.

formática já está trabalhando para fazer também junto aos juízes de Primeiro Grau”.

O desembargador acrescentou que a segunda fase do projeto vai contemplar a previsão de quanto

Segundo o magistrado, o acesso ao banco de

tempo é necessário para reduzir o acervo. “O Gestão

dados será de forma transparente, com um aparelho

na Ponta dos Dedos” é uma ferramenta que vai opor-

de televisão para transmitir as informações sobre o

tunizar ao magistrado ter uma visão gerencial do seu

número de processos do acervo, tanto para julgar

gabinete em tempo real. E para chegar nesses per-

como em pauta, por exemplo. “O magistrado atingiu

centuais de forma mais, digamos, correta, porque, às

a meta do CNJ de julgar mais processos do que rece-

vezes, um processo mal lançado no sistema implica

be? Como estão os processos com prioridade legal?

também uma má informação. Isso faz com que o gabi-

Qual o tratamento que o gabinete está dando para

nete tenha que estar permanentemente fazendo uma

a prioridade legal? Essa plataforma viabiliza esse co-

análise dos processos que estão em trâmite, para

nhecimento do gabinete, no tocante ao acervo, e pos-

verificar se eles estão adequadamente posicionados,

sibilita ao magistrado estabelecer um planejamento

se está concluso, em diligência, se há pedidos para

estratégico? Em que área ou ramo do Direito ele irá

juntar, se já saiu da conclusão, se está suspenso por

se debruçar para a diminuição do acervo? Temos uma

um recurso repetitivo ou uma repercussão geral do


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Supremo. A ferramenta dá todas essas informações”,

vo”, destacou Canuto. O projeto também será dispo-

informou Leonardo Carvalho, que apresentou o proje-

nibilizado para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)

to no ENASTIC.JF 2018 - Encontro Nacional de Solu-

e para os Tribunais Regionais Federais da Primeira e

ções de Tecnologia da Informação da Justiça Federal,

da Terceira Regiões.

realizado no mês de junho, no Conselho da Justiça

Inovação

Federal, em Brasília.

A melhoria nos serviços e eficiência no Judiciário

Solução Mobile

bebe na fonte da inovação, que não necessariamen-

Acessar os autos, editar minutas, assinar docu-

te consiste em criar algo totalmente novo, visto que

mentos e lavrar acórdãos de processos em trâmite no

o que já existe pode ter vida nova, se ferramentas

sistema PJe (Processo Judicial Eletrônico) ficou mais fácil para os desembargadores federais do TRF5 e juízes federais que atuam na Justiça Federal na 5ª Região. A equipe de TI do TRF5 desenvolveu uma solução que vai permitir ao magistrado utilizar um smartphone ou tablet para acessar o processo no PJe. A novidade foi apresentada pelo desembargador federal Rubens Canuto, coordenador do projeto Solução Mobile, durante o ENASTIC.JF 2018, mas foi lançada oficialmente no dia 8 de agosto, na reunião do Conselho de Administração do TRF5. “A finalidade do PJe Mobile é fazer com que o magistrado ganhe tempo. Que ele deixe

A equipe de TI do TRF5 e o desembargador Rubens Canuto (dir.), coordenador do Comitê Gestor do PJe da 5ª Região, que, juntos, desenvolvem diversos projetos na área, entre eles, o Solução Mobile

para fazer no computador algo que requer maior complexidade, como produzir um texto maior,

que dão certo são aplicadas corretamente. É o caso

analisar algo mais minuciosamente, pois tem a faci-

do Projeto “Busca Fácil no PJe”, uma solução para a

lidade da tela. Aquelas coisas mais simples, que ele

pesquisa de acórdãos, decisões e minutas no PJe.

pode fazer de qualquer lugar, que ele faça do tablet,

Para Canuto, que também coordena o projeto de TI,

do celular, em qualquer lugar onde ele estiver. Com

o objetivo maior da criação da ferramenta foi a fal-

isso, esperamos que a jurisdição fique mais rápida,

ta de um sistema de busca de jurisprudência no PJe

mais eficiente. O magistrado otimiza o seu tempo,

que possibilitasse a pesquisa na base de dados do

que seria para ele ocioso, tornando o tempo produti-

sistema eletrônico. “O “Busca fácil” é um instrumento


14

de pesquisa extremamente ágil, porque ele tem in-

substituição, a mudança é válida e pode representar

dexações prévias nos arquivos, utilizando certos pa-

um avanço, principalmente quando decorre de uma li-

râmetros que podem ser definidos, racionalizando o

mitação. É o que está ocorrendo com o sistema Creta,

trabalho. Eu posso pesquisar as decisões que outro

utilizado pelos Juizados Especiais Federais na Justiça

desembargador deferiu sobre determinada matéria e

Federal na 5ª Região. De acordo com a coordenadora

ver se aquela decisão está de acordo ou não com o

do projeto “PJe 2.x JEF”, juíza federal Cíntia Brunetta,

meu entendimento. Eu posso adotar qualquer enten-

titular da 35ª Vara Federal (Juizado Especial Federal

dimento se me convencer de que está correto, posso

em Maracanaú/CE), a necessidade de substituir o

também não adotar nenhum deles. Então, o objetivo

Creta pelo PJe 2.x JEF surgiu em decorrência de algu-

do Busca Fácil não é vincular ou amarrar o juiz a deci-

mas limitações do primeiro. “Embora seja um sistema

dir, é trazer para ele mais elementos para permitir que

fantástico, em uso na Região desde 2004 e com ex-

ele decida”, salientou. A solução será instalada pri-

celente aceitação pelos juízes, o Creta não consegue

meiro no TRF5, depois nas seções judiciárias, com a

ser adaptado para muitas das necessidades atuais de gestão. Além do mais, do ponto de vista financeiro e de gestão de recursos, passou a ser necessário se pensar em um sistema de processo eletrônico único na Região”, salientou Cíntia Brunetta. A juíza federal apontou entre as vantagens do PJe para os JEFs o potencial em termos de automação e sistemas de apoio à decisão do juiz e à atividade do servidor. “As perspectivas são inúmeras. No primeiro fluxo que será colocado em produção, ou seja, implantado nas varas, o PJe inserirá automaticamente minutas de sentença de extinção por falta de emenda à inicial e tratará alguns documentos anexados pelos

A juíza federal Cíntia Brunetta é coordenadora do projeto PJe 2x.JEF, que veio para substituir o Creta

usuários externos, já dando o encaminhamento adequado: intimando para contrarrazões de recursos, por exemplo”. Cíntia Brunetta acrescentou que o sistema

integração de todas as bases de dados do PJe, e, por

está em fase de testes na sua Vara e, em seguida,

fim, será estendida para os demais usuários do PJe.

será testado nas Varas de Propriá, na Seção Judiciária de Sergipe; de Arapiraca, em Alagoas; de Caruaru,

O PJe chega aos JEFs

em Pernambuco; de Monteiro, na Paraíba; Ceará-Mi-

Em time que está ganhando, não se mexe, cer-

rim, no Rio Grande do Norte; e de Iguatu e Quixadá,

to? Nem sempre. Se é possível obter ganhos com a

no Ceará.


Capa A inteligência judicial a serviço da sociedade Um olhar perspicaz e sensível sobre os processos. Um trabalho minucioso de investigação das demandas repetitivas ou com potencial de repetitividade. Centros de Inteligência da Justiça Federal têm buscado prevenir e evitar a judicialização indevida, além de aperfeiçoar o gerenciamento de precedentes. A ideia é estimular a resolução dos conflitos ainda na origem Débora Lôbo e Ananda Barcellos (colaboração: João Bosco Fonseca) O pescador aposentado Ma-

idade. Atualmente com 67, sendo mais de 40 anos

noel Lourenço Ferreira, atualmente

dedicados à prática, ele garante que já viu e viveu vá-

presidente da Federação dos Pes-

rias situações relativas à pesca no litoral do estado

cadores do Rio Grande do Norte,

potiguar, inclusive a polêmica em torno de uma das

se lançou no mar para a prática da

principais atividades da região: a pesca da lagosta.

pesca bem cedo, aos 12 anos de

Toda a discussão girou em torno da suposta ile-


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galidade da técnica adotada pelos pescadores para

e que muitos dos réus já eram reincidentes, confes-

a caça do animal, desde meados dos anos 1970:

sando, inclusive, que voltariam a praticar a infração, o

durante o mergulho, o pescador coloca na boca uma

juiz da 15ª Vara Federal de Ceará-Mirim/RN, Hallison

mangueira acoplada a um compressor, que fica na

Rêgo Bezerra, decidiu “investigar” o caso. Ao mesmo

embarcação e é responsável por enviar o oxigênio.

tempo em que ouvia os órgãos envolvidos, como o

Ao retornar à superfície, o pescador faz uma espécie

Ibama, por exemplo, para tentar colher informações

de descompressão. Esse método, contudo, de acordo

e entender o porquê daquele fenômeno, submeteu o

com a legislação aplicada pelo Instituto Brasileiro do

tema à Comissão Judicial de Prevenção de Demandas

Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, que havia

(Ibama), é considerado pesca ilegal. Não à toa, vários

sido criada no ano de 2015, como uma ferramenta

pescadores foram acusados de cometer crime am-

de gestão de demandas repetitivas. A ideia de im-

biental.

plantar um núcleo de trabalho voltado para impedir a

Muitos casos foram parar na Justiça Federal do

excessiva litigiosidade sobre um mesmo assunto sur-

Rio Grande do Norte (JFRN), que, por muito tempo,

giu da inquietação do juiz federal José Carlos Dantas,

restringiu-se a aplicar apenas a lei, sem evitar, por-

titular da 3ª Vara Federal, em Natal. Percebendo que

tanto, a repetição de demandas idênticas. Que o diga

muitos dos conflitos que chegavam à Justiça Federal

Manoel: “o barco em que eu pescava foi apreendido

tinham elevado potencial para se repetirem no futuro,

algumas vezes pela fiscalização. Logo depois que a

o magistrado sugeriu ao então diretor do foro da Se-

embarcação era levada, a gente arranjava outro barco

ção Judiciária do Rio Grande do Norte, Marco Bruno

e ia pescar de novo, pois não tínhamos outro meio de

Miranda, que fosse criado um colegiado para estudos

sobrevivência que não fosse com a pesca da lagosta.

dos casos. A sugestão foi acatada. No caso da pesca da lagosta, a solução en-

gacia acusados de pesca ilegal. Mas, logo depois que

contrada pela Comissão foi marcar uma audiência

saíam de lá, voltavam para o mar e repetiam tudo de novo”. Foi então que, percebendo que várias ações tratavam exatamente do mesmo assunto,

FOTO: DIVULGAÇÃO/IBAMA

Já vi colegas serem algemados, levados para a dele-

Os Centros de Inteligência identificaram que uma técnica de pesca da lagosta, utilizada desde 1970 por pescadores do Rio Grande do Norte, não era ilegal e, portanto, não haveria razão para eles serem denunciados e/ou multados


FOTO:ASCOM/JFRN

pública, envolvendo várias partes ligadas ao assunto, dentre elas, pescadores, Ibama, Ministério Público Federal, biólogos,

engenheiros

de pesca, associação de mergulhadores e sindicato dos emprega-

O juiz federal Marco Bruno Miranda, presidente do Centro de Inteligência potiguar, em reunião com membros do grupo

dores de pesca de lagosta. Após intensos debates, a

inspirada no projeto potiguar, criou o Centro Nacional

conclusão: a técnica utilizada pelos pescadores não

e os Centros Locais de Inteligência da Justiça Federal,

era ilegal. O argumento do Ibama para considerar a

sendo esta última a nova denominação da Comissão

prática como crime passava pela alegação de que

Judicial de Prevenção de Demandas da JFRN. Além

o mergulho poderia ser lesivo aos pescadores, pois

de prevenir a multiplicação de demandas repetitivas, a

nem todos faziam corretamente o procedimento de

nova sistemática de trabalho surge para potencializar

descompressão, causando lesões de órgãos internos

a prestação jurisdicional e descongestionar o Judici-

devido à súbita expansão de gases no corpo, sem re-

ário, evitando uma judicialização desnecessária. Com

lação concreta com o dano ao meio ambiente. O re-

foco na resolução da origem do problema, os Centros

sultado foi a diminuição das demandas no Judiciário,

de Inteligência também se mostram como ferramen-

com o arquivamento de várias denúncias pelo Minis-

tas fundamentais para a abertura de um diálogo com

tério Público Federal.

outras instituições e com a sociedade, rompendo

Para Hallison Bezerra, há muitos casos como

com a ideia de que os conflitos somente podem ser

esse que podem ser evitados, a partir de um olhar

resolvidos dentro do processo, de maneira litigiosa.

diferente do magistrado. “Há determinados tipos de

“Os Centros trabalham para identificar as demandas

demandas que lotam o Judiciário e isso pode ser evi-

que se repetem, encaminhar possíveis soluções para

tado se houver um cuidado maior na análise dos ca-

os órgãos competentes e tentar fazer com que eles,

sos. Nós (juízes) estamos mais perto do problema e

extrajudicialmente, consigam conciliar, resolver esses

temos condições de fazer uma melhor avaliação para

problemas. Assim, a Justiça Federal não precisará

tentar resolver esses conflitos”.

julgar repetidamente as mesmas demandas”, explica

A criação de um colegiado para prevenir deman-

Hallison Bezerra.

das repetitivas foi uma semente plantada no estado

Para o diretor do foro da JFRN e presidente do

do Rio Grande do Norte que cresceu e espalhou frutos

Centro Local de Inteligência potiguar, Marco Bruno

para todo o País. Em 2017, o Conselho da Justiça Fe-

Miranda, a atuação dos Centros é uma forma de tra-

deral (CJF) publicou a Portaria nº 369/2017 – CJF, que,

balhar os conflitos sob um novo aspecto. “O objetivo


18

é fazer um pouco diferente do que faz o direito brasileiro, que absorve um quantitativo repetitivo de demandas e atrai litigiosidade. Nosso objetivo é descer à origem dos conflitos e oferecer um tratamento isonômico a todos os brasileiros, a partir de uma efetivação preventiva de direitos”, esclareceu o magistrado, destacando, também, a importância de antecipar a solução dos litígios. “Na verdade, a jurisdição bra-

O então corregedor-geral da Justiça Federal, ministro Raul Araújo, durante reunião dos Centros de Inteligência

sileira é reativa, em decorrência do próprio conceito

perceber que esse diálogo entre as diversas institui-

clássico de jurisdição, trabalhando em um processo

ções, entre os Poderes da República, é necessário.

muito individualista, caso a caso. Com a complexida-

Não basta que tenhamos comissões pontuais. É fun-

de do mundo e a massificação das relações, criamos

damental que haja uma interação entre as diversas

uma bola de neve de litigiosidade, por não agirmos

instituições”, frisou.

preventivamente. Então, esperamos que vários pro-

Dantas também foi o juiz de outra causa com

cessos causem problema lá no Supremo Tribunal Fe-

grande repercussão na JFRN. O caso aconteceu no

deral, para só então agir. Que tal se, em lugar disso,

ano passado, quando servidores municipais de diver-

tomarmos providências quanto à origem do conflito?”,

sas Prefeituras do estado do Rio Grande do Norte en-

ponderou. Miranda, que atua desde o princípio nos

traram com ações na Justiça por terem seus nomes

trabalhos dos Centros de Inteligência, acredita que,

inscritos no Serasa. Eles haviam solicitado emprésti-

apesar de ser a inércia um dos princípios da jurisdi-

mo consignado aos órgãos municipais e tiveram os

ção, é possível adotar uma postura mais proativa para

valores descontados na folha de pagamento dos sa-

dar tratamento adequado aos litígios. “O juiz não pre-

lários, mas as respectivas Prefeituras não realizavam

cisa ficar amordaçado. O próprio Código de Processo

os repasses para a Caixa Econômica Federal (CEF). De

Civil prevê que o magistrado tenha uma atuação de

acordo com a advogada da CEF, Fabíola Alencar, como

cooperação e de incentivo ao diálogo”, enfatizou.

o sistema de cobrança é automático, inicialmente, não foi possível detectar a causa do problema, e a

Atuação interinstitucional

dívida era atribuída aos servidores. Um equívoco que

O idealizador do projeto na JFRN, José Carlos

ainda causou transtornos à instituição bancária, se-

Dantas, também vê nos Centros de Inteligência a

gundo Fabíola. “A cada caso, a CEF pagava cerca de

oportunidade para quebrar com a inércia natural do

R$ 3 mil por danos morais. Além disso, precisávamos

Judiciário, possibilitando uma atuação interinstitucio-

fazer mutirões só para resolver questões referentes a

nal. “É um grande desafio mudar a cultura do Judici-

esse tema”, explicou.

ário brasileiro. Há certa passividade, mas precisamos

A problemática também foi alvo de uma audiência


19

pública, que reuniu as partes interessadas. Durante os

das sobre o mesmo tema, foram realizadas audiên-

debates, a CEF revelou a intenção em reformular a

cias por videoconferência com as partes envolvidas,

sua política pública nacional de registro de servidores

inclusive com técnicos do Fundo Nacional de Desen-

públicos no Serasa, já que ficou provado que as ins-

volvimento da Educação (FNDE). De fato, os estu-

crições eram desnecessárias. “Depois da realização

dantes atendiam a todos os requisitos exigidos. As

da audiência pública, mudamos nossos procedimen-

discussões fizeram os agentes públicos entenderem

tos, criamos métodos para inibir o envio de cobranças

que o motivo para a negativa do financiamento era

indevidas e passamos a executar as Prefeituras que

uma falha na versão do software JAVA, utilizado para

incorrem nessa prática”, revelou a advogada.

realizar a inscrição. As alterações no sistema foram

O foco na origem do conflito também foi determi-

realizadas e, consequentemente, houve diminuição

nante para inibir o elevado número de ações que che-

do número de demandas sobre o assunto. O caso de-

gavam à JFRN contra a não concessão do benefício

monstra que, muitas vezes, ações simples podem ser

do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), do Minis-

determinantes para impedir a judicialização indevida.

tério da Educação (MEC). Nos períodos de inscrições para o programa, a JFRN chegou a receber cerca de

Gestão de precedentes

800 ações idênticas. Vários estudantes alegavam que

Além da prevenção de demandas repetitivas, os

atendiam todos os requisitos para preencher a vaga,

Centros também atuam para subsidiar a gestão de pre-

no entanto, tinham seus pedidos indeferidos.

cedentes na Justiça Federal. Uma tarefa que não é fácil, visto que, muitas vezes, há temas conflitantes com

FOTO: VITOR ALENCAR

Para entender o porquê da enxurrada de deman-

entendimentos diferentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para o juiz federal Luiz Bispo Silva Neto, membro do Centro Nacional de Inteligência, a integração entre os trabalhos é fundamental. “Uma das propostas dos Centros de Inteligência é tentar enxergar alguns conflitos que ocorrem na gestão desses precedentes, observando se as decisões estão em divergência com tribunais de instâncias superiores. Tentamos ver o todo, como o sistema está andando, se existe alguma incoerência. Há um estudo comparativo entre os precedentes, integrando todo o sistema”, destacou Bispo.

Fabíola Alencar, advogada da Caixa, colaborou com a resolução de uma judicialização indevida, envolvendo prefeituras, banco e servidores


20

Os estudos realizados podem revelar, por exem-

esse conceito de sentença líquida, porque a grande

plo, se um precedente deve ser revisado ou até mes-

maioria das sentenças condenatórias previdenciárias

mo revogado. Um exemplo é a questão da remessa

não alcança mil salários. É uma hipótese muito rara

necessária. Antes do novo Código de Processo Civil,

ultrapassar esse valor. Nossa recomendação foi para

as sentenças proferidas pela Justiça Federal de Pri-

que o STJ revisasse a súmula, pois esse conceito de

meiro Grau contra a Fazenda Pública, condenando-a

liquidez não espelha a realidade, pelo menos não nas

ao pagamento de valores superiores a 60 salários

causas previdenciárias”, esclareceu Bispo.

mínimos, teriam que passar pelo reexame obrigatório nos Tribunais Regionais Federais (hoje, a nova legisla-

Notas Técnicas

ção alterou esse limite, passando a exigir o reexame

Os Centros Locais de Inteligência, instalados em

apenas se a condenação superar mil salários míni-

cada Seção Judiciária, são integrados por magistra-

mos). À época, o entendimento do STJ, previsto na

dos e servidores da Justiça Federal. Os membros são

Súmula 490, era de que as sentenças que tratassem

responsáveis, dentre outras coisas, por indicar ques-

do assunto deveriam ser líquidas, ou seja, teriam que

tões com potencial para discussão, votar pela inclusão

trazer o valor a ser pago de forma clara.

ou não do tema para tratamento e elaborar um estu-

Acontece que, não raro, as decisões dos magis-

do aprofundado sobre a matéria afetada. Ao final do

trados trazem parâmetros de cálculo sem expor, de

estudo, as considerações do Centro acerca do tema

forma objetiva, o valor da condenação. “São cálculos

são manifestadas através de Notas Técnicas, que são

aritméticos, não são tão complexos, mas demandam

documentos elaborados por um relator, resultante das

um tempo para serem realizados. Ganhamos pela li-

considerações sobre um tema específico. Cabe res-

quidez, pela ausência de remessa, mas perdemos em

saltar que a Nota Técnica não é destinada ao conte-

tempo”, explica o magistrado. Observando o desali-

údo jurídico do caso, não antecipa o posicionamento

nhamento entre a súmula do STJ e a prática adotada

jurisprudencial e não funciona como uniformização de

pelos juízes, o Centro Nacional decidiu fazer um estu-

entendimento. Elas figuram uma forma de emissão

do sobre o tema. A pesquisa revelou que menos de

de recomendações para a adoção de procedimentos

1% das sentenças ultrapassa o valor de mil salários

adequados, com o objetivo de solucionar a lide.

mínimos, mesmo as ilíquidas (que não trazem o valor de forma clara).

Um exemplo é a Nota Técnica nº 09/2018, emitida pelo Centro Nacional de Inteligência da Justiça

Muitos processos chegavam ao Tribunal para se-

Federal, destinada ao Instituto Nacional do Seguro

rem julgados sem que a causa superasse o valor le-

Social – INSS. A controvérsia jurídica presente em

gal, apenas porque as sentenças não traziam expres-

muitas demandas que chegavam ao judiciário versava

samente o valor da condenação. Ou seja: na prática,

sobre a pensão por morte previdenciária. Por décadas,

o precedente do STJ não corresponde à realidade.

a legislação acerca do tema, que tem como marco ini-

“O Centro de Inteligência está tentando flexibilizar

cial o Decreto-Legislativo nº 4.682, de 24 de janeiro de


21

1923, mais conhecido como “Lei Eloy Chaves”, teve

diálogo interinstitucional com o INSS e emitiu Nota

como regra o caráter vitalício das pensões. Somen-

Técnica sobre a negativa do órgão previdenciário de

te em 2014 o benefício passou a ter natureza tem-

revisão do Cadastro Nacional de Informações Sociais

porária, de acordo com a faixa etária da pessoa que

(CNIS). O Cadastro reúne uma série de informações

tem direito ao benefício. O pouco conhecimento da

sobre a vida laboral dos contribuintes, como vínculos

população sobre a mudança legislativa e a ausência de informações sobre o tempo de duração do benefício levaram ao ajuizamento de diversas ações que questionavam a cessação do pagamento dos valores. Um problema que abrangia muito mais do que a repetitividade de demandas no Judiciário. “As pessoas faziam empréstimos bancários, projetavam suas vias de economia com base naquele benefício, sem saber, sem ter a orientação na carta se aquele benefício iria cessar ou não. Ou seja, tem todo um potencial de litigiosidade que poderia ser resolvido com uma simples informação”, destaca Bispo. Identificado o problema pelo Centro, foi elaborada uma Nota Técnica expondo todo o histórico de legislações referentes ao assunto, as modificações legais que surgiram ao longo do tempo e, ao final do documento, a recomendação para incluir na Carta de Concessão/Memória de Cálculo enviadas aos beneficiários informações referentes às normas que tratam sobre o tema. Também com o objetivo de reduzir as demandas que chegam ao Judiciário e dar mais celeridade aos julgados, o Centro Nacional buscou mais uma vez o

Como funcionam as investigações dos processos


22

empregatícios e remunerações. O problema é que, caso o cidadão consulte o sistema e perceba que existem dados incorretos, não há como fazer a alteração que não pela via judicial. Quem procura o INSS para regularizar as informações tem o pedido negado,

Em maio deste ano, a JFCE promoveu o seminário “Demandas Estruturais e Litígios de Alta Complexidade”, para debater esse e outros temas correlatos

exceto nos casos em que há solicitação para recebimento do benefício previden-

Em maio de 2017, o corregedor-geral da Justi-

ciário. Se, por exemplo, uma pessoa jovem tem seu

ça Federal e ministro do Superior Tribunal de Justiça

cadastro incorreto, terá que esperar o momento da

(STJ), Raul Araújo, participou do workshop “Deman-

aposentadoria para atualizar os dados. Ocorre que,

das Estruturais e Litígios de Alta Complexidade”, re-

em muitos casos, os documentos são perdidos com

alizado na cidade de Fortaleza/CE, e que teve painel

o tempo, dificultando uma futura prova. Além disso, a

específico sobre os Centros de Inteligência. Durante o

concessão do benefício previdenciário pode ser atra-

evento, o ministro falou sobre a importância do projeto

sada por conta da irregularidade no CNIS. Para impe-

da Justiça Federal. De acordo com ele, o trabalho dos

dir que um grande número de demandas sobre o tema

Centros é fundamental para a diminuição do elevado

chegassem ao Judiciário, o Centro Nacional elaborou

número de processos que travam o Judiciário. “Uma

a Nota Técnica nº 10/2018, expondo toda a proble-

vez identificadas essas demandas, podemos ter em

mática e convocando reuniões com a presidência do

torno delas soluções adequadas que sejam aplicáveis

INSS para tentar, por meio do diálogo, alcançar uma

a todos os casos semelhantes, de modo que se ob-

política adequada à solução do conflito.

tenha a possibilidade de desafogar o judiciário, livrando a máquina judiciária tão onerada por mais de cem

Como funciona

milhões de processo em todo país”. Araújo também

Todo o trabalho dos núcleos locais é realizado em

destacou que é necessária uma mudança na forma

sintonia com o Centro Nacional de Inteligência, com

de atuar do magistrado. “Os juízes, modernamente,

o objetivo de subsidiar a gestão das demandas repe-

já não podem se restringir àquela tradicional forma de

titivas ou com potencial de repetitividade. Os Centros

agir, em que falavam apenas nos autos. Eles têm que

Nacionais atuam em dois grupos: operacional, forma-

transitar pela comunidade, pela coletividade, encon-

do por magistrados e servidores, e decisório, compos-

trar as chamadas demandas estruturantes e buscar

to por ministros e desembargadores.

soluções para elas. Não só envolvendo o próprio ju-


23

diciário, mas também os demais poderes do estado,

são alguns dos avanços trazidos pelos Centros de In-

pois é certo que as demandas que chegam à Justiça

teligência. Porém, o trabalho vai além dos progressos

Federal são, sobretudo, demandas que envolvem a

conquistados pelo Judiciário. “Os Centros de Inteli-

Administração Pública Federal”.

gência são uma fonte de cidadania, porque o Judi-

O vice-presidente do Tribunal Regional Federal da

ciário faz a gestão ativa dos processos, para que os

5ª Região – TRF5, desembargador federal Cid Marco-

direitos sejam respeitados. Tudo isso através de uma

ni, que compõe o grupo decisório do Centro Nacional

forma inovadora de prevenção dos direitos”, ressalta

de Inteligência, acredita que a consolidação do esta-

Marco Bruno Miranda.

do de bem-estar social no Brasil provocou amplas transformações no campo do direito. “Os reflexos dessas mudanças são percebidos na crescente judicialização de demandas que versam sobre direitos

(+) Saiba mais:

sociais, ensejando uma atuação muito mais intensa do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais. Nessa época de cortes orçamentários, o Judiciário

Qualquer pessoa pode sugerir à Justiça Federal temas repetitivos que podem gerar judicialização indevida. Basta acessar o link https://www2.cjf.jus. br/centro_inteligencia/tema-proposto/, preencher um formulário e deixar a sua sugestão.

tem buscado solucionar questões administrativas e judiciais de maneira mais célere e efetiva”. Para o magistrado, o trabalho dos Centros também pode ser traduzido como uma ação em prol da sociedade. “A justificativa da existência

24 temas foram apreciados, até junho de 2018, pelo Centro Nacional de Inteligência 12 Notas técnicas foram divulgadas pelo Centro Nacional de Inteligência nesse mesmo período 27 temas foram trabalhados pelo Centro Local de Inteligência da JFRN, entre 2016 até junho de 2018

do Judiciário é dar solução para a sociedade, promover a pacificação social. Essa gestão de processos e de procedimentos vai trazer esse benefício”.

Celeridade, diminuição de

demandas, melhorias na prestação jurisdicional da Justiça Federal

A JFRN foi pioneira na criação de núcleos de trabalho para prevenir demandas repetitivas. Em 2015, criou a Comissão de Prevenção de Demandas da Justiça Federal no Rio Grande do Norte, que, futuramente, viria a ser denominada Centro Local de Inteligência. Os Centros Locais e o Centro Nacional de Inteligência foram instituídos pela Portaria nº CJF-PCG-2017/00369.


À Luz dos Direitos ENSAIO FOTOGRÁFICO


Com todas as cores

Fotos: Roberta Mariz Texto: Francisco de Barros e Silva


NĂŁo apenas um Recife de carnavais,


Do Estrela Brilhante, da Nação Pernambuco, de calor e frevo e passistas traçando tesouras.

Eu te vejo despertar todos os dias. Te percebo sair depois do café preto. A lua mal se deitou e você já está lá. Os pés descalços no chão. Na terra, nem sempre firme.


NĂŁo apenas o Recife dos pequenos azuis;


de um poeta que pintou de azuis os seus prรณprios sapatos.





Mas o Recife concreto: desenhado com todas as cores; antigo: do marco zero já se vão séculos de um cenário marcado pela diversidade.


Sociedade e Direitos

A saída ainda é pelos trilhos Essenciais para a expansão da economia açucareira nordestina no fim do século XIX, as ferrovias, hoje abandonadas, ainda são a alternativa mais competitiva e menos poluente em um país dependente do transporte rodoviário Cínthia Carvalho “O sino bate, o condutor

de Pernambuco. Os mais jovens talvez não saibam,

apita o apito, solta o trem de

mas era possível sair da capital pernambucana com

ferro um grito, põe-se logo a ca-

destino ao Vale do São Francisco, dentro de um con-

minhar... (...) Vou danado pra Ca-

fortável vagão. Era a Recife – São Francisco Railway

tende, com vontade de chegar.”

Company, a primeira ferrovia construída no Nordeste

Os versos de “Trem de Alagoas”,

e a segunda no Brasil, em 1858. Foi o embrião de uma

do poeta Ascenso Ferreira, des-

malha que, em 1957, com a criação da Rede Ferrovi-

crevem as belas paisagens vi-

ária Federal S/A (RFFSA), contava com mais de 6 mil

sualizadas durante o trajeto que

quilômetros de linha, se estendendo desde o norte de

a locomotiva faz para o interior

Minas Gerais até o Maranhão, conectando as nove


35

capitais nordestinas, transportando pessoas, cargas e promessas de um futuro econômico nos trilhos.

lamenta o escritor. Durante anos, o Governo Federal foi reduzindo

“Na virada do século XIX para o XX, o trem era

a malha mediante a supressão dos ramais antieco-

tudo. Era o único meio de transporte compatível com

nômicos sem, no entanto, investir na modernização

a produção em larga escala das usinas de cana-de-

dos trechos ferroviários economicamente viáveis e

-açúcar. Antes, o transporte era o lombo do burro,

na aquisição de locomotivas e vagões. Além disso, a

ou seja, bastante precário. Então, as ferrovias foram

ascensão do transporte rodoviário levou, como con-

essenciais para o crescimento da economia canaviei-

sequência, à privatização das ferrovias brasileiras, em

ra”, conta o economista e escritor Gustavo Maia Go-

1997. Os principais objetivos eram desonerar o Esta-

mes, que, desde pequeno, criou laços afetivos com

do e aumentar a eficiência operacional e a qualidade

os trens. Era nesse veículo que, todos os anos, ele

dos serviços. Mas, na prática, foi bem diferente. No

viajava do Recife para a fazenda do avô, em Branqui-

caso específico da Região Nordeste, a malha existen-

nha, na zona rural de Alagoas, onde aproveitava as

te foi reduzida a menos da metade.

férias com a família. As histórias renderam um livro

De acordo com o engenheiro e professor da Uni-

chamado “O trem para Branquinha”. “Ele passava por

versidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fernando

Garanhuns, Palmares, Maceió. Em princípio, eram

Jordão, esse foi o golpe fatal no sistema ferroviário do

as Marias-Fumaças, movidas a vapor. Na década de

Nordeste. “O processo de desestatização foi mal pla-

1950, começou a se usar o diesel. Mas com o tempo

nejado e mal executado. A União não discutiu alter-

houve controle de tarifas e foi ficando cada vez mais

nativas com as partes interessadas nem esclareceu

difícil manter...”, recorda.

a sociedade como um todo. Tratava-se da mudança

Em meados dos anos de 1950, essas dificuldades se agravaram ainda mais com o aumento da produção e da venda de automóveis no Brasil. Grandes montadoras de carros foram instaladas no país, incentivadas pelo então presidente Juscelino Kubitschek. É nesse momento que, para muitos especialistas, começa o processo de sucateamento da malha ferroviária brasileira. “O governo não conseguiu segurar as tarifas de trem, e o serviço não se pagava. Os investimentos foram concentrados na construção de rodovias. Optaram por caminhões, ônibus e carros. Mas acredito que foi um erro deixar de lado as nossas ferrovias”,

No Museu do Trem, no Recife/PE, o escritor Gustavo Maia relembra as viagens para Branquinha/AL


de regime da estruturação e

de uma única linha de ônibus, que custa caro e só

operação do sistema de trans-

funciona até as 19h. Essa é, infelizmente, uma reali-

porte terrestre eficiente, muito necessário ao desen-

dade comum em várias cidades”, afirma.

volvimento econômico de um país continental como

Professor de Geografia, Jorge também destaca

o Brasil e, principalmente, de uma região carente de

os benefícios que uma possível reativação da linha

infraestrutura, como a do Nordeste”, explica.

férrea traria para a Mata Norte de Pernambuco, onde

Desde então, as linhas que eram da extinta RFF-

há uma grande demanda por transporte público. “Es-

SA passaram a ser operadas pela Ferrovia Transnor-

tamos em uma região produtora de cana-de-açúcar

destina Logística (FTL). E não é de hoje que a em-

e que conecta duas capitais, ou seja, temos um po-

presa tem enfrentado dificuldades para cumprir as

tencial incrível, tanto econômico quanto turístico, mas

obrigações contratuais. Diversos trechos estão com

que não é explorado por causa desse isolamento geo-

manutenção atrasada e outros tiveram tráfego inter-

gráfico. Muitos moradores do Recife ainda não conhe-

rompido por, segundo a FTL, inviabilidade econômica.

cem os nossos engenhos, nem o povo da Mata Norte

“Não se tem notícias de nenhuma sanção contratual”,

conhece a praia, os museus, os teatros da cidade

afirma Jordão. Responsável pela fiscalização, a Agên-

grande. É um absurdo”, considera.

cia Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) garan-

Jorge lembra que, há três anos, viu uma compo-

te que exige o cumprimento da obrigação contratual

sição passando pela linha férrea que fica na área do

da concessionária de preservação do patrimônio ar-

prédio da Universidade. “Acredito que ela saiu do Re-

rendado, aplicando as penalidades previstas no caso

cife com destino a João Pessoa. Isso prova que ainda

de não efetivação de tais medidas.

tem condições de tráfego. Mas é preciso fazer algo

Enquanto a empresa concessionária alega fluxo

urgentemente, pois os trilhos estão enferrujando. Em

de caixa negativo e posterga investimentos, a po-

alguns lugares, as estações estão abandonadas, quaFOTO: ACERVO JORGE ARAÚJO

pulação enxerga nas antigas estradas de ferro uma solução para um grande problema atual: a mobilidade urbana. O professor Jorge Araújo ensina na Universidade de Pernambuco (UPE), em Nazaré da Mata, cidade próxima à Região Metropolitana do Recife, e conta que os estudantes sentem na pele os reflexos de uma má escolha governamental do passado. “A universidade fica bem ao lado de uma linha férrea desativada. Muitos alunos que moram no Recife dependem

Estudantes da UPE em Nazaré da Mata/PE pedem reativação das linhas de trem da região


Greve dos caminhoneiros Um exemplo desse desequilíbrio na matriz de transportes foi a crise no abastecimento em consequência de uma greve geral dos caminhoneiros, em maio de 2018. O Governo Federal estima que a paralisação da categoria, que durou 11 dias, causou um prejuízo de R$ 15 bilhões. “A sociedade brasileira passou por um grande susto. Correu risco real de, em poucos dias, sofrer um desabastecimento generalizado. Ela percebeu a fragilidade da nossa logística, que é dependente desse modal”, observa Jordão. De acordo com o Anuário 2017, produzido pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), a qualidade e o crescimento da malha rodoviária não acompanham a demanda de infraestrutura para o escoamento da pro-

dução nem para o deslocamento de pessoas. A frota de veículos aumentou 194,1%, de 2001 para 2016, mas as rodovias continuam com graves problemas de qualidade, o que compromete, inclusive, a segurança das pessoas. No ano passado, mais da metade dos trechos avaliados pela CNT apresentaram falhas. Do total, apenas 12,2% possuem pavimento. “A correção dessa situação só mudará a médio e longo prazo, pois necessita de altos investimentos e mudança de comportamento da sociedade”, conclui o especialista.

se em ruínas. A da cidade de Carpina, por exemplo,

son Lopes de Lima, que também depende do imóvel

virou moradia para um senhor, que ainda montou uma

para sobreviver. A mesa de corte, seu instrumento de

lan house. Então, também há esse problema, esse ris-

trabalho, fica bem em cima dos trilhos. É desse ser-

co grande de invasões”, alerta.

viço que ele consegue todo o dinheiro para pagar as

Na Região Metropolitana, a problemática das

suas contas. “Minha casa, minha oficina, toda minha

ocupações às margens das ferrovias já dura décadas.

estrutura foi montada aqui. Minhas filhas pequenas

A comerciante Terezinha Francisca de Jesus é uma

não conhecem outro lugar, fora esse. Toda a minha

dessas pessoas que moram em local considerado de

vida é aqui”, conta, acrescentando que o terreno foi

interesse público. Há mais de 20 anos, ela se insta-

comprado por ele em 2002.

lou, com a família, na chamada comunidade do Sítio,

Quem mora ao longo das margens das rodovias e

no bairro do Ibura, Zona Sul do Recife. “Quando eu

ferrovias deve obedecer a uma faixa não edificável de

cheguei aqui, só existiam três casas. Nessa linha fér-

15 metros de largura para cada lado, conforme prevê

rea, não passava nem trem de manutenção”, relata.

o art. 4º da Lei 6.766/1979. Por essa razão, em 2017,

Hoje, além de sua moradia, o local abriga um peque-

os moradores da comunidade do Sítio responderam a

no comércio, que é sua fonte de renda. “A gente não tem condição financeira de comprar imóvel ou pagar aluguel”. Bem perto de Terezinha, mora o serralheiro DenilNo município de Arcoverde/PE, o terminal de vans e passageiros foi construído em cima dos trilhos dos antigos trens que circulavam na região


semelhantes. É preciso saber se há uma perspectiva de implantação da ferrovia no local específico. Se é o caso de desocupar e demolir, como pede a proprietária do terreno, ou se dá para adiar para um momento futuro”, pontua. A retomada do transporte ferroviário, de uma forma geral, vem passando por adequação à nova realidade de produção e de transportes do país. Para o superintendente de Infraestrutura e Serviços de Transporte Ferroviário de Cargas da ANTT, Alexandre Porto Mendes de Souza, o transporte brasileiro tem características muito peculiares, priorizando a exportação e com pouca demanda de carga geral, que é resolvida por meio do transporte de cabotagem e, sobretudo, pela matriz rodoviária. “A Malha Nordeste, especificamente, apresenta diversos trechos com pouca atratividade econômica, características técnicas inapropriadas, baixa demanda e rentabilidade fi-

cupação e demolição das construções irregulares. O

nanceira contestável, atributos remanescentes desde

caso foi analisado pelo Tribunal Regional Federal da 5ª

a época da RFFSA”, acrescenta.

Região - TRF5. De acordo com o desembargador federal Élio Siqueira Filho, relator do processo, a proibição da construção na faixa de domínio

FOTO: ACERVO ANAPFF

uma ação judicial, movida pela FTL, que exigia a deso-

Transnordestina Todas essas peculiaridades tornam cada vez mais distante o plano de reativar trechos da anti-

tem fundamento na segurança do

ga malha ferroviária no Nordes-

transporte ferroviário, dos usu-

te. A solução seria a construção

ários e dos moradores da área.

de uma nova estrada de ferro. E

Mas como a FTL não apresentou

foi assim que surgiu o projeto da

projeto de reativação do trecho,

Transnordestina, que contará com

as casas foram mantidas. “O en-

1.753 quilômetros de extensão. Já

tendimento aplicado nesse caso

se passaram 12 anos desde a con-

concreto é o mesmo que tem sido Movida a vapor, a locomotiva Maria-Fumaça já foi símbolo de aplicado em outros julgamentos progresso

cepção do primeiro traçado. Atualmente, a proposta é ligar o ser-


39

tão do Piauí aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE),

obras, que são de responsabilidade da Transnor-

passando por cerca de 80 municípios. No entanto, as

destina Logística S.A. (TLSA), estão paradas e já consumiram mais de R$ 6 bilhões – o custo inicial previsto era de R$ 4,5 bilhões.

Polícia ferroviária federal: um “limbo jurídico”

“É um projeto que poderá facilitar a logística de

FOTO: ACERVO ANAPFF

carga dos três estados, pois permitirá a operação de trens longos, com locomotivas superpotentes, embora não se saiba a que custos e a que tarifas”, explica o engenheiro Fernando Jordão. Segundo ele, os estudos de demanda divulgados não são precisos nem consistentes quanto à natureza e ao volume das mercadorias para transportar, nem as origens e destinos dessas cargas. “Tudo indica que a Transnordestina terá uma capacidade de transporte bem superior ao volume e tipo de demanda das cargas existentes no Nordeste e isso implicará um nível de subsídio elevado ou tarifa de

Um grupo, em especial, viu suas vidas saírem dos trilhos após a desestatização das ferrovias: os policiais ferroviários federais. Eram eles que faziam a segurança pública das estradas da RFFSA, mas, após 1997, foram absorvidos pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), empresa de economia mista que, atualmente, opera alguns trechos da antiga malha. Apesar de a categoria ser reconhecida pela Constituição Federal de 1988, ainda não foi regulamentada perante o Ministério da Justiça, ou seja, falta lei para disciplinar a sua organização e seu funcionamento. A situação desses profissionais foi levada pelo Ministério Público à Justiça Federal. No TRF5, o desembargador federal Leonardo Carvalho entendeu que a criação de cargos em órgãos públicos é de competência do Poder Executivo, não do Judiciário. “Nesse diapasão, os agentes públicos que irão integrar a estrutura da Polícia Ferroviária Federal deverão se submeter ao prévio concurso público, conforme estabelecido no art. 37 da Carta Magna, não sendo possível o mero aproveitamento de quadro de pessoal de empresas estatais, sujeitos ao regime da CLT, ainda que anterior à Constituição Federal de 1988”, explicou. O presidente da Associação Nacional de Policiais Ferroviários Federais (Anapff), Carlos Alves, afirma que a categoria busca, junto à Advocacia Geral da União (AGU), um acordo proposto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para sanar a questão.

exploração pouco competitiva”, afirma. Mas apesar das dificuldades, Jordão garante: as ferrovias são opções economicamente mais viáveis no Brasil, além de serem mais vantajosas do ponto de vista ambiental. “Devido às decisões equivocadas tomadas ao longo dos governos, principalmente daqueles que planejavam ações para dar retorno nos seus mandatos, o brasileiro hoje paga altos subsídios para que quase 60% do transporte de carga seja realizado pelo modo rodoviário, que é ineficiente energeticamente, de baixa produtividade e poluidor. É um grande prejuízo para a nação”, explica. “É inconcebível que um país de dimensões continentais como o Brasil tenha uma matriz de transportes tão desequilibrada, se comparada com a de países com grandes extensões, como Rússia, China, Canadá e Estados Unidos”.


Fundamentais

Terra indígena Pankararu:

um conflito em quatro atos

Após quase 15 anos da sentença determinando a desintrusão dos não índios da Terra Indígena Pankararu, recurso traz o caso para nova decisão do TRF5 Felipe Oliveira

Ato 1: A Sentença A situação da Terra Indígena

região, situada entre os municípios pernambucanos

Pankararu foi definida pelo Judiciário

de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá, fosse desocupada

no ano de 2003, há aproximadamen-

pelos residentes não índios. À Fundação Nacional do

te 15 anos. Em uma ação civil públi-

Índio (Funai) coube identificar os não indígenas que

ca proposta pelo Ministério Público

ali ergueram moradias e proceder, em parceria com a

Federal (MPF), a Justiça Federal em

União Federal, à retirada deles. Em paralelo, a União

Pernambuco (JFPE) definiu que a

deveria realizar o pagamento de indenizações a esses


41

ocupantes pelas benfeitorias empreendidas de boa-

cie de 14.294 hectares, com perímetro de 50,120 km.

-fé nas terras. A sentença ainda incumbiu ao Instituto

Ocorre que as proporções dessa demarcação di-

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o

ferem da feita pelo SPI, a qual indicou a homologação

dever de reassentá-los em outra localidade.

de 8.100 ha. As sistemáticas invasões por não índios

Nos anos de 2005 e 2006, o Tribunal Regional

ao território Pankararu motivaram a redução do espa-

Federal da 5ª Região – TRF5 confirmou a decisão to-

ço. O consenso sobre o uso da terra só foi formula-

mada em Primeira Instância, quando julgou dois recur-

do depois de inúmeras reuniões entre os envolvidos,

sos. Já em 2009, o Superior Tribunal de Justiça (STJ)

decidindo os indígenas por abrir mão do acréscimo

foi favorável à causa dos indígenas. Tudo indicava que

de terras, desde que a desintrusão pelos ocupantes

era o fim de mais um conflito envolvendo territórios

irregulares fosse concluída. Em 8 de maio de 1987,

indígenas no Brasil. Mas não foi bem assim que se

33 membros da comunidade indígena assinaram um

deu o desenrolar dessa história. No, até então, último

termo de concordância pela homologação.

episódio judicial sobre a questão no TRF5, a Quarta Turma, ao julgar um agravo de instrumento, manteve

Ato 2: O Conflito

a determinação da JFPE, ordenando a desintrusão dos

Segundo ofício da Delegacia de Polícia Federal

ocupantes não índios da região. No entanto, desde

(PF) em Salgueiro, já em 1994, em acordo firmado

que a sentença foi proferida, muitos outros embates

por meio da “Ata de Reunião Sobre Questão do Lití-

judiciais e civis foram registrados, levando em con-

gio Indígena Entre Índios Pankararu e os Posseiros”,

sideração que a Secretaria de Direitos Humanos do

os ocupantes não índios autorizaram o levantamento,

Estado de Pernambuco possui, atualmente, 11 mem-

pela Funai, das possíveis benfeitorias desenvolvidas

bros do povo Pankararu inseridos em seu programa de

na área, a fim de serem indenizados, enquanto o Incra

proteção, por sofrerem ameaças de morte.

se responsabilizaria pelo reassentamento daquelas

Numa perspectiva histórica, os autos dão conta

famílias e pela ação discriminatória da região. O do-

de que as terras pertencentes à Comunidade Indígena

cumento da PF registrou que foram pagas 164 inde-

Pankararu foram demarcadas, em 1940, pelo antigo

nizações a 153 não índios, nos anos de 1997, 1998 e

Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Mas, apesar do

2000, resultando na soma de R$ 1.450.000,00.

registro de demarcação, os limites territoriais da área

Contudo, indígenas e não indígenas viram os

só foram homologados em 14 de julho de 1987, por

anos de 2011 e 2012 serem vividos em pleno con-

meio do Decreto Presidencial nº 94.603. Todavia, a

flito pelo direito a terra. Nesse período, a Funai atu-

comissão responsável por assinalar as divisas do lo-

alizou o recenseamento fundiário da Terra Indígena

cal, instituída pela Portaria Ministerial nº 002/1983 e

(TI) Pankararu, em aditamento ao levantamento de

formada por técnicos da Funai e do Incra, após estu-

1994, especificando todas as ocupações encontradas

dos étnico-históricos, cartográficos e fundiários, iden-

no perímetro. Ao todo, foram cadastrados 870 lau-

tificou a necessidade de demarcação de uma superfí-

dos, que contêm informações sobre as benfeitorias


42

verificadas à época e alguns dados dos proprietários.

à JFPE que, até aquele momento, não havia registro

O novo censo sinalizou que os laudos apresentados

de qualquer desocupação pelos não índios, conforme

eram de interesse de 346 ocupantes.

Relatório Técnico da coordenação local da Funai.

“Após essa etapa, apenas 23 posseiros aceita-

Em razão do quadro apresentado, a Polícia Mili-

ram desocupar a Terra Indígena e receber o valor das

tar de Pernambuco (PMPE) acrescentou que, se fos-

indenizações pelas suas benfeitorias de boa-fé. Os

se usada a medida de desintrusão, seria necessária

demais condicionaram a saída ao reassentamento, a

a participação da PF e de efetivo policial capacitado

ser realizado pelo Incra. Alguns questionaram o valor

para tais situações, além da cooperação de órgãos

das indenizações, porém isso já foi amplamente dis-

ligados à assistência social, tendo em vista o elevado

cutido e instruído, uma vez que a Funai, como órgão

número de crianças participantes e a grande extensão

de governo, utiliza critérios estritamente técnicos ao

da área de reintegração. Em ofício, a PF esclareceu

avaliar as benfeitorias inseridas em Terras Indígenas”,

que, das 500 famílias não indígenas identificadas, 150

informou a Funai.

não residem na terra indígena, e as restantes, ou seja,

Tal indefinição quanto à desintrusão dos não ín-

350, já possuíam valores de indenização depositados

dios da TI Pankararu provocou mais uma audiência,

na Justiça. Vale salientar que, dessas 350, apenas

em fevereiro do ano passado, com a presença das

150 preencheram os requisitos para inclusão em pro-

lideranças de ambos os lados, além da Funai, do Incra

gramas de reforma agrária. O Incra indicou a disponi-

e do MPF. Uma série de medidas ficou acertada, den-

bilidade de reassentamento em 95 lotes no Projeto

tre as quais: a saída dos não índios, no prazo máximo

de Assentamento (PA) Abreu e Lima, localizado no

de 12 meses; a realização da saída de forma imediata

município de Tacaratu/PE.

e integral, ou graduada e por percentual – nesse caso, o mínimo seria de 25% (75 famílias) por trimestre –,

Ato 3: O Recurso no TRF5

considerando o número aproximado de 300 famílias;

As inúmeras quebras de acordo por parte dos

descumprir o acordo acarretaria a retirada compulsó-

ocupantes levaram o Juízo da 38ª Vara Federal da

ria dos ocupantes irregulares, estando autorizada a

Seção Judiciária de Pernambuco (SJPE) a revogar

utilização da força policial. Na ocasião, o Incra des-

a realização de mais uma audiência de conciliação,

tacou a existência de assentamentos à disposição de

marcada, anteriormente, para abril deste ano, e im-

todos.

por a medida de desintrusão dos não índios da Terra

Mais uma vez, porém, não era o fim da disputa

Indígena Pankararu. Foram oficiadas para auxiliar no

pela área. Outras reuniões ocorreram, tanto em lugar

procedimento a PF e a PMPE, as quais receberam o

próximo à TI Pankararu quanto em Brasília, no Distrito

prazo de 90 dias para a conclusão da desocupação.

Federal, com a participação dos envolvidos, bem como

“O planejamento e os meios de execução para

de órgãos interessados em cumprir as decisões. Des-

cumprimento da sentença já foram amplamente dis-

sa forma, em julho do ano passado, o Incra comunicou

cutidos nestes autos, inclusive com realização de vá-


43

rias audiências, com a participação de todos os atores

extraiu que, das 346 famílias posseiras, 259 ali não re-

envolvidos neste processo. Com efeito, em fevereiro

sidem, possuindo imóveis nas cidades de Petrolândia,

de 2017 houve a realização de audiência, na qual as

Tacaratu e Jatobá, utilizando-se das terras ocupadas

bases para o cumprimento espontâneo da sentença

“apenas como local de lazer em feriados e finais de

ficaram postas para as partes. Desde então, o que

semana”, o relator entendeu que o impacto causado

se tem é o descumprimento reiterado das medidas

pela desocupação não corresponderia ao alegado pe-

ali especificadas”, destacou o juiz federal Felipe Mota

los autores do agravo.

Pimentel de Oliveira, titular da 38ª Vara Federal da SJPE.

“Se, por um lado, a retirada de um número elevado de famílias – em uma área em que se evidencia

Inconformadas com a deliberação daquele Juízo,

tensão social entre os grupos há mais de 20 anos –

as lideranças dos ocupantes ingressaram, em maio

requer que as medidas executórias sejam planejadas,

deste ano, com agravo de instrumento no TRF5. A re-

evitando, ao máximo, que a descoordenação dos en-

latoria do processo ficou a cargo do desembargador

tes envolvidos cause conflitos, não se pode admitir

federal convocado Leonardo Coutinho, componente

que o descumprimento de uma ordem judicial perdure

da Quarta Turma do Tribunal. O recurso foi julgado, no

por excessivo período. Neste sentido, diante do esgo-

dia 19 de junho deste ano, mantendo-se, por decisão

tamento das medidas tendentes a viabilizar a saída

unânime do Colegiado, o disposto na sentença de Pri-

dos ocupantes de forma dialogada, cabe, de fato, a

meiro Grau: a desintrusão da Terra Indígena Pankararu.

retomada do plano de desocupação da terra indíge-

À luz do levantamento feito pela Funai, do qual se

na”, enfatizou, à época, Coutinho. O posicionamento do TRF5 foi recebido de maneira alegre e esperançosa pelo povo Pankararu, que comemorou a vitória cantando e dançando. Um dos líderes dos indígenas, Sarapó Pankararu lembrou que o território é deles por intermédio de um decreto presidencial, algo que não pode ser mudado. Ele ainda fez menção ao processo migratório vivido pelos Indígenas Pankararu comemoram vitória alcançada em frente ao edifício-sede do TRF5


44

Pankararu, em decorrência da limitação de espaço ali presenciada. “Muitas famílias estão espalhadas pelo País. Em São Paulo, existem indígenas que migraram desde a década de 1950, por falta de espaço. Nós somos uma população de oito mil, neste espaço de 8.100 ha. É um hectare para cada índio”. Sarapó reforçou o seu desejo de que os órgãos

Os ocupantes não indígenas do território Pankararu também se manifestaram em frente ao TRF5, indignados com a decisão

competentes desempenhem o papel que lhes cabe: devolver a terra aos indígenas e colocar os ocupantes

do entorno, como é da vontade deles, e, sobretudo,

em um local adequado, para que ambos vivam em

deixará de ficar espremido”, celebrou o Cimi.

paz e harmonia. “Meu tataravô iniciou essa luta. Essa

O Cimi ainda explicou que a violência, aliada à

terra para nós é sagrada, a nossa força, a força da

morosidade do processo de demarcação, foi respon-

natureza. Contagia o nosso corpo e faz a gente viver.

sável por elevar o índice migratório dos indígenas

Sem esse espaço, a gente não é Pankararu. Podemos

da região. “Hoje, em São Paulo, vive uma volumosa

ser qualquer outra população, qualquer outro ser hu-

comunidade Pankararu na favela Real Parque, zona

mano, menos Pankararu”, afirmou.

sul da capital paulista. Mas não foi apenas para São

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) reco-

Paulo que eles se deslocaram. Em Brasília, vive uma

nheceu que a continuidade do procedimento de de-

comunidade na Terra Indígena Santuário dos Pajés. Na

sintrusão dos não índios representa uma reparação

Bahia, há indígenas Pankararu vivendo junto aos Pata-

histórica. Todavia, para o Cimi, o veredito veio acom-

xó. Nas cidades que estão no raio sertanejo da terra

panhado de um alerta, em virtude dos meses difíceis

indígena, também há muitos Pankararu ‘desaldeados’:

a serem enfrentados pelos Pankararu até a desocu-

uns ainda ligados ao território, outros apenas com as

pação acabar. Como exemplo, há o relato de que, na

histórias de pais e avós”, lamentou o Cimi.

volta da comitiva Pankararu, presente no dia do jul-

Em contrapartida, as famílias não indígenas, que

gamento no TRF5, o ônibus e os dois carros lotados

acompanharam a sessão de julgamento do Colegiado

pelos indígenas foram bloqueados na estrada por uma

do TRF5, saíram de lá com um sentimento de indig-

van, com indivíduos identificados pelos indígenas. A

nação. Eraldo Souza, uma das lideranças, assegurou

polícia teve que escoltar o grupo até a aldeia.

a pretensão deles em recorrer, até a última instância,

“Agora, contudo, a esperança se renova e os

para barrar a decisão. Na oportunidade, ele também

Pankararu se mostram dispostos a irem até o fim. Com

citou o valor da indenização a ser recebido por alguns

a terra desintrusada, novos terreiros serão abertos,

deles, chamando de irrisório, por ser uma quantia

muitos indígenas poderão trabalhar na terra, porque

calculada em 1994, sem correção monetária para os

os 20% ocupados pelos posseiros são os mais produ-

dias atuais.

tivos. O povo poderá plantar e abastecer as cidades

“Eu nasci e me criei lá. Meu pai, minha avó, meu


45

bisavô já nasceram, se criaram e morreram lá. É um

eles não têm interesse em deixar a terra indígena. É

absurdo, ficamos indignados. Nós não somos contra

tudo feito com necessidade de força policial”, frisou

os índios. Está claro que a terra foi homologada como

Lima.

área indígena. O que nós estamos reivindicando é o direito de continuar sendo cidadão e ter onde produ-

Ato final: A Esperança

zir. Sair de uma terra e ir para outra. Primeiro, o PA

A deliberação da Quarta Turma do TRF5 quanto à

Abreu e Lima não atende a todas as nossas famílias.

desintrusão revigorou a esperança dos indígenas. Foi

Segundo, é uma área de deserto, com areia quartzo-

o que confirmou Fernando Pankararu, outra liderança

sa, que não produz nada, nem tem água. Tem relatório

daquele povo, ao revelar a importância da terra para

da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agrope-

o cultivo e posterior sustento das famílias, que a utili-

cuária) mostrando que a terra é improdutiva”, indicou

zam para plantar macaxeira, batata, mandioca, milho,

Souza.

abóbora, dentre outras. A sustentabilidade, contudo,

Para a procuradora federal Priscilla Lima, com

vai além, reverberando na educação e na saúde pre-

atuação junto ao Incra, é sob o fundamento de que a

sente nas aldeias, levando em conta que as ervas

terra não seria agricultável, nem teria a mesma qua-

medicinais, responsáveis pelas substâncias de “cura”

lidade das terras indígenas, que os ocupantes recu-

dos indígenas, vêm da terra.

sam, sistematicamente, o reassentamento. Porém,

De acordo com Fernando, não tem como a comu-

esclareceu a procuradora, essa questão não foi objeto

nidade Pankararu existir sem a terra. “É uma tristeza

de discussão no processo, tendo a sentença deter-

para os povos indígenas, principalmente para nós, que

minado a desintrusão dos não índios, independente-

o Governo não veja essa parte de demarcar, reconhe-

mente de qualquer condicionante, ainda que o órgão

cer, homologar as terras indígenas do nosso País. Eu

agrário tenha a obrigação de reassentar aqueles com

vejo o descaso com os Guarani-Kaiowá. Não só com

perfil de clientela de reforma agrária.

eles, mas com todos os outros indígenas da parte do

“Há a demarcação da área desde 1987, então, os posseiros sabem que não poderiam continuar nessa área indígena e insistiram nessa continuidade apenas por recalcitrância. Por conta disso, todas as atuações dos órgãos públicos foram bastante dificultadas. Tem sido difícil, do levantamento de benfeitorias de boa-fé até o cadastramento para reassentamento, porque

O desembargador federal convocado Leonardo Coutinho, diante da tensão social entre os grupos, determinou a retomada do plano de desocupação da terra indígena


46

Nordeste dessa nossa mãe-terra. Vejo no Governo

financeiras e administrativas.

brasileiro um desrespeito muito grande com os povos

Em paralelo, a PF encaminhou ofício ao Juízo

indígenas, donos dessa terra. Eles usam os poderes

da 38ª Vara Federal da SJPE, comunicando sobre a

deles da maneira que querem, como querem e (dei-

necessidade de expedição de mandados de busca e

xam) há muito a desejar para nós, povos indígenas

apreensão para o prosseguimento das diligências na

dessa mãe-terra. Essa mãe-terra é tudo o que nós

TI Pankararu. Isso porque, como afirmou a autoridade

temos”, lamentou.

policial, foram identificadas 11 residências sendo ocu-

No dia 23 de julho deste ano, o juiz federal Feli-

padas por possíveis lideranças dos invasores, que es-

pe Mota Pimentel de Oliveira promoveu, na 38ª Vara

tavam incentivando aos demais a não deixar o local.

Federal da SJPE, uma audiência de conciliação entre

Aquele Juízo, então, autorizou, em 13 de setembro, o

as partes, a fim de encontrar o melhor caminho para o

cumprimento da medida de busca, apreensão e deso-

cumprimento da sentença. Representantes dos indí-

cupação, com autorização de acesso e posterior pe-

genas e dos não indígenas participaram dos debates,

rícia em todos os dados constantes nos computado-

bem como do MPF, da União Federal, do Incra e da

res, mídias e celulares (agendas telefônicas, ligações

Ouvidoria Agrária Nacional, da Funai, da Secretaria de

efetuadas e recebidas, mensagens enviadas e recebi-

Governo da Presidência da República, do município de

das, vídeos, fotos, mensagens trocadas por aplicativo

Jatobá, da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos

Whatsapp e Telegram), bem como nos documentos

do Governo do Estado de Pernambuco, da Defensoria

apreendidos no curso da intervenção.

Pública da União, da PF e da PMPE. Alguns desses

De acordo com a PF, a operação contou com o

acompanharam a audiência por videoconferência. Ao

apoio da PMPE e do Corpo de Bombeiros do Estado

final, o magistrado decidiu por intimar o município de

e tinha o intuito de desocupar 12 imóveis – perten-

Jatobá a apresentar, no prazo de cinco dias, se tem,

centes aos indígenas – irregularmente ocupados por

ou não, a intenção em aderir ao “Programa Minha

não índios, mobilizando 100 policiais. Durante a ação,

Casa, Minha Vida” para as famílias de não índios.

duas pessoas foram detidas por desobediência, pois,

Em resposta, a prefeitura de Jatobá enviou ofício

munidas de facões, tentaram impedir o avanço da

ao MPF, em 27 de julho, com a informação de que,

equipe policial. Em cinco dos imóveis, não foi possível

naquele momento, não havia construções de casas

cumprir a ordem de despejo, pois o endereço de dois

sendo feitas, destinadas ao referido programa social,

estava impreciso e, nos três restantes, os ocupantes

tampouco a previsão para tal, uma vez que se trata

eram idosos. Para estes últimos, os oficiais de Justiça

de iniciativa do Governo Federal. O documento ainda

prolongaram o prazo de saída por mais 15 dias. Em

apontou a inexistência de qualquer outro imóvel que

nota, o Cimi alertou que a ação policial tem gerado

pudesse ser usado para abrigar as famílias retiradas

ataques públicos, como ameaças e mensagens de

da região indígena, assim como os pertences delas.

ódio ao povo Pankararu, visto que alguns não indíge-

A Prefeitura afirmou passar por inúmeras dificuldades

nas foram feridos durante a desocupação.


Transparência

As longa manus da Justiça Jennifer Albuquerque e Juliana Aguiar (Com colaboração de Najara Lima/JFSE)

Bater de porta em porta, entre-

dados. Essas são algumas das atribuições comuns na

gar ofícios, dialogar com famílias,

rotina dos oficiais de justiça. No caso do Tribunal Re-

visitar órgãos públicos, realizar man-

gional Federal da 5ª Região – TRF5, a designação mais


48 Apesar das adversidades, a oficiala Cleide Rodrigues observa vários pontos positivos na profissão

adequada seria oficialas, já que, atualmente, o quadro é composto somente por

ples: o oficial encaixa o ho-

mulheres. Enquanto nas Se-

rário de entrega do mandado

ções Judiciárias da Justiça

no expediente da empresa

Federal na 5ª Região as va-

ou organização pública. Ain-

gas para oficiais e oficialas,

da assim, corre o risco de fi-

somadas, chegam a 402, de-

car refém da disponibilidade

vido a uma maior quantidade

do funcionário que receberá

de processos, na Segunda

o mandado. Já no caso das

Instância são apenas duas

pessoas físicas, “os desafios

vagas para o desempenho dessa função. O trabalho desempenhado pelas oficialas do TRF5, lotadas na Central de Mandados da Secretaria

são diversos e imprevisíveis”, avisa a oficiala Cleide da Silva Cordeiro Rodrigues, que compõe o quadro do TRF5.

Judiciária, se inicia logo depois do acórdão de uma

Com uma rotina agitada e incerta, Cleide realiza

Turma ou da sentença de um magistrado. Assim,

um trabalho, como ela mesma diz, bastante flexível,

cabe às longa manus do Tribunal dar cumprimento,

fazendo um rodízio de plantão, com a outra oficiala,

pessoalmente, às ordens judiciais.

que dura 24h, o que inclui os finais de semana. “Geral-

O exercício da função exige, sobretudo, estar

mente, eu vou durante os dias úteis ao local da entre-

preparado para lidar com as situações que envolvem

ga do mandado e pelo menos descubro se a pessoa

um serviço de natureza externa, já que praticamente

mora lá. Se sim, volto no fim de semana. Dependendo

todo o trabalho é realizado fora do Tribunal. Assim,

do local, eu não me sinto confortável para chegar lá

o profissional é responsável por entregar citações,

às 21h, que seria o horário mais provável para encon-

prisões, penhoras, arrestos, diligências e executar

trar a pessoa física, após seu expediente de trabalho”,

os mandados. No Judiciário, esses destinatários se

explica Cleide.

dividem entre pessoas físicas e jurídicas e, para que

Trabalhar grande parte do expediente na rua, em

os mandados sejam efetivamente cumpridos, faz-se

contato direto com as pessoas, é um dos pontos po-

necessária a assinatura do recebedor. Caso esta seja

sitivos ressaltados por Cleide, mas é aí que também

negada, basta a constatação, dada pelo oficial, de

residem as maiores adversidades. “Teve um caso em

que a pessoa está ciente do documento.

que uma vizinha me falou: ‘ele sai de casa de 5h30 da

Nesse intervalo, algumas estratégias são adota-

manhã’. No outro dia, às 5h20, eu cheguei à casa do

das para que cada saída para a rua não seja desper-

destinatário e ele já havia saído. Saiu mais cedo por-

diçada com um mandado não cumprido. No caso das

que avisei que viria. No dia seguinte, então, cheguei

pessoas jurídicas, o processo é relativamente sim-

lá às 5h10 e cumpri o mandado”. De acordo com ela,


49

geralmente a primeira visita ao destinatário é apenas

eu fiz o concurso, queria ser oficiala. Eu sabia como

para constatar se ele realmente mora no local. “A

as coisas funcionavam. Mas, realmente, você só co-

gente pergunta a algum vizinho: ‘você sabe se fulano

nhece a profissão quando está nela. Tem determina-

mora aqui? sabe a que horas eu posso encontrá-lo?’.

das situações em que eu me sinto um pouco mais

Há pessoas que não gostam de informar, então, fatal-

vulnerável, tanto que eu peço para o meu marido me FOTO: NAJARA LIMA/ASCOM JFSE

mente, você tem que voltar”, completou a oficiala. Para compensar os dias da semana em que não é possível achar o recebedor em casa, a solução encontrada pelos oficiais é trabalhar durante o fim de semana. Situação semelhante é relatada por Augusto Maynard, da Seção Judiciária de Sergipe. Após voltar de Paris, na França, com formação jurídica e literária, foi aprovado no concurso para oficial de Justiça. Mas a sua primeira experiência como servidor, já no exercício do cargo, não foi tão glamourosa. “Pouco experiente no trato

Para Augusto Maynard, a maior dificuldade é exterior à profissão: o trânsito caótico e a ausência de estacionamento nas cidades

com o público dos jurisdicionados e forçado a atuar

acompanhar. Peço pra ele dirigir pra mim e ficar no

imediatamente, fui sozinho bater às portas, acabru-

carro. Quando vou ao presídio, nunca vou sozinha”,

nhado e temeroso. Lembro-me de que, em uma das

relata Cleide.

primeiras diligências, subi e desci os quatro andares

A entrega de mandados em presídios da Região

de um apartamento, na Coroa do Meio, até que final-

Metropolitana do Recife é outro desafio para as oficia-

mente criei coragem para subir novamente e comu-

las. Para ter acesso à penitenciária Barreto Campelo,

nicar à moradora que ela tinha poucos dias para se

por exemplo, é necessário dirigir por 4 km de estrada

mudar. De volta à Central de Mandados, a diretora de

de barro. Já o caminho para o Presídio de Igarassu

então me perguntou como me tinha saído. Diante da

não tem iluminação suficiente, o que impossibilita um

minha frustração, profetizou: ‘nada não, com o tempo

trajeto seguro após o entardecer. Alguns presídios

você se acostuma’. E me acostumei”, conta Augusto.

contam com parlatório, local onde os oficiais podem

Assim como ele, Cleide relata que o medo e o

conversar em segurança com os internos, separados

desconhecido são duas das poucas certezas da pro-

por uma cabine. Já outros, não.

fissão. Ser mulher nesse contexto traz uma preocupa-

Já Augusto Maynard destaca o trânsito como

ção extra à frente dos riscos e da exposição. “Quando

uma dificuldades impostas pelo exercício da pro-


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fissão. Segundo ele, as diligências são feitas com o

aí você tem que ser um tradutor entre o Judiciário

próprio carro, à procura de vagas de estacionamentos

e a pessoa. A gente tem que ter esse tato em cada

praticamente inexistentes nas cidades. Além disso,

mandado, mas é muito legal. Como oficiala, é possí-

enfrentar a má vontade dos executados, que recor-

vel ajudar as pessoas, para que elas procurem uma

rem a todo tipo de artimanha para evitar os oficiais,

defensoria pública, por exemplo, e você sabe que está

não é tarefa das mais fáceis. “Ninguém quer ver um

cumprindo seu papel. Eu gosto da minha profissão”,

oficial de justiça batendo à sua porta”, avalia.

ressalta Cleide.

Algumas outras situações atípicas são relatadas

O apreço pela profissão também está presente

por André Ventura, oficial de Justiça há 19 anos, lo-

em Augusto. “É um trabalho necessário e imprescin-

tado no Juizado Especial Federal da Seção Judiciá-

dível para o efetivo cumprimento da prestação jurisdi-

ria de Pernambuco (SJPE). Segundo André, lá, 85%

cional, razão pela qual, da maneira mais humanitária

dos mandados são de verificação. Alguns deles são

possível, cumpro com orgulho de ser um daqueles

de verificação de miserabilidade, como um cumprido

que, como os juízes, promotores e advogados, atuam

na comunidade Escorregou Tá Dentro, no bairro de

no ‘fazer justiça’”.

Afogados, no Recife. “Eu não conhecia o local. Fica numa via principal do Recife, mas todo mundo passa e não vê. Lá não tem saneamento, não tem esgoto. A privada das casas fica encaixada em um buraco em cima do canal”. Ele diz que esse foi um dos mandatos mais difíceis de serem cumpridos. “Eu fui para

Dados da violência • Em todo o Brasil, há 75 mil oficiais de Justiça.

a última casa. Havia um caminho pequeno na beira

• Segundo um levantamento da Associação

do canal, que é completamente imundo, onde dá pra

dos Oficiais de Justiça Avaliadores Federais

passar apenas uma pessoa. Não tinha um parapeito.

de Goiás, houve 145 casos de violência entre

Uma pessoa já havia caído em um buraco e eu tive

os anos de 2000 e 2017.

medo de cair no canal”, relata André.

Desafios Apesar dos desafios da profissão, o oficial de

• Entidades que representam os oficiais de Justiça falam em uma alta de 25% de casos de violência contra os profissionais em dois anos.

Justiça tem uma rotina dinâmica no serviço que pres-

• Uma proposta de 2007 que altera o Estatuto

ta à Justiça e à sociedade. Em algumas situações, o

do Desarmamento para conceder porte de

servidor pode orientar melhor o cidadão sobre seus

arma aos oficiais de Justiça está na Comissão

direitos e deveres. “É necessário tomar cuidado com

de Relações Exteriores e Defesa Nacional do

a abordagem, com a fala, como trata a pessoa. Mui-

Senado Federal.

tos não sabem o que é uma citação, por exemplo, e


Em dia com a Lei

Conta de luz

Termobahia Em maio, o Pleno do TRF5 manteve, por maioria, o procedimento de alienação de 50% da participação societária da Petrobras na Termobahia para a Total Brasil E&P. Uma decisão da Presidência do Tribunal já havia suspendido os efeitos da liminar proferida pelo Juízo da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de Sergipe (SJSE), que determinava a suspensão da referida venda. Ao analisar o caso, o presidente do TRF5, desembargador federal Manoel Erhardt, considerou a importância da Petrobras para a economia do País e a grave crise financeira pela qual a estatal atravessa. Duas famílias A composição ampliada da Quarta Turma do TRF5 concedeu, por maioria, no dia 8 de maio, a divisão de pensão por morte entre duas famílias. A União e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB) foram condenadas a efetuarem o rateio do benefício de servidor público federal, tendo em vista que este possuía, concomitantemente, uma relação matrimonial e uma união estável. A autora do recurso também receberá o valor do rateio de forma retroativa, a contar de setembro de 2016, acrescido de juros de mora e correção monetária.

Em maio, uma decisão do desembargador federal convocado Leonardo Coutinho, referendada pela Quarta Turma do TRF5, autorizou a Companhia Energética de Pernambuco (Celpe) a reajustar a tarifa de energia em 8,41%, para os consumidores residenciais, e 9,9% – em média –, para as indústrias situadas no Estado. Em Ação Popular proposta pelo deputado federal Danilo Cabral, a 3ª Vara Federal da Seção Judiciária de Pernambuco (SJPE) concedeu liminar, suspendendo a aplicação do reajuste, que passaria a vigorar desde o dia 29 de abril deste ano. Tabela do frete No mês de junho, o desembargador federal Cid Marconi, na função de presidente em exercício do TRF5, suspendeu liminares concedidas pelo Juízo da 8ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (SJRN), mantendo-se, com isso, os efeitos vinculantes da Medida Provisória nº 832/2018 e da Resolução nº 5.820/2018, que tratam da tabela de valores mínimos para frete, para duas empresas transportadoras do RN. Na decisão daquele Juízo, as transportadoras tinham sido excluídas das normas que regulamentam a Política de Preços Mínimos de Transporte Rodoviário de Cargas. Toxina botulínica A Segunda Turma do TRF5 manteve suspensa, por maioria, no dia 26 de junho, a aplicação de toxina botulínica por cirurgiões-dentistas. A 5ª Vara Federal da SJRN suspendeu os efeitos das orientações constantes na Resolução nº 176/2016 do Conselho Federal de Odontologia (CFO), a qual regulava a utilização da substância e de preenchedores faciais para fins terapêuticos e/ou estéticos. De acordo com o relator do processo, desembargador federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, a atuação do cirurgião-dentista em procedimentos que vão além dos relacionados ao aparelho mastigatório não encontra amparo legal.


Saudades dos tempos da guerra fria

Sentir

Edilson Pereira Nobre Júnior 07 de maio de 1945, tão logo derrotado o nazifascismo, o mundo mais uma vez restou frustrado no seu sonho de paz com o imediato soerguimento de uma cortina de ferro, dividindo o continente europeu. A guerra, outra explosiva e incendiária, tornou-se glacial. Nas terras de Vera Cruz, o retorno festivo dos pracinhas fez substituir a ditadura pela esperança da democracia. Ressurgiram os partidos políticos, sendo três os principais. Eles eram o Partido Social Democrático – PSD, formado pelos defensores dos governos desde Tomé de Sousa, a União Democrática Nacional – UDN, que aglutinava os inimigos do Estado Novo, e o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, fundado por Vargas, que, para mais uma tentativa de sobrevivência, camuflava-se em uma de suas múltiplas personalidades, a de pai dos pobres. As campanhas políticas tomaram-se de radicalismos. Numa delas, a do ano de 1954, onde se encontravam em jogo duas cadeiras para o Senado, uma cidade dos confins do Nordeste foi palco de uma disputa silenciosa no clero. Certo dia, às vésperas do pleito, Padre Anacleto, queridíssimo pelo seu rebanho, além de udenista ferrenho, recebeu do bispo uma ordem para que divulgasse uma mensagem aos fiéis. O texto era demasiado sugestivo na defesa do voto para os candidatos da coligação PSD-PTB. Não podendo descumprir a determinação do superior, pois com hierarquia na Igreja não se brinca, e o anátema seria certo, Padre Anacleto não contou conversa e se pôs a cumprir a determinação episcopal. O detalhe é que a sua leitura deu-se em latim, à época o idioma oficial do catolicismo. Assim, o seu conteúdo soou indiferente aos ouvidos do eleitorado, e na cidade a UDN pôde seguir vitoriosa. Saudades daqueles tempos em que as divergências políticas, mesmo exacerbadas, eram digeridas sem fortes doses de um ódio fratricida.


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