As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura.

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Shirley de Souza Gomes Carreira Cristiano Lima de Oliveira Elisângela Brito Martins Pessanha Fabíola Nogueira Reis Gomes Michele Lima de Oliveira

As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura

1ª. edição Belford Roxo 2012


Copyright © 2012 Shirley de Souza Gomes Carreira et al. Editor: UNIABEU- Centro Universitário Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica: Shirley de Souza Gomes Carreira

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) C314a

As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura/ Shirley de Souza Gomes Carreira [et al.]- Belford Roxo: UNIABEU, 2012

ISBN: 978-85-98716-03-9 Está disponível online: www.uniabeu.edu.br

1. Literatura brasileira. 2. Imigração libanesa. 3. Memória étnica. 4. Identidade. I. Carreira, Shirley. II. UNIABEU. Centro Universitário. III. Título. CDD B869.3 CDU 82.09


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APRESENTAÇÃO

Este livro é o resultado de uma pesquisa realizada no UNIABEU-Centro Universitário, intitulada “Literatura e memória: representações da identidade cultural do imigrante e a recepção da memória étnica”, conduzida pela pesquisadora Shirley de Souza Gomes Carreira, Doutora em Literatura Comparada e professora do Curso de Letras da instituição. O projeto, submetido ao Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão-PROAPE, do UNIABEU, foi selecionado e executado com o auxílio de quatro bolsistas de Iniciação Científica: Michele Lima de Oliveira, Cristiano Lima de Oliveira, Elisângela Brito Martins Pessanha e Fabíola Nogueira Reis Gomes, dois deles com bolsas concedidas pela FAPERJ e dois com bolsas de iniciação científica, concedidas pelo UNIABEU - Centro Universitário. Desde o início, o intuito foi direcionar o resultado da pesquisa aos estudantes do Ensino Médio e à contribuição da literatura para que esses alunos se apropriem do conhecimento sobre culturas diferentes das suas. Para que isso fosse possível, era necessário conhecer um pouco melhor os potenciais leitores deste trabalho. Assim, foram feitas visitas a várias escolas de ensino médio, onde foi verificado o nível de conhecimento dos alunos sobre a imigração no Brasil. Surpreendentemente, embora a questão da imigração faça parte do currículo do ensino fundamental e médio, poucos sabiam algo de concreto sobre os imigrantes que colaboraram para

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dar ao nosso país a feição que ele tem hoje. Nenhum dos alunos das escolas visitadas soube identificar sequer uma obra da literatura brasileira em que houvesse um personagem imigrante. Essas constatações foram importantes para o rumo que foi dado à pesquisa e para a metodologia adotada. O resultado encontra-se reunido neste pequeno livro, cujo objetivo é demonstrar que não apenas os livros de história são responsáveis pela difusão do conhecimento sobre a imigração e a memória étnica. Partes dos textos aqui reunidos foram publicadas em periódicos nacionais e internacionais e apresentadas em eventos acadêmicos, como resultados parciais da pesquisa, o que de nenhum modo invalida a sua presença nesta obra. Por uma questão de praticidade, há capítulos específicos para cada obra analisada, bem como exercícios após cada capítulo. Ao fim, há algumas sugestões de atividades a serem realizadas com os estudantes, de modo que a obra venha a contribuir para uma aprendizagem significativa.

Marcelo Mariano Mazzi Gerente de Pós-Graduação, Pesquisa, Extensão e Responsabilidade Social UNIABEU- Centro Universitário

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“(...) a diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar-nos sobre ele.” Marc Bloch

A memória é uma espécie de esquecimento recuperado pela linguagem. Milton Hatoum

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SUMÁRIO

Uma história para contar

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Quem conta um conto e aumenta um ponto

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Uma terra para chamar de sua

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Entre oriente e ocidente

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Uma história de amor e ódio

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A imigração narrada pela ótica de uma mulher 60 Para finalizar...

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Glossário

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Bibliografia

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Sugestões para o professor

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Sobre os autores

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I UMA HISTÓRIA PARA CONTAR...

Imagine-se viajando para uma terra estranha, cujo idioma você não domina, cujos hábitos você desconhece. Comida, modo de vestir, de agir em público, tudo completamente diferente; e você terá de viver lá de agora em diante. Assustador? Claro que sim. O futuro é incerto nesse novo local onde vai morar. Você é um emigrante! Vejamos agora: emigrante e imigrante são duas coisas diferentes, não? Sim. Emigrante é aquela pessoa que sai do seu país de origem para viver em outro. Imigrante é aquela pessoa que está vivendo e trabalhando em um país diferente do seu. Quando queremos falar do movimento de pessoas de um lugar para outro, dizemos simplesmente “migração”. Voltando à viagem. Hoje podemos viajar de avião, o que torna tudo mais rápido, mas antigamente as coisas não eram bem assim: as distâncias pareciam bem maiores, pois só se podia atravessar o oceano de navio e, mesmo dentro de um país, as viagens eram muito mais demoradas. Desde o começo da história do homem, sempre houve muita gente se deslocando de um lugar para outro. Em nosso país, a história desses deslocamentos começou cedo: primeiro com os portugueses que aqui chegaram para colonizar a terra; depois os escravos, trazidos à força para trabalhar nas fazendas; mais tarde outros grupos de pessoas, como espanhóis, holandeses e franceses. E, por fim, os italianos, alemães, japoneses,

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espanhóis e árabes. No entanto, só se pode falar em imigração para valer em relação aos que vieram depois de 1822, quando o Brasil se tornou um país independente. Dois acontecimentos foram muito importantes para a imigração no Brasil: o fim da escravidão e a expansão das fazendas de café. A abertura dos portos, em 1808, fez com que muita gente se interessasse em vir para cá. D. João VI trouxe 300 chineses de Macau para iniciar o cultivo do chá. A primeira imigração organizada e contratada pelo o governo brasileiro foi a de suíços, que se dirigiram para a região serrana na do Rio de Janeiro. A segunda foi de alemães. Com o fim do tráfico de escravos, foi necessário atrair os imigrantes e, para isso, o governo criou o sistema de “colonato”, em que o imigrante e sua família recebiam o salário misto, entre dinheiro e um pedaço de terra para plantar seu próprio sustento. Naquela época o trabalho era duro, o clima era adverso, e muitos imigrantes não aguentaram, decidindo ir para outras regiões do país onde o fosse mais frio e o trabalho menos árduo. Assim, começaram a espalhar-se se pelo Brasil. Havia critérios de classificação o para aceitação ou rejeição do imigrante: primeiro, o grau de proximidade com os brancos; segundo, o estágio de civilização do povo imigrado, como a importância do país de origem, a disciplina no trabalho, a higiene em casa e a obediência às leis; e por fim, f a propensão destes a se deixarem assimilar pelo meio brasileiro.

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Os grupos que fugissem a estas regras não eram bem aceitos. A história desses imigrantes foi registrada por meio de documentos, e muitos podem ser vistos no Museu do Imigrante, em São Paulo, mas há também os relatos dos imigrantes mais velhos, registrados em gravações e entrevistas. A esse tipo de registro chamamos “história oral”. No entanto, engana-se quem pensa que só a História é capaz de nos relatar o que aconteceu com os imigrantes no Brasil. Há outra forma de conhecermos a história dessas pessoas: a literatura. A esta altura, você deve estar se perguntando: ”Mas a literatura não conta histórias inventadas?” Nem sempre. Há os textos memorialísticos, autobiográficos, os romances históricos; enfim, formas literárias que abordam objetivamente fatos reais. Neste pequeno livro, vamos mostrar como a literatura pode se tornar fonte de conhecimento sobre a imigração no Brasil. É claro que seria impossível contar a história de todos os imigrantes, portanto, escolhemos um único grupo: os árabes, mais especificamente, os libaneses. Talvez você não saiba, mas o Brasil é o local onde há mais imigrantes libaneses no mundo. Dizem que a imigração dos libaneses começou oficialmente depois de uma visita que D. Pedro II fez ao Líbano, mas há registros históricos de que havia libaneses no Brasil antes disso, e que um deles cedeu a sua residência quando D. João VI chegou ao país, em 1808. Quando a imigração libanesa começou, o governo estava interessado em enviar imigrantes europeus para as lavouras nos estados do sul e no interior paulista, mas eles não faziam parte dos

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grupos que receberam ajuda para emigrar. Os que vieram para cá tinham de custear sua viagem e encontrar um meio de sobreviver, pois não havia política do governo para beneficiá-los. Foram três as ondas migratórias síriolibanesas para o Brasil: de 1880 a 1900, 1900 a 1950 e de 1975 em diante. Os integrantes da primeira onda migratória tinham em mente fazer fortuna para poder retornar à terra natal, caracterizando uma imigração de ordem econômica. O Brasil daquela época era ainda essencialmente rural, com muitas distâncias a percorrer, e o ofício encontrado pelos imigrantes libaneses exigia isso, pois sua atividade principal no país era o comércio; logo ficaram conhecidos como “mascates”. Como os imigrantes sírios e libaneses eram, em sua maioria, homens, solteiros, com o objetivo de alcançarem riqueza e retornarem à terra natal, não hesitavam em optar por mascatear, função de grande desgaste físico e que mantinha o indivíduo distante por longo tempo da família. Entretanto, tratava-se de uma atividade que podia mantê-los na condição de autônomos, poupando-os de se tornarem empregados contratados, como colonos ou operários. Isto facilitaria o posterior retorno ao país de origem, pois, sem contratos, não tinham acordos a cumprir. Logo que obtinham recursos suficientes, deixavam de viajar a pé e compravam uma "tropa de burros" e acabavam fixando-se em vilarejos, onde havia uma maior freguesia, e montavam uma pequena loja. A obtenção e o estabelecimento de lojas próprias era a meta dos mascates. Essas lojas vendiam produtos de bazar, secos e molhados.

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As lojas tornaram-se verdadeiros centros comerciais, estimulando ainda mais o fluxo migratório. Assim, o proprietário, consciente de seu crescimento, mandava dinheiro para que seus parentes e amigos viessem trabalhar com ele. Ao chegar, começavam a vender nos arredores as mercadorias do patrício, do parente, do amigo ou do conterrâneo já estabelecido. A experiência bem-sucedida de alguns pioneiros fez com que a emigração se tornasse uma verdadeira febre, estimulada cada vez mais pela crença de que alguns anos nas Américas seriam suficientes para garantir a aquisição de terras e a prosperidade dos membros da família que ficaram. O modelo de existência para esses primeiros imigrantes ainda era o da terra natal, para onde ambicionavam retornar. É difícil precisar o contingente de imigrantes nessa fase, pois não existem estatísticas sobre a distribuição de libaneses no Brasil do início do século 20. Nos primeiros anos de 1900, havia três locais no Brasil para onde eles se dirigiam: a Amazônia, São Paulo e Rio de Janeiro. Diferentemente de europeus e asiáticos, os árabes não se fixaram de maneira concentrada em um único lugar, mas se espalharam de norte a sul do Brasil, com alguma predominância no Norte. Os mascates tiraram proveito do surto de prosperidade da borracha que atraía grandes levas de brasileiros para a região do Amazonas. Com o tempo, a decadência da borracha determinou a transferência de muitos libaneses para São Paulo e para o Rio Janeiro, contribuindo para o surgimento de grandes artérias comerciais. Assim, o fluxo continuava e os que já tinham parentes aqui conseguiam apoio ao chegar, pois

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eles lhes davam abrigo e os ajudavam a conseguir um emprego. Até mesmo os intelectuais libaneses chegavam ao Brasil praticamente sem nada, tendo de reiniciar a vida a partir do zero, atuando no comércio ambulante. A imigração libanesa teve um papel econômico e histórico, pois, além de se estabelecerem nos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, os imigrantes também se embrenhavam pelo interior, chegando aonde nem o correio chegava, levando notícias das grandes cidades. Foram muitas as razões para os libaneses virem para o Brasil: problemas religiosos, políticos, escassez de empregos e de alimentos e, até mesmo, o serviço militar obrigatório. Aquela era uma época difícil, de conflitos armados, e muitos fugiram por esse motivo. Apesar de a América do Norte ser o objetivo da maioria dos imigrantes libaneses, nos Estados Unidos havia um sistema de cotas que regulava a entrada de imigrantes e aqueles que não conseguiam ser admitidos seguiam viagem até o Brasil. Por outro lado, e ao contrário do que acontecia na Europa, onde o nosso país carregava o estigma de um local tropical, infestado de doenças e de animais perigosos, no Oriente havia a ideia de América como país de oportunidades e riquezas, englobando neste rótulo os Estados Unidos, o Brasil e a Argentina. De certo modo, os agentes de viagem contribuíram para a propagação desta imagem, pois muitas vezes diziam aos emigrantes que tudo era a mesma coisa, que não havia diferenças entre os três países, tudo era América. Muitos chegavam aos portos brasileiros pensando estar na “outra América”.

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A segunda fase da imigração foi marcada pelas consequências das duas grandes guerras mundiais, quando o Líbano atravessou uma das mais sombrias páginas da sua história e conheceu a fome, as doenças contagiosas, as disputas políticoreligiosas e o bloqueio marítimo. Nessa época, os emigrados tiveram um papel importante na vida de seus familiares, a quem enviavam ajuda. A partir do momento em que os primeiros que emigraram passaram a enviar dinheiro para os familiares, permitiu a estes comprar terras e construir casas adquirindo prestígio. Enviar algum membro da família para o exterior, a fim de que pudesse melhorar o nível da família passou a ser uma questão de status. A maioria dos que aqui chegavam pensava que seria por pouco tempo; logo, ganhariam dinheiro e retornariam ao Líbano. Mas a história não foi bem assim. Grande parte ficou no Brasil, mandando vir os parentes aos poucos. Muitas comunidades árabes começaram a surgir e alguns daqueles imigrantes que começaram como mascates se tornaram comerciantes. Diferentemente dos primeiros imigrantes, que não consideravam definitiva a sua vinda para o Brasil e mantinham ainda no pensamento a ideia do retorno, o libanês da segunda onda migratória não via a si mesmo como parte de um grupo de expatriados, mas como membro de uma coletividade que desejava ter um lugar que pudesse considerar como seu em terras brasileiras. Além do sucesso econômico, sírios e libaneses almejavam status social, fazer parte do conjunto dos nomes das grandes famílias brasileiras e, para tanto, julgavam ser necessário ter filhos “doutores”. A educação era a chave para a ascensão

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social da família. Dessa forma, a inserção desses imigrantes no contexto brasileiro, especificamente em Minas Gerais, não se deu apenas no comércio e na indústria, mas também na política, especialmente por intermédio de seus descendentes. Para os imigrantes sírios e libaneses daquela época, o casamento visava aumentar a coesão familiar e, em um sentido mais amplo, a coesão do grupo e havia sempre a tendência aos casamentos endogâmicos, isto é, com indivíduos da mesma etnia. As famílias desses grupos de imigrantes, cristãs ou muçulmanas, exerciam um importante papel de aprovação ou reprovação na escolha dos cônjuges. Se o rapaz ou a moça insistisse em querer casar com alguém de outra etnia, os pais, em geral, consentiam relutantemente, pois desejavam que o casamento fosse realizado dentro da colônia e, com certeza, exerciam pressão nesse sentido. Entre os muçulmanos, a pressão familiar era ainda maior. Para sírios e libaneses, homens e mulheres brasileiros não eram considerados "bons partidos". A endogamia era vista como valor fundamental de preservação dos valores étnicos da comunidade. Com o passar do tempo e a fixação dos imigrantes nas metrópoles, os casamentos mistos começaram a ser aceitos, muito mais no caso masculino, pois as mulheres ainda preferiam o casamento com homens da mesma origem. Havia um empenho grande, ao menos até a terceira geração, em preservar a língua natal, os costumes e os ritos religiosos, porém, a partir daí, os descendentes, brasileiros de nascimento, já apresentavam uma identidade híbrida, com uma tendência a ver a tradição como algo a ser

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esporadicamente lembrado, mas não mais como parte de seu cotidiano. Há quem pense que só os documentos podem ser levados em conta quando se estuda a imigração, mas você verá que a literatura também é uma importante fonte de informações. Este livro foi elaborado a partir de uma pesquisa feita com alunos como você. Nessa pesquisa, descobriu-se que uma boa parte dos alunos de ensino médio desconhecia essas obras que narravam a imigração. A história dos imigrantes será contada através de romances. Um deles, Nur na escuridão, foi escrito por um imigrante libanês: Salim Miguel. Outros dois, Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, foram escritos por um descendente de libaneses: Milton Hatoum. O último, Amrik, foi escrito por uma autora brasileira cearense, que fez uma intensa pesquisa histórica para construir o seu relato da imigração: Ana Miranda. Pronto para embarcar? Comecemos então a nossa viagem...

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II QUEM CONTA UM CONTO E AUMENTA UM PONTO? Para ara começar, precisamos conhecer os guias da nossa viagem: Salim Miguel, Milton Hatoum e Ana Miranda. Salim alim Miguel nasceu no Líbano, em 1924, e veio para o Brasil ainda criança, com os pais, dois irmãos e um tio. Tinha três anos de idade na época e, ao chegar ao Brasil, sua família percorreu muitos lugares até estabelecer-se se em Florianópolis. Florianópol A saga da família em nosso país é a matéria do romance Nur na escuridão.. Alguém poderia perguntar: mas como uma criança tão pequena poderia ter noção do dilema que é a mudança de país e a luta pela sobrevivência numa nova terra? Este é o nó da questão. Para entendê-lo, precisamos compreender a natureza da ficção quando ela se entrelaça à realidade. Por mais que tentemos nos recordar de nossa infância, o máximo que poderemos recuperar são imagens, situaçõess fragmentadas, alguns fatos mais mai marcantes, mas, dificilmente, teremos como recordar conversas, discussões, minúcias daquilo que já vivemos. A nossa memória é parcial e seletiva. Nossos pais e avós, por terem vivido as situações em uma idade mais avançada, vançada, têm como ativar a nossa memória a através dos seus relatos. relatos Assim ficamos sabendo das nossas manhas quando

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bebês; das nossas manias quando crianças; do que gostávamos; o que detestávamos e por aí afora. Enfim, as nossas memórias, como tudo o que nos cerca, é construída por meio do discurso. As lembranças dos nossos antepassados acabam por se tornar nossas, sem que as tenhamos vivido. Por outro lado, na impossibilidade de registrar exatamente os acontecimentos, muitos diálogos, gestos e atitudes são imaginados e, no momento em que são incorporados à narrativa, cristalizam-se nela, dando-lhe a aparência de verdade. É o que ocorre em Nur na escuridão. De fato, o romance é sobre a família do autor, os fatos narrados aconteceram, mas o próprio Salim afirma que o livro não é autobiográfico, no sentido de que não espelha fielmente os acontecimentos. Daí percebe-se o caráter criativo dos discursos, até mesmo daquele que comumente chamamos História. Depois de viver sua adolescência no município catarinense de Biguaçu, mudou-se para Florianópolis onde, nas décadas de 1940 e 50, integrou o movimento modernista nas artes catarinenses: o Grupo Sul. A carreira literária de Salim Miguel começou em 1951, quando publicou seu primeiro livro de contos: Velhice e outros contos; de lá para cá já escreveu mais de 30 livros e tornou-se um dos mais conhecidos escritores brasileiros da atualidade. Durante a ditadura, como tantos outros escritores brasileiros, foi perseguido e preso, experiência que conta no livro Primeiro de Abril: Narrativas da Cadeia. Em 1965, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde editou a revista Ficção e trabalhou para a Editora Bloch.

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Jornalista renomado com passagem por diversos jornais e revistas nacionais, dentre as quais a extinta Manchete,, Salim Miguel dirigiu também també a editora da Universidade Federal de Santa Catarina e a Fundação Cultural Franklin Cascaes. Salim escreveu contos, crônicas, romances, depoimentos e impressões de leitura, dos quais se destacam: A Morte do Tenente e Outras Mortes, Mortes A Voz Submersa, Nur na Escuridão, Escuridão A Vida Breve de Sezefredo das Neves,, poeta (indicado para o Prêmio Jabuti), Mare Nostrum e Jornada com Rupert. Nosso segundo guia, Milton Hatoum, é brasileiro, descendente de libaneses. A sua família mília esteve pela primeira vez no Brasil no início do século XX, quando seu avô foi para Xapuri, no Acre, retornando onze anos depois a Beirute. Suas histórias motivaram o pai de Hatoum que, durante a Segunda Guerra, também foi para o Acre, instalando-se, mais tarde, em Manaus como comerciante. Hatoum nasceu asceu em 1952, em Manaus, onde passou a infância e uma parte da juventude. A cidade já tinha, então, a mescla de imigrantes que vinha do interior para tornar-se se alvo de exclusão, como as índias ndias que serviam como empregadas da família Hatoum. Em 1967, mudou-se se para Brasília, onde estudou no Colégio de Aplicação da UnB. Morou durante a década de 1970 em São o Paulo, onde se diplomou em arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, trabalhou como jornalista cultural e foi professor universitário de História da Arquitetura. Em 1980, viajou como

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bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois passou três anos em Paris, onde estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III). Autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em dez línguas e publicada em catorze países. Foi professor de literatura francesa da Universidade Federal do Amazonas (1984-1999) e professor visitante da Universidade da California (Berkeley/1996). Foi também escritor residente na Yale University (New Haven/EUA), Stanford University e na Universidade da California (Berkeley). Sua estreia como autor trouxe-lhe sucesso imediato, pois, ao lançar, em 1989, o romance Relato de um certo Oriente, ganhou o prêmio Jabuti de melhor romance. Em 2000 publicou o romance Dois irmãos, que obteve o terceiro lugar no prêmio Jabuti, e em 2001 foi um dos finalistas do Prêmio Multicultural do Estadão, por conta da publicação do romance Dois Irmãos. Em 2005, seu terceiro romance, Cinzas do Norte, obteve cinco prêmios: Prêmio Portugal Telecom; Grande Prêmio da Crítica/APCA-2005; Prêmio Jabuti/2006 de Melhor romance; Prêmio Livro do Ano da CBL e o Prêmio BRAVO! de literatura. Em 2008, recebeu do Ministério da Cultura a Ordem do Mérito Cultural. Sua obra já foi traduzida em 12 línguas e publicada em 14 países. Desde 1998 mora em São Paulo, onde é colunista do Caderno 2 de O Estado de S. Paulo e do site Terra Magazine. Milton Hatoum sempre viveu uma realidade híbrida, pertencendo a dois mundos, o que provocou seu trânsito entre duas linguagens culturais. O

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próprio autor diz que é membro de uma cultura ocidental-árabe-amazônica, ao exemplificar o efeito do diálogo entre essas culturas. Pode-se verificar na obra de Hatoum não apenas as marcas desse diálogo, mas também a “conversa” que ele estabelece com autores que leu. A literatura é mediação, é um modo de ver e de estar no mundo. Assim, pode-se encontrar nos personagens que ele cria ecos de outros personagens criados por outros autores. Ao contrário de Salim Miguel, que escreveu diretamente sobre a imigração, Milton Hatoum prefere deixá-la como um pano de fundo nos seus romances, mesclando-a com outras histórias que vão sendo contadas. Por fim, o nosso último guia: a escritora Ana Miranda, que nasceu em Fortaleza, Ceará, e foi criada em Brasília, onde viveu até 1969. Ana é romancista, poeta, ex-atriz, desenhista, cronista e roteirista. A sua estreia literária foi em 1978, com o livro de poesia Anjos e demônios, mas o sucesso foi obtido mais tarde, em 1989, quando escreveu Boca do Inferno, uma biografia romanceada de Gregório de Matos, que foi traduzido para mais de 20 idiomas e lhe concedeu o prêmio Jabuti de revelação em 1990. Uma boa parte de suas obras resulta de pesquisas históricas exaustivas, que alimentam a sua criação literária, como A última quimera, de 1995, baseado na vida e na obra de Augusto dos Anjos, Dias e dias, sobre o poeta Gonçalves Dias, que lhe rendeu dois valiosos prêmios literários em 2003: O Jabuti e o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, e Amrik, sobre a imigração libanesa.

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A autora costuma dizer que trabalha com as lacunas da história, isto é, com aquilo que a história não registrou. Contemporaneamente, colabora com a revista Caros Amigos desde 1998 e publica suas crônicas no Correio Braziliense. Seu lançamento mais recente é Yuxin (2009). Conhecidos os guias, vamos às viagens!

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III UMA TERRA PARA CHAMAR DE SUA Nur na Escuridão consiste na saga de uma família de imigrantes árabes que emigra para o Brasil, na década de 1920, e depois se instala definitivamente em Santa Catarina. Elementos autobiográficos do autor se misturam à ficção, aspecto recorrente em suas obras. A história tem início em 1927, mais precisamente no cais do porto da Praça Mauá, no Rio de Janeiro. Nesse cenário são apresentados seis personagens: pai, mãe, tio, duas meninas e um menino, que chegam ao Brasil na esperança de uma vida melhor, porém sem muito dinheiro ou alguém para recebê-los. Sem saber a quem recorrer, sem falar uma palavra do idioma local, a família conta com a boa vontade de um motorista de táxi, com quem se comunica por gestos. Por estar muito escuro, para ler o endereço trazido pela família, o taxista risca um fósforo e diz “luz”: primeira palavra aprendida pelo chefe da família e reveladora de um mundo que a partir daquele momento se abriria para todos eles. Embora entrecortada pela autobiografia do pai, quem narra a história, desde a chegada à Praça Mauá, no Rio de Janeiro, é Salim, o filho mais velho, que, curiosamente, raramente refere-se a si mesmo pelo nome. Em seus trinta capítulos, o romance é construído como um mosaico identitário, que reúne

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as lembranças de Salim, bem como as histórias contadas pelos outros membros da família. Yussef, o pai, e Tamina, a mãe, eram ainda muito jovens quando, devido às dificuldades para subsistir em sua terra natal, decidiram emigrar. Esperançosos, optaram por ir para a América do Norte, acompanhados dos três filhos e de Hanna, irmão de Tamina. A viagem seria perigosa, uma vez que teriam de entrar nos Estados Unidos atravessando a fronteira mexicana, ajudados por um coyote. No entanto, devido a uma inflamação nos olhos de Yussef, o visto para o México lhes foi negado, restando-lhes como opção o Brasil, onde vivia uma irmã de Yussef. No romance, as viagens são duas: uma é geográfica e recupera a trajetória da família, desde o Líbano até Florianópolis; a outra é uma viagem interior, pelos meandros da memória. Assim, o passado da família é reconstruído: São conversas demoradas, entremeadas de vaguidades, intercalando árabe e português, ou nem um idioma nem outro, entendem-se num linguajar macarrônico, cada qual puxando pela memória, todos rodeando o pai, relatando pequenos incidentes ocorridos na viagem, zombando agora de momentos dramáticos (ou rindo para ocultar a emoção), explicando os primeiros tempos, a difícil adaptação à nova terra, maksuna da qual nada sabiam, de hábitos e costumes tão diferentes, ora ainda estão no país de origem, relutam viajar, ora é um episódio pitoresco sucedido na cidade onde moram, onde moraram, onde pensaram morar, e que sempre lhes relembra

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a mascateagem, quem escapou dela?(MIGUEL, 2008, p.21)

À narração do romance, enfocando os primeiros dias dos emigrados no Rio, somam-se passagens da autobiografia intitulada Minha vida, cuja autoria pertence ao ser histórico que inspira a personagem Yussef/José, o pai, idoso e viúvo, que se entrega às lembranças, impregnado da tradição do narrar de seu povo, acrescentando às histórias familiares já conhecidas o sabor do inédito. Fora por insistência de um conterrâneo que anotara o endereço do patrício que os hospedara na chegada ao Brasil e, graças à hospitalidade que os libaneses ofereciam aos seus compatriotas, escapara de ficar ao relento com a mulher e os filhos em uma cidade desconhecida de um país no qual jamais pensara em viver. Tamina fora a mentora da ideia de deixar o Líbano. Yussef era um homem de gênio forte, o que o impedia de permanecer em um emprego por muito tempo. Por outro lado, seus familiares, de ambos os lados, foram contra o casamento, o que inviabilizava a possibilidade de contar com alguma ajuda da parte deles. Aflita, porém avessa a pedir auxílio aos pais, Tamina mantivera correspondência com irmãos que viviam nos Estados Unidos e deles recebera a promessa de apoio, caso decidisse emigrar. A sutileza de Tamina revela um dos traços da mulher árabe, que, mesmo condicionada a um papel social secundário, mostra-se firme e capaz de convencer o marido a acatar suas opiniões. Essa característica também é descrita em outras obras que abordam a imigração, como Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, de Milton Hatoum.

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Primeiramente, encontram abrigo na casa da irmã de Yussef, Sada, que vive em Magé. Yussef inicia-se no ofício de mascate, destino certo dos sírios e libaneses ao chegar ao Brasil e memória sempre presente na mente do patriarca da família. A palavra mascate, por exemplo, tem um poder mágico, faz com que recue até a chegada a Magé. Esclarece antes: não importa o que a pessoa tenha sido ou queira ser, pouco importam sonhos, desejos, aspirações, fantasias. Ao chegar ao Brasil, libaneses e sírios, árabes em geral, começam mascateando, trouxas ao ombro, sorri e acrescenta, só bem mais tarde irão tomar conhecimento do outro significado da palavra trouxa. Se estão se dando bem e o mascatear dá certo, vão deixar de ser trouxas, não demora adquirem um cavalo, uma carrocinha, depois podem ter uma vendola, um armazém, loja de tecidos, quem sabe uma fabriqueta; bem poucos enriquecem, mas as novas gerações acabam por esquecer os sacrifícios dos pais, dos que não tiveram nasib, some a voz dos perdedores, dos tarragada que não deram certo, dos fakir, os pobres (MIGUEL, 2008, p.96).

Em sua lembrança, faz questão de registrar os sacrifícios e os desafios enfrentados, que sempre são esquecidos pelas gerações seguintes. Aos filhos pouco interessa essa filosofia, essa súmula da imigração, esse bosquejo que pode englobar uma história da grande maioria; porfiavam em perguntar mais da vida do pai, da mãe, dos problemas de adaptação à nova terra, da tarefa da mãe na retaguarda, queriam que o pai

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contasse a saga pessoal, como foram os primeiros dias em Magé, se custara a aprender os rudimentos do português para se fazer entendido nas saídas para o trabalho, quanto tempo levara até a primeira sortida mascateando, o porquê da brusca interrupção e mudança para Santa Catarina (MIGUEL, 2008, p.98). O romance também se reporta à facilidade de Yussef para aprender o português devido aos conhecimentos que tinha do francês, bem como a utilização da linguagem dos gestos numa tentativa de preencher a lacuna da palavra. As dificuldades em mascatear levam a família para Santa Catarina, onde moram alguns primos de Yussef, que se mostram predispostos a ajudá-los. A saga da família em São Pedro de Alcântara, Biguaçu e, novamente, Florianópolis, é narrada a partir de um mosaico de lembranças: do pai, em suas memórias escritas em árabe, que caberia aos filhos mandar traduzir mais tarde; do filho, a partir da coleta de impressões das muitas pessoas que acompanharam a trajetória e a integração da família, que, de certa forma, as homenageia em um capítulo intitulado “Perfis”, e do resultado de uma transfiguração causada pelo tempo e pela imaginação. Aos três filhos nascidos no Líbano— Salim, Fádua e Hend—, somam-se mais quatro — Jorge, Fauzi, Sayde e Samir—, concretizando a sina de Tamina: mudar de cidade com filho ainda pequeno. As moradias são sempre no estilo próprio dos imigrantes libaneses: um sobrado com uma venda no térreo, que Tamina, apesar dos seus múltiplos afazeres como mãe de sete filhos, ainda tem de gerenciar quando Yussef viaja, mascateando.

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Em todas as mudanças, o mesmo: o pai abre a vendola de secos e molhados e mascateia: faz ambas as coisas ao mesmo tempo. A mãe cuida da casa, cuida dos filhos, cuida de ajudar o pai no miúdo comércio, cuida de animá-lo, se desdobra quando o pai, tendo comprado uma carrocinha e o cavalo Sultão, se demora mercadejando pelo interior do município (MIGUEL, 2008, p.140). Com suavidade e firmeza, Tamina consola o marido quando ocorrem acontecimentos adversos, como quando tiveram de deixar São Pedro de Alcântara devido à inveja dos comerciantes locais, que contavam com o padre para aumentar a animosidade dos habitantes contra a família de Yussef. Logo os fregueses sumiam intimidados, o padre recriminava-os, por que, em lugar de procurarem as casas de comércio dos conterrâneos, procuravam a do gringo? Pela primeira vez, sim, o pai tomava conhecimento desse termo, era assim tratado. Não “turco”– que já o deixava indignado, embora houvesse uma explicação (...) havia uma certa lógica no “turco”, a Turquia dominara seu país durante séculos. Agora, por que o gringo, para o qual não encontrava qualquer explicação? (MIGUEL, 2008, p.119) A Tamina também cabe mediar as relações, muitas vezes conturbadas, entre pai e filhos. Yussef e o filho mais velho, Salim, não se entendiam quanto ao trabalho no comércio da família, e as peraltices das crianças nem sempre eram vistas com bons olhos pelo pai, cujo gênio intempestivo não mudara.

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Entrechoques não demoram a ocorrer, em especial com o primogênito, que o pai deseja ver na atividade comercial, embora ele mesmo a deteste; a mãe procura intervir para apagar o incêndio. Não basta. Discussões e desentendimentos recrudescem; os filhos saem em busca de alternativas, mesmo porque, ao contrário do imaginado, o início é por igual difícil; com a guerra se prolongando, o futuro nada tem de promissor. (MIGUEL, 2008, p. 155) Um episódio que corrobora o fato de que a concepção ampla de família se modifica com a imigração é o que envolve a figura do avô no romance. As crianças, inconformadas por não terem um avô, a exemplo dos colegas de escola, decidem inventar um. Apesar de a mãe lhes dizer que seus avós estavam longe, no Líbano, eles não se conformavam, passando a inventá-los, recriando-os continuamente, à medida que cresciam.

Numa elaboração minuciosa, fundiam avós de amigos com figuras entrevistas em jornais, em revistas, em álbuns, em livros ilustrados, adaptações que não pudessem ser identificadas. Insatisfeitos com a colagem, que não se corporificava nem para eles mesmos, ampliavam a fantasia, agora eram personagens adaptadas de histórias que pai e mãe contavam (MIGUEL, 2008, p. 145). Yussef, o patriarca da família, é descrito no romance como um exímio contador de histórias, herdeiro concreto de Sherazade; homem que

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gostava de transmitir ensinamentos através de fábulas, tradição milenar de sua gente; homem que, embora decidido a ficar no Brasil para sempre, guardava na memória um Líbano que não era exatamente aquele dos seus tempos de criança e adolescente, mas um Líbano fabuloso, tirado de livros, das narrativas orais, e transmitia aos filhos as reminiscências de sua memória. O próprio romance é construído de forma a se acomodar ao tempo da memória, que é acronológica; como a memória ele se “esgarça, flutua, se decompõe, se compacta” (MIGUEL, 2008, p.205); seus fios se atam e desatam, em uma tessitura que não corresponde sempre à memória vivida, e, sim, à memória de outrem que se incorpora reconstituída. Não importa: o Líbano que o pai tem dentro é o que conta, e é desse que lhe interessa falar, das macieiras em flor, das tâmaras incomparáveis, dos figos de doçura inigualável, sumarentos ao ponto do caldo escorrer pelos lábios, da azeitona, do azeite de oliva, da coalhada e do queijo de cabra, das escarpas onde os cabritos se escondem, dos cedros do Líbano, tão altos, tão grossos e rugosos, desafio irresistível, a arriscada subida, a descida impossível, o salto, a queda nas pedras, a fratura no pé, que nunca cicatriza, marca indelével...(MIGUEL,2008, p.187).

O capítulo 27, intitulado “Fios”, discorre sobre a fragilidade e complexidade da memória, ao mesmo tempo em que demonstra o papel da literatura na reconstituição da memória étnica, que é o lócus de inscrição de memórias que vêm da experiência cultural e vivencial dos sujeitos, constituindo-se

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desde seu lugar social; dos contextos de seu mundo; da vida e das redes de relações que nele se estabelecem; que precisam ser pensados diacronicamente. O romance termina com a narrativa das muitas mortes que se abatem sobre a família: a do irmão mais jovem, Samir, de complicações advindas de uma anestesia mal aplicada; a do tio Hanna; a de Tamina, que, inconformada com a perda do filho, pouco lhe sobrevive; a da irmã Fádua, que falece tão silenciosamente quanto vivera; e a do patriarca, que deixa este mundo tranquilamente, saudoso daquela que o deixara órfão do seu amor. As últimas palavras do pai ao filho rebelde reportam-se ao fato de que não poderia ficar para semente; as sementes deveriam ser as lembranças, que, decerto, impulsionam o narrador à tradução da autobiografia e à escritura do romance. A autobiografia, no texto, documenta a consciência familiar e ancestral e é orientada para a hereditariedade. Yussef morre na única moradia que conseguiu comprar, ainda hipotecada, e de que Tamina mal pudera usufruir. A tradição daquela família de imigrantes, que costumava reunir-se aos sábados ou domingos para consumir comida árabe e conversar, permanece impressa na memória dos filhos, ainda que o Líbano que o pai tinha dentro de si fosse tão distante do Líbano real.

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ESTUDO DIRIGIDO 1- Baseie-se nas informações dadas no capítulo I e preencha o quadro abaixo: Imigração libanesa Ondas migratórias

Período

Motivo

Objetivo

1ª. 2ª. 3ª. 2- A qual onda migratória a história contada em Nur na escuridão se relaciona? 3- A palavra Nur é de origem árabe e significa luz, liberdade e Alá (Deus). No título da obra de Salim Miguel as palavras nur (luz) e escuridão constituem uma figura de linguagem. Identifique essa figura de linguagem e explique o sentido figurado da palavra escuridão, considerando o contexto da obra. (Vestibular UDESC-2005) 4-Assinale as opções corretas: A- Ao escrever Nur na escuridão, Salim Miguel consegue imprimir heroicidade à trajetória de uma família comum de imigrantes libaneses. O caráter heróico da saga desses imigrantes resulta, basicamente, do a) estilo retórico e grandiloquente do romance. b) olhar do narrador que, ainda menino, migrou com a família para o Brasil.

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c) caráter destemido e feitos extraordinários dos integrantes da família. d) desprezo pelos aspectos líricos ou sentimentais implicados na história. B- Yussef reage negativamente quando o chamam de “gringo” por que: a) Ele não conseguia compreender a associação da palavra ao fato de ser uma etnia diferente. b) Ele preferia ser chamado de turco. c) Estava acostumado a ser tratado como um igual. d) Sua família era de origem síria.

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IV ENTRE ORIENTE E OCIDENTE Como Milton Hatoum frequentemente menciona em suas entrevistas, Relato de um certo Oriente contém muito da sua memória pessoal, sem, no entanto, ser autobiográfico. Essa memória, perceptível na sua narrativa, é constituída de fragmentos de histórias que colaboram para a construção de um texto que é ficcional, mas que, também, incorpora dados histórico-sociais. Na construção da memória das personagens de seu romance, Hatoum cria um elo entre vida e obra, resgatando histórias e depoimentos de familiares e vizinhos e imagens da Manaus de sua infância. O romance é constituído de vários pequenos relatos, distribuídos em oito capítulos, que, por sua vez, estão inseridos em um relato mais amplo, enunciado por uma narradora anônima, que retorna à casa da mulher que a criou em busca do passado e das suas memórias. Cada um desses relatos relaciona-se ao anterior ou ao seguinte, fornecendo informações, elucidando situações e acrescentando fatos. Passaram-se vinte anos e a narradora, recém-saída de uma casa de repouso, chega a Manaus com a intenção de reencontrar a mãe adotiva, Emilie, que morre antes do encontro. Assim, ela decide escrever uma carta ao irmão, que se encontra em Barcelona, a fim de comunicar-lhe o

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ocorrido. Dezenas de cadernos e inúmeras fitas registram suas impressões pessoais e as declarações das pessoas reencontradas nesse seu regresso ao espaço familiar. Com o prosseguir da escrita, a carta se transforma no inventário de suas memórias. A forma de narrar escolhida por Hatoum se reporta à tradição oral dos narradores orientais, pois uma narrativa evoca outra sucessivamente, como ocorre, por exemplo, nas histórias da obra Mil e uma noites. Hatoum cresceu ouvindo estórias do seu avô e de vizinhos árabes: relatos de viagens, de imigrantes, anedotas, como ele mesmo afirma na entrevista a seguir: Além da religião, da língua e dos costumes, a cultura do Outro estava delineando-se por um outro caminho, talvez o mais fecundo para mim: o da narração oral. [...] Por um lado, alguns parentes mais velhos que pertenciam a essa família de comerciantesviajantes eram, na verdade, narradores em trânsito. Contavam histórias que diziam respeito à experiência recente de suas viagens aos povoados mais longínquos do Amazonas, lugares sem nome, espalhados no labirinto fluvial. Nas pausas do comércio ambulante, exercitavam a arte narrativa. Esses orientais, rudes ou letrados, narravam também episódios do passado, ocorridos em diversos lugares do Oriente Médio, antes da longa travessia para o hemisfério sul. Por outro lado, os amazonenses que haviam migrado para a capital, traziam no imaginário as lendas e os mitos indígenas. Na Pensão Fenícia, as vozes desses nativos faziam contraponto às dos imigrantes

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orientais: vozes dissonantes, que narravam histórias muito diferentes, [...] Para o ouvinte, aquelas histórias narradas assumiam um caráter ao mesmo tempo familiar e estranho. Aqueles mundos, reais ou fictícios, passaram a fazer parte da minha vida1.

Assim, a escrita de Relato de um certo Oriente se reporta aos textos da tradição árabe. A carta é escrita em um tom dialógico e nos fragmentos de lembranças que ela registra é possível perceber as vozes do filho mais velho de Emilie, Hakim; do alemão Dorner, amigo da família e fotógrafo; do marido de Emilie, que, apesar de morto, faz-se evocar através da memória de Dorner, e Hindié Conceição, amiga de Emilie. Portanto, a memória integra-se à própria arquitetura do texto, sendo percebida como componente estrutural. Propositalmente, não há indicação das vozes narrativas, cabendo ao leitor descobrir de quem são os relatos. Hatoum explica assim a estrutura do romance: Com relação ao Relato, percebi que causou, talvez, para alguns leitores, uma certa estranheza, a estrutura de encaixes em que está vazado: vozes narrativas que se alternam...Mas, se a própria memória também é desse modo... O tempo narrativo, no livro, é um tempo fragmentário, que reproduz, de certa forma, a estrutura de

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Entrevista a Milton Hatoum, Collatio 6 – Universidad Autonoma de Madrid/Universidade de S. Paulo, 2001. Disponível em: <http://www.hottopos.com/>.

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funcionamento da memória: essa espécie de vertiginoso vaivém no tempo e no espaço. [...] Ainda quanto a aspectos estruturais, devo dizer que pensei muito na estrutura das Mil e Uma Noites; pensei numa narradora, numa personagem feminina que contasse essa história...E isso, por várias razões - por razões de ordem metalinguística, a referência a Sherazade; e também pelo fato de a mulher na família árabe ser submissa (aparentemente...), mas, ao mesmo tempo, ser a detentora do segredo, de certos segredos da família.....2 Ao juntar as informações fornecidas pelas personagens, o leitor descobre que a narradora e seu irmão foram adotados por Emile e seu marido, imigrantes libaneses radicados em Manaus. Apesar das constantes afirmativas de que não havia diferença entre eles e os outros filhos biológicos do casal, a narradora demonstra ter sempre experimentado a sensação de ser uma estranha na família. Embora não haja nenhuma referência explícita, há uma vaga possibilidade de que sejam a narradora e seu irmão sejam netos de Emilie, pois, além de Hakim e Samara Délia, ela é mãe de outros rapazes, cujo comportamento com as mulheres é alvo de duras críticas do pai. O fato é que a mãe biológica da narradora os entregou à Emilie quando eram ainda crianças, muito embora pareça ter uma

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Entrevista a Milton Hatoum, Collatio 6 – Universidad Autonoma de Madrid/Universidade de S. Paulo, 2001. Disponível em: <http://www.hottopos.com/>.

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condição financeira estável o suficiente para manter a filha em uma casa de repouso. Por estar, ao mesmo tempo, dentro e fora do grupamento social representado pelos imigrantes do romance, a narradora consegue expor com clareza as relações entre as personagens da história. A narrativa é fruto de um cruzamento ou encontro do Oriente com o Ocidente – ou de “um certo” Oriente com “um certo” Ocidente, como sugere o título –, mas constitui, principalmente, um encontro do passado com o presente. O Oriente de Hatoum é algo particular, uma cultura híbrida brasileira, na cidade de Manaus, mais precisamente, em uma casa e uma loja – chamada A Parisiense. Emilie deixou o Líbano ainda jovem e, mesmo estando adaptada ao novo país, parece estar sempre dividida entre o Oriente de sua infância e o Amazonas do presente. Em Manaus, ela encerra os fragmentos do passado em um armário pesado, cuja chave seu filho Hakim descobre um dia, desvendando-lhe os segredos. Esse passado oculto remete à certeza de um retorno impossível, que acaba por fortalecer os laços com a nova terra. O romance a descreve como uma imigrante que ultrapassou o choque entre culturas; fato que pode ser observado a partir de determinados aspectos comportamentais, como, por exemplo: a sua facilidade para relacionar-se com indivíduos de etnias diversas e a sua adaptação aos costumes da região amazônica; sem, no entanto, abandonar os próprios costumes, a tradição, que ela mantinha vivos em seus guardados, nas baforadas de narguilé, nos goles de áraque, nos pratos típicos de sua terra, nos jogos de gamão e nas reuniões que

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promovia em casa, em que a conversa era exclusivamente em árabe. Ao longo do livro, há referências ao imaginário ocidental sobre o Oriente, como suas iguarias típicas, a reza voltada para Meca, o aprendizado do árabe, referências que serão mescladas à descrição e à narrativa sobre o povo, os costumes e a fauna da Amazônia. Emilie não esconde a sua predileção por Hakim, a quem ensina o árabe. A família tem um papel preponderante na transmissão da memória étnica e a forma de perpetuação dessa memória passa pela manutenção da tradição e do idioma. Ao ser eleito pela mãe como herdeiro não apenas do idioma, mas de toda a tradição de seu povo, Hakim se vê em uma encruzilhada, pois, sendo membro de uma terceira geração de imigrantes, a cultura libanesa chega até ele por intermédio de sua mãe; sem que haja uma experiência direta como a que ele tem em relação à cultura brasileira. Na realidade, Hakim cresce com a sensação de que pertence a dois mundos diferentes, marcados pelo português e pelo árabe. Ele desenvolve uma identidade híbrida, formada a partir de duas outras que são parcialmente preservadas e misturadas, como “as águas de dois rios tempestuosos que se misturam para gerar um terceiro.” (HATOUM, 2006, p.50). A percepção do personagem acerca da própria identidade é observável na passagem a seguir, que se reporta à dificuldade de identificação que experimentou na infância: Desde pequeno convivi com um idioma na escola e nas ruas da cidade, e com outro na Parisiense, e às vezes tinha a impressão de viver vidas distintas.

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Sabia que tinha sido eleito o interlocutor número um entre os filhos de Emilie; por ter vindo ao mundo antes que os outros? Por encontrar-me ainda muito próximo às suas lembranças, ao seu mundo ancestral onde tudo ou quase tudo girava ao redor de Trípoli, das montanhas, dos cedros, das figueiras e parreiras, dos carneiros, Junieh e Ebrin. (HATOUM, 2006, p.52). A impressão causada pelo idioma árabe é relembrada pela personagem: “Já estava me habituando àquela fala estranha, mas por algum tempo pensei tratar-se de uma linguagem só falada pelos mais idosos; ou seja, pensava que os adultos não falavam como as crianças” (HATOUM, 2006, p.49). A fala da personagem é de certo modo uma projeção da experiência de Hatoum, como é possível observar na seguinte entrevista: ”Nos primeiros anos da minha infância, eu escutava os mais velhos conversarem em árabe, a ponto de pensar que esta língua era falada pelos adultos e o português pelas crianças”.3 A posição da personagem diante de certos costumes de seus pais também é reveladora de sua identidade híbrida. Quando ele assiste, escondido, às reuniões que seus pais promovem às sextasfeiras, vê como “exótica” a prática milenar de comer o fígado cru de carneiro. O seu contato com a cultura brasileira faz com que, aos seus olhos de menino, os pais e seus convidados pareçam bárbaros. Há muitos modos de um imigrante se relacionar com a cultura da nova terra: uns se 3

Entrevista a Milton Hatoum, Collatio 6 – Universidad Autonoma de Madrid/Universidade de S. Paulo, 2001. Disponível em: <http://www.hottopos.com/>.

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integram com facilidade, adotando hábitos e costumes locais; outros resistem ao ponto de se recusarem a falar outro idioma que não o de sua terra natal; outros mais, notadamente os membros de uma segunda geração de imigrantes, apresentam uma identidade híbrida, em que as duas culturas apresentam-se misturadas, e há até mesmo os que abandonam as próprias origens, abraçando completamente a nova cultura. Em Relato de um certo Oriente, Emilie é um exemplo de integração, enquanto que Hakim reflete a mistura cultural, a transculturação. No entanto, há personagens no romance que se mostram resistentes à integração. O pai de Hakim, por exemplo, cuja caracterização se dá através da memória de outras personagens, é descrito como um homem silencioso, de voz austera, extremamente religioso e praticante fiel de sua fé muçulmana. Sua atitude para com os demais mostra a sua dificuldade em adaptar-se à nova terra, aos novos costumes, buscando sempre um certo distanciamento, uma separação. No romance, há a sugestão de que Emilie, ao contrário de seu esposo, adaptara-se com mais facilidade por compartilhar com os brasileiros a religião cristã. A negociação entre culturas nem sempre é bem-sucedida. A falta de ancoragem e o sentimento de inadequação levam Emir, o irmão de Emilie, ao suicídio. Visto por Dorner como um hábil narrador, Emir “não era como os outros imigrantes, não se embrenhava pelo interior [...] não havia nele a sanha e a determinação dos que desembarcam jovens e pobres para no fim de uma vida ostentarem um império” (p. 62). A inadequação é reforçada pelo sonho de Dorner após a morte de Emir, no qual

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entabula diálogos indecifráveis com o amigo, cada um falando em seu próprio idioma. Para entender melhor esta questão, precisamos voltar um pouco no tempo da narrativa. Os pais de Emilie, Fadel e Samira, deixaram os filhos em Trípoli, sob a tutela de parentes e aventuraram-se em uma terra que seria o Amazonas. Ela não suportou a separação e, sem que os irmãos, Emílio e Emir, soubessem, confinouse no convento de Ebrin, de onde só saiu quando Emir, em um ato extremo, ameaçou matar-se com um revólver diante dela e da Irmã Superiora. Quando, finalmente, os irmãos vieram para o Brasil, um outro incidente fez com que Emilie e Emir se distanciassem ainda mais: o rapaz apaixonou-se por uma mulher em Marselha, o porto de onde zarpavam os navios para as Américas. Pretendia fugir com ela, mas Emilie, desconfiada de seus sumiços, pediu a Emílio que prevenisse a polícia francesa. Descoberto, Emir foi conduzido à força ao navio e nunca perdoou a irmã por isso. A mágoa de Emir uniu-se à sua capacidade de adaptar-se à nova terra, culminando com o seu suicídio. Por essa época, o futuro marido de Emilie, não nomeado no romance, já havia chegado a Manaus, vindo em busca de sucesso graças à motivação inspirada pelas cartas do tio Hanna. No entanto, ao chegar, descobre que o tio já morrera e que teria de aprender sozinho a sobreviver naquela terra desconhecida. Morei alguns anos no povoado, conheci os rios mais adustos e logo aprendi que o comércio, além das quatro operações elementares, exige malícia,

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destemor e o descaso (não o desrespeito) a certos preceitos do Alcorão. (HATOUM, 2006, p.31) Emilie casou-se com ele pouco depois da morte de Emir. Apesar da diferença religiosa—ela era cristã e ele, muçulmano—, entenderam-se e acordaram que caberia aos filhos escolher uma das duas religiões ou mesmo nenhuma. A vida da família girava em torno da atividade comercial na Parisiense. Dos filhos de Emilie, Hakim é o que demonstra ter mais respeito pelo ser humano e, assim como o pai, que se decepcionara com a proteção que Emilie dava aos outros filhos, ele observa que ela humilha os empregados, tratando-os com discriminação. Hakim revolta-se ao ver seus irmãos abusarem das empregadas, abandonando-as, em seguida, com filhos nos braços, e compreende a decepção do pai, que, em discussão com Emilie, afirma não ter cruzado o oceano para nutrir os prazeres de seres parasitas, incapazes de respeitar o próximo e a Deus. Para ele, parece ser incompreensível que, sendo estrangeira e tendo experimentado a sensação de ser o Outro em terra estranha, Emilie não tenha um olhar generoso com os menos afortunados. A aparente familiaridade entre Emilie e Anastácia nunca foi revertida em um salário ou em um tratamento justo. Paradoxalmente, a relação entre colonizador e colonizado é reproduzida em uma família de imigrantes, resultando em “uma forma estranha de escravidão”, em que “a humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à família do senhor são as correntes” (p.88).

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Assim, o romance aborda um aspecto importante das relações sociais. Embora configurada como uma cidade em que há a confluência de culturas e etnias diversas, a Manaus descrita por Hatoum contém os vestígios da colonização, da prática da exclusão. Quando Hakim parte, Emilie fica desolada, pois ele havia sido eleito o filho a quem legaria a sua herança cultural. Por vinte e cinco anos, eles trocam cartas em que não há sequer uma linha escrita; apenas fotografias. É através delas que ele fica sabendo da morte do pai. Soube da morte do meu pai ao receber uma fotografia em que ela estava sentada na cadeira de balanço ao lado da poltrona coberta por um lençol branco, onde meu pai costumava sentar-se ao lado dela nas manhãs dos domingos e feriados. No dedo da mão esquerda vi dois anéis de ouro, e os olhos negros brilhavam por trás do véu de tule que escondia a metade do rosto. Foi a penúltima fotografia criada por ela, há uns oito anos. (HATOUM, 2005, p.104) Hakim retorna a casa após a morte de Emilie e, junto aos demais narradores, colabora para a montagem do quebra-cabeça que é a narrativa do romance. Ao criar personagens em um movimento contínuo de aproximação e distanciamento dos referentes culturais, Hatoum não evoca apenas o espaço do encontro, da definição da identidade, mas também o da perda. A busca da identidade é a de um rosto que, no espelho do passado revela-se através de múltiplas faces.

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O romance torna-se, assim, em uma tentativa da narradora de encontrar algo que lhe dê o sentido do pertencimento. Em sua dificuldade para lidar com a memória, ela apela para a de outras pessoas, reunindo em uma carta aquelas lembranças negociadas, complementares. Com estas palavras, ela resume a sua tentativa: “Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção sequestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida”. ESTUDO DIRIGIDO 1- Refletindo sobre o processo de escrita da obra Relato de um certo Oriente, o narrador afirma: “Quantas vezes recomecei a ordenação de episódios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo início, ou no vaivém vertiginoso de capítulos entrelaçados, formados de páginas e páginas numeradas de forma caótica. Também me deparei com um outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigante e frágil sobre as outras vozes.” (p. 165-166) Considerando a estrutura do relato, comente a técnica de construção da narrativa e a função do narrador geral, apresentado nesse trecho. Processo Seletivo 2/2005 – Unimontes

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2- Marque a resposta correta: A- "A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus habitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali, nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de árvores; naquele lugar nebuloso e desconhecido para quase todos os brasileiros, um tio meu, Hanna, combateu pelo Brasão da República Brasileira." No trecho de Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, a referência à "fronteira" associa-se ao(à) a) perspectiva de considerar o Oriente um espaço bem-delimitado geograficamente. b) preocupação de caráter ecológico, denunciada pela precária marcação de limites. c) confinamento de imigrantes, particularmente síriolibaneses, praticado pelo Brasil naquela época. d) percepção de um espaço flutuante com limites imprecisos. e) legislação de que os limites são demarcados pelos próprios habitantes, no caso, indígenas e seringueiros. 3- O texto aborda diversas formas de relacionamento do imigrante com a nova terra. Coloque em cada coluna o nome de um personagem que a exemplifique e justifique as suas respostas: 1 Integração Personagem

2 Resistência

3 Rejeição

4 Hibridismo

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4- De que modo a opção religiosa afeta o processo de integração do imigrante em Relato de um certo Oriente? 5- No romance, Hakim é escolhido pela mãe, Emilie, como o herdeiro da tradição. Ele é o único filho a quem ela ensina o seu idioma natal, o árabe. De que modo essa escolha se relaciona com a seguinte passagem: “as águas de dois rios tempestuosos que se misturam para gerar um terceiro”?

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V UMA HISTÓRIA DE AMOR E ÓDIO Dois irmãos gira em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive em Manaus. Ao contrário de Relato de um certo Oriente, em que a questão da imigração está associada à narrativa, neste segundo romance, Milton Hatoum traz para o primeiro plano uma história em que o amor e o ódio se misturam em uma família estremecida em seus relacionamentos interpessoais, devido a ciúmes doentios e estranhas paixões, tendo por pano de fundo uma cidade que se revela em decadência, após o período de ápice econômico e cultural do início do século XX. A história dos gêmeos estabelece laços intertextuais com o romance Esáu e Jacó, de Machado de Assis, e, por conseguinte, com o texto bíblico. Filhos de Halim e Zana, os dois rapazes são gêmeos idênticos, embora opostos no temperamento e atitudes. Nael, o narrador, cujo nome é revelado apenas no nono capítulo do romance, é filho de Domingas, uma índia que trabalhava como empregada na casa. Ela e o menino viviam no quarto dos fundos, de onde ele testemunhou muitos acontecimentos do romance.

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Vinte anos após a morte da mãe, quando quase todos os membros da família já estão mortos, ele decide reconstituir em um relato a memória de um passado reinventado a partir do jogo entre lembranças e esquecimentos. Nael junta os estilhaços de fatos que presenciou, de relatos de histórias que ouviu e guardou para escrever sobre duas gerações de membros da família que o acolhera. Desta forma, faz das múltiplas vozes uma única, para compor sua narrativa e reconstruir sua própria identidade, recolhido ao quartinho no fundo do quintal, sufocado pela dúvida e o desejo de saber quem foi seu pai. Embora não reconhecido pela família de libaneses, Nael é o filho bastardo de um dos gêmeos. Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde eu tinha vindo. A origem, as origens. Meu passado, de alguma forma, palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia [...] Anos depois, desconfiei: um dos gêmeos era meu pai. (HATOUM, 2006, p.54). A suposição do rapaz se confirma quando Domingas, finalmente, lhe diz a verdade: “Quando tu nasceste‟, ela disse, “seu Halim me ajudou, não quis me tirar da casa... Me prometeu que ias estudar. Tu eras neto dele, não ia te deixar na rua. Ele foi ao teu batismo, só ele me acompanhou. E ainda me pediu para escolher teu nome. Nael, ele me disse, o nome do pai dele. Eu achava um nome estranho, mas ele queria muito, eu deixei...” (HATOUM, 2006, p.180) À medida que a narrativa avança, alguns dos segredos que constituem a força motriz do romance

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vão sendo revelados, muito embora a identidade do pai de Nael mantenha-se ambígua até o final. Ambíguo também é o seu papel na casa, pois embora viva sobre o mesmo teto da família, não compartilha os momentos íntimos, assumindo uma posição periférica. Podia frequentar o interior da casa, sentar no sofá cinzento e nas cadeiras de palha da sala. Era raro eu sentar à mesa com os donos da casa, mas podia comer a comida deles, beber tudo, eles não se importavam. Quando não estava na escola, trabalhava em casa, ajudava na faxina, limpava o quintal, ensacava as folhas secas e consertava a cerca dos fundos. (HATOUM, 2006, p.60). É dessa posição, ao mesmo tempo dentro e fora do campo de ação, que ele narra as brigas entre Yaqub e Omar. As disputas entre os dois irmãos, geradas a princípio pela preferência materna por Omar e agravadas pela disputa por uma mesma mulher culminam em uma briga violenta e a decisão paterna de que um deles deverá afastar-se. Yaqub é o escolhido, porém o período de afastamento em uma aldeia remota do Líbano agrava ainda mais o ódio entre os irmãos. Por trás das disputas entre os irmãos Omar e Yaqub, afloram práticas culturais, crenças, hábitos alimentares, jogos afetivos e relações comerciais que correspondem à representação literária do contexto da imigração. O imigrante é um sujeito dividido, sofre de uma espécie de dualidade do lar, da pátria. Nesse sentido, os dois irmãos funcionam como uma metáfora dessa dualidade. Um se identificando mais com o Brasil e o outro se sentindo estrangeiro,

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diferente, muitas vezes sendo referido apenas como “o outro”. Halim e Zana tiveram o seu primeiro contato no Brasil, no restaurante Biblos que o pai de Zana inaugurara por volta 1914. A princípio, apenas trocava olhares com ela, depois lhe recitou versos em árabe, os gazais, para, só então tomar coragem e pedi-la em casamento. Embora professassem religiões diferentes, isso não se tornou empecilho para o seu casamento. Assim como Tamina, Zana exerce forte influência sobre o marido e os filhos. Tempos depois, entendi porque Zana deixava Halim falar sobre qualquer assunto. Ela esperava, a cabeça meio inclinada, o rosto sereno, e então falava, dona de si, uma só vez, palavras em cascata, com a confiança de uma cartomante. Foi assim desde os quinze anos. Era possuída por uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando; depois armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o outro estatelado. (HATOUM, 2006.p.40) Apaixonado pela mulher, depois do nascimento dos filhos, Halim se condena à nostalgia dos tempos em que não era pai, em que não precisava disputar o amor de Zana. Os filhos haviam se intrometido na vida de Halim, e ele nunca se conformou com isso. No entanto, eram filhos e conviveu com eles, contava-lhes histórias, cuidava deles em momentos esparsos (...) Foi o que se poderia chamar de pai, só que um pai consciente de que os filhos tinham lhe roubado

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um bom pedaço de privacidade e prazer. Anos depois, iriam roubar-lhe a serenidade e o bom humor. (HATOUM, 2006.p.53) Sua adoração pela mulher em grande parte deriva de sua solidão, pois viera para o Brasil, aos doze anos, com um tio, Fadel, que o abandonara na Pensão do Oriente, em Manaus. Ninguém acreditava que Zana, filha do dono do restaurante Biblos e cristã maronita, consentisse em casar-se com um mascate muçulmano, mas ele a conquistara recitando gazais escritos pelo amigo Abbas. Ele padeceu. Ele e muitos imigrantes que chegaram com a roupa do corpo. Mas acreditava, bêbado de idealismo, no amor excessivo, extático, com suas metáforas lunares. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam. Talvez pudesse ter sido um poeta, um flâneur da província; não passou de um modesto negociante possuído de fervor passional. Assim viveu, assim o encontrei tantas vezes, pitando o bico do narguilé, pronto para revelar passagens de sua vida que nunca contaria aos filhos. (HATOUM, 2006.p.39) No romance, nota-se, de imediato, a presença da casa libanesa como um microcosmo e, dentro dela, as relações familiares movidas por tradições e pela busca de resolução para vários conflitos domésticos. A ênfase no espaço como projeção dos seres que nele habitam concretiza-se na epígrafe— versos de Drummond retirados de Boitempo:

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A casa foi vendida com todas as lembranças/todos os pesadelos/ todos os pecados cometidos ou em vias de cometer/ a casa foi vendida com seu bater de portas/ com seu vento encanado sua vista do mundo/seus imponderáveis[...]”. (HATOUM, 2006,p.7) Halim não queria filhos, pois temia perder a atenção da esposa, mas esta, após a morte do pai, decide que quer três filhos. O desvelo excessivo de Zana por Omar passa a ser um obstáculo para o bom relacionamento do casal, razão de ciúme e revolta, que mais tarde irão também se refletir nas relações entre os dois irmãos. Quando Yaqub volta, cinco anos depois de sua ida para o Líbano, sente-se deslocado dentro de sua própria família, enquanto a antiga rivalidade com Omar continua. O sentimento de deslocamento sustenta a narrativa, trazendo o drama familiar para a esfera do universal. O filho que partira, ao retornar, já não sabe se expressar em português e comporta-se como um camponês. À mãe cabem os comentários sobre a “perda” do filho, análoga à perda da língua. Yaqub tem de reaprender o “espaço nacional”, abrir mão de um único idioma, o árabe, para recuperar a cultura mesclada que caracteriza Manaus, o que faz “cantando as palavras, até que os sons dos nossos peixes e frutas, todo esse tupi esquecido não embolava mais na sua boca” (HATOUM, 2006, p.31). Assim, ele reaprende o português, sua língua natal, como se fosse um idioma estrangeiro. Seu domínio do idioma será também fruto de uma conquista realizada com afinco:

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Ali, trancado no quarto, ele varava noites estudando a gramática portuguesa; repetia mil vezes as palavras mal pronunciadas: atonito, em vez de atônito. A acentuação tônica um drama e tanto para Yaqub. (HATOUM, 2006, p.31). Nos romances de Hatoum, há a encenação de uma terceira língua, híbrida, que, emergindo de um entre-lugar cultural, encena a possibilidade de enunciação, independente do idioma. Suas personagens vivem em meio a um emaranhado de idiomas, testemunhos de vidas em trânsito, de vozes que contavam um pouco de tudo em um português misturado ao árabe, francês e espanhol. Nesse contexto Manaus se configura como uma cidade com múltiplas manifestações culturais. Ao contrário de Salim Miguel, que narra os percalços do processo de integração social dos imigrantes, Hatoum cria, em seus romances, famílias de imigrantes já adaptadas a outra cultura e que com ela dialogam. Halim, embora distante de sua terra natal, não é nostálgico como Yussef; não se sente tão dividido. No seu cotidiano ele mantém os traços de um processo de transculturação, de dois mundos que se interpenetram, onde a língua, a comida e as relações sociais já se encontram sob a ação do trânsito e das trocas de conteúdos culturais. No entanto, volta e meia escapam-lhe as palavras em árabe, poemas que ele recita. Justifica-se, dizendo que “na velhice não se escolhe o idioma” (HATOUM, 2006, p.39). No início do romance, Zana está em seu leito de morte, tendo perdido a casa em que vivera com o marido, que para ela era tão vital quanto a sua cidade natal, a Biblos de sua infância. Pouco antes

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de morrer ainda procura saber se os filhos já se reconciliaram. A história contada em flashback revela a beleza e a firmeza de uma mulher, cujo amor desmedido por um dos filhos levara a família à desagregação. Suas últimas palavras são em árabe, como se, a partir daquele momento, apenas a língua materna fosse sobreviver. Nessa passagem de Dois irmãos, Hatoum estabelece um elo entre seus dois primeiros romances, fazendo com que a amiga que visita Zana em seu leito de morte seja a personagem Emilie, de Relato de um certo Oriente. Diferentemente de Nur na escuridão, em que Tamina era o ponto de equilíbrio da família, em Dois irmãos, Zana não consegue conter o seu ímpeto de dominar tudo e todos. Sua obsessão em controlar a vida de Omar, o filho que, desde pequeno, quando quase morrera de pneumonia, tornara-se alvo de sua atenção, acaba por aprofundar as feridas já existentes no relacionamento entre os irmãos: Já não o víamos de perna para o ar na rede vermelha, as unhas sujas e compridas esperando pela tesourinha de Domingas (...) ele parou de rosnar quando acordava faminto ao meio-dia, e eu me livrei dos recados que mandava para mulheres de vários bairros distantes. Voltava sóbrio das noitadas (...) “Zana vivia desconfiada”, disse Halim (...) desistira de apaziguar os filhos, mas não de influir no destino de Omar, homem feito, mas de arestas esquisitas. (HATOUM, 2006, pp. 102-103)

A própria liderança de Halim é constantemente posta à prova pela vontade de Zana ou pela intervenção dos filhos. O seu conformismo ante os fatos denota uma acomodação a mudanças

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geradas pela existência nessa nova terra, em que os costumes eram muito diferentes. Ao contrário do pai de Zana, que voltara ao Líbano e acabara por morrer lá, Halim acomoda-se: “Melhor permanecer, ficar quieto no canto onde escolhemos viver” (HATOUM, 2006, p.43). Diferentemente da narradora de Relato de um certo Oriente, Nael não dispõe de uma memória coletiva, ou seja, de testemunhos sobre os acontecimentos que lhe permitam reconstituir o passado de forma fidedigna. Assim, quando reúne fragmentos e pedaços de histórias que ouviu, tem diante de si um quebra-cabeça que lhe cabe tentar montar. Ao longo do romance, a proximidade entre Halim e Nael aumenta e ele confidencia ao rapaz não apenas dados de sua história pessoal, mas também suas preocupações e receios, de um modo como nunca fora capaz de fazer com os próprios filhos. Como todo imigrante libanês, Halim era dono de um estabelecimento comercial. Zana lhe pedira que abrisse a loja, logo depois da morte de Galib, pois não queria manter o restaurante que lhe traria dolorosas lembranças do pai. Halim sempre tivera a esperança que um dos filhos o sucedesse nos negócios, mas coube a Rânia fazê-lo, uma vez que Yaqub era engenheiro e trabalhava em São Paulo e Omar continuava um farrista irresponsável. A liderança de uma mulher nos negócios não era algo tão inesperado, pois as mulheres libanesas eram naturalmente colaboradoras dos maridos e pais, atendendo os fregueses e gerenciando o comércio em sua ausência.

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O que ele esperava de Omar veio de Rânia, e da expectativa invertida nasceu uma águia nos negócios. Em pouco tempo, Rânia começou a vender, comprar e trocar mercadorias. Conheceu os regatões mais poderosos e, sem sair de Manaus, sem mesmo sair da rua dos Barés, soube quem vendia roupa aos povoados mais distantes. (HATOUM, 2006, p. 70). Rânia fica à frente da loja até o fim. Com o fruto do seu trabalho tenta, inutilmente, ajudar Omar após o período que este passa na prisão, durante a ditadura, devido ao seu envolvimento com Laval. Entre o desvario de Omar e a sede de vingança de Yaqub, ela envelhece, só e prisioneira do passado. O romance termina em ruína: a família desfeita, os pais mortos, os irmãos separados, sem descendência, a casa vendida: de resto, apenas as lembranças de Nael. O esfacelamento da estrutura familiar é simbolicamente associado ao discurso do narrador, que começa a juntar os dados para o seu relato “como retalhos de um tecido” “que era vistoso e forte” e “foi se desfibrando até esgarçar” (p.52). Transcorrendo entre o período da Segunda Guerra Mundial e a ditadura militar no Brasil, o romance narra mais que a história dos dois irmãos e as desventuras da família libanesa: narra parte da história da Amazônia e do Brasil; as transformações do comércio, as relações do homem com a floresta, tendo Manaus como pano de fundo. A cidade é o espaço onde ocorre a miscigenação entre etnias e culturas, ainda que marcada por assimetrias e desigualdades sociais.

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ESTUDO DIRIGIDO 1- Marque a resposta correta: A- Na narração que Nael faz do conflito entre Yaqub e Omar, da obra "Dois irmãos", de Milton Hatoum, evidencia-se a) o recurso ao fluxo de consciência desvendamento da filiação do narrador.

para

o

b) a caracterização das personagens principais segundo a ótica do regionalismo. c) o distanciamento temporal do narrador em relação a grande parte dos fatos relatados. d) a presença de um discurso xenófobo subjacente à história de decadência da família árabe. e) a oposição entre o discurso direto popular das personagens e o indireto culto do narrador.

2- Em Dois irmãos, a morte de Antenor Laval, amigo de Omar, ocorre por ocasião do cerco da Cidade Flutuante pelos militares, em 1964. Qual é o papel dos eventos históricos no romance? 3- Leia o fragmento abaixo e marque todas as alternativas corretas: “ ‘Há mais de meio século’, continuou. ‘Eu era moleque, e eles uns curumins que já carregavam tudo, iam dos barcos para o alto da praça, o dia todo assim. Eu vendia tudo, de porta em porta. Entrei em centenas de casas de Manaus, e quando não vendia nada, me ofereciam guaraná, banana frita, tapioquinha com café. Em vinte e poucos, por aí,

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conheci o restaurante do Galib e vi a Zana... Depois, a morte do Galib, o nascimento dos gêmeos...’ ” HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 133 a. No fragmento do romance Dois irmãos, o narrador principal da história (Nael, filho de Omar) cede espaço para um narrador secundário (Halim, pai de Omar) resumir sua saga de imigrante libanês. b. A narrativa apresenta um drama familiar e a conflituosa relação entre os dois irmãos gêmeos, Yacub e Omar. c. Nael, personagem/narrador perturbado pela dúvida quanto à sua filiação, reconstrói a memória da família libanesa, que é, também, a sua própria memória/identidade. d. O excerto apresenta os principais elementos da narrativa de Hatoum: romance ambientado em Manaus; o narrador, Galib, é mascate, conhece Zana, filha do dono de um restaurante, e é pai dos gêmeos Yacub e Omar (foco da discórdia familiar). e. São recorrentes, em obras de ficção ou que representam diferentes culturas, as disputas entre irmãos gêmeos, a exemplo de Caim e Abel, Esaú e Jacó, mas que, diferentemente de Yacub e Omar, encontram uma saída harmoniosa para o conflito. f. Embora os dois irmãos sejam gêmeos, Omar é chamado de “o caçula”, o que denuncia o tratamento desigual dado, pela mãe, aos dois personagens principais e criticado pela irmã dos gêmeos, Rânia. g. Nael, o narrador, é filho da índia Domingas e de Omar, filho de imigrante libanês. Nael simboliza a mistura das raças resultante dos processos de imigração, que se deu de forma tranquila e equilibrada.

4- De que modo a história da imigração libanesa se entrelaça ao romance?

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5- Qual dos espaços do romance corresponde à imagem da cidade de Manaus como um local de intensas trocas culturais? 6- Ao fim do romance, percebe-se que o maior desejo de Halim cumpre-se apenas por meio dos filhos. Que desejo é esse? 7- A personagem Emilie, de Relato de um certo Oriente, aparece também em Dois irmãos, como uma das amigas de Zana. Este recurso narrativo é denominado _______________________. 8- Como são representadas as mulheres do romance? Há um perfil distinto de personagens femininas? 9- Se comparado a outros imigrantes dos romances analisados neste livro, Halim apresenta um comportamento diverso. Por quê? 10-Que traços definem os imigrantes libaneses em Dois Irmãos? 11- Nael reconstitui o tempo em que conviveu com a família libanesa não apenas por meio das próprias lembranças, mas também por meio da recordação de suas conversas com Halim. A memória é a mola propulsora da manutenção da tradição. Há, no romance, vestígios de uma tentativa de transmitir a cultura árabe? Justifique a sua resposta.

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VI A IMIGRAÇÃO NARRADA PELA ÓTICA DE UMA MULHER Todo

narrador é um viajante, afirma o romancista e crítico Ricardo Piglia. Consequentemente, toda narrativa é tributária de experiências que supõem ultrapassar fronteiras, sejam elas fronteiras espaciais ou aquelas impostas pela ordem vigente. As narrativas de viagem propriamente ditas reproduzem, em sua maioria, um padrão textual em que as deambulações por lugares distantes se confundem à vivência reflexiva desenvolvida no contato com o Outro, com o diferente, cuja imagem é condicionada pela ótica eurocêntrica, ou seja, a ótica do mundo ocidental que tem na Europa o seu modelo. Em Amrik, Ana Miranda constrói uma narrativa de viagem às avessas, pois a ótica do relato localizase nas margens. A narradora é uma mulher, imigrante libanesa, que rememora a sua saga pessoal, desde a infância no Líbano, passando por uma frustrada experiência na América do Norte, até a sua chegada ao Brasil, onde, finalmente, se estabelece. O romance é escrito de modo a assemelhar-se a textos literários, escritos por imigrantes, denominados “Mahjar”. Ao contrário do que ocorre nos relatos de viagem tradicionais, o tempo não é registrado, mas faz-se sentir nas

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transformações que a personagem sofre, de menina à mulher, ao longo do romance. A narrativa de Amrik é cíclica; começa e termina no Jardim da Luz, quando o tio da narradora, Amina, transmite-lhe o pedido de casamento do mascate Abrahão. As lembranças de Amina surgem fragmentadas e são transcritas em 154 textos breves, à guisa de capítulos, agrupados em 11 partes. Ao ouvir a proposta, Amina confronta aquilo que seu tio, Naim, julga ser “felicidade” com o que realmente a espera: ... viver numa casa imensa, de avental contar ovos, bater manteiga, ralar abóbora, picar amêndoas, a natureza nos dedos, regar uma horta no quintal, alface hortelã tomilho, ter sexo na noite abençoado, açúcar cristal na língua hmm Nas coisas mais simples está o sentido da vida Amina... (MIRANDA, 1997, p.11). A visão do tio contrasta com a imagem que se forma na mente de Amina: a sujeição física aos desejos do mascate, ter de viver em uma casa cheia de gente e sem privacidade, cozinhar para quinze pessoas, viver para ganhar dinheiro e sonhar com o retorno ao Líbano, representando, a cada noite, uma mulher diferente para o encantamento do marido. O confronto de aspirações resulta na reformulação de um ditado popular que sintetiza o desejo da narradora: “Mais vale um pássaro na mão que dois voando, não, mais vale um pássaro voando, de que vale um pássaro que não voa?” (MIRANDA, 1997, p. 12). Assim, a autora instaura no romance o embate da personagem com a estrutura patriarcal árabe. Pela via da memória, Amina resgata a imagem da avó Farida, símbolo da transgressão. A avó que lhe ensinara a dançar às escondidas, que

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lhe transmitira as tradições ancestrais: as danças, a culinária, as lendas, o repositório da memória coletiva de seu povo passado de geração a geração. No universo ficcional, Amina é alvo da rejeição paterna. Seu pai, Jamil, inconformado por ter sido abandonado pela mulher, transfere para todo o gênero feminino o ódio que a traição lhe causou. Bêbados falavam mal de suas mulheres, das mulheres de todos, papai voltava para casa bêbado e abria o estojo da faca, maldizia mamãe Maimuna[...]mulher quando fala mente quando promete não cumpre quando cumpre volta atrás quando nela confiam trai quando não trai fere [...] (MIRANDA, 1997, p. 16). A concepção paterna da mulher como um ser ardiloso, desprovido de caráter, faz com que seja ela a escolhida para acompanhar o tio cego, quando este é ameaçado de morte por causa de suas convicções políticas e é obrigado a deixar o Líbano. Por causa dos turcos e dos muçulmanos que queriam matar tio Naim porque escrevia contra eles tivemos de partir de nossa aldeia, tio Naim encheu um baú com seus livros, umas jóias de ouro para trocar por comida ou roupa, uma manta de pelo de carneiro e nada mais, pediu a papai que mandasse um dos filhos acompanhar, papai olhou os filhos, todos de olhos arregalados, num silêncio fundo, um dois três quatro talvez todos os filhos homens quisessem cinco ir mais papai escolheu o filho que menos lhe servia, seis a única filha mulher, para que servia uma filha mulher? Os filhos iam casar e quando vovó Farida morresse as esposas iam cuidar da cozinha e fazer mais crianças para o trabalho na agricultura, ele me achava vaidosa,

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dissimulada, meu rosto lembrava o da minha mãe e isso fazia papai sofrer ainda mais (...) (MIRANDA, 1997, p. 22).

Personagem criada a partir dos relatos de familiares de Emir Sader, marido da autora, sobre um velho tio cego, para quem os sobrinhos se revezavam na leitura, tio Naim não faz da sobrinha sua serva, mas torna-se o seu mentor, educando-a “para o mundo”. Assim, Amina aprende a ler, a escrever, bem como aprende palavras em outros idiomas: francês, inglês, grego e aramaico, porque “mulher saber língua estrangeira é abrir uma janela na muralha” (MIRANDA, 1997, p. 27). Quando Amina deixa para trás a sua casa, a avó lhe dá os seus pequenos tesouros: o tamborzinho de mão, os címbalos e o pandeiro, herança que selaria o seu destino. A casa, na verdade, nunca lhe parecera realmente sua, posto que, mesmo entre a sua gente, a sua família era tratada de modo diferente, como estrangeira. Amina muitas vezes se pergunta se a razão era o fato de que sua avó um dia fora dançarina, uma gháziya, segundo o glossário que a autora disponibiliza ao final do romance. Esse sentimento de inadequação persegue a narradora vida afora. Amina e Naim têm por objetivo ir para a América, a tão sonhada Amrik, mas são retidos em Beirute, onde ficam à espera de passaportes turcos e de lugar no navio. O fluxo da memória é construído em blocos de um parágrafo/capítulo, com pontuação escassa e

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mistura de idiomas. As palavras em árabe se misturam às do português, a interjeições e onomatopéias, descrevendo lugares e pessoas a partir de impressões de caráter sinestésico. O dado histórico é incorporado à ficção no relato da passagem obrigatória dos libaneses por Beirute, na imagem da multidão amontoada no porto, “gente miserável seminua tiritava de frio, esmolava, molhados da chuva da madrugada”, “arrastados todos pelos sonhos de riqueza ou de liberdade” (Miranda, 1997, p. 28). A oportunidade de ganhar dinheiro exerceu um impacto profundo no equilíbrio das aldeias libanesas, a tal ponto que as famílias que não enviassem seus filhos temporariamente às Américas perdiam status e prestígio em relação às outras. Amina e Naim partem movidos pela busca da liberdade. O Líbano que Amina deixa para trás é marcado pela dureza do patriarcado: ... ia queimar talismãs para o navio chegar logo e me levar para Amrik, guiava tio Naim nas ruas, recebia cartas de papai, da aldeia, cartas que me faziam chorar, cruéis, se eu era suave ele brigava se eu era fria ele cuspia se eu dizia elogio ele ignorava de noite na cozinha ele falava mal de mim com a Abduhader, falava mal de mamãe com os outros bêbados de noite e falava mal das mulheres todas elas (MIRANDA, 1997, p. 26). A viagem é o início da desconstrução do sonho. Ao invés do “navio moderno, veloz e iluminado” pelo qual ansiavam, deparam-se com ... um ferro velho sujo enferrujado com carne humana amontoada arrre irrra terceira classe dormiam no relento água racionada salobra nojenta arghhh para qualquer coisa era preciso dinheirinho,

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beliches duros imundos insetos sugavam o sangue de noite ratos mordiam comiam nossos sapatos mofo calor umidade sal vomitava vomitava arre o camarote era para quatro mas oito ocupavam os quatro lugares eu dormia na mesma enxerga com tio Naim e não podiam levantar os dois ao mesmo tempo que alguém estava sempre pronto para ocupar o nosso lugar arre (MIRANDA, 1997, p. 28). A viagem é embalada pelas histórias contadas por Naim ou pela leitura que Amina faz dos livros do tio, que, embora leve no baú livros ingleses e franceses, quer que a sobrinha leia apenas aqueles em árabe, para não perder o amor pela própria terra. Para ele, “a literatura árabe lembra sempre a existência de outros mundos além deste que podemos ver e tocar, mas não compreender” (MIRANDA, 1997, p. 30), mundos como o universo ficcional, em que a realidade é continuamente transformada e recriada. ... literatura das montanhas e dos desertos sem nunca criar fronteiras entre o real e o irreal como o mundo fora uma miragem (...) uma literatura que pode ser feita e usada por pessoas que não sabem ler nem escrever, mas se ouvem entendem e podem recontar que são histórias e mais histórias e assim foi uma grande parte dela, os livros antigos eram muitas vezes apenas a memória do recitador, outras vezes eram escritos em letras de ouro ou nas paredes mas fosse como fosse, nunca rompeu com a tradição e nunca romperá ainda que sejam os poetas chamados de imitadores (...) se a literatura árabe é a alma árabe, todavia, não é o mundo árabe o que as pessoas pensam, pensam que o mundo árabe são as Mil e uma noites hahaha (MIRANDA, 1997, p. 31).

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Nas últimas linhas da citação, a autora deixa entrever uma crítica à imagem eurocêntrica do Oriente: um mundo exótico, misterioso, que se distancia da realidade dos conflitos políticos e religiosos vivenciados pelos povos de origem árabe. Na parte 2, intitulada “Amrik”, a narrativa se reporta à estada de Amina na América do Norte. Os libaneses que saíam do Líbano pensavam estar se dirigindo à América do Norte, mas poucos conseguiam entrar no país. Muitos eram rejeitados, outros enganados, e acabavam por desembarcar no Brasil, no porto de Santos. Na América, tio e sobrinha são separados. Ela fica para trabalhar como dançarina em uma Feira de Negócios e o tio, “cachorro morto”, é despachado para a outra América. Com os olhos cheios com os atrativos da América, Amina se esquece de tudo, do tio, da terra natal, forma uma banda e persegue o seu sonho de liberdade. ... eu pensava que ia ficar rica verdadeiramente rich era a terra das liberdades das oportunidades ia me vestir como a rainha de Sabá ia me cobrir de jóias perfumes chapéus com plumas de veludo... (MIRANDA, 1997, p. 36). O sonho, no entanto, se dissolve rapidamente: ... muito trabalho a meio dólar por dia, jornada de dez horas mas trabalhavam dezesseis, haviam marcado a minha pele com uma etiqueta na alfândega e me deram um banho, mudaram meu nome no papel, acabou a feira e me soltaram na rua (MIRANDA, 1997, p. 36). Sem dinheiro ou roupas de frio, Amina vai dormir na rua, nos dormitórios e cortiços de

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imigrantes, onde crianças e velhos “morriam como moscas envenenadas”. O choque entre culturas é perceptível nas lembranças de Amina. ... as casas eram de madeira, as galinhas ciscavam na rua, os carros para lá e para cá numa velocidade estupenda e as pessoas não se matavam por religião mas se matavam por dinheiro, os americanos comiam aveia de manhã feito cavalos, eram de uma religião diferente da nossa mas eu não condenava a religião deles, rudes e falavam alto, havia desempregados, policiais estúpidos arrogantes patrões ladrões greves de empregados reuniões de operários, trabalhadores de minas viviam feito escravos, havia dedos esmagados nas máquinas das fábricas comida em lata solidão falta de falar a língua falta da comida da vovó Farida falta de amigos falta de um corpo falta de amor (MIRANDA, 1997, p. 37). As cartas de Naim para a sobrinha acenam com a possibilidade de vinda para o Brasil. Na descrição que ele faz da cidade de São Paulo, é possível detectar a pesquisa da autora no intuito de fornecer informações sobre a cidade na época em que se passa a história: ... havia na cidade de São Paulo cento e quarenta e seis lojas de fazendas e ferragens, sessenta armazéns de gêneros de fora, cento e oitenta e cinco tavernas, todos pagavam direitos à municipalidade (...) Vem Amina minha flor de luz (...) vem para São Paulo (MIRANDA, 1997, p. 39). Amina vê a vinda para o Brasil como uma derrota, pois “o Brasil era um lugar de abismos e depósito de imigrantes cachorros mortos que não

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conseguiam entrar na outra América” (Miranda, 1997, p. 45) e resiste o quanto pode à ideia de deixar a América do Norte, o seu “eldorado”. Porém, a solidão é um flagelo diário, que faz com que um mero cumprimento, ou mesmo umas palavras trocadas, desperte em Amina uma fome descontrolada de amor e carinho, que é narrada de forma cômica: ... à luz da vela escrevi cartas para tio Naim, para vovó Farida para os meus irmãos, para desconhecidos, uma carta para um homem de cabelo vermelho que eu vira atravessar a rua, uma carta ao Mark Twain uma carta a um remador que me dissera Good morning na fonte Bethesda no terraço de onde saiam remadores em barcos compridos, voltei à fonte uma dezena de dias e nunca mais vi o remador mas deixei para ele uma carta de amor (...) a carta marcava um encontro e no dia marcado esperei esperei brbrbrbrbrbr gelada mas ninguém apareceu, veio um policial de ronda, quem sabe porque fazia muito frio o remador não veio, caía neve suave o policial me fez umas perguntas, quase me apaixonei por ele (MIRANDA, 1997, p. 41). A solidão acaba por vencê-la, forçando-a a vir para o Brasil. Os capítulos que se seguem fornecem dados da história dos imigrantes libaneses no Brasil, bem como da cidade de São Paulo, como o desvio do rio para fazer a rua 25 de Março, a vida dos imigrantes libaneses, que girava em torno do

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Tamanduateí, na parte nova da cidade, sem nenhum progresso, e as dificuldades de aceitação na nova terra: No começo, disse tio Naim, vinham os italianos e os alemães à porta ver despejar de mais árabes, riam de nossos modos, contavam histórias engraçadas sobre nós e não tinham medo (...) mas os mascates foram prosperando e de miseráveis ambulantes descalços que vendiam cigarros em bandejas dependuradas no pescoço ou quibe frito em tabuleirinhos passaram a mascates de santos de madeira e escapulários depois a mascates de tecidos botões linhas arre, assim os mascates se tornaram perigosos sujos traiçoeiros ambiciosos usurários (...) mas não somos o que eles pensam, libaneses são limpos, cultos, temos a Université dos jesuítas e a Universidade Americana, sabemos falar inglês grego francês, sabemos ler escrever, inventamos álgebra astronomia matemática, os algarismos arábicos o alfabeto, disse tio Naim, trouxemos para ocidentais a laranjeira o limoeiro o arroz, ensinamos ocidentais a melhor cultivar a alfarrobeira e a oliveira, a criar cavalos, a plantar uvas, figos e imensas maças, a regar, pintar as unhas, fazer hortas de verduras e talhões de legumes, mais de seiscentas palavras à língua dos lusis (MIRANDA, 1997, p. 52). O capítulo intitulado “Ilhas de Elisã” contém palavras começadas com “al” que foram incorporadas ao português, evocando de forma concreta no discurso a herança cultural árabe e reivindicando um espaço social, pois “os árabes são como avós dos brasileiros” (p. 53). A ascensão social dos sírio-libaneses despertou não apenas a inveja de outros grupos de imigrantes, mas também dos brasileiros, o que

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contribuiu bastante para a criação e a manutenção de estereótipos negativos. Ana Miranda incorpora outros dados sociológicos à narrativa, como a importância da aldeia natal: ... chegavam as pessoas todas de uma mesma aldeia, gente do cultivo que vinha para a agricultura mas acabava mascate, ganhava mais dinheirinho, trabalhava para ninguém, problema dos libaneses que pensavam na aldeia, disse tio Naim, não pensavam no país, se falavam pátria diziam aldeia, sua terra sua aldeia queria dizer sua aldeia sua alma (...) (MIRANDA, 1997, p. 55). Essa mesma aldeia passava ao imaginário do imigrante de primeira geração como um “paraíso perdido” a ser novamente alcançado, fazendo-o esquecer os reais motivos pelos quais teve de deixar sua terra. A parte 4, “Mezze”, retrata a vida na casa de Naim. Os textos constituem um inventário da culinária, dos costumes libaneses, ao mesmo tempo em que se configuram parte da narrativa. A tendência dos imigrantes a se agruparem com seus conterrâneos é devidamente representada no romance: Tio Naim estudou na Université dos jesuítas Saint Joseph, escrevia para o ALK-Ahram e agora pediam para escrever sobre imigrantes, dinheiro, política, república, ele gostava de república porque trazia prosperidade, os escritos de tio Naim eram discutidos por libaneses nos mezzes as domingos,

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senhores de muitos espíritos contrários e dados a leis da imaginação, mais levados por seus sonhos do que pela realidade, cada qual vendo mais a distância que a proximidade, misturando árabe com português (...) (MIRANDA, 1997, p. 62). O início do processo de intercâmbio cultural é descrito no romance, bem como o desenvolvimento de uma interlíngua e a desconstrução paulatina do sonho do retorno à terra natal. ... um dia vão perceber que a vida passou, ficaram aqui fazendo fortuna e não voltaram nem ficaram ricos, só alguns, Entendam logo isso e façam os cemitérios clubes igrejas mâdrassas que nos dos outros não nos aceitam... (MIRANDA, 1997, p. 64). Chafic, o jovem por quem Amina se apaixona, Abraão, aquele com quem casará, são representações de duas fases distintas da imigração libanesa. O primeiro representa o imigrante de primeira geração, viajando de cidade em cidade, mascateando. O segundo aponta para uma segunda geração, para uma rede de conterrâneos a dar suporte uns aos outros. Os homens dessa nova leva encontraram os primeiros aqui fixados, muitos deles atacadistas, podendo, assim, lhes fornecer mercadoria e ensinar a língua e os conhecimentos básicos para o exercício das transações comerciais: e

Abraão abriu a canastra mostrou como vendia renda, bordado, retrós sabonete meia dentifrício

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coisas pequenas pesam pouco, vendem fácil, preço bom, crédito, lágrimas no olhos, Logo aprendes a língua e se sabes umas poucas palavras podes trabalhar por tua conta, sais de manhã cedo mesmo que chova levas pão farinha pudim de palmito bocajuva vais de casa em casa nos bairros da Sé Santa Ifigênia, havia um mapa da capital da província de São Paulo, Abraão tinha lista de fregueses (MIRANDA,1997, p. 176). As narrativas da imigração libanesa no Brasil destacam o papel dos homens, uma vez que a princípio era uma imigração econômica. Quando esta se transforma em imigração de assentamento, as mulheres libanesas entram em cena, dada a necessidade de transformar algo provisório em definitivo, estabelecendo núcleos familiares. Ana Miranda constrói, no romance, uma narrativa de focalização feminina, permitindo a reinterpretação da história da imigração pelo olhar de Amina, que situa o papel social da mulher imigrante: ... duas imigrantes passam com cestas de compras rumo ao Mercado, nesta cidade a mulher que faz compra no Mercado é imigrante, arifa ou operária, as imigrantes nunca passeiam, moças feitas de trabalho, vidas diluídas, fumaças de chaminé fufu feitas de perdas e adeuses, moram nas partes escuras da cidade, nas casas olhadas, entre os ratos e morcegos, entre os caixotes vazios e as sacas nos depósitos, nos armazéns, detrás dos balcões, nas margens dos rios um capim de fuligem e fumaça feito os navios belas coisas mesmo sujas e pretas, elas sempre querem passar para o outro lado da cidade, mas são apenas umas mostardinhas ardidas ou umas cadelasdascadelas, corpo de faschefango galho e barro ou casa a Ana ou vira putana ou casa a Beatriz ou vira meretriz

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haialaia tutti senza denaro, mijar na cova e lamber o dedo hmmmm elas olham para mim e estiro a língua, elas ficam tão vermelhas que parecem as telhas e apressam o passinho de garridice nos sapatos barulho de ferraduras (MIRANDA, 1997, p. 186). Amina contraria a imagem das mulheres imigrantes que descreve, pois é avessa ao trabalho doméstico, preocupando-se, apenas, com a dança. O enfoque na dança faz com que seja o olhar de Amina a mostrar a construção de uma imagem estereotipada da mulher oriental como sedutora, sensual e exótica: ... eu sabia o que diziam mal de mim, dançar era mandar homem nas casas de putas eles em cima delas mas a cabeça em mim, que tudo era para gastarem em mim seus dinheirinhos e eu ficando rica e eles pobres... (MIRANDA, 1997, p. 69). Nesse aspecto, e paradoxalmente, Ana Miranda dialoga com textos ocidentais e com visões eurocêntricas da mulher oriental, como a Aziza, de Flaubert, e a Mahatab, de Francis Bacon. A autora, ao fim do romance, fornece uma lista bastante detalhada de suas fontes de pesquisa, que vão de relatos de viagens e registros da imigração a livros de culinária, bem como um glossário de termos em árabe e nomes de personagens ficcionais ou históricos citados no livro, desvelando ante o leitor a materialidade da obra. Estudos sobre a imigração têm comprovado que a música e a culinária são marcas de resistência de imigrantes de primeira geração à aculturação

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absoluta, ou assimilação, operando como expressões privilegiadas de uma vida entre dois mundos. No entanto, no romance, o espaço da cozinha, “o lugar do mundo onde uma mulher pode sentir a si, sem precisar dos machos árabes” (MIRANDA, 1997, p. 130), com seus odores e sabores, é evocado como um dos locais onde a mulher árabe não experimenta a subalternidade. A arte da dança tem papel equivalente, pois é por meio dela que a mulher pode atrair um homem, fazendo-o “andar mil passos num vale ou atravessar um deserto sem camelo” (p. 20). Obviamente, a recorrência aos alimentos de origem árabe, no texto, tem também a função de apontar para o processo de integração social, uma vez que a culinária árabe foi incorporada aos hábitos dos brasileiros. No processo de integração dos imigrantes no Brasil, a assimilação, na qual a cultura pré-migratória da pessoa desaparece por completo, foi rara, dando lugar às trocas culturais. O romance também registra a questão do casamento entre brasileiros e libaneses: Uns homens daqui mandavam buscar mulheres nas suas aldeias no Líbano, mulheres da sua mesma religião maronita e de virgindade virgindade sempre virgindade, alguns mascates logo que ganhavam um dinheiro voltavam a suas aldeias para escolher uma mulher, traziam a mulher para o Brasil ou deixavam a mulher lá e voltavam sozinhos, outros casavam com uma brasileira e voltavam com ela para sua aldeia no Líbano, uma mascate casou com uma brasileira e levou a brasileira para Beirute, lá estava outra mulher e a brasileira não aceitou a bigamia, o marido deixou a brasileira na rua, ela ficou perdida nas ruas e ia virar mendiga ou prostituta de turcos, na sala de tio Naim eles discutiram o destino da perdida (...)

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decidiram trazer de volta a brasileira ai que sacrifício pagar passagem assim para brasileiro tanto libanês precisava trazer mãe ou pai ou irmão, não ia custar tão caro, Mais caro é ter boa reputação... (MIRANDA, 1997, p. 67). O tipo de situação descrita no romance se reporta a uma fase da imigração em que os casamentos mistos ainda não eram comuns. O padrão de buscar a noiva na terra de origem era muito comum entre os pioneiros. A parte 5, intitulada “Casa de Amina”, relata a tentativa de independência da narradora, de preenchimento de um vazio interior que ela não consegue diagnosticar. Ela vai morar em um sobrado da Rua 25 de Março, em meio ao burburinho de pessoas, os odores estranhos da cozinha dos lusis, as lágrimas sufocadas da portuguesa, o agarramento do português com a empregada negra, na escada, o frio intenso no inverno e o calor absurdo no verão. Os poucos objetos que leva com ela apontam para uma característica da personalidade de Amina: a facilidade com que se encanta, e desencanta, com as coisas. É desse modo que se apaixona por Chafic, um mascate que vê pela janela, a tomar banho nu, no rio. Por Tenura, a empregada de Naim, fica sabendo que ele é mascate de fogos de artifício e que, quando não está no Mercado, vai de aldeia em aldeia no Mato Grosso. A dançarina, acostumada a brincar com a atração dos homens, rende-se a uma única visão daquele corpo masculino. E, mais uma vez, os odores e os sabores da culinária árabe surgem para metaforicamente expressar a ebulição em Amina:

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... nunca mais na minha vida o veria, nunca no exterior de mim apenas o veria no escuro de minhas pálpebras, nu encostando sua língua na boca da mulher, fora ele um castigo mandado pelo Deus dos maronitas para eu pagar minhas maldades todas que fiz contra os homens, Chafic moeu meu coração, marinou temperou com pimenta intercalou num espeto com pedaços de lágrimas de cebola assou na brasa grelhou e não comeu... (MIRANDA, 1997, p. 88). Da parte 7 em diante, o diálogo com a história cede lugar à história pessoal de Amina, que é contratada para dançar no casamento do mascate Abraão. Por recomendação do pai da noiva, não deveria dançar a dança do al nahal, o que acaba por fazer, deixando os homens presentes hipnotizados, o velho fellah revoltado, um casamento desfeito e uma noiva suicida. O romance termina no mesmo ponto em que começa, com tio Naim perguntando a Amina se ela aceita casar-se com o mascate, que retornara rico da América do Norte e que nunca a esquecera. A par dos matizes proporcionados pela criatividade de Ana Miranda, o romance revela a cuidadosa pesquisa histórica e textual empreendida na sua elaboração. Ao incorporar os referentes históricos à sua obra, ela engendra uma tessitura que se reporta em detalhes à história da imigração libanesa no Brasil sem, no entanto, perder o estatuto de ficção. A representação da identidade cultural do imigrante em Amrik revela-se diferente se comparada, por exemplo, a de autores como Milton Hatoum. Enquanto este cria personagens que, embora imigrantes, estão totalmente integrados ao país de adoção, constituindo identidades híbridas,

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Ana Miranda detém-se nos primórdios da imigração e no choque entre culturas. Em várias entrevistas dadas à época do lançamento de Amrik, Ana Miranda afirmou que Amina não é real, que foi inspirada em suas fantasias de criança, em suas leituras sobre Sherazade, Simbad, califas e odaliscas, bem como na interpretação que autores como Borges, Flaubert e Rimbaud tiveram do Oriente. Ao dialogar com o passado, a literatura assume ser capaz de contar histórias que a historiografia não sabe nem pode contar. Amrik é uma narrativa de olhares, pois, “o Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, imagística e vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente” (SAID, 2001, p.16-17). Assim como Naim, que via o mundo pelos olhos dos que o cercavam, o leitor se debruça sobre a narrativa de Amrik certo de que essa é mais uma dentre as múltiplas interpretações do Oriente, uma vez que o romance foi escrito a partir de um olhar ocidental e contemporâneo. ESTUDO DIRIGIDO 1- Marque as respostas corretas: A- Por que motivo Amina deixou o Líbano? a- Amina sempre sonhara em ir para a América. b- Naim foi ameaçado de morte e necessitou emigrar para sobreviver. Amina o acompanhou porque ele era cego. c- Amina sonhava em ser uma dançarina famosa, como sua avó.

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d- Amina não suportava mais a opressão paterna.

B- Qual o motivo de Amina ter-se separado de Naim? a- Amina ficou nos Estados Unidos para dançar. b- A imigração para os Estados Unidos era controlada e Naim, por ser cego, não foi admitido, restando-lhe ir para a América do Sul. c- Naim não gostava da ideia de emigrar para os Estados Unidos. d- Amina desejava tentar a vida em outro lugar sem ninguém para controlá-la.

C- Por que Amina resistia à ideia de vir para o Brasil ao encontro do tio? a- Porque, a seus olhos, a América do Sul era o destino dos derrotados, que não conseguiam entrar nos Estados Unidos. b- Porque se viesse para o Brasil o tio controlaria a sua vida. c- Porque no Brasil não teria as mesmas oportunidades que teve na América do Norte. d- Porque, na realidade, queria retornar ao Líbano.

2- Por que podemos dizer que a narrativa de Amrik é cíclica? 3- Como os mascates são representados no romance? 4- De que modo o romance estabelece um diálogo entre a literatura do ocidente e a do oriente?

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5- Quais são os dados históricos que o romance recupera por meio da ficção? 6- O que acontece quando um imigrante se expõe a uma nova cultura? 7- Em Amrik, Ana Miranda retrata os sinais das trocas culturais. Quais são eles? 8- Qual é o papel do idioma no processo de integração de um imigrante à pátria de adoção?

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PARA FINALIZAR... Os romances analisados neste livro não foram examinados segundo uma perspectiva de análise literária que privilegia questões como: linguagem, estrutura da narrativa, relações intertextuais etc. O foco da análise foi a contribuição da literatura para que o estudante brasileiro seja capaz de compreender o processo de integração dos imigrantes libaneses em solo brasileiro. Obviamente, sempre que a abordagem desse processo afetou a narrativa em si ou manifestou-se no âmbito da linguagem, foram feitas menções específicas, de modo a atingir o objetivo maior: a representação da saga dos imigrantes libaneses no Brasil. Pudemos observar que em todos os romances escolhidos há traços comuns, que relatam como era a vida do imigrante libanês ao chegar ao Brasil, bem como os motivos que levavam os libaneses a emigrar. Ao focalizar aspectos da vida do imigrante, seus hábitos, as relações em sociedade, a inserção na força do trabalho, recuperamos também dados sobre a importância da manutenção da tradição, principalmente em relação à primeira geração de imigrantes, o que vem comprovar o papel indiscutível da literatura na manutenção da memória étnica. Não é só por meio de registros históricos que conhecemos a história de um povo. A literatura, a música, a arte em geral constituem veículos para esse conhecimento, tornando-se “lugares de memória”.

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GLOSSÁRIO

Identidade cultural- A identidade cultural é um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve o compartilhamento de patrimônios comuns como a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um processo dinâmico, de construção continuada, que se alimenta de várias fontes no tempo e no espaço. Memória étnica- Conjunto de características de uma etnia, transmitido de geração a geração, que assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas. Transculturação- Processo por meio do qual um fenômeno passa de uma cultura para outra. No caso do contato entre culturas, refere-se às trocas culturais, ou seja, da influência de um grupo sobre outro.

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As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura

SUGESTÕES PARA O PROFESSOR I Comparar a organização das famílias libanesas dos romances por meio de árvores genealógicas. Utilizar softwares como: Geni, Meus parentes Beta ou Family tree builder. II Fazer um mapa dos objetos de origem árabe citados nos romances, indicando a sua finalidade de uso.

90 III Fazer um glossário das palavras em árabe mencionadas nos romances. IV Entrevistar algum descendente de libaneses, buscando informações sobre a chegada de sua família ao Brasil. V Elaborar um jornal ou exposição sobre a imigração libanesa, com dados históricos, entrevistas, fotos e reprodução de documentos encontrados no site do Memorial do Imigrante: http://www.memorialdoimigrante.org.br/


As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura

SOBRE OS AUTORES

Shirley de Souza Gomes Carreira é Doutora em Literatura Comparada (UFRJ) e atua como Professora Titular da UNIABEU, onde também edita as revistas eletrônicas e-scrita e UNIABEU e coordena o Comitê Institucional do Programa de Iniciação Científica. Tem trabalhos publicados no Brasil, México, Portugal, Estados Unidos, Itália e Inglaterra. nglaterra. Em 2011 organizou a coletânea Memória e identidade:: ensaios (Galo Branco). É investigadora convidada do Centro de Estudos Linguísticos, Comparados e Multimédia da Universidade Autónoma de Lisboa. A presente obra é resultante da pesquisa “Literatura “Literat e memória: representações da identidade cultural do imigrante e a recepção da memória étnica”.

Cristiano Lima de Oliveira é graduado em Português- Literatura pela UNIABEU, onde foi bolsista de iniciação científica na vigência da pesquisa.

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As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura

Elisângela ngela Brito Martins Pessanha é graduanda em PortuguêsPortuguês Literatura da UNIABEU,

onde

foi

bolsista

de

iniciação científica da FAPERJ na vigência da pesquisa. pesquisa

Fabíola Nogueira Reis Gomes é graduada em Português-Inglês Inglês pela UNIABEU, onde foi bolsista de iniciação científica institucional na vigência da pesquisa.

Michele Lima de Oliveira é graduada em Português-Literatura pela UNIABEU, onde foi bolsista de iniciação científica da FAPERJ na vigência da pesquisa.

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As “estórias” que narram a história: imigração libanesa e literatura

Shirley de Souza Gomes Carreira et al.

PROAPE


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