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‘EXÍLIO’ E VIOLÃO

Como no clássico ‘Saudade de Pernambuco’, que lançou na ditadura, Alceu Valença apela instintivamente ao instrumento para evocar memórias no seu novo álbum, ‘Sem Pensar no Amanhã’

por_ Bruno Albertim de_ Olinda (PE) | fotos_ Leo Aversa

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Já banguela e ainda disposta a mordidas, a última ditadura brasileira angustiava Alceu Valença. Coagido em alguns episódios pela censura oficial, partiu para um exílio voluntário na França no final da década de 1970. No pequeno apartamento francês, esperava a noite cair para poder flanar pelas ruas. “Eu passava os dias convivendo apenas com meu violão”, lembra Alceu que, do período, trouxe ao Brasil o hoje clássico “Saudade de Pernambuco”. É o único álbum na extensa discografia em que Alceu se faz acompanhar do instrumento.

Era.

Agora, vivendo uma outra espécie de exílio, Alceu está de novo às voltas com as cordas. Estradeiro que é, capaz de até vinte shows num único mês, ele se viu “exilado” em casa durante a pandemia. De máscaras duplas e álcool às mãos, só tem saído do apartamento onde mora a maior parte do ano (quando não está nas residências de Olinda ou Lisboa), no bairro carioca do Leblon, para ir muito rapidamente a uma farmácia.

“Descobri que não tinha intimidade nenhuma com este apartamento”, ri, numa conversa por telefone com a reportagem da UBC. “Estou aqui totalmente isolado com Yanê, minha mulher, desde março do ano passado. Então, comecei a ocupar os dias tocando violão. Com exceção daquela temporada em Paris, desde que me entendo por compositor, músico e cantor, nunca toquei tanto violão como agora.” O resultado da redescoberta não programada do instrumento é “Sem Pensar no Amanhã”, lançado pela Deck Discos como o primeiro dos quatro álbuns digitais dele que devem chegar até o final do ano.

O primeira abordagem foi intuitiva, despretensiosa. Alceu ia naturalmente visitando temas de seu repertório, ou canções a ele vizinhas, filiadas. “O que só conseguia fazer à noite, porque durante o dia a interminável reforma de um apartamento aqui perto não permitia.” Inicialmente, a ideia não era produzir um álbum, mas ocupar o tempo subitamente ocioso depois do carnaval do ano passado – Alceu tinha 45 shows marcados pelo Brasil e mais 16 de uma breve turnê europeia para depois de fevereiro. Mas as versões foram saindo e, com as certeiras críticas de Yanê, terminaram levadas à Deck para a gravação. O samba que dá título ao álbum é a única inédita.

Um roteiro de inspiração cinematográfica guia poeticamente o repertório de “Sem Pensar no Amanhã”. “Um disco pode ser pensado como um filme. Neste, a câmera sai da praia de Boa Viagem, em ‘La Belle de Jour’ e voa sobre as igrejas de Olinda em ‘Mensageira dos Anjos’, que é uma figura que de fato eu vi há muito tempo, uma moça dançando balé sozinha na beira da praia”, diz Alceu, puxando da memória a inspiração para a letra antiga.

Cineasta bissexto, Alceu tem uma relação intensa com a imagem – e é dono de letras de extensa evocação imagética. Em 1974, atuou como ator no filme “A Noite do Espantalho”, musical de Sérgio Ricardo sobre os maus humores do latifúndio nordestino com trilha composta por ele e Geraldo Azevedo. Rodado em 2014, um bem-recebido faroeste nordestino ancorado nas figuras de Lampião e Maria Bonita, “A Luneta do Tempo”,marcou a estreia de Valença como diretor tardio.

Na viagem proposta pelo repertório, o itinerário segue no “Táxi Lunar”, grande parceria com Geraldo Azevedo, para “um trem de cores” tomado na “Estação da Luz”, “que sobe a Bahia, Sergipe e Alagoas, até chegar à Ilha de Itamaracá”, com “A Ciranda da Rosa Vermelha”. Depois, continua até a sede do bloco carnavalesco Pitombeira dos Quatro Cantos, atrás do sobrado do cantor, em Olinda, com uma série de canções apaixonadas em louvor da cidade.

UMA PLAYLIST ESPECIAL

A partir desta edição, a UBC publicará playlists especiais com a obra dos personagens das principais reportagens. Hospedadas no perfil da UBC no Spotify, elas terão a curadoria de Ronaldo Bastos e Leonel Pereda.

“Quando pensamos em um projeto de playlists da UBC, os primeiros nomes que nos vieram à cabeça foram os dos dois. As compilações da Dubas ainda na era analógica eram obras de arte em si, do projeto gráfico a cada faixa escolhida por uma razão meticulosa qualquer, que você ia descobrindo enquanto ouvia de forma quase demencial”, diz Marcelo Castello Branco, diretorexecutivo da UBC. “Esse olhar autoral vai estar presente nesta leitura sensível de tudo que as Revistas da UBC cobriram em sua ainda breve existência. Serão retratos musicais dinâmicos, plurais, sem pretensão de repetir o óbvio já tão predominante e previsível dos algoritmos. Os Prêmios UBC também serão objetos de nossas playlists. Nosso objetivo é retratar a diversidade e a riqueza da música brasileira, além de seu mosaico autoral ilimitado.”

OUÇA | A playlist com canções de Alceu ubc.vc/playAlceu

VIOLONISTA ALCEU

Com essa série de discos, Alceu não tem a pretensão de ser considerado um violinista revelado por trás do cantor e compositor. “Eu nunca levava violão nas viagens. Agora, na pandemia, aconteceu esse jeito de tocar, que é um jeito meu. Até porque, quando menino, eu nem ouvia música. Meu pai, que queria que eu seguisse Direito, nem permitia radiola em casa, para não roubar nossa concentração. Eu sabia imitar todo mundo: Nelson Gonçalves, Cauby, Dolores... que eu só ouvia no rádio da casa do meu avô”, ele lembra.

Os outros discos desta série, já gravados, não têm ainda data de lançamento. O segundo, adianta ele, versa em repertório sobre sua relação com o verão da cidade do Rio de Janeiro. O terceiro, uma incursão a sertões mais profundos. Sobre o quarto, ele ainda não fala. “Mas já está pronto”, ele ri. “Estou segurando ao máximo para não lançar, estou depurando... Para não ficar sem ter o que fazer depois.”

OUÇA MAIS | As 11 canções de “Sem Pensar no Amanhã” ubc.vc/Alceu

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