Aos leitores No cárcere e longe de seus países. Os presos estrangeiros no Brasil cumprem uma espécie de dupla condenação, vivendo o isolamento dentro do isolamento. O Brasil tem um presídio exclusivo para estrangeiros, em Itaí/SP, mas eles também estão reclusos em outros lugares, como nos presídios comuns e federais. O País também tem normativos específicos, em convenção com outros países, para regular a presença e a permanência dos estrangeiros encarcerados, contudo o art. 5º da Constituição Federal também prevê direitos aos estrangeiros nessa situação. E é justamente a esse delicado tema que a Argumento dedica sua matéria de capa. Não só: a reportagem inclui uma visita ao presídio federal instalado no município de Mossoró/RN, que resultou numa entrevista exclusiva com o juiz federal Walter Nunes, responsável pela execução das penas e titular da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (SJRN). Na entrevista, Nunes fala sobre as rotinas do presídio, considerado o único de excelência no País. A 19ª edição da Argumento também traz matérias sobre os 30 anos do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5, celebrados em março de 2019 com diversas reverências à memória da Corte, e sobre o medicamento Spinraza, apontado como único que pode conter os avanços da Atrofia Muscular Espinhal (AME) e que tem sido objeto de vários processos na Justiça Federal, considerando que o tratamento com esse remédio pode custar até R$ 2,5 milhões. Traz, ainda, o perfil do desembargador federal Carlos Rebêlo, atual corregedor do TRF5, um artigo sobre segurança jurídica, assinado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, e um conto do presidente do TRF5, desembargador federal Vladimir Carvalho, na seção Sentir. D’além-mar, a fotógrafa Juliana Galvão enviou as fotos para a seção À Luz dos Direitos. Entre cortinas de fumaça, luzes, sombras e silêncios, uma Lisboa que só os olhos de Juliana poderiam enxergar. As fotos são permeadas por textos do juiz federal Francisco Barros. Boa leitura!
Isabelle Câmara Editora
Expediente Presidente Des Fed Vladimir Carvalho Vice-Presidente Des Fed Rubens Canuto Corregedor-Regional Des Fed Carlos Rebêlo Júnior Desembargadores Federais Lázaro Guimarães Paulo Roberto de Oliveira Lima Manoel Erhardt Rogério Fialho Moreira Edilson Nobre Júnior Fernando Braga Roberto Machado Paulo Cordeiro Cid Marconi Alexandre Luna Élio Siqueira Leonardo Carvalho Edição Isabelle Câmara Projeto gráfico André Garcia Textos Bruno Brito, Cínthia Carvalho, Débora Lôbo, Felipe Oliveira, Isabelle Câmara, Lorena Mascarenhas, Sarah Porto e Tallita Marques Capa André Garcia e Rachel Hopper Revisão Joana Carolina Lins Pereira e Nivaldo Vasco Fotografias Juliana Galvão e Roberta Mariz Editoração André Garcia e Rachel Hopper Ilustrações Cyntia França e Júlia Arruda @TRF5 Portal TRF5: www.trf5.jus.br Twitter: http://twitter.com/TRF5_oficial Curta nossa fanpage: https://www.facebook.com/TRF5a Instragram: trf5_oficial Fale conosco: argumento@trf5.jus.br
Apoio Francisco Macena e Flávia Barros de Paula Jornalista Responsável Isabelle Câmara DRT/PE 2528
Sumário
À Luz dos Direitos
As sombras, as luzes e os silêncios de Lisboa, pelas lentes da fotógrafa Juliana Galvão
34
Perfil
8
A suavidade da voz do desembargador federal Carlos Rebêlo ganha um tom maior quando ele fala sobre uma de suas grandes paixões: a sala de aula
30 anos
16
Fundamentais
42
TRF5 comemora três décadas promovendo Justiça, igualdade e cidadania
Medicamento Spinraza, apontado como único que pode conter o avanço da Atrofia Muscular Espinhal (AME), é a esperança de sobrevida de muitos pacientes que recorrem ao TRF5
4 Extra-autos
Trabalhos voluntários dão novos significados às vidas de muitos servidores do TRF5
24 Capa
Distantes da terra natal e encarcerados. Presos estrangeiros relatam as dificuldades da vida atrás das grades no Brasil, para além das fronteiras geográficas
48 Sentir
“O importante não era seu rosto, igual ao de todo mundo. (...) Fundamental era eu saber que ele me amava”. O Rosto do Noivo, conto do desembargador federal Vladimir Carvalho
52 Em dia com a Lei
Panorama das decisões judiciais do TRF5
Voluntariado:
Extra-autos
trabalho com o coração
Servidores do TRF5 dedicam tempo livre ao trabalho voluntário e encontram novos significados para a vida
Sarah Porto
Famílias da Comunidade de
do por unanimidade pelos servidores: quem de fato é
Areinhas, moradores de rua, crian-
o maior beneficiado por dedicar parte das suas vidas
ças e adolescentes de baixa renda
ao próximo é quem se voluntaria.
com dificuldades na escola. O que
Bruna Ramos, da Subsecretaria de Orçamento e
esses grupos de pessoas têm em
Finanças, tem 24 anos e é servidora do TRF5 desde
comum? Todos são beneficiados
setembro de 2018. Antes mesmo de iniciar o labor
por trabalhos voluntários realiza-
no Tribunal, ela já dedicava seu tempo às crianças e
dos por servidores do Tribunal Re-
adolescentes da Comunidade de Areinhas, localiza-
gional Federal da 5ª Região – TRF5
da no Bairro do Pina, zona sul do Recife/PE, que são
há, pelo menos, dois anos. Ou,
beneficiários da Associação Caminho do Bem, orga-
melhor dizendo, como foi enfatiza-
nização não governamental (ONG) da qual Bruna é
5
tesoureira. Com formação em
Bruna Ramos dedica seu tempo livre às crianças e adolescentes da Associação Caminho do Bem
Ciências Contábeis, a servidora atua na área que mais domina, gerenciando as contas do projeto, mas também contribui dando aulas de reforço escolar às crianças da comunidade, todas as quintas-feiras
selado com o projeto. Outra maneira de angariar re-
pela manhã.
cursos são as benfeitorias, por meio das quais as pes-
“Nosso trabalho no reforço escolar vai além de
soas podem fazer doações em troca de brindes, com
consolidar o aprendizado das salas de aula. O objetivo
o objetivo de atingir uma determinada meta. “Recen-
é fazer com que a criança aplique na prática o que
temente conseguimos atingir uma meta de cerca de
está sendo estudado, contextualizando o conteúdo
9 mil reais para comprarmos máquinas para compor o
didático à vida cotidiana”, explicou a servidora. As
nosso serviço médico”, frisou Bruna.
crianças têm aulas de qualquer assunto que apresen-
Mesmo com a atenção voltada à saúde fisiológi-
tarem dificuldades, dispondo de três dias na semana
ca, a Associação também oferece às crianças aulas
para tal reforço.
de evangelização aos sábados, destacando a impor-
A Associação Caminho do Bem iniciou os tra-
tância do equilíbrio espiritual e físico. “Nosso foco hoje
balhos, há dois anos, focada na atuação no ramo da
é educação e saúde para as famílias, mas o nosso ob-
saúde, prestando atendimento médico às famílias da
jetivo maior é a assistência integral ao núcleo familiar,
Comunidade. A maior parte dos voluntários da ONG
para que eles possam ter uma vida melhor em todos
são profissionais da área de saúde, oferecendo diver-
os sentidos, não só suprir as carências básicas”, pon-
sos serviços médicos e odontológicos aos moradores
tuou a contadora. “Eu trabalho com as crianças, então
das redondezas. “Hoje, são 14 especialidades con-
o que me faz seguir neste trabalho é o carinho que eu
templadas. Os atendimentos são feitos, em regra, aos
recebo de cada uma. É me doar ao próximo. Coloquei
sábados, sendo, geralmente, três especialidades (por
como prioridade na minha vida estar envolvida com
sábado) e cada uma atende, em média, 10 pacien-
esse projeto. Ajudou-me com a visão de mundo, de
tes”, afirmou Bruna, contando, ainda, que o público
como ver o próximo”, concluiu, emocionada.
cadastrado liga para marcar os atendimentos que são realizados na própria sede da ONG.
“Quem faz trabalho voluntário vai muito mais atrás da cura do que oferecer a cura. O principal do-
Cerca de 200 pessoas são beneficiadas pelo pro-
ente é quem vai ajudar. A realidade traz pra gente a
jeto social, que conta com mais de 40 colaboradores.
visão do que podemos trabalhar dentro de nós como
A ONG se mantém por doação, seja por doadores
seres humanos e melhorar”. O depoimento de Ana
singulares, que realizam contribuições esporádicas,
Cláudia Nunes de Oliveira, servidora do TRF5 lotada na
seja por aqueles que têm um compromisso financeiro
Subsecretaria de Tecnologia da Informação, caberia
6
muito bem no relato de Bruna, acerca do trabalho vo-
contou a servidora.
luntário. Entre reflexões e afirmações, a bacharela em
“O amor que você encontra nas ruas é único. O
Ciências da Computação traduz, em síntese, o senti-
carinho das famílias que são formadas de todas as
mento que lhe transborda ao tratar do projeto social
formas possíveis é admirável. Elas nos ensinam mui-
que integra há aproximadamente seis anos.
to. A realidade traz a visão do que podemos trabalhar
O grupo Fraternidade Missionários da Luz tem
dentro de nós, como seres humanos, e melhorarmos.
como principal atividade voluntária a entrega do “so-
Como vivemos dentro de certa fartura, não valori-
pão”, carinhosamente chamado assim por seus in-
zamos aquilo que, de fato, deveria ser valorizado e
tegrantes, nas segundas-feiras à noite, nas ruas do
desvalorizamos o que deveria ser valorizado, como as
Centro do Recife. A servidora já pôde colaborar de
relações humanas. Essas, sim, são duráveis, pois os
diversas maneiras com o projeto, desde a coleta de
bens, sejam eles quais forem, são voláteis.”, analisou
latas com tampas que servem de depósito para as
Ana. O projeto do sopão também é mantido através
sopas que serão distribuídas, passando pela prepara-
de doações e, quando não há verba suficiente, os pró-
ção do alimento e, finalmente, sua partilha nas ruas.
prios voluntários fazem uma cotinha para suprir a la-
O grupo também distribui roupas doadas, cuidadosa-
cuna. “As pessoas dependem da gente”, finalizou Ana
mente separadas por gênero, idade e tamanho, para
Cláudia.
facilitar a entrega aos que necessitam.
Veterano dos trabalhos voluntários, Antônio de
“Eu já nasci procurando o trabalho voluntário, eu
Brito, servidor lotado no Gabinete do desembargador
sempre me importei com a dor do próximo. Eu só me
federal Roberto Machado, é mais um que se emocio-
vejo completa quando eu posso ajudar quem está per-
na ao falar da gratidão mútua presente no voluntaria-
to de mim. Não só ajudar no sentido que vá satisfazer
do. Após ter atuado durante cinco anos como voluntá-
uma necessidade imediata, uma urgência, mas algo
rio na Associação de Assistência à Criança Deficiente
que eu possa ajudar a construir de uma maneira que,
(AACD), auxiliando no setor de arquivo da instituição,
quem sabe, ela possa ter isso de forma permanente”,
Antônio hoje é colaborador da Casa Vincular, projeto que desde 2017 oferece café da manhã, almoço, banho e afeto a pessoas em situação de rua e que moram em comunidades carentes. O projeto social funciona da seguinte maneira: as pessoas chegam à Casa, que fica localizada em Campo Grande, bairro da
Por diversas vezes, Ana Cláudia mobilizou os servidores do TRF5 em prol dos moradores de rua, amparados pelo grupo de Fraternidade Missionários da Luz
7
Veterano nos trabalhos voluntários, Antônio Brito já se dedicou à AACD e, hoje, se dedica à Casa Vincular
a forma de crescimento pessoal, de amadurecimento. “É você enxergar o outro. Não é fácil ver uma pessoa que não tem nada, e você, com tudo, oferecendo aquela ajuda, que é o mínimo. Criamos um vínculo”, assegura o servidor que contribui nas diversas funções da casa. zona norte do Recife, durante o início da manhã, nas
Brito ressalta que, quando se é voluntário, se ofe-
terças e quintas-feiras, e perto do meio-dia, às se-
rece o trabalho para a instituição e ela decide o que
gundas, quartas e sextas-feiras, fazem um pequeno
você vai fazer, não importando se irá atuar lavando
cadastro (aquelas que ainda não são cadastradas),
pratos ou lidando diretamente com as pessoas. “De
pegam uma ficha numerada e aguardam a sua vez
toda maneira você faz parte do projeto. E essa troca,
na porta da Casa. Chegando a vez, vão primeiro para
por mínima que seja, é muito boa. Abre-se uma porta
o banho, onde é oferecida uma muda de roupa, for-
para a esperança.”, completou.
necida ao projeto através de doação, shampoo, condicionador, sabonete e até aparelho de barbear. Já de banho tomado, partem para as refeições. Às terças e
Como ajudar?
quintas, a Casa oferece café da manhã e, às segundas, quartas e sextas, almoço. Com cerca de 600 pessoas já beneficiadas e mais de 6.000 refeições já oferecidas, o projeto se mantém exclusivamente através de doações, tanto de pessoas físicas quanto de empresas. “Eu sempre quis participar da vida das pessoas. Saber o que elas pensam, perceber que aquelas pessoas estão num momento diferente do seu, mais vulnerável, de necessidade e, de certa forma, também entender como elas chegaram ali”, relatou, com
Associação Caminho do Bem Rua José Rodrigues, 544, Pina, Recife – PE Contato: (81) 9 9635.2801 (Silvia) Facebook: @associaçãocaminhodobem Instagram: @soucaminhodobem Casa Vincular Rua Marquês de Abrantes, 231, Campo Grande, Recife – PE Contato: (81) 9 8237.4725 (Mariana) Facebook: @ProjetoVincular Instagram: @projetovincular Site: www.casavincular.com.br
lágrimas nos olhos, Antônio, refletindo o bem que o trabalho voluntário lhe faz. Quando questionado sobre o papel do voluntariado na sua vida, com a voz embargada, destacou
Fraternidade Missionários da Luz Rua Catulo da Paixão Cearense, 318, Jardim Atlântico, Olinda – PE Facebook: @FraternidadeEspiritaMissionariosDaLuz
Perfil
Carlos Rebêlo
, e r t s e o h n Ao cm i r a c m o Lorena Mascarenhas
Não é fácil separar o “desembargador Rebêlo” do “mestre Rebêlo”. Ex-seminarista, Carlos Rebêlo traz na suavidade da voz uma cadência inabitual entre os juristas, mas que logo ganha um tom maior quando se põe a falar sobre algo que vai além do mundo jurídico: a sala de aula Simplicidade é uma das primei-
A forma com a qual se dedica ao magistério é tão
ras qualidades lembradas por colegas
marcante que num dos discursos proferidos durante
de profissão e discentes quando se
sua posse como desembargador no Tribunal Regional
referem ao desembargador federal
Federal da 5ª Região – TRF5, em 2015, a advogada
Carlos Rebêlo Júnior. O ex-semina-
Gabrielle Lobo Santana, uma de suas ex-alunas da
rista nascido na cidade paraense de
Universidade Federal de Sergipe (UFS), lugar onde
Alenquer, no Baixo Amazonas, traz
Rebêlo até hoje leciona, confessou o quão difícil seria
na suavidade da voz uma cadência
não vê-lo mais com o seu tradicional jaleco branco e
inabitual entre os juristas, mas que
pasta preta. O título de professor, ressaltou Santana,
logo ganha um tom maior quando se
precede e sucede sua condição de desembargador.
põe a falar sobre algo que vai além do mundo jurídico: a sala de aula.
De fato, não é fácil separar o “desembargador Rebêlo” do “mestre Rebêlo”. Enquanto discorre discreta
9
e comedidamente sobre o lugar onde cresceu e sobre
uma dedicatória em latim num livro, na mesa do café,
sua vida acadêmica, a palavra “professor” inevitavel-
em restaurante do mercado de Aracaju”, avisou o de-
mente surge e a entonação de sua voz muda. Desde a
sembargador federal Vladimir Carvalho, durante dis-
época em que cursava o Ensino Médio, no Pará, Rebê-
curso de saudação, na cerimônia de posse no TRF5 de
lo dava aulas particulares de Matemática, Português
Carlos Rebêlo. “Posso apostar que os acórdãos virão
e Biologia aos estudantes de Ensino Fundamental. “Como naquele tempo havia uma necessidade muito
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
grande de professores formados, então os alunos que estavam no Científico davam aulas para o Ginásio, e eu era um desses alunos selecionados. Dava aula de Geografia e uma disciplina que havia na época, que se chamava Organização Social e Política”, recorda. Ensinar era seu mecanismo de sobrevivência, confessa. Chegou a pensar em ser professor de Biologia, já que a disciplina lhe despertava bastante interesse, mas as ciências sociais e humanas atraíram, mais tarde, sua atenção. “Na realidade, pensei em ser professor de Biologia porque eu gostava (da disciplina). Depois, eu me formei em Filosofia, e esse
Durante a posse como desembargador federal no TRF5, ladeado pela esposa, Socorro, e pelos filhos Cláudia e Paulo
curso permitia ensinar também. Fazendo o curso de Filosofia, tirava-se uma carteira do MEC (Ministério
sempre recheados de latim e, quando forem despa-
da Educação e Cultura), que dava direito a ensinar, no
char memorial de julgamento, os senhores ouvirão
2º Grau, Psicologia, Filosofia e Sociologia”, relembra.
muito a expressão ‘vamos refletir sobre isso’”, previu
Criado pelos avós em Alenquer, Rebêlo é o ter-
a discípula Gabrielle Santana, na mesma ocasião.
ceiro dos 11 filhos de um comerciante e uma dona de
Mesmo quando deixou sua terra natal e mudou-
casa. Estudou em colégios religiosos, na cidade para-
-se para o Recife (PE), para cursar, simultaneamen-
ense de Santarém, incluindo os sete anos aos quais
te, Direito, na Universidade Federal de Pernambuco
se dedicou ao Seminário São Pio Décimo, às margens
(UFPE), e licenciatura em Filosofia, na Universidade
do rio Tapajós. Nessa época, teve seus primeiros con-
Católica de Pernambuco (Unicap), Rebêlo não conse-
tatos com o latim, língua que aprecia bastante, e que
guiu ficar muito tempo longe das salas de aulas. O pri-
aparenta ter marcado tanto seus tempos de escola
meiro trabalho na capital pernambucana, aos 21 anos,
quanto a sua convivência com alunos e magistrados.
foi como porteiro de um famoso hotel da cidade. “Fui
“Ninguém, que não o conheça, haverá de pensar que
numa agência de empregos, fiz um teste e eles me
o novo membro deste Tribunal é capaz de escrever
disseram: ‘tem uma vaga no hotel Boa Viagem’. Fui lá
10
e me contrataram”, lembra. Em 1974, no entanto, já
do Nordeste (Sudene), cargo que exerceu entre 1977
formado em Filosofia, voltou a dedicar-se ao magis-
e 1980. Posteriormente, teve uma breve passagem
tério. A capital pernambucana não só marcou seus
pela Justiça do Trabalho, como juiz substituto em Ma-
estudos universitários como também lhe reservou
cau, no Rio Grande do Norte. O ofício, no entanto, não
uma grata surpresa: o destino do menino de Alenquer,
lhe agradou muito, e acabou com um pedido de exo-
que foi ganhar o mundo no Recife, se cruzaria com
neração. “Com todo respeito à instituição, mas eu não
o de uma jovem piauiense, Socorro, colega do curso
gostei de ser juiz do Trabalho. Fui para um trabalho
de Filosofia. Foi dela um presente que guarda na me-
na Pastoral de Direitos Humanos. Passei seis anos lá,
mória. Acostumado aos cadernos baratos e despoja-
andando pelo meio do mundo na Amazônia. Foi muito
dos, vendidos pelo Ministério da Educação e Cultura,
bom”, recorda. De volta à querida Santarém, advogou
ganhou da futura esposa um caderno vistoso, com
para associações e sindicatos, sempre viajando e co-
folhas multicoloridas. Aquilo o deslumbrou. “Não só
nhecendo vilarejos e cidades escondidas no meio da
pelo caderno. Antes do infinito, concluíram-se parale-
Região Amazônica.
las”, comentou Rebêlo, em discurso proferido durante
Entre os casos curiosos que lhe vêm à mente,
sua posse no TRF5. Do romance que virou casamento,
um em especial se sobressai. Era década de 1980 e o
em 1979, nasceram os filhos Paulo Rogério e Cláudia
município de Monte Alegre, à margem do Rio Amazo-
Patrícia.
nas, teve um dia atribulado: o presidente da associa-
Carreira profissional
ção de fluviários da região havia sido preso a mando
Aos 26 anos, já bacharel em Direito, Rebêlo pres-
do chamado juiz pretor (juiz não concursado, nome-
tou seu primeiro concurso público para procurador
ado para resolver pequenas causas). Motivo: o líder
autárquico na Superintendência do Desenvolvimento
da associação tinha enviado um ofício “desrespeitoso” à referida autoridade, reclamando da detenção de um dos companheiros e da apreensão de um motor de popa que pertencia a um dos trabalhadores. Sem pensar duas vezes, o pretor colocou o sindicalista na cadeia pública, que lá ficou à espera de seu defensor, o então advogado Rebêlo. Cerca de 50 trabalhadores foram protestar na frente da prisão, com facões em mãos. O clima estava tenso. Como a cidade, à época, era muito pequena, apenas dois soldados faziam a segurança da cadeia. Quando viram o grupo de homens
Ao entrar no Pleno do TRF5, na posse como desembargador, Rebêlo foi conduzido pelos colegas Cid Marconi (esq.), então o mais recente na Corte, e Lázaro Guimarães, o decano
armados, abandonaram seus postos. De Santarém para Monte Alegre, a viagem era cansativa. Partia-se de madrugada, de barco, na es-
As “canéforas”, estudantes da Universidade Federal de Sergipe que homenagearam o desembargador no dia da sua posse
11
anos consecutivos. Ali, foi recebido como quase um nativo. Também foi em Sergipe que Rebêlo se realizou no magistério, ao prestar concurso, quase três décadas atrás, para professor da disciplina de Direito Processual na UFS, dando aulas, ainda, de Direito Internacional Público. Mesmo depois de ter ingressado no curidão, e Rebêlo esperou o dia amanhecer para ir
TRF5, em 2015, como desembargador federal, e de
conversar com o juiz. O pretor tomava café da manhã
integrar na Terceira Turma de julgamento desta Corte,
numa pensão local, quando o advogado Rebêlo pediu
continuou – e continua até hoje – dedicando-se, com
licença e começou a oratória. Do lado de fora, os tra-
afinco, à docência em terras sergipanas. Foi, inclusi-
balhadores rurais já ameaçavam tocar fogo na delega-
ve, na UFS, que criou um de seus maiores projetos.
cia. Naqueles tempos, sem autos ou processos – ape-
Há 22 anos, está à frente do Núcleo de Extensão e
sar de a lei já exigir todas as formalidades possíveis –,
Pesquisa em Relações Internacionais (Neprin), estrei-
a conversa tinha um quê de prosa interiorana. “Estão
tando laços com importantes universidades no mun-
com terçados (facões) em mãos, estão querendo me
do. Além das salas de aula, dedica-se à organização
amedrontar”, comentou o pretor, irredutível. Rêbelo,
de seminários e de palestras com figuras de destaque
sem muita opção, fez uma brincadeira: “mas, doutor,
no mundo jurídico.
os homens estão com terçados não é para fazer mal a
Há oito anos, Rebêlo idealizou, na UFS, o projeto
ninguém, não! É porque, às vezes, dá aquela coceiri-
Panathenaia, inspirado nos jogos panatenaicos, que
nha na orelha, sabe como é?”. O juiz caiu na risada e o
ocorriam, na Grécia, em homenagem à deusa Atena.
caso ficou resolvido. Naqueles tempos, ingressar com
Na versão anual e moderna, promovida pela Univer-
um habeas corpus na Justiça significava passar pelo
sidade, um professor aposentado é homenageado
menos dois dias viajando de barco até a capital, Be-
com uma ânfora e uma placa, entregues por alunas
lém. O jeito era tentar resolver o problema à base da
da UFS, em trajes referentes às vestimentas das
prosa, já que as detenções eram feitas, muitas vezes,
canéforas, jovens gregas que costumavam levar as
sem documentação, sem respeito ao devido processo
premiações aos vencedores dos jogos panatenaicos.
legal ou ao direito de defesa.
No dia de sua posse no TRF5, não por coincidência, o
Após alguns anos dedicados à advocacia, Rebêlo prestou, novamente, concurso para juiz, tomando
desembargador foi homenageado por universitárias, num ritual semelhante ao adotado na UFS.
gosto pelo ofício. Em fevereiro de 1988, ingressou
Pelo visto, aquele menino simples e discreto
na Justiça Federal em Pernambuco, sendo removido,
do Alenquer-Pará chegou longe. E seu maior legado
ainda no mesmo ano, para a Seção Judiciária de Ser-
parece que ficará guardado na memória acadêmica
gipe, onde exerceu o cargo de diretor do Foro por oito
sergipana.
Veredicto
Segurança jurídica e atividade judicial Marcelo Navarro RIBEIRO DANTAS Mestre e Doutor em Direito Professor de Cursos de Graduação e PósGraduação em Direito Ministro do STJ
Segurança jurídica é um con-
nós, centrou-se na questão da legalidade. Saber se
ceito contemporâneo, pós-revolu-
dada conduta estava conforme à lei (e a seus regu-
ção francesa. É filho do constitu-
lamentos) era a grande obsessão. Essa visão exe-
cionalismo, iniciado com a Carta
gética, literal e burocrática – às vezes esquecida da
americana de 1787, e do movimen-
finalidade da lei – foi marcante até perto do final do
to de codificação do Direito nos
século XX.
países da Europa continental, de-
Tal concepção é ainda a prevalente para mui-
sencadeado com o código civil de
tas pessoas, que costumam achar que a segurança
Napoleão, de 1804. Evidentemen-
jurídica é simplesmente a observância das “regras do
te, muita doutrina foi escrita a res-
jogo” – converse-se com um empresário, por exem-
peito, e, em especial nos países de
plo, e é bem factível que essa expressão venha à tona
filiação jurídica inglesa, a jurispru-
–, mas esse pensamento é muito reducionista.
dência – notadamente o respeito
Afinal, segurança jurídica tem a ver, princi-
aos precedentes – muito contribuiu
palmente, com o correto funcionamento das Insti-
para sua consolidação.
tuições. Poderes legítimos, independentes, que se
Durante um longo tempo,
limitam uns aos outros, eleições limpas e periódicas,
a ideia de segurança jurídica, entre
com a alternância das correntes políticas e a rotativi-
13
dade dos mandatos; transparência da administração
ao que o faz mediante provocação, o julgador, o Judi-
e mecanismos de fiscalização e prestação de contas
ciário – uma esfera de liberdade maior.
(o que agora está na moda chamar compliance); isen-
Consequentemente, há uma complexidade
ção dos julgadores, razoável previsibilidade de seus
muito maior do que o simples conhecimento de quais
julgados; respeito aos contratos, tanto pelas partes
são as “regras do jogo”. Porque às vezes não se sabe
que os celebram como pelo Estado, observância aos
nem quais são as regras nem que jogo é esse!
direitos adquiridos, aos atos jurídicos perfeitos – não
Na segurança jurídica legalista há o defeito
custa remarcar que perfeito, aqui, está estritamente
do burocratismo, da limitação, do atrelamento puro e
no sentido do particípio passado do verbo perfazer,
simples ao texto vigente e da construção de uma nor-
não necessariamente na acepção de impecável – e
matividade dependente, basicamente, do administra-
aos casos já julgados são alguns de seus elementos
dor, que define os parâmetros da atividade do Estado,
primordiais.
e do juiz, que diz se está tudo de acordo com a lei. O
Daí ser possível dizer que um novo paradigma
que, obviamente, não satisfaz. Observe-se que os juí-
de segurança jurídica, iluminado mais pelos princí-
zes mais antigos adoravam dizer que eram “escravos
pios da Constituição do que meramente pela lei, foi
da lei”, os agentes do Ministério Público eram os “fis-
tomando forma. E aqui no Brasil esse foi o momento
cais da lei” e assim por diante; hoje, todos preferem
da Constituição de 1988. E não há negar que esta ins-
dizer que são aplicadores da Constituição, promotores
tituiu o Direito à Segurança Jurídica em inúmeros de
da eficácia do ordenamento jurídico e por aí afora. Até
seus dispositivos, nomeadamente nos arts. 1º a 17,
já propõem substituir o consagrado apelido do MP de
39 a 43, 145 a 232 e em muitíssimos outros.
custos legis por custos juris...
Sim, porque a Constituição deixou de ser vis-
Na segurança jurídica constitucionalizada
ta como aquela norma que fazia apenas declarações
não há mais essa vinculação absoluta ao legalismo,
solenes e belas como promessas ao vento, e passou
podendo-se – e a pergunta é: pode-se mesmo? – agir
a ser tida como regra vinculativa que precisa ser obe-
em nome de princípios, valores etc. Acontece que tais
decida efetivamente. Inclusive quanto aos chamados
valores, princípios, postulados e quejandos, por sua
direitos sociais.
formulação quase sempre vaga, genérica e permissi-
Paralelamente, outro fenômeno decorren-
va das mais diversas interpretações – muito em de-
te dessa constitucionalização da compreensão do
corrência de um superficial entendimento, ou às vezes
ordenamento foi o de introduzir definitivamente os
má compreensão de sua real estruturação teórica –,
princípios jurídicos (muitos dos quais com assento
findam permitindo que cada juiz e cada administrador
ou origem na Constituição) ao lado das meras regras
os aplique do modo que melhor lhe pareça.
(em geral, decorrentes de lei). Pois bem, isso passou
Assim, finda-se recaindo numa nova armadilha
a propiciar ao aplicador do Direito – tanto àquele que
que milita contra a segurança jurídica: a ausência de
o aplica de ofício, o administrador, o Executivo, como
parâmetros compreensíveis por todos, uma vez que
14
se abandonam os marcos legais – os quais, por mais
nômicas. A aplicação do Direito, em nosso país, está
que criticáveis, são reconhecíveis por todos – e se
padecendo de sérios problemas, principalmente em
adotam postulações que, na prática, são extrema-
face desse fenômeno que alguns chamam de pan-
mente subjetivas, permitindo o surgimento, diante da
principiologismo, outros de ponderação à brasileira,
mesmíssima lei, de aplicadores das mais diversas ten-
e que alguns simplesmente denominam geleia geral
dências: liberais uns, rigorosos outros; garantistas es-
jurídica.
tes, partidários da defesa social aqueles; humanistas
A normatividade, muitas vezes, não oferece
aqui, estatistas acolá, e assim por diante. Invocam-se
saídas imediatas para o julgador, que então – pres-
princípios para justificar as decisões mais diversas.
sionado pelas circunstâncias e pelos reclamos de
Frequentemente o mesmo princípio é usado
organizações sociais ou do Ministério Público – se
como suporte de conclusões opostas. O da dignidade
vê numa situação em que, para resolver o impasse,
da pessoa humana, por exemplo, virou panaceia. E o
aventura-se num ativismo judiciário perigoso, princi-
leigo, cada vez mais confuso, pergunta: mas tal con-
palmente se interfere em políticas públicas em es-
duta é certa ou errada? Isto que estou fazendo é per-
feras que muitas vezes são técnicas, das quais não
mitido ou proibido? E como os agentes estatais são
entende ou acerca das quais não tem as informações
muitos e múltiplos, diante do quadro narrado acima,
necessárias.
muitas vezes as respostas são variadas, ainda que a
Se essas intervenções de per si já não fossem
Constituição seja única, e a lei aplicável, também uma
questionáveis, principalmente quando feitas à mar-
só. Entretanto, um diz que pode, o outro que não. Um
gem da lei ou até a despeito dela, carecem quase
multa, o outro autoriza, e assim vai.
sempre de legitimidade política, e atraem, para o
Há juízes – felizmente não são tantos – que a
Poder Judiciário, novos problemas para lidar com os
esse tipo de críticas respondem com a ideia do livre
quais ele dificilmente está preparado. Não é raro que
convencimento pessoal. Ora, a liberdade de convic-
essas incursões, por mais bem intencionadas que se-
ção do magistrado ou a discricionariedade judicial não
jam, sob o pretexto de resolver uma questão grave,
podem servir de escudo para legitimar qualquer de-
gerem consequências ainda piores.
satino, personalismo, ou voluntarismo do julgador. A
Não custa lembrar que, dos três Poderes, o Judi-
racional convicção tem seus lindes intransponíveis na
ciário é o único que não haure sua legitimidade direta-
prova dos autos, nos limites da lei e mesmo na lógica
mente da fonte básica que é, nos termos da Constitui-
das coisas. O juiz não é Deus, ainda que pense que é.
ção, o Povo (art. 1º, parágrafo único). Juízes não são
Não é Deus, mesmo que creia que é. Não é Deus, por
eleitos, muito menos membros do Parquet. O Judici-
mais que tenha certeza de que é. Não é Deus.
ário, portanto, há de legitimar-se institucionalmente.
Do jeito que a coisa vai, todo o sistema que se
Não há dúvida de que hodiernamente se faz uma
levou tanto tempo para construir pode entrar em linha
releitura do princípio da separação dos poderes, per-
de risco, inclusive e principalmente suas bases eco-
mitindo uma atuação mais flexível do Judiciário, já em
15
defesa de valores constitucionais – até mesmo res-
o máximo de informações sobre a matéria antes de
tringindo os poderes do legislador em nome dos direi-
conceder qualquer forma de tutela, por mais confiável
tos fundamentais e da proteção das minorias – bem
que seja a parte requerente; d) valer-se de técnicas
assim permitindo-lhe participar da implementação e
decisórias abertas e dialógicas, sempre que viáveis e
da fiscalização das políticas públicas, quando a tais
úteis no caso concreto; e) atentar especialmente para
valores e direitos elas se referirem.
as limitações naturais que as soluções de demandas
Mas essa visão, típica das várias correntes do
estruturais têm de observar: a cláusula da reserva do
neoconstitucionalismo, pode levar a uma judiocracia
possível, as balizas do Direito Administrativo e Finan-
– que muito tem da tecnocracia dos planos econômi-
ceiro – notadamente as orçamentárias – e as conse-
cos do século passado... – preocupante, entre outros
quências financeiras das providências que determinar.
motivos pelo já referido déficit democrático, além de
A doutrina é pródiga em exemplificar modelos de
um decisionismo em alguns casos, é forçoso concluir,
juiz que pensam poder resolver todos os problemas
sem lastro em argumentação jurídico-racional sólida,
simplesmente com a força da sua caneta. O juiz Hér-
mas em alegações morais ou puramente retóricas.
cules é o mais famoso deles. Mas – se é para buscar
O importante, por conseguinte, é exercitar a pru-
um herói na mitologia greco-romana – talvez seja me-
dência, buscar apoio na técnica e não querer, afoita-
lhor um juiz Ulisses, capaz de se amarrar ao mastro da
mente, caminhar por um voluntarismo que olvida as
legalidade para melhor resistir ao canto de sereia das
balizas legais e, em casos mais gritantes, afronta a
tentações voluntaristas, lembrando, como o jornalista
lógica, chegando a caracterizar, em algumas poucas,
e crítico social americano Henry Louis Mencken não
mas terrivelmente emblemáticas, situações extre-
estava longe da verdade em seu mal-humorado, mas
mas, nada mais do que um desejo, uma crença ou
jocoso bordão de que “para todo problema
uma convicção ideológica ou doutrinária pessoal que
complexo existe sempre uma solução
o magistrado, a todo custo, deseja fazer prevalecer
simples, elegante – e comple-
sem submeter-se ao crivo do voto popular.
tamente errada!”
No caso de uma demanda complexa – principalmente uma ação estrutural, que implique em o Judiciário avançar nas políticas públicas – o julgador tem de seguir alguns critérios: a) ter muito cuidado com a concessão de liminares, em especial sem a ouvida da outra parte; b) buscar respaldo na legislação, tendo cautela redobrada com a mera aplicação de princípios, de sorte a fundamentar de modo sólido e específico e não apenas de modo vago e genérico as decisões que porventura venha a tomar; c) procurar
30 Anos
TRF5 comemora 30 anos de história Ao longo de três décadas, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região construiu uma trajetória de grandes conquistas, ocupando posição de destaque no cenário jurídico nacional Débora Lôbo 130
representou uma maior aproximação da população
anos, durante a República, nascia a
com o Judiciário, já que os conflitos poderiam ser re-
Justiça Federal Brasileira. Em mais
solvidos sem que fosse necessário o deslocamento
de um século, o Judiciário Federal
até Brasília. É nesse contexto que nasce o Tribunal
passou por várias transformações,
Regional Federal da 5ª Região – TRF5. Se comparado
que ficaram marcadas na história
ao tempo de existência da Justiça Federal, e até mes-
do país. Um dos momentos impor-
mo de outras intuições brasileiras, o TRF5 pode ser
tantes dessa trajetória é recente e
considerado jovem, mas já carrega consigo uma gran-
decorreu da promulgação da Cons-
de história de trabalho, realizações, reconhecimento
tituição Federal de 1988: a criação
e comprometimento com a eficiência na prestação
dos Tribunais Regionais Federais.
jurisdicional.
Há
aproximadamente
De acordo com o texto da Carta
Foi numa manhã do dia 30 de março de 1989 que
Magna, o antigo Tribunal Federal
aconteceu a cerimônia de instalação do TRF5. Inicial-
de Recursos (TFR), com sede em
mente, funcionou em sede provisória, no Palácio Frei
Brasília, seria substituído por cinco
Caneca, na Avenida Cruz Cabugá, no bairro de Santo
novos TRFs espalhados pelo Brasil.
Amaro/Recife. O espaço foi cedido pelo então vice-
Mais do que descentralizar
-governador do Estado de Pernambuco, Carlos Wilson
os trabalhos antes
Campos. Durante a solenidade de instalação, também
executados pelo
aconteceu a posse dos 10 juízes federais que compu-
TFR, a criação
seram a nova Corte, solenidade esta que foi conduzi-
dos
da pelo presidente do TFR, ministro Evandro Gueiros
Tribunais
17
Leite, e contou com a presença do governador de Per-
foi o coroamento da minha vida profissional. Passei 20
nambuco à época, Miguel Arraes de Alencar.
anos na Primeira Instância e outros 19 na Segunda,
O início dos trabalhos não foi nada fácil. Além da
onde pude exercer diversas funções. Sinto-me realiza-
grande quantidade de processos, que chegavam aos
do, me dediquei ao máximo e também cometi erros,
montes de Brasília, oriundos do extinto TFR, os magis-
mas que são inerentes à pessoa humana”, declarou.
trados tiveram que superar as dificuldades resultan-
O decano do TRF5, desembargador federal Láza-
tes da falta de estrutura da sede provisória. Não havia
ro Guimarães, resgatou da memória a fase inicial das
gabinetes, espaço para reuniões ou salas de turmas;
atividades. Juiz federal na Bahia, o magistrado conta
apenas um grande salão, onde ficavam duas mesas
que levou um susto quando chegou para atuar no Re-
e uma máquina de datilografar, que eram disputadas
cife. “Na Bahia, eu já tinha um gabinete estruturado
pelos juízes para despachar. Somente alguns meses
com toda uma equipe. Quando cheguei aqui foi um
depois, os três primeiros computadores chegaram,
choque, porque ainda não tínhamos uma estrutura,
possibilitando a informatização da distribuição pro-
o prédio estava em obra. Só havia um salão imenso
cessual. Outro desafio foi a escassez de pessoal. Difi-
onde, de um lado aconteciam as sessões do Pleno e,
culdades que foram superadas pouco a pouco, com a
do outro, ficavam os magistrados, inclusive o presi-
união de magistrados e servidores.
dente”.
Ridalvo Costa, primeiro presidente do TRF5, lem-
Guimarães relembra, também, o grande volume
bra bem os momentos iniciais na Corte. “As dificulda-
de trabalho. “Chegavam caminhões e mais caminhões
des eram maiores porque não tínhamos experiência
com processos do extinto TFR. Nós filtrávamos para
de como funcionava um Tribunal. Éramos juízes que
começar a julgar só os de urgência, como habeas cor-
conhecíamos os aspectos jurídicos, mas não conhecí-
pus e mandado de segurança. Depois, começamos
amos os trâmites do segundo grau”, destacou. Ridal-
a trabalhar na elaboração do regimento interno, que
vo deixou o TRF5 em 2007 e garante ter saído com a
ainda não existia”, contou.
sensação de dever cumprido. “A passagem pelo TRF5
A “casa” provisória na Vice-Governadoria do Es-
Primeira composição do TRF5, na qual se vêem os desembargadores federais (da esq. para a dir.) Francisco Falcão, Hugo Machado, Nereu Santos, Ridalvo Costa, Castro Meira, Araken Mariz, José Delgado, Orlando Rebouças, Lázaro Guimarães e Petrucio Ferreira
Composição atual do TRF5 (da primeira para a última fila, da esquerda para a direita): Cid Marconi, Manoel Erhardt, Paulo Cordeiro, Fernando Braga, Rogério Fialho Moreira, Vladimir Carvalho, Paulo Roberto de Oliveira Lima, Lázaro Guimarães (decano), Roberto Machado, Alexandre Luna, Edilson Nobre, Leonardo Carvalho, Carlos Rebêlo, Rubens Canuto e Élio Siqueira
pela Lei nº 7.727/1989. Em 2018, a força de trabalho totalizava 683 pessoas. O quadro de magistrados também teve aumento significativo. Em 1989, a 5ª Região contava com 24 juízes federais, passando para 203 em 2018. A Seção Judiciária de Pernambuco tem o maior quadro, com 57 magistrados. O número de desembargadores que tado de Pernambuco precisava dar lugar a uma sede
compõem a Corte também sofreu mudanças: eram
definitiva. Para isso, foi designada a Comissão de
10 em 1989 e, em maio de 2000, a composição foi
Construção, integrada pelos juízes Hugo de Brito Ma-
ampliada, com a publicação da Lei 9.967, para 15 ma-
chado, José de Castro Meira e Francisco Cândido de
gistrados.
Melo Falcão Neto. Em 19 de outubro de 1990, o então presidente da Corte, Araken Mariz de Farias, lançou a
Decisões históricas
“Pedra Fundamental” da futura sede do Tribunal, loca-
Palco de grandes decisões, o TRF5 protagonizou
lizada na Av. Martin Luther King (Cais do Apolo), no
julgamentos históricos. Na década de 1990, o último
Bairro do Recife, onde as atividades funcionam até os
integrante da primeira composição da Corte ainda
dias de hoje. O prédio possui 20 mil metros quadra-
em atuação no Tribunal, desembargador federal Láza-
dos, distribuídos em 16 andares. As obras duraram
ro Guimarães, foi o relator do primeiro processo no
cerca de três anos para serem concluídas e, em 4 de
Brasil com decisão contrária ao bloqueio das contas
fevereiro de 1994, inaugurou-se oficialmente a nova
bancárias na vigência do Plano Collor. Em 1990, o
sede do Tribunal.
então presidente Fernando Collor de Melo anunciou
Hoje, o TRF5 possui cinco instalações, sendo o
um pacote radical de medidas econômicas, que de-
Edifício Ministro Djaci Falcão (sede) e outros quatro
terminavam, entre outras ações, o confisco de contas
anexos, onde funcionam, entre outras atividades, a Escola de Magistratura Federal da 5ª Região – Esmafe. E o crescimento não se deu apenas com relação às instalações físicas, houve também ampliação do quadro de servidores. No ano em que o TRF5 foi instalado, em 1989, eram 466 cargos efetivos, criados Solenidade de aposição da pedra fundamental do atual edifício-sede do TRF5
19
bancárias e cadernetas de poupança dos brasileiros.
2001, a desembargadora federal Margarida Canta-
O magistrado federal declarou a medida do presiden-
relli se antecipou em 10 anos ao Supremo Tribunal
ciável inconstitucional. “Pouco tempo depois do blo-
Federal (STF), no reconhecimento do direito à pensão
queio de cruzados vieram as ações e uma delas caiu
por morte para companheiro homossexual. Em 2012,
para mim. Era uma arguição de inconstitucionalidade,
também se adiantando ao entendimento da Suprema
de competência do Pleno. Levamos para o colegiado
Corte, o desembargador federal Manoel Erhardt deu o
e foi declarada a inconstitucionalidade”, relembra o
voto oral que decidiu pela constitucionalidade do sis-
decano.
tema de cotas para negros na Universidade Federal
Outro julgamento emblemático foi sobre o caso
de Alagoas (UFAL), em processo da relatoria do de-
que ficou conhecido como o “Escândalo da Mandio-
sembargador federal emérito José Maria Lucena. Da
ca”. Tratava-se de um esquema fraudulento desco-
mesma forma, destaque para a decisão do desembar-
berto entre os anos de 1979 e 1981, que desviou
gador federal Élio Wanderley de Siqueira Filho que, em
mais de R$ 30 milhões (valores atuais) do Programa
2013, atuando na Corte como desembargador federal
de Garantia da Atividade Agrícola – Proagro, da agên-
convocado, proferiu decisão que reconheceu o direito
cia do Banco do Brasil em Floresta, no sertão de Per-
ao benefício previdenciário para o companheiro de um
nambuco.
sargento do Exército brasileiro.
No TRF5, o julgamento foi realizado em fevereiro de 1999 pelo Pleno da Corte e durou mais de 24 horas,
PJe
iniciando às 13h do dia 24 e encerrando às 13h20 do
As pilhas de papéis que antes tomavam as salas
dia seguinte. O colegiado decidiu pela condenação de
do Tribunal são, aos poucos, substituídas pelos pro-
22 dos 25 réus, pelos crimes de peculato, corrupção
cessos eletrônicos. O ritmo acelerado do desenvolvi-
ativa e corrupção passiva, com penas de até 11 anos
mento de novas tecnologias é uma realidade nos dias
de reclusão. O caso teve grande repercussão nacio-
atuais, e o TRF5 tem encontrado, nessa evolução tec-
nal já que, além da denúncia de corrupção financeira,
nológica, um forte aliado para a melhoria constante na
houve também o assassinato do procurador-regional da República, Pedro Jorge de Melo e Silva, que ofereceu a denúncia contra os envolvidos no crime. Decisões inéditas, que anteciparam posicionamentos de instâncias superiores, também marcam a história do TRF5. Em Julgamento do caso conhecido como “Escândalo da Mandioca”, que durou mais de 24h
20
prestação jurisdicional, não apenas na 5ª Região, mas
atualmente ministro do Superior Tribunal de Justiça
em todo o país.
(STJ). Dois anos depois, o TRF5 dá mais um passo
O Processo Judicial Eletrônico (PJe) foi im-
importante dentro das evoluções do PJe: em 25 de
plantado no TRF5 em 2011, mas o início da caminha-
março de 2013, encaminhou o primeiro processo to-
da começou em meados de 2006. O TRF5 e o Conse-
talmente eletrônico para o STJ. A demanda versava
lho da Justiça Federal (CJF) buscavam soluções para
sobre exclusão do pagamento do Imposto sobre Pro-
desenvolver um sistema único destinado à Justiça
duto Industrializado (IPI), também com relatoria de
Federal, e as ideias fervilhavam para a construção do
Gurgel.
novo trabalho. Apesar da grande expectativa em tor-
Dados compilados pela Secretaria Judiciária do
no da proposta, a parceria inicial com o Conselho não
TRF5 apontam que, até outubro de 2018, tramitavam
avançou. Porém, o TRF5 decidiu seguir com o projeto
no TRF5 74.176 processos. Destes, apenas 21.757
de criar um sistema eletrônico para as demandas. Na
eram físicos, o equivalente a 29%. No mesmo perío-
época, já funcionava o sistema Creta, nos Juizados
do, das novas demandas que deram entrada no Tribu-
Especiais Federais da 5ª Região. Assim, havia dois ca-
nal, somente 9% constituíam processos físicos.
minhos: aprimorar o material que já existia (no caso, o Creta) ou elaborar um novo trabalho.
Excelência dos serviços
A segunda opção, apesar de exigir mais tempo,
A busca pela excelência na prestação jurisdicio-
foi vista como a que melhor se adequava ao proje-
nal sempre foi um dos objetivos do TRF5. O reconhe-
to do Tribunal, que era construir uma ferramenta que
cimento pelo empenho nas atividades realizadas veio
proporcionasse uma maior celeridade no curso das
em 2010, quando alcançou a 2ª colocação no ranking
demandas e que pudesse ser utilizada em todos os
nacional das 10 Metas de Nivelamento propostas pelo
tipos de processos. Mais tarde, o Conselho Nacional
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para 2009. Entre
de Justiça (CNJ) retomou a ideia de desenvolver um sistema eletrônico único e, entre vários projetos visitados, escolheu o PJe do TRF5 para adotar como modelo. No ano de 2010, o PJe entrou em funcionamento em toda Primeira Instância cível da Justiça Federal da 5ª Região, sendo implantado no TRF5 no ano seguinte. Hoje, o sistema é adotado por várias instituições do Judiciário em todo o país. Em 15 de julho de 2011, a Terceira Turma do TRF5 julgou seu primeiro processo judicial eletrônico, em decisão colegiada. O relator foi o então desembargador federal Luiz Alberto Gurgel de Faria,
Julgamento, pela Terceira Turma do TRF5, do primeiro Processo Judicial eletrônico, em julho de 2011.
21
os tribunais federais, o TRF5 foi o único a entrar na lista dos 10 melhores de todo o ramo Judiciário. Nos anos subsequentes, alcançou posição de destaque
Presidente do TRF5 à época, o desembargador federal Rogério Fialho Moreira recebeu das mãos da ministra do STF Cármen Lúcia, em nome da Corte, o Selo Justiça em Números, categoria Diamante
nos relatórios do CNJ. Em 2011, os estudos apontaram que, dos
Em mais um reconhecimen-
cinco Tribunais Regionais Fede-
to do trabalho desenvolvido, o
rais (TRFs) do país, o melhor desempenho foi o do
TRF5 conquistou, no ano de 2006, o III Prêmio Innova-
TRF5, que atingiu um percentual de cumprimento de
re – A Justiça do Século XXI. A premiação foi pelo de-
88,86% da Meta 2 de 2010 (julgar todos os proces-
senvolvimento do processo judicial digital da Justiça
sos anteriores a 31 de dezembro de 2005). No ano
Federal da 5ª Região. A premiação foi recebida pelo
de 2012, alcançou todas as metas estabelecidas pelo
então Coordenador dos Juizados Especiais Federais
Conselho e, em 2013, também foi apontado como um
da 5ª Região, desembargador federal Marcelo Navar-
dos mais eficientes nas áreas de gestão e jurisdição.
ro Ribeiro Dantas, na categoria Tribunal – Processo
Da mesma forma, foi destaque nos anos de 2014 e
Judicial Digital da Justiça Federal da 5ª Região.
2015. Em 2016, foi agraciado com o Selo Justiça em
Cidadania e Inclusão
Números, categoria Diamante, durante o 10º Encon-
A atuação para além dos processos judiciais
tro Nacional do Poder Judiciário, sendo o único Tribu-
também é um ponto de destaque na história do TRF5.
nal da Justiça Federal a conquistar o Selo Diamante.
O compromisso com a cidadania e com a inclusão so-
A premiação, criada pelo CNJ em 2013, visa a es-
cial tem sido um dos pilares na trajetória da Corte.
timular o aperfeiçoamento gerencial e promover a
Desde dezembro de 2015, uma parceria do Tribunal
transparência dos tribunais brasileiros.
com a ONG Moradia e Cidadania transforma lixo em
Em 2017, foi premiado com o Selo Ouro e, no ano seguinte, manteve o nível de excelência, alcançando
cultura e contribui para o desenvolvimento de jovens em situação de vulnerabilidade social.
91% no Índice de Produtividade Comparada da Justiça
As toneladas de papéis que não servem mais ao
(IPC-Jus). Obteve, ainda, o maior índice de produtivi-
Tribunal são enviadas à ONG, que, por sua vez, recicla
dade por magistrado, o maior índice de produtividade
e revende o material. A renda já serviu para a constru-
por servidor, a menor taxa de congestionamento e o
ção de uma quadra, aquisição de livros para a Biblio-
melhor índice de conciliação. Números que revelam
teca e é a fonte de recurso para a manutenção da or-
o comprometimento e o empenho dos que fazem a
questra infantil Crescendo na Harmonia, formada por
Justiça Federal da 5ª Região para garantir a qualidade
jovens da Comunidade do Pilar, vizinha ao TRF5. No
na prestação jurisdicional.
ano em que a iniciativa foi lançada, o valor arrecadado
Uma das ações sociais desenvolvidas pelo TRF5 é o apoio à orquestra infantil Crescendo na Harmonia
igualdade e cidadania, pautados na missão de garantir à sociedade uma prestação jurisdicional acessível, rápida e efetiva, o TRF5 elaborou uma programação especial, que contou com homenagens a magistrados e servidores que ajudaram a construir a história do Tribunal, inauguração do Memorial do TRF5 e lançamentos do livro “O Tempo e a História” e da edição com a reciclagem do papel foi utilizado para a compra
especial da Revista de Jurisprudência.
de 15 violinos, doados pelo TRF5 aos músicos mirins.
No dia 18 de março, em clima de festa e reverên-
Além disso, bimestralmente, o Tribunal realiza a
cia à memória, foram homenageados os 10 magistra-
campanha Pilares do Bem, que arrecada cestas bási-
dos da primeira composição do TRF5: Ridalvo Costa,
cas para serem doadas aos moradores da Comunida-
Araken Mariz de Faria, Hugo de Brito Machado, José
de do Pilar. Cada ação recolhe, em médica, cerca de
Augusto Delgado, José de Castro Meira, Petrucio
50 cestas básicas.
Ferreira da Silva (in memorian), Orlando de Souza Re-
O projeto Aula de Cidadania é outra ação desen-
bouças, José Lázaro Alfredo Guimarães, Nereu Pereira
volvida dentro do TRF5 para contribuir com a formação
dos Santos Filho e Francisco Cândido de Melo Falcão
cidadã dos jovens. Numa parceria com a Assembleia
Neto. Também foram homenageados os 81 servidores
Legislativa de Pernambuco, o Tribunal proporciona a
que tomaram posse e tiveram exercício iniciado no
estudantes de escolas públicas do estado uma tar-
ano de 1989 e ainda mantêm vínculo com a Corte. O
de de muito conhecimento sobre o funcionamento da
evento contou ainda com o lançamento do Selo e Ca-
Corte, com visitas guiadas, exibição de vídeo institu-
rimbo Comemorativos aos 30 anos do Tribunal e com
cional e palestra com o presidente do Tribunal.
a apresentação do quinteto de cordas da Orquestra Criança Cidadã. Prestigiaram a solenidade desembar-
Comemoração
gadores federais do TRF5, juízes federais, servidores,
Para celebrar os 30 anos de promoção da justiça,
ex-membros da Corte e diversas outras autoridades.
Primeiro processo O primeiro processo a dar entrada no TRF5 foi um habeas corpus liberatório, requerido por advogados de um alemão que estava preso no Presídio Aníbal Bruno. A.R.S. foi flagrado com 2 kg de cocaína no Aeroporto Internacional do Recife, enquanto tentava embarcar para Bruxelas, na Bélgica. O processo foi distribuído por sorteio para o Juiz Araken Mariz e, durante a sessão de julgamento, presidida pelo juiz federal Ridalvo Costa, o colegiado negou o pedido de soltura.
Distribuição No início das atividades, a distribuição dos processos não era realizada de forma eletrônica, como nos dias atuais. Utilizava-se um globo de sorteio para distribuir os processos entre os dez juízes federais que integravam a primeira composição da Corte.
23 Os 81 servidores que entraram no TRF5 em 1989 e mantêm vínculo com a Corte foram homenageados.
Na ocasião, o TRF5 inaugurou o Memorial do TRF5, no térreo do edifício-sede. O espaço conta com uma linha do tempo, fotos, primeiros processos, biografia dos desembargadores e ambientes virtuais e interativos, que trazem fatos e personalidades que marcaram a história do Tribunal. Também foi inaugurado o Memorial Ministro Djaci Falcão, no 15º andar do TRF5, uma homenagem ao magistrado que dá nome ao prédio. O espaço conta com uma vitrine de fotos que traduzem em imagens a trajetória do ministro,
Bolo comemorativo, cortado pelo então presidente do TRF5, Manoel Erhardt, e pelo atual presidente da Corte, Vladimir Carvalho.
desde a infância até o final da carreira jurídica. No dia 3 de abril, última sessão do Pleno presidida pelo desembargador federal Manoel Erhardt, foi feito o lançamento do livro “O Tempo e a História”, que conta com mais de 100 páginas dedicadas a narrar a trajetória da Corte, desde a instalação até os dias atuais. Produzida pela Divisão de Comunicação Social, a obra aborda o trabalho desenvolvido pelo Tribunal em diversas áreas, como cidadania, socioambiental, excelência dos serviços, tecnologia da informação, entre
Inauguração do Memorial do TRF5
outras. Na mesma ocasião, foi lançada edição especial da Revista de Jurisprudência, uma publicação do Gabinete da Revista, dirigido pelo desembargador federal Rogério Fialho. Na edição especial, foram reunidos acórdãos considerados emblemáticos de todos os desembargadores federais do TRF5, desde a primeira composição da Corte, a exemplo do primeiro acórdão do Tribunal, o Habeas Corpus nº 1-PE, cujo relator foi o desembargador federal emérito Araken Mariz.
Edição comemorativa da Revista de Jurisprudência e Livro “TRF5 30 Anos – O Tempo e a História”, lançados durante as comemorações
Capa
Duplo Cárcere Dentro das grades e fora de seus países. Os presos estrangeiros cumprem pena dupla no Brasil, ao viverem encarcerados e se confrontarem com barreiras como a língua, a cultura e a ausência de visitas Felipe Oliveira e Isabelle Câmara (colaboração: Tallita Marques e Bruno Brito) Era início de agosto de 2015.
internacional, emitido pela Agência Britânica. Em uma
O holandês Raymond Knobbe, na
primeira vistoria na embarcação, foram encontrados
época com 48 anos, velejava em
11,5 kg de cocaína, que estavam escondidos na popa
águas pernambucanas, quando foi
do veleiro. O material foi apreendido e o holandês,
abordado por policiais federais pró-
preso em flagrante.
ximo ao Arquipélago de Fernando
Mas a apreensão era apenas a “ponta do ice-
de Noronha. O mar estava revolto
berg”. Ao atracar no Porto do Recife e passar por
e o veleiro Rody precisou ser escol-
novas buscas, os policiais federais encontraram mais
tado até o Porto de Santo Antônio,
570 kg da droga escondidos nos tanques de combus-
na ilha, para que os policiais pudes-
tível e de água da embarcação. Parte dos tabletes
sem confirmar um alerta de tráfico
de cocaína estava marcada com símbolos bastante
25
conhecidos da Polícia Federal, indicativo da transna-
muito simpático que me ofereceu esse valor para eu
cionalidade do crime: o material foi produzido por um
deixar a encomenda em Fernando de Noronha. Como
cartel colombiano. Raymond foi indiciado por tráfico
o dinheiro era bom, eu topei. Mas não o conhecia. De
nacional e internacional de drogas. O holandês, que
lá, eu seguiria para Fortaleza (CE), onde me encontra-
já tinha sido preso, em 2010, na França pelo mesmo
ria com a minha esposa. Ela viria de avião com o meu
motivo, foi condenado no Brasil a 20 anos de prisão.
filho mais novo, que na época era um bebê”, contou
Durante a audiência na 36ª Vara da Justiça Federal
ele. Mas nenhum documento que comprovasse a vin-
em Pernambuco, ele confessou o tráfico nacional de
da da esposa com o filho ou os nomes das pessoas
drogas, mas negou que levaria a mercadoria para fora
que forneceram a droga e das que receberiam a en-
do Brasil. Disse que receberia U$ 25 mil para deixar a
comenda em Fernando de Noronha foi apresentado
cocaína em Fernando de Noronha.
por ele à Justiça.
Com um sorriso no rosto e esbanjando simpatia,
Questionado sobre o tratamento recebido na
Raymond, que já domina a língua portuguesa, rece-
prisão e se os direitos dele, como estrangeiro, foram
beu a equipe da Revista Argumento em uma sala do
assegurados desde então, o holandês foi categórico
Centro de Triagem de Abreu e Lima (Cotel), em Per-
em afirmar que o tratamento sempre foi muito respei-
nambuco, onde cumpre pena desde que foi preso. Em
toso pelas autoridades brasileiras. “Todos sempre me
uma breve conversa, ele nos falou sobre o crime, a ro-
trataram bem e, após um ano e meio preso, comecei
tina na prisão e o que tem feito para ocupar o tempo.
a ajudar nos serviços da oficina do presídio. Como te-
Primeiro, preocupou-se em dar a versão dele sobre o
nho curso superior em engenharia mecânica, minha
que aconteceu. “Eu estava a passeio no Brasil com
cela fica em um pavilhão especial e tenho tratamento
alguns outros velejadores e, quando estive na praia
diferenciado, onde já consegui escrever dois livros e
do Jacaré, na Paraíba, fui abordado por um homem
publicá-los por uma editora holandesa”, explicou. Para ele, o mais complicado é a distância da família. Pai de três filhos, não acompanhou o crescimento do último e se separou da mãe da criança, que só viu apenas uma vez desde a prisão. “Essa é a parte mais difícil, porque aqui estou muito longe do meu país. Fico muito sozinho e não vejo a hora de poder voltar e recomeçar a vida. Não vale a pena arriscar a liberdade e viver dessa forma e é isso que falo nos livros”. Mas ele também critica a legislação brasileira que não considera a produção literária na cadeia uma forma de se O holandês Raymond Knobbe foi preso no Brasil transportando quase 600 kg de cocaína
26
obter a progressão da pena. “Acho um absurdo que os
Durante os interrogatórios, os estrangeiros infor-
livros que escrevi aqui dentro e foram publicados não
maram que receberam as malas abastecidas com o
sirvam de nada para reduzir o tempo que ainda tenho
entorpecente de um indivíduo identificado como “Pau-
que ficar preso”.
linho”, enquanto estavam hospedados em um hotel
A história de Raymond se cruza com a dos espa-
de Manaus/AM. Eles ganhariam € 9 mil pelo transpor-
nhóis Pablo* e Ruan*, que também foram presos no
te da cocaína para Lisboa/Portugal, onde seriam re-
início de agosto de 2015, no Aeroporto Internacional
conhecidos por meio de fotografias tiradas no Brasil.
Pinto Martins, localizado em Fortaleza/CE, pelo mes-
Em seu depoimento, Pablo fez menção à condi-
mo crime: tráfico de drogas. Eles tencionavam em-
ção de sua saúde, que o submetia ao uso dos medi-
barcar em voo com destino final para a cidade de Lis-
camentos metadona e metamizol. Na mesma linha,
boa, em Portugal, mas com uma parada em Natal/RN.
Ruan elencou os fármacos usados por ele: metadona,
Como de praxe, os pertences dos estrangeiros foram
omeprazol e alprazolan. Este último, inclusive, citou
submetidos ao aparelho de verificação radiográfica.
as duas filhas que vivem na França, com a mãe. Am-
Foi quando a real intenção da viagem apareceu: as
bos os estrangeiros já tinham antecedentes criminais.
bagagens acondicionavam, em pacotes ocultos nos
Pablo foi processado na Espanha por pequenos furtos,
forros das malas, mais de 6 kg de cocaína em pó.
enquanto Ruan já foi preso por 16 anos, sendo 10 de-
De acordo com a Lei 11.343/06, na qual se ins-
les por roubo de automóvel.
tituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Os estrangeiros alegaram que, quando vivia na
Drogas (Sisnad), é crime importar, exportar, transpor-
Espanha, em razão do desemprego e das dificuldades
tar, ter em depósito, entre outros, drogas, sem auto-
financeiras, precisaram recorrer a empréstimos com
rização ou em desacordo com determinação legal ou
um agiota. Além de repassar as quantias para eles,
regulamentar. Em razão disso, os amigos de infância
Manoel, nome dado ao financiador ilegal, propôs – e
Pablo, que, apesar de desempregado, já trabalhou
custeou – a vinda deles para o Brasil, a fim de trans-
como garçom e cozinheiro, sendo natural da cidade
portarem a cocaína. Assim, fica evidente que o trans-
de Sevilha/Espanha, e Ruan – socorrista da Cruz Vermelha, também natural de Sevilha – foram presos em flagrante por agentes da Polícia Federal (PF).
*Pablo e Ruan são nomes fictícios, para preservar a identidade dos condenados.
27
porte da droga foi feito de forma consciente, apesar
de reclusão, a serem cumpridas, inicialmente, em re-
da afirmação de que eles não sabiam, com precisão,
gime fechado. A pena de multa aplicada aos dois foi
sobre a quantidade colocada nas malas.
mantida, sendo fixada em 600 dias-multa, correspon-
O tráfico internacional de entorpecentes resultou na condenação dos réus pelo Juízo da 11ª Vara Fede-
dendo cada dia ao valor de 1/30 do salário mínimo vigente no período em que o crime foi cometido.
ral da Seção Judiciária do Ceará (SJCE). Em apelação criminal julgada no Tribunal Regional Federal da 5ª
Duplo cárcere
Região – TRF5, a Defensoria Pública da União (DPU),
Atrás das grades e distantes de seus países de
responsável pela defesa dos estrangeiros, pediu a re-
origem. Os presos estrangeiros no Brasil vivem o iso-
forma da decisão de Primeiro Grau e, consequente-
lamento do isolamento. Apesar de ser o motivo mais
mente, a redução das penas.
comum para a prisão de estrangeiros, o tráfico inter-
À época, o relator do processo foi o desembar-
nacional de entorpecentes vem acompanhado por ou-
gador federal Cid Marconi. Para ele, o tráfico de en-
tros motivos pelos quais estrangeiros são submetidos
torpecentes é danoso às sociedades de um modo
à prisão. De acordo com as informações prestadas
geral, uma vez que são públicos e notórios os crimes
pelo único presídio brasileiro exclusivo para estrangei-
perpetrados em nome e por conta dele, incluída, aqui,
ros, a Penitenciária Cabo PM Marcelo Pires da Silva,
a escolha de pessoas para servir de “mulas” – deno-
localizada no município de Itaí/SP, entre os crimes
minação dada ao indivíduo que, de forma consciente
responsáveis pela detenção de não brasileiros, estão
ou não, transporta drogas em seu corpo.
roubo, homicídio, apropriação indébita, lesão corporal,
“A asserção relativa ao estado de necessidade,
além do tráfico de drogas e condutas afins.
que decorreria de suposta dificuldade financeira, tal
“Os estrangeiros presos têm todos os direitos
como suscitada pelos acusados, desvanece-se na
que a Constituição do Brasil assegura aos brasileiros
consideração de que não se pode pretender respaldar
natos na mesma condição. Vários direitos da pessoa
uma atitude ilícita como solução legal e legítima para
presa são relacionados ao artigo 5º da Constituição
a solução de problemas financeiros. Diga-se, em re-
Federal, e esses direitos também se aplicam aos es-
forço, que inexiste qualquer comprovação da situação
trangeiros que vieram a ser presos”, assegura o de-
econômico-financeira dos réus/apelantes. O exercício
sembargador federal Manoel Erhardt.
da profissão de pintor e socorrista não autoriza a que
Além dos direitos relacionados na nossa Cons-
se presuma o seu estado de pobreza”, afirmou o re-
tituição, explica ele, existem atos internacionais que
lator na ocasião do julgamento realizado pela Terceira
se referem especificamente à proteção do estran-
Turma do TRF5.
geiro preso, como a Convenção de Viena, pela qual
As penas definitivas de Pablo e Ruan ficaram es-
se determina que se o estrangeiro solicitar, a prisão
tabelecidas, respectivamente, em cinco anos, nove
deve ser comunicada à autoridade consular da locali-
meses e 10 dias de reclusão e seis anos e oito meses
dade em que ele esteja. “Pode o estrangeiro solicitar
a assistência consular e, dessa maneira, obter o apoio de que necessita ofertado pelo seu estado de origem, além dos direitos que já são consagrados de forma geral pela Constituição Brasileira”, explica Erhardt. A competência do juízo julgador no Direito Penal pode ser definida em virtude do tipo de delito, da prerrogativa de foro ou por conta da competência territorial. Ser estrangeiro por si só não determina a competência, por isso, os crimes por eles cometidos podem ser julgados tanto na Justiça Federal como na Estadual. O artigo 109 da Constituição Federal de 1988 prevê as situações em que a Justiça Federal será acionada para julgamento. Entre elas, é possível citar os crimes internacionais de tráfico (sejam de drogas, de pessoas ou de armas), os de ingresso ou permanência irregular no País e os praticados a bordo de navios e aeronaves. O defensor público federal André Carneiro Leão, lotado na DPU em Pernambuco, explicou que a hipótese mais recorrente para a prisão de estrangeiros no Brasil é a do comércio internacional de drogas, tipificado como crime de competência da Justiça Federal, tendo em vista que o aliciamento para realizar o transporte do ilícito decorre, frequentemente, de uma situação de vulnerabilidade. Nesses casos, o mais comum, segundo ele, é que a PF, logo após a prisão em flagrante,
29
acione a DPU para acompanhar os presos.
tal demanda. “Todavia, os maiores desafios de nossa
“A primeira medida é analisar a legalidade da pri-
atuação são de ordem estrutural. Ainda são poucos
são em flagrante e verificar a integridade física do pre-
os defensores e não dispomos, como dito, de um
so estrangeiro. Hoje, com as audiências de custódia,
quadro próprio de intérpretes. Além disso, temos per-
esse contato é estabelecido logo após a prisão. Como
cebido uma resistência grande à implementação dos
a prisão, em um Estado Democrático de Direito, deve
direitos desses cidadãos. Em uma sociedade efetiva-
ser medida excepcionalíssima, buscaremos sempre
mente fundada na solidariedade, na diversidade e no
que possível a concessão da liberdade ou a aplicação
respeito aos direitos humanos globais, essas resistên-
de medidas alternativas ao cárcere. Se for concedida
cias precisam ser urgentemente superadas”, alertou.
alguma medida alternativa, auxiliaremos o assistido
Para Carneiro Leão, são dramas à parte as situa-
na obtenção de condições para que ele possa perma-
ções dos presos estrangeiros. Motivos para esta reali-
necer no País enquanto responde ao processo, o que
dade não faltam: as condições do encarceramento no
normalmente ocorre com ajuda das representações
Brasil, o desconhecimento da língua, dos costumes
diplomáticas e com o contato com os familiares”, es-
nacionais e de seus direitos, a falta de visitas. “Po-
clareceu o defensor.
dem acabar se isolando dentro do próprio isolamento
Carneiro Leão também lembrou que nem a Jus-
da prisão ou serem ainda mais explorados em razão
tiça Federal nem a DPU têm à disposição um quadro
de sua situação mais vulnerável. Lembro-me de uma
fixo de intérpretes ou tradutores, com vistas a auxiliar
cidadã estrangeira que, logo que foi presa, afirmou
no processo de comunicação. Em alguns casos, po-
ter sido obrigada a beber a água da bacia sanitária
rém, as representações consulares oferecem apoio.
e, mesmo passando mal, não recebeu o tratamento
De acordo com o defensor, a DPU conta com um Gru-
adequado porque ninguém na prisão falava a sua lín-
po de Trabalho Nacional, cuja dedicação está voltada
gua. Recordo-me também de outra cidadã estrangeira
à prestação de assistência jurídica integral, sistemá-
que foi presa em estágio avançado de gravidez e que
tica e multidimensional aos estrangeiros, promoven-
teve sua filha enquanto estava presa por aqui. Alguns
do estudos, debates, ações coletivas e articulações
meses depois, ela foi obrigada a se separar da criança
interinstitucionais para aperfeiçoar o atendimento a
recém-nascida porque não havia, no Brasil, um familiar que pudesse cuidar da criança e manter visitas frequentes. A eles se negam, com frequência, oportunidades de emprego, mesmo que possuam qualificação profissional”, lamentou.
O defensor público André Carneiro Leão vê a situação dos presos estrangeiros como um drama à parte, dadas as barreiras como a língua, a cultura, a falta de visitas e a aplicação correta dos direitos
A excelência
dos presídios federais Entrevista com o juiz federal Walter Nunes Lugar de silêncio e solidão. Assim são as cinco penitenciárias federais que existem no Brasil, localizadas nos municípios de Porto Velho (RO), Mossoró (RN), Campo Grande (MS), Catanduvas (PR) e Brasília (DF). “Essas unidades foram criadas para recolher os presos mais perigosos do país, líderes de organizações criminosas. Mesmo com a máxima segurança estadual, eles continuavam na ativa”, explica o corregedor da unidade de Mossoró, juiz federal
Walter Nunes, responsável pela execução das penas e titular da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte (SJRN). Os mecanismos que garantem essa segurança são diversos: presídio dividido em alas e com celas individuais; proibição do uso de determinadas cores de roupas pelos visitantes, a exemplo de toda preta, branca, azul ou verde. “São cores usadas pelos agentes penitenciários e
funcionários”, explica o protocolo. Câmeras em todos os espaços e portas com detectores de metais. Submeter-se a escâneres corporais ao adentrar nos ambientes. Banhos de sol de 1h, por ala; coletivos, mas com 13 presos por vez, sob forte vigilância. Refeições feitas nas próprias celas. Nada de visita íntima e ou acesso a meios de comunicação ou eletrônicos. “O sistema prisional federal funciona”, assegura Nunes. O presídio federal de Mossoró/RN é o único do país avaliado como excelente, conforme indicadores do Sistema Geopresídios - Cadastro Nacional de Inspeções em Estabelecimentos Penais, que é gerenciado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2018, a frequência de transferência de presos para os presídios federais diminuiu, diferente do fluxo visto nos dois anos anteriores. Atualmente, cerca de 80 presos cumprem pena em Mossoró, de um total de 208 vagas disponíveis. Como corregedor, Walter Nunes visita a unidade prisional uma vez por mês, em atendimento à legislação, e envia relatórios regularmente ao CNJ. Numa dessas visitas, ele foi acompanhado pela jornalista e editora da Argumento Isabelle Câmara. A conversa foi no carro, durante o trajeto de Natal a Mossoró, considerando que nenhum equipamento eletrônico, inclusos celulares, pode entrar no presídio. Confira os principais trechos dos depoimentos, que revelam o funcionamento e a gestão do presídio, razões de sua excelência: Presídio excelente – No sistema federal, os direitos dos
Ao entrar no presídio federal, além de trocar as roupas, os visitantes têm que usar chinelos fornecidos pelo próprio sistema
presos são preservados. Há um tratamento humanitário, com prestação das assistências médica, psicológica, pedagógica, de vestuário, social, alimentar e jurídica. Existe um corpo funcional que é especifico, refiro-me aos agentes penitenciários e ao diretor do presídio. Eles se empenham muito para inovar, utilizar boas práticas, e isso tem sido visto no presídio de Mossoró, embora tenha um engajamento nosso, da Corregedoria, em sempre tentar proporcionar mais do que o básico. Corregedor – Um juiz que vem para um presídio federal tem que ser enérgico, no sentido de fazer com que os direitos [dos presos] sejam respeitados, mas tem que entender que o sistema funciona com esse rigorismo. Por exemplo, já teve juiz, em presídio federal, que queria e determinou que fossem colocadas tomadas nas celas. O juiz não pode fazer isso. Qual é a ideia do sistema penitenciário federal? É que ele funcione como um sistema, da forma como é aqui é preciso ser nas outras unidades prisionais. Então, eu não posso criar distorções. Boas práticas – Temos uns projetos de extensão de universidades junto à penitenciária federal. A gente está com projeto de extensão do curso de Psicologia, para dar assistência psicológica aos presos. Temos também projetos de educação física, voltados para um tipo de atividade física destinada a pessoas que ficam nessa situação de confinamento. O preso passa 22 horas do dia dentro da cela. Ele só sai para o banho de sol, que é de 2 horas, ou, então, quando ele tem visita social, pois a visita íntima é proibida no sistema penitenciário federal. Essas 2 horas de banho de sol se transformam em atividade coletiva. Esse projeto de extensão de educação física é para ter uma atividade com, no máximo, 13 pessoas.
32
Isolamento – Por essas características da forma de cumprimento, que é de isolamento, há uma série de questionamentos científicos a respeito do tempo máximo que uma
cumprimento de todos os protocolos. Se, eventualmente, ele [o Depen] observar que um procedimento não foi tal como o protocolo, o servidor responsável passará por uma sindicância. Educação – Há um trabalho muito forte na área de psicopedagogia, em relação a cursos profissionalizantes e até mesmo do ensino superior. Temos presos participando de cursos superiores, vencendo as dificuldades. Quando se trata de nível superior, só dá para ser feito na modalidade a distância. Isso deu um maior realce ao presídio federal em Mossoró, em relação não só à estrutura, mas ao engajamento dos que fazem o sistema. Nós temos, também, o programa da remissão pela leitura. São livros disponibilizados para os presos, que obtêm a remissão da pena ao fazer a leitura e, depois, um resumo. É como se fosse um estudo formal.
As celas são individuais e qualquer comunicação é feita pelas janelas
pessoa pode permanecer dessa forma, de quando há problemas de ordens psicológicas e psiquiátricas acarretados por ele. Óbvio que as pessoas são diferentes, cada uma reage de uma determinada forma, mas é perceptível que determinados presos, quando vão para o presídio federal, com o tempo, começam a desenvolver problemas de ordem psicológica ou psiquiátrica. Mas eles têm acompanhamento médico. Monitoramento – Toda parte interna é monitorada, tem as câmeras e tem o posto de vigilância. Nada obstante, em Brasília/DF, no Depen [Departamento Penitenciário Nacional], tem uma sala com monitores que, em tempo real, mostram tudo o que está acontecendo lá dentro. Ou seja, caso haja alguma eventualidade, eles vão ficar sabendo online. Depen – Por que o Depen faz isso? Não só por uma questão de segurança, pois, de repente, se acontecer alguma coisa e o pessoal aqui [de Mossoró] ficar sem comunicação, eles saberão. A prestação de auxílio será a mais rápida possível. Mas também porque eles fiscalizam o
EaD – Nesse ensino a distância, ele (o preso) imprime o material e estuda. Ele não tem acesso à Internet, essa é uma limitação severa. Estamos pensando em um ensino a distância em que eles tenham acesso a um computador, em uma sala própria, mas, obviamente, sem estar conec-
Para garantir a segurança, professores também dão aulas atrás das grades
tado à Internet. Nas celas, por exemplo, não há ponto de energia, não tem nem interruptor. A administração é que acende remotamente e apaga a luz. A dificuldade do ensino a distância é exatamente por isso: ele não poderia ter
33
acesso à Internet. A gente estaria abrindo as portas para uma série de situações. É um curso mais a distância do que o formato conhecido como EaD. Comida – A refeição é feita na cela, não existe um refeitório. No presídio federal, se tem as seis refeições: café da manhã, lanche, almoço, outro lanche, jantar e o que a gente tradicionalmente chama de ceia. Em toda inspeção, aproveito e almoço lá. Eles não sabem qual dia vou, então não há como preparar algo especial. A comida servida aos detentos é um dos itens que entra na minha avaliação. Agressões – Como o regime é muito mais rigoroso do que em um ambiente estadual, a gente não tem registro de nenhuma agressão sexual, nem física. A gente já teve caso de suicídio, mas não de um preso matar o outro. O contato, além de ser esporádico, quando eles vão para o pátio, é supervisionado por agentes, em uma torre de observação. É muito difícil ocorrer algo de proporções mais graves, em razão da forma como é feita a fiscalização desse contato coletivo entre os presos. São presos de alta periculosidade, dos mais diversos crimes e integrantes de organização criminosa, a gente sabe o que acontece quando há divergência, o que, geralmente, é resolvido com morte, mas, dentro do presídio federal, não tem nenhum histórico dessa natureza. Fórum – O Conselho da Justiça Federal criou um fórum permanente do sistema penitenciário federal, em 2012. Desde a sua criação, eu sou coordenador geral. Nesse fórum, nos reunimos, periodicamente, de dois em dois meses, em Brasília/DF, presencialmente ou por videoconferência, para discutir as questões do Sistema Penitenciário Federal, tentando buscar uniformidade em pontos importantes. Essa remição pela leitura começou em Catanduvas/PR. Como começou lá uma prática boa e importante, a gente incorporou para todo o sistema. Procuramos ter uma uniformização. RDD – O RDD é o Regime Disciplinar Diferenciado. O que ele tem de diferente do regime de cumprimento de pena
no presídio federal? É porque ele não tem visita social com contato físico e não tem o banho de sol coletivo. A visita social é só pelo parlatório. O preso tem um contato apenas visual, por um vidro. Algo que é bastante forte: você está com seu filho e sua mulher e não pode tocá-los. Se o preso descumprir qualquer regra, ele vai para o RDD. Digamos que ele afronte um agente penitenciário, não cumpra a regra de baixar a cabeça ou cuspa num agente. Podem acontecer, também, agressões verbais ou ameaças. São faltas graves que justificam a reclusão em RDD. Mas, se
Presos submetidos ao RDD só se comunicam com o meio externo pelo parlatório
acontecer qualquer episódio desses, tem que se apurar no procedimento interno e assegurar o direito de defesa. Precisa ter uma decisão judicial, uma decisão minha, para incluir a pessoa no RDD. Privatização – O número de agentes penitenciários é superior ao número de vagas de presos. Você imagina que um presídio tem que funcionar todas as 24 horas do dia, de domingo a domingo, feriado ou não, no fim do ano, no recesso [do Judiciário], Natal, Ano Novo. O presídio federal fica sendo uma demonstração inequívoca de que o Estado não só pode como deve assumir para si a responsabilidade de fiscalizar e exercer o cumprimento de pena, e não privatizar. Não existe nenhum presídio privado que tenha as diretrizes de um presídio federal. Essa coisa de dizer que o caos do sistema prisional se resolveria privatizando não é verdade e não há paralelo comparando. Mesmo nos EUA não é assim.
À Luz dos Direitos
ENSAIO FOTOGRÁFICO
Sombras do que somos
Fotos: Juliana Galvão Texto: Francisco de Barros e Silva
Estamos com as nossas roupas Ou a lembrança delas, Estamos com as nossas famílias Ou a lembrança delas. Estamos: dizem-nos que estamos, Porque não somos.
Senhora! Senhora sem nome, De rosto encoberto como a verdade. Ninguém lhe fala, Ninguém lhe escuta. Sobre si falarão apenas os anos E as estatísticas oficiais.
A porta sempre aberta: A aparĂŞncia daquela porta aberta. Pelos vĂŁos deixaram passar uma rĂŠstia de vida. Enquanto a vida passa, na velocidade da luz, O quarto permanece em sombras.
É certo que Deus disse: “faça-se a Luz” E com ela a imagem do Paraíso. Para alguns, o paraíso é um palácio Ou mesmo a sua própria casa. Para nós o Paraíso é o outro.
Estamos nesta praça e quem nos vê? Não somos os que caminham, Nem os que conversam, Nem os que consomem. As ruas têm o nome de outra gente. Onde está o invisível desta foto?
Somos de cidades impronunciáveis Ou da lembrança delas, Somos de famílias já sem nome Ou da lembrança delas. Fomos: digo-lhe, porém, que somos, Porque não perceberão a diferença.
Nesta terra nos contaram a histรณria do Cerco. De um dos vรกrios Cercos. De uma das muitas Cruzadas. Quem nos responderรก, contudo: Quem nos cerca? De quem somos cerca?
Fundamentais
Spinraza, mas pode chamar de esperança Familiares recorrem à Justiça para conseguir o Spinraza, único medicamento que pode conter os avanços da Atrofia Muscular Espinhal (AME), doença rara e degenerativa, cujo tratamento pode chegar a R$ 2,5 milhões por paciente, segundo o Ministério da Saúde Cínthia Carvalho
43
“Eu não vou morrer, mãe! Eu vou viver!”, come-
imediato do medicamento no organismo foi como
morou a campinense Laissa Poliana Guerreiro, 13,
“se ela tivesse nascido de novo”. Após a segunda
quando soube da primeira vitória na Justiça, em abril
dose, a menina já conseguiu retomar movimentos
de 2018. A 3ª Vara Federal da Seção Judiciária da
simples, como esticar os braços e levantar uma jarra
Paraíba havia determinado à União o fornecimento
de suco de vidro, servindo-se sozinha.
do medicamento Spinraza (nusinersena), única for-
A professora de Neuropediatria da Universidade
ma de tratamento para a Atrofia Muscular Espinhal
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Alexandra Prufer de
(AME) – doença rara e degenerativa que faz com que
Queiroz explica que a substância presente no Spinra-
Laissa tenha movimentos limitados nos membros e
za age diretamente no gene SMN1, que produz uma
dificuldades para respirar. O preço de uma dose pode
proteína importante e existente em todas as célu-
ultrapassar R$ 200 mil, valor que a família não tinha
las do nosso corpo chamada SMN. “A sobrevida de
condições de pagar, por isso a solução foi recorrer às
pessoas que têm alterações no gene SMN1 apenas
vias judiciais. No Brasil, não há ainda um dado oficial
é possível por termos uma cópia, a SMN2. No en-
que indique o número exato de pessoas acometidas
tanto, é uma cópia imperfeita, que produz a proteína
por essa doença. Mas elas são muitas – e veem no
SMN parcialmente funcional. O medicamento ‘força’
Spinraza a esperança de dias melhores.
o gene SMN2 a produzir a proteína funcional como se
Laissa descobriu aos 8 anos que tinha AME tipo
fosse o gene SMN1”, explica. “Logo, a nusinersena
III, “a mais ou menos agressiva”, como ela descreve. No mundo, em cada 100 mil nascidos vivos, sete a dez têm algum tipo de AME, a maior causa genética de morte de bebês e crianças de até 2 anos de idade. Por causa da progressão da doença, ela passou a contar com o auxílio de uma cadeira de rodas para se locomover. Mas ao tomar a primeira dose do Spinraza, a sensação foi como se estivesse pronta para uma maratona. “Foi estranho, era como se tivessem bolinhas geladas ou formigas pelo meu corpo. Como se pressionassem para eu pular da cama e sair correndo”, lembra a adolescente, que ganhou o apelido de Laissa Guerreira. A mãe de Laissa, Edna Silva, conta que o efeito
Depois de uma batalha judicial e social, Laissa Guerreiro, 12, conseguiu na Justiça Federal o fornecimento do Spinraza
44
pode alterar o curso natural da doença”, resume. Tudo ia bem, até que uma notícia abalou o clima na casa de Laissa. “Recebi uma ligação do hospital dizendo que o medicamento havia sido recolhido, por ordem judicial”, relata Edna. A reviravolta foi causada por uma nota técnica emitida por médicos do Ministério da Saúde. O documento era taxativo: “Esta paciente não está inclusa no grupo que teve benefício do uso deste medicamento, pois apresenta critério de exclusão”, ou seja, não havia comprovação científica da eficácia para quem tem mais de 12 anos e AME tipo III, que é o
Antes de conceder o medicamento, o desembargador federal Rubens Canuto, relator do processo, havia negado. Segundo ele, o primeiro julgamento foi baseado em informações sonegadas pelo Ministério da Saúde ao TRF5
caso de Laissa. Com base nesta nota, a Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5 aca-
manos e Legislação Participativa do Senado Federal. E
tou o recurso da União e suspendeu o medicamento
foi lá que Laissa representou milhares de vozes e virou
da menina.
ícone na luta dos pacientes com AME no Brasil.
O argumento da União destaca o impacto or-
“Todos os dias, eu estou morrendo um pouco;
çamentário da compra do Spinraza. Registrado pela
todos os dias, os meus amigos estão morrendo um
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em
pouco. Neste segundo, estão morrendo”, discursou
2017, o Spinraza tem um custo elevado aos cofres
Laissa, emocionando todos que estavam no Plenário
públicos. É um dos mais caros que o Ministério da
e também os que assistiram ao vídeo, que repercutiu
Saúde adquire pela via da judicialização. O investi-
nas redes sociais. “Ela deixou o sentimento dela sair.
mento para tratar cada paciente pode chegar a R$
Depois dali, tudo mudou. Laissa se tornou um símbolo
2,5 milhões. Atualmente, existem 106 processos ju-
da esperança para os outros pacientes com doenças
diciais requerendo o tratamento e, até junho de 2018,
raras”, conta Edna.
o Governo Federal já havia destinado R$ 51,3 milhões com a finalidade de atender essas pessoas.
Durante a audiência pública, o pronunciamento do gerente-geral de Medicamentos da Anvisa Rapha-
Angustiada e com o dinheiro contado, Edna viajou
el Sanches Pereira chamou atenção. Segundo ele, o
a Brasília com a filha, em agosto de 2018, para parti-
resultado do estudo com bebês abaixo de 7 meses
cipar de uma audiência pública sobre o fornecimento
teria sido mais significativo, porém a Anvisa consi-
do Spinzara, realizada pela Comissão de Direitos Hu-
dera que existe benefício clínico do uso do Spinraza
45
também em crianças com idade mediana de 3 anos,
ao pagamento de multa de 1% sobre o valor da cau-
ou seja, crianças acima de 7 meses. “O registro foi
sa, por litigância de má-fé. “Tratando-se de uma Nota
concedido sem restrição de idade na indicação”, as-
Técnica, as informações deveriam ser expostas na
segurou Sanches. “Sem restrição de idade”: uma luz
sua completude. Deveria ter sido esclarecido que a
se acendeu para Laissa. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) tomou conhecimento do caso e passou a fazer parte do processo de Laissa. “O que fizemos foi trazer luzes, como Amigo da Corte, o chamado Amicus Curiae, e apresentar esses elementos novos, que descortinaram a verdade. Os fatos trazidos pelo gerente de medicamentos da Anvisa mostraram que o medicamento funciona para AME tipo III e que deveria ser concedido à menor”, explica o diretor da CFOAB, Felipe Sarmento. “O julgamento foi baseado em informações que não tinham sido integralmente fornecidas pelo Ministério da Saúde. Na
A mãe de Lucas Braga, Fátima, é fundadora da Associação Brasileira de Atrofia Muscular Espinhal
verdade, foram sonegadas à Quarta Turma do TRF5”, acrescenta.
Anvisa havia reconhecido e registrado a eficácia do
Os magistrados do TRF5 analisaram os novos do-
medicamento. É demasiado absurdo três médicos
cumentos anexados aos autos, entre eles as notas ta-
subscreverem um documento como esse, não fazen-
quigráficas da audiência pública do Senado. E a deci-
do a mínima referência a essa informação”, enfatizou
são foi pela determinação imediata do medicamento
Canuto. O voto do relator foi integralmente acompa-
a Laissa. “A Turma entendeu que houve uma omissão
nhado pelos demais componentes da Quarta Turma.
dolosa, uma negligência grave por parte dos médicos,
Seguindo para a sexta dose do tratamento, Lais-
ao não prestarem as informações na completude ao
sa comemora a sua vitória pessoal, mas sem perder
Poder Judiciário, mostrando-se numa atitude desleal,
de vista os diversos amigos que fez nessa trajetória.
não apenas em relação ao próprio Judiciário, como,
“Eu penso que minha esperança voltou. Espero que
sobretudo, em relação à própria parte, que ficou pri-
não saia mais. Mas sei que muitas pessoas não têm
vada do medicamento durante dois ou três meses,
como pagar e não conseguem colocar na Justiça. Pre-
aproximadamente”, pontuou o desembargador fede-
cisamos do Spinraza na lista do SUS [Sistema Único
ral Rubens Canuto, relator do processo.
de Saúde]. Eu acredito que essa seja a minha missão.
Por conta da omissão de dados pelo Ministério da Saúde, o magistrado também condenou a União
Vou lutar até conseguir o medicamento para todos os meus colegas”, afirma.
46
Medicamento revolucionário
sem fins lucrativos, formada por familiares de pesso-
Um dos colegas de Laissa é o cearense Lucas
as com AME.
Braga Vaz, 17, que recebeu diagnóstico de AME tipo
Por meio desse trabalho, de âmbito nacional, fa-
I quando ainda era bebê. A mãe dele, Fátima Braga,
miliares encontram auxílio e participam ativamente
conta que, na época, não se falava em Atrofia Mus-
da criação de leis e políticas públicas voltadas para
cular Espinhal. “Ele tinha o corpo molinho, dificuldade
a qualidade de vida de pessoas com doenças raras,
para respirar, engasgava. No hospital onde ele deu
além da luta para incorporar o Spinraza no SUS. “É
entrada na UTI, já entubado, nunca nenhuma crian-
um medicamento revolucionário. Muda totalmente o
ça tinha sobrevivido. Isso me apavorava, com medo
contexto da doença. Lucas tem o cognitivo normal,
de perder meu filho”, relata. Os prognósticos eram os
mas não tem os movimentos e vive preso a uma má-
piores: “os médicos diziam que ele não sobreviveria
quina para respirar. O Spinraza lhe daria mais autono-
até um ano”.
mia, seria um divisor de águas na vida dele”, conta
O maior desafio, segundo Fátima, foi buscar in-
a mãe.
formações atualizadas sobre a patologia. A única re-
A família aguarda decisão do Tribunal Regional
ferência era uma associação americana. Ela buscou
Federal da 5ª Região sobre o fornecimento do pro-
sensibilizar os médicos, defendendo que, se o filho
duto pela União. Enquanto isso, Lucas vai curtindo a
fosse bem assistido, ele poderia mudar a triste esta-
vida, dentro das suas limitações, como um típico ado-
tística dos óbitos recorrentes: “Quebrar paradigmas,
lescente. “Ele gosta de forró, adora barzinhos, praia,
viver um dia por vez, acreditando que aquela história
ama ver o pôr do sol... Nas últimas eleições de 2018,
seria diferente”. E a história começou a mudar quan-
ele votou pela primeira vez, exerceu seu papel como
do Fátima fundou a Associação Brasileira de Atrofia
cidadão. Foi um dos melhores momentos das nossas
Muscular Espinhal
vidas. Ele é um jovem sensível, amoroso, brilhante”,
(Abrame), uma
revela, orgulhosa, a mãe.
entidade
Estudos e incorporação ao SUS Segundo o Ministério da Saúde, há um “esforço para ampliar a oferta gratuita de medicamentos para beneficiar o conjunto da população brasileira”. Entre 2010 e 2018, a oferta gratuita de medicamentos aumentou em 69%, por meio da Relação Nacional de Medicamentos (Rename), passando de 574 para 972 itens. A incorporação de novas tecnologias no SUS, incluindo medicamentos, tem sido feita a partir da análise da eficácia, efetividade e custo-benefício, e é
47
Tipos de AME Basicamente, a Atrofia Muscular Espinhal é dividida em quatro tipos, que são classificados de acordo com a idade em que a doença se manifesta. Nas formas mais graves, as complicações já começam dentro do útero ou durante os primeiros meses de vida. Muitas vezes não são vistos os marcos de desenvolvimento motor (como o sustentar da cabeça, aos três meses, ou o sentar sem apoio, aos seis), além da dificuldade de levantar do chão, correr e pular. Nas formas intermediárias, o envolvimento de músculos paravertebrais é determinante Tipo I ou AME infantil (doença de Werdnig-Hoffmann) no desenvolvimento de deformidades da coluna (escoliose). Tipo II ou AME intermediária E nas formas mais brandas, o impacto maior é na capacidade Tipo III ou AME juvenil (doença de Kugelbert-Welander) de andar.
Tipo IV ou AME adulta
acompanhada de regras precisas quanto à indicação e forma de uso. Os estudos são feitos pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec).
por meio de nota. Em abril deste ano, o senador Romário Faria, que está à frente das discussões sobre o Spinraza
Em relação ao Spinraza, o Ministério da Saúde
no Congresso Nacional, informou, em suas redes so-
afirma que o medicamento teve seu preço máximo
ciais, que o Ministério da Saúde vem avançando as
definido pela Câmara de Regulação do Mercado de
negociações com o laboratório Biogen, fabricante do
Medicamentos (CMED) em novembro de 2017 e que,
medicamento. O Governo Federal pagará o tratamen-
diante disso, a pasta solicitou a avaliação da incorpo-
to para AME tipo I e, para os demais tipos, fará um
ração do medicamento no SUS pela Conitec. Em aná-
acordo de responsabilidade compartilhada: se o re-
lise preliminar de custo-efetividade, o medicamento
médio der resultado no paciente, o SUS pagará; caso
não teria apresentado “resultados clínicos convincen-
contrário, o laboratório arcará com os custos.
tes”.
A Biogen afirma que está empenhada em garan-
No fim de 2018, a incorporação do Spinraza ao
tir que os pacientes elegíveis possam se beneficiar
SUS foi tema de Consulta Pública, no site da Conitec.
do Spinraza e informa que fechou parceria com a em-
“Após esse processo, a equipe técnica da comissão
presa americana de biotecnologia Ionis, no intuito de
avaliará todas as contribuições e, na sequência, a dis-
“intensificar pesquisas que promovam o desenvolvi-
cussão volta para o plenário da Comissão, para emitir
mento de novos oligonucleotideos antisense para o
recomendação final”, informou o Ministério da Saúde,
tratamento da doença”.
O Rosto do Noivo Vladimir Souza Carvalho
Sentir
Eu estava tão bonita no vestido de noiva! Bonita não, linda! Desde as primeiras provas que me enchia de alegria ao me ver no espelho, a roupa bem ajustada no corpo, minha cintura fina destacada. Depois, o meu cabelo se mostrava lindo, marcado por um arranjo brilhante, em forma de folha, cheio de pérolas que brilhavam. Tia Profira, que fazia questão de ver me arrumando, desabou em lágrimas. Nunca tinha visto uma noiva igual a mim. Você é a mais bonita de todas, dizia, tentando controlar o choro. Ora, tia Profira, não chore, eu vou me casar, não vou morrer, que coisa, assim eu também termino chorando. Mamãe, mais calma, ficava mudando de posição. Eu, no centro da sala. Mamãe ia para um lado, olhava, se abaixava, fechava um olho. Depois alterava a posição, ora se aproximando, ora se afastando, olhando-me pela frente e por trás. Até que deu a palavra final: tudo pronto e aprovado. Pode ir. O noivo já se encontrava na Igreja. Só falta você. Papai, tentando se acomodar ao terno, a gravata meio torta, o paletó aberto. Dava para se notar a briga entre o pai e a roupa nova. Quem vai olhar para um velho como eu? As atenções estarão concentradas na noiva, acrescentava. Se eu fosse nu, ninguém ia me prender, porque todos só olhariam para você. Tem graça o povo olhando para mim com uma noiva como você de lado. Encontrava-me, assim, sumamente feliz, me derretendo em risos, a emoção de entrar na igreja, todo mundo em pé a me olhar, a marcha nupcial tocada, e eu, num passo leve, cadenciado, de braço com papai, passando pelo meio do templo em direção ao altar, pisando no tapete vermelho em câmera lenta, como se aquele momento, de tão importante, tivesse de ser lento, para fincar suas raízes na memória de to-
dos. Não existia nem existe momento mais divino. Eu, toda de branca, o vestido de noiva dando realce ao meu estado de absoluta felicidade. Daqui a poucos instantes sairia da Igreja pelo mesmo caminho, só que, desta vez, na condição de casada, a aliança no dedo da mão esquerda, eu, que não esquentava com namoro, nem fazia planos de casamento, finalmente, me tornava, por força daquele ato, em uma mulher casada. Nesse estado de felicidade plena, papai meio desajeitado, o corpo empertigado, duro como um cabo de vassoura, fui atingindo o meio do percurso, o fotógrafo, de perto, me acompanhando com sua máquina. De longe, eu via o noivo, com um terno lindo, parecendo com aqueles que a gente só vê no cinema, tão bonito que não me arrisco a dizer o nome. Suspirei de alegria, a boca aberta para todos os risos do mundo, meus dentes brancos bem estampados, ao lado da gengiva, porque nunca consegui rir para não mostrá-la. Foi aí, justamente aí, procurando ver o rosto do noivo que me veio à mente uma verdade que, até então, tentava driblar: não o conhecia, não sabendo como era seu rosto, se bonito, se feio, a idade, nada, nada, em absoluto. Nem ao menos, a cor, eu não sabia qual era. O noivado, iniciado e oficializado por meio de uma carta endereçada a papai, pedindo minha mão em casamento. Minhas tias vibraram, tia Profira, principalmente, ah, minha filha, aceite, case, o pretendente é homem de bem, milionário, dono de muitas terras e de muito gado, com casa grande na capital, apartamento, carro importado, é homem de bem, minha filha, aceite, não perca essa oportunidade. Aceitei, a pressão das tias, tia Profira pulando de alegria, parecendo até que era ela quem estava sendo pedida em casamento. Aceitei, arrastada pela vibração delas, a vontade, por outro lado, de me casar, ter meu lar, a ideia de poder ser mãe, três filhos, no máximo, dois meninos e uma menina, tudo pesou no meu entusiasmo. Tomei as tias como exemplos, todas solteironas, final que eu não pretendia para mim, que nem sobrinho tinha para criar depois de velha. Marcou-se a data do noivado, mamãe preparou um almoço, se encarregou de matar uma galinha, passando-lhe a faca no pescoço, a xícara embaixo para aparar o sangue, a bichinha sendo sustentada pelo peso do seu joelho, para não se bater, galinha a molho pardo,
macarrão, farofa, salada com ovos cozinhados bem cortados, arroz com enfeites de folhinhas de coentro, suco de jenipapo e doce de leite batido, era a comida mais requintada que sabia preparar, um trabalhão danado, as tias todas mergulhadas na cozinha, cada uma com uma tarefa, tia Profira, a mais animada, sem me deixar fazer nada, você, não, minha filha, você é a noiva, e a noiva não arreda uma palha, a noiva se prepara para o casamento, você é a figura mais importante do almoço, não vai querer se queimar com uma panela quente, nem sujar suas mãos com o cheiro de cebola, nem aparecer na hora do almoço com a roupa fedendo a suor. Em absoluto, na cozinha, você não entra. Não entrei. Em cima da hora do almoço, o noivo não chegou. Veio uma carta em seu lugar, pedindo desculpas, negócios urgentes que surgiram, exigindo sua presença numa fazenda distante, mil pedidos de desculpas, a aliança de ouro e um colar de pérolas que, ao pegar, quase desmaiei de emoção. Tão bonito o colar! Tia Profira dava gritinhos, a joia deveria ser caríssima, minha filha, parabéns, você tirou a sorte grande em casar com esse homem, a alegria de tia Profira contagiava todo mundo, a gente sentada na mesa, um lugar vazio, no centro, cuidadosamente pensado, o do noivo, comemorando todos o meu noivado, a data do casamento deveria ser assinalada logo, o noivo, na carta, demonstrava pressa para casar, uma caligrafia bem legível, a letra firme, caneta tinteiro, todos nós aproveitando a sua ausência para saborear, bem à vontade, a galinha preparada por mamãe. Ninguém encarou a ausência do noivo como uma desfeita, imagine. Nossa casa era de gente pobre, de antemão, antes do pedido, já se sabia. Se queria casar comigo é porque essa condição não lhe incomodava, ele que tinha dinheiro para encher umas dez cisternas. No meio do almoço, o apetite me faltando, a emoção era forte demais, o colar me deixava sem ação, aquele colar era meu, presente de noivado, noiva nenhuma das conhecidas por tia Profira tinha ganho um colar daquele, o homem era rico, minha filha, ela fazia questão de ressaltar, mamãe pedindo para ela falar baixo, a fim de a vizinhança não ouvir, tia Profira, a boca cheia de farofa, os pedaços de carne aparecendo nos dentes, fazia que não ouvia, continuando sua louvação ao colar e à
provável fortuna do noivo, olhando para os lados, como se fitassem os vizinhos, a fazer um gesto de banana para todos, aqui, para eles, falava, eu estou comendo, arrotando e cagando para quem tiver achando mal empregado. Papai confirmava a fortuna do noivo, por ouvir dizer, não dos fofoqueiros da cidade, que são iguais a cachorro vira-lata e a bagaço de jaca mole, mas por pessoas de bem, que já estiveram em alguma de suas fazendas, não tivessem dúvidas, um colar daqueles deveria ser um rolete de cana para o noivo, foi sorte minha ele me ter pedido em casamento, eu ia ser feliz no meio de tanta riqueza, ia, tinha certeza, papai alertava, satisfeito por estar comendo sem a camisa, aproveitando a ausência do futuro genro. Lastimou o estoque de cerveja que tinha comprado para a ocasião, queria que o futuro genro visse fartura em sua casa. Não era nenhum pé raspado, era bom que o noivo soubesse. Nessa alegria que tia Profira acena, esqueci de um detalhe que me deixava intrigada: ainda não tinha visto o noivo, nem ao menos uma fotografia sua. Papai, em resposta, lhe escreveu, respeitosamente, depois do sono, a cabeça já leve, o efeito das cervejas já passado, as irmãs todas ao seu lado, aceitando as desculpas da sua ausência, acrescentando que não faltaria oportunidade para o noivo comparecer a sua casa, ressaltando, inclusive, que apontasse, com brevidade, a data da visita, para que a casa fosse arrumada a fim de poder bem recebê-lo. Várias datas foram marcadas, mas o noivo não apareceu. Em seu lugar, novos bilhetes de desculpas, negócios muitos, boiadas que tinha para vender e para comprar, compromissos outros com frigoríficos, boiadas para transportar, os bilhetes acompanhados sempre de um presente, geralmente em forma de joias, me dando um tratamento que me deixava encantada – minha querida noiva –, de forma que me acostumei ao fato de não tê-lo conhecido, até então, papai assegurando, por ouvir dizer de pessoas de bem, que se cuidava de um homem alto e elegante, bem afeiçoado, que só se vestia bem, inclusive quando estava montado em cavalo, e tinha relógio no colete, um só, não, vários, variando de acordo com a cor da roupa. Eu me derretia de alegria ao saber, construindo na minha mente um seu retrato imaginário. Finalmente, foi marcada a data do casamento, sem que o noivo tivesse nos visitado. O meu futuro mari-
do chegaria meia hora antes, já indo direto para a Igreja. Queria me ver com o vestido de noiva, pedia, justificava-se, não queria trocar de roupa em hotel, a viagem não amassaria seu terno, etc. Aceitei, mesmo porque não haveria como dizer não nem como discutir o plano. Sabia, de antemão, que sua vontade era mais forte que qualquer plano de nossa parte. Aliás, tia Profira não me deixou nem pensar, pensar em quê, minha filha, responda logo, um noivo desse, você toda enfeitada de joias, pensar em quê, diga sim, eu disse, se não dissesse, tia Profira diria por mim, me abraçando com tantos votos de parabéns e de felicidade, o casamento foi marcado, o vestido feito por minha mãe, sob a supervisão direta de tia Profira, eu estou a caminhar agora em direção ao altar, o noivo na minha frente, lá adiante, eu sinto que ele me olha. Mas, há um detalhe que me incomoda: a luz da Igreja está apagada. Só as velas acesas. Não consigo ver o seu rosto, nem quando meu pai lhe abraça e, com um farto sorriso nos lábios, me passa as mãos para ele, como a entregar a mercadoria, agora é sua, pegue, tome conta, a cabeça baixa do noivo na inclinação para me beijar a mão, a sua boca quente pousando na minha mão, eu sentindo o calor que dela vinha e o beijo me provocava, o primeiro que tomava, educada e respeitosamente. Durante a cerimônia, não consegui ver seu rosto. Os raios solares que entravam na Igreja eram poucos, de forma que, por uma dessas coisas estranhas na vida, quando me inclinava para vê-lo, o noivo, automaticamente, virava o rosto para outro lado, não me permitindo matar minha curiosidade, em ocasião alguma, nem mesmo quando colocou a aliança em meu dedo e eu repeti o gesto, dizendo as palavras que o padre ditava. Nada, absolutamente nada. Nada vi, nem o formato do nariz nem da boca, nem os olhos. O rosto do noivo, até então, não me era conhecido, o que mais me aumentava a curiosidade. Seria bonito? Por certo, sim, a caligrafia legível e firme mostrava ser de um homem elegante, os presentes, em forma de joias caríssimas, exibiam excelente gosto por coisas bonitas, além de se constituir numa autêntica declaração de riqueza. Terminei me acalmando no meio da cerimônia. Veria seu rosto depois, no meio da recepção que ocorreria lá em casa. Haveria um momento em que ficaríamos cara a cara, na troca de braços para o brinde, antes de cortar o bolo. Neste momento, enfim, eu estaria
a ver o rosto do meu marido, até porque, o fotógrafo iria colher uma fotografia da cena, o que me dava mais tempo para lhe ver o rosto. Mas, por questões de conveniência, o noivo pediu a papai consentimento para nós dois viajarmos logo depois da cerimônia. Passaríamos a primeira noite na casa de uma de suas fazendas, para onde seríamos levados por um dos seus veículos. Papai já tinha observado que o noivo, agora meu marido, mandava em forma de pedido. O pedir era uma maneira camuflada de expor sua vontade. Mandava, pedindo. Sai da Igreja meio entristecida com a mudança dos planos, afinal noiva nenhuma casava sem que uma festa fosse oferecida. Era tradição. Mas, paciência. Tia Profira, outra vez, se meteu na história, vai, minha filha, vai, vai logo, para sua lua de mel, você está linda, você é a noiva mais bonita do mundo. Eu entrei no carro para a viagem com o vestido de noiva, não havia tempo a perder, minha mala já estava no veículo. Apesar de pegar em sua mão durante a viagem, não consegui, ainda, ver seu rosto, a luz não deixava. A impressão que brotava em minha mente era a de que o meu marido tinha pleno domínio sobre as condições do tempo, fazendo com que a penumbra sempre lhe beneficiasse. Tampouco me senti encorajada a pedir que me mostrasse a cara, afinal não deveria me preocupar com assuntos dessa natureza no meu primeiro dia de casada. Esperei ser beijada na boca, ou no rosto, durante a viagem, para poder ver seu rosto. Não fui. A viagem não foi longa. O veículo desenvolvia uma velocidade razoável, o noivo, digo melhor, o meu marido, de quando em quando, apertava minha mão, como se quisesse me transmitir alguma coisa, eu sentindo a sua mão quente, mão musculosa e suave, com vontade de arriar minha cabeça em seu ombro, mas com receio, afinal, até então, não o conhecia, ou seja, não tinha visto nem o seu rosto, ainda, não me arriscaria a nenhum passo de intimidade. Sem conhecer seus hábitos, me acautelei em não ter iniciativa para nenhum gesto de carinho. Fiquei calada durante toda a viagem, até que o veículo passou por uma cancela, a voz dele a me alertar para a chegada a casa onde passaríamos a primeira noite, eu ansiosa para conhecer o ambiente que me esperava, até que o veículo parou à frente da casa, várias pessoas me
aguardando, apesar do horário inconveniente. Apertei a mão de todas, sendo conduzida ao meu quarto, ou melhor, ao nosso quarto, onde deveria trocar de roupa, para me livrar, enfim, do vestido de noiva. Duas empregadas, já de idade, gentilmente, me auxiliaram na retirada do pesado trajo. Depois, pediram licença e saíram. Doravante, eu teria de enfrentar tudo sozinha. Tia Profira não estava mais ao meu lado para me contagiar com sua alegria, de forma que permaneci parada nos aposentos, onde, passado o espanto do luxo que impregnava o ambiente, troquei de roupa, vestindo um chambre, a camisola do dia, tão bonita, como tia Profira tanto propagara, pronta para ir a cama. Nesse momento, o meu marido entrou. Não tive susto algum. Já o esperava. A pouca luz do ambiente não me permitia que eu visse o seu rosto, fato que já não me era novidade. A ideia que me vinha à mente, a esta altura, é que nunca poderia ver a sua cara. Ele, também, já tinha trocado de roupa, vestindo um roupão elegante, desses que, nem em filme algum, nunca tinha visto. Entrou calado, permanecendo a três metros da cama, onde eu estava sentada. Perguntou-me, educadamente, como me sentia. Respondi que estava bem, não me achava cansada, e, criando coragem, afinal eu já era sua esposa, o momento era chegado, reclamei que até agora, mesmo casada, não lhe tinha visto o rosto, ainda, como a dar um sinal positivo de que era o momento certo de acabar com esse mistério, segredos não deviam existir no meio de um casal. Espantei-me até com a espontaneidade com que me manifestei. Um rápido silêncio seguiu-se às minhas palavras. Depois, veio a resposta, as palavras num só tom. Ouvi, perfeitamente, quando ele disse que o importante não era o seu rosto, igual ao de todo mundo, contendo dois olhos, um nariz, uma boca, um queixo, duas orelhas, cabelo na cabeça. O fundamental era eu saber que ele me amava. Não me restou outra saída. Resignada e silenciosamente, em sua presença, me despi do camisão. Depois, estirei meu corpo nu na cama, me oferecendo para o sacrifício.
Em dia com a Lei
Previdência Em outubro de 2018, a Segunda Turma do TRF5 negou provimento, por unanimidade, à apelação de J. G. S., que pretendia receber o benefício de pensão por morte em razão do falecimento de seu irmão, sob o argumento de dependência financeira daquele. Em 1997, o apelante pediu demissão de seu emprego no Banco do Estado do Ceará, através do Programa de Demissão Voluntária (PDV). O relator da apelação, desembargador federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, afirmou que a legislação previdenciária não pode ser interpretada de modo a beneficiar alguém que abriu mão de previdência própria para se vincular à outra, com aspecto mais lucrativo. Pensão por morte A Quarta Turma do TRF5 negou provimento, por unanimidade, à apelação da Marinox Indústria e Comércio Ltda. – EPP, mantendo a sentença do Juízo de Primeiro Grau que determinou o ressarcimento ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) de todos os valores pagos pelo órgão em benefício de pensão por morte de W. A. S. J. A decisão, proferida em novembro de 2018, se baseou no laudo pericial do aciden-
te de trabalho do empregado da Marinox, o qual apontou irregularidades na conduta da empresa, que foram determinantes para a ocorrência do acidente de trabalho e que poderiam ter sido evitados. O relator da apelação foi o desembargador federal Lázaro Guimarães. Xucuru-Kariri No mês de novembro de 2018, uma decisão do desembargador federal Edilson Nobre, referendada pela Quarta Turma do TRF5, determinou que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) fornecesse cestas básicas à família indígena Macário/Salustiano, da etnia Xucuru-Kariri, durante quatro meses. A decisão atendeu ao pleito do Ministério Público Federal (MPF) que, através de uma ação civil pública, requereu o assentamento dos índios nas fazendas Riacho Fundo do Meio, Bom Jardim e Riacho Fundo da Prata, bem como a disponibilização de cestas básicas e água até que possam colher suas próprias plantações. Ferrovia Transnordestina A Segunda Turma do TRF5 determinou, no dia 30 de agosto de 2018, a reintegração de posse e a demolição dos imóveis construídos na denominada faixa non aedificandi da área pertencente à Ferrovia Transnordestina, após dar provimento, por unanimidade, ao agravo de instrumento interposto pela Ferrovia Transnordestina Logística S.A. Para o relator do agravo, desembargador federal convocado Frederico Wildson, não estava em jogo somente a invasão de área pública, mas, principalmente, o perigo que construções desse nível poderiam causar no momento em que a ferrovia começasse a ser utilizada. A área da invasão é considerada espaço onde nada pode ser construído e faixa de domínio pertencente à Ferrovia, sendo ocupada irregularmente há mais de 20 anos.