Pesquisa em Foco Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão—PROAPE
Marcelo Mariano Mazzi Org.
ISBN 978-85-98716-04-6
PROAPE-Pesquisa Volume 1
Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa Volume 1
Marcelo Mariano Mazzi Org.
Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa Volume 1
1ª. edição Belford Roxo
2013
Copyright © 2013 Marcelo Mariano Mazzi Org. Editor: UNIABEU- Centro Universitário Editoração Eletrônica: Shirley de Souza Gomes Carreira Revisor: Franklin Magalhães
DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
M477p Mazzi, Marcelo Mariano Pesquisa em foco [livro eletrônico] : PROAPE – pesquisa / Marcelo Mariano Mazzi (Org.) – 1. ed. – Belford Roxo : UNIABEU, 2013. v.1 1644 Kb ISBN 978-85-98716-04-6 1. Educação superior 2. Projetos de pesquisa. 3. Extensão universitária 4. UNIABEU I. Mazzi, Marcelo Mariano II. Título
CDD 013.0901
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito, da editora.
Sumário Apresentação
6
Andréa Santos da Silva Pessanha Identificação de preferência de processamento hemisférico em escolares de ambos os gêneros
9
Paulo César Guedes Ferraz A língua estrangeira na escola pública popular: dilemas do contexto de ensino e da preparação de profissionais
33
Edson de Siqueira Estarneck Neuroevolução: um estudo com respostas orgânicas na hipertensão arterial
60
Hugo Jorge Almeida Jacques Repensando a educação e a sociedade Fluminense: olhares de investigação e pesquisa
na
Baixada
74
Ivonete Cristina Campos A melhoria da vida possível: a história da ABEU/UNIABEU e de seu fundador
90
Ronald Apolinário de Lira NUPESAS/BF: contribuições para o desenvolvimento da política de assistência social na baixada fluminense
106
Simone Eliza Lessa A composição corporal de crianças e adolescentes e sua relação com o teste de sentar e levantar
128
Paulo Gil Salles O uso da pesquisa como prática de ensino do curso superior: constatações a partir de um projeto de extensão Alberto Carlos Alvarães
150
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Prefácio É com satisfação que apresento a primeira publicação derivada de projetos de pesquisa e de extensão vinculados ao Programa de Apoio à Pesquisa e à Extensão (PROAPE) da UNIABEU – Centro Universitário. A obra é uma concretização de parte dos objetivos do Programa: fomentar a produção de conhecimento científico articulado às demandas sociais, oferecendo retorno à comunidade por meio da divulgação dos resultados e da intervenção na realidade imediata. Cada capítulo do livro é fruto de projetos desenvolvidos no biênio 20082010, período em que o Programa esteve sob minha coordenação. Na dinâmica das atividades, realizávamos discussões coletivas com docentes e discentes sobre os trabalhos em andamentos como forma de oportunizar olhares distintos para os projetos, facilitando a troca de experiência, o intercâmbio entre as equipes envolvidas. Esta prática culminou na organização do I Encontro PROAPE, promovido em junho de 2010, de ampla divulgação e penetração nas esferas interna e externa à UNIABEU. A ocasião foi um momento ímpar de diálogo dos professores com a comunidade sobre os projetos em fase de finalização. Em consonância com o perfil do Programa, o livro, organizado em nove capítulos, atravessa as áreas de Ciências Humanas e Letras, Ciências Sociais Aplicadas e Saúde, o que garantirá ao leitor o prazer de interagir com diversos campos do conhecimento a partir de diferentes objetos, perspectivas teóricas e metodológicas. O Grande Rio, particularmente a Baixada Fluminense, constitui o eixo dos textos. Seja no âmbito educacional, no campo da história, da saúde ou das políticas públicas, é a partir das reflexões sobre este espaço e de propostas de melhoria na vida para sua população que se consubstanciam as produções. O estudo de Paulo César Ferraz sobre o quanto as preferências de processamento hemisférico direito ou esquerdo interferem no processo de ensino-aprendizagem constituem o primeiro capítulo. Ele identifica o nível de preferência de processamento cerebral em escolares de ambos os gêneros, entre 8 e 10 anos de idade, da ABEU – Colégios. Objetivando discutir a adequação da metodologia adotada nas aulas a partir dos resultados
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encontrados, apresenta os dados obtidos para professores das turmas foco de observação. Na
sequência,
Edson
de
Siqueira
Estarneck
empreende
uma
microanálise etnográfica sobre o ensino de língua estrangeira na escola pública popular do Grande Rio. O autor analisa as dificuldades e dilemas existentes dentro e fora do espaço escolar que comprometem o ensino da língua estrangeira. Oferece a professores e alunos a condição de personagens centrais do estudo através da realização de entrevistas e aplicação de questionário. Fabíola Ribeiro Martins faz um levantamento dos fármacos mais utilizados entre estudantes de uma universidade da Baixada Fluminense. Verifica se existe distinção nos tipos de medicamentos adotados nos diferentes cursos de ensino superior e os parâmetros de consumo entre os gêneros masculino e feminino. Atenta à qualidade de vida da comunidade local, estuda o impacto da automedicação nos indivíduos que constituem seu campo de investigação. Hugo Jorge Jacques investiga respostas orgânicas em pessoas hipertensas que se tratam com exercícios neuroevolutivos. Os sujeitos da amostra são moradores de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, e ingressaram casuisticamente no projeto. O autor avalia se os resultados alcançados são significativos para a melhoria do quadro clínico e o quanto a técnica é eficaz na profilaxia da hipertensão arterial. Ivonete Cristina Campos, através da história oral, recupera a trajetória da educação na Baixada Fluminense nos últimos 50 anos, enfocando os aspectos sociais, políticos e a dinâmica do mercado educacional na região. Privilegia o percurso da ABEU e da UNIABEU para pensar as transformações nas instituições de ensino na região. Ronald Apolinário de Lira faz uma pesquisa na interface biografia e história institucional e memória. Tem por objeto a trajetória da ABEU e da UNIABEU entrelaçada ao percurso de vida de seu fundador, o professor Valdir Vilela. Analisa como a identidade da unidade de ensino e a sua inserção na comunidade local correspondem ao próprio percurso da história da educação na Baixada Fluminense.
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Simone Eliza Lessa, a partir de entrevistas com profissionais de Serviço Social, de visitas institucionais, encontros regionais da área, da participação em eventos acadêmicos e da construção de um blog, empreende profícua análise sobre o desenvolvimento da política de assistência social da Baixada Fluminense bem como sobre o perfil dos profissionais na região em questão. Verifica
vertentes
teóricas,
impasses
e
condições
objetivas
de
operacionalização da política de assistência social na região. Paulo Gil Salles avalia o biotipo dos alunos do ensino fundamental da ABEU – Colégios, unidade Belford Roxo, a fim de identificar a presença de obesidade ou sobrepeso. Estuda o perfil do IMC e do %G dos discentes avaliados e sua condição motora no teste do sentar e levantar. Divulga os resultados obtidos para os ambientes escolar e familiar, objetivando a melhoria na qualidade de vida da população observada através do controle da quantidade de gordura corporal. Fechando o livro, Alberto Alvarães investiga quanto a prática de ensino por meio da pesquisa colabora no desenvolvimento da autoestima e da autorrealização em discentes da educação superior. Um dos pontos altos do trabalho é a articulação do tripé ensino/pesquisa/extensão, pois o
foco de
observação e de análise foi o projeto de extensão Centro de Desenvolvimento Humano (CDH) na UNIABEU. Desta forma, tenho a certeza que o leitor encontrará uma oportunidade ímpar de refletir sobre aspectos educacionais, históricos, de política pública e de saúde da Baixada Fluminense. Também tenho a esperança que estas análises permitam uma ação mais crítica e íntegra dos cidadãos e instituições governamentais envolvidos com a região. Para finalizar, agradeço ao Gerente de Pós-graduação, Pesquisa, Extensão e Responsabilidade Social, Prof. Marcelo Mariano Mazzi, pela iniciativa de publicar os resultados das pesquisas realizadas.
Andrea Santos da Silva Pessanha
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IDENTIFICAÇÃO DE PREFERÊNCIA DE PROCESSAMENTO HEMISFÉRICO EM ESCOLARES DE AMBOS OS GÊNEROS Paulo César Guedes Ferraz1 1. INTRODUÇÃO
Os
estudos
atuais
em
neurociências
demonstram
existir
certas
especializações de tarefas para cada hemisfério cerebral, e que cada indivíduo apresenta preferências no processamento mental, independentemente do tipo de informação processada. Bogen (1969 apud MEDEIROS e SILVA, 2008) escreve que um dado hemisfério cerebral é especializado para um tipo específico de informação. Esta afirmação se traduz no conceito de hemisfericidade, que se trata “de uma significativa preferência para processar informações dentro do hemisfério cerebral direito ou esquerdo, independentemente do tipo de conteúdo contido na informação” (FERRAZ, 2008: 1). Segundo este autor, apenas 25% da população são hemisféricos, ou seja, possuem dominância cerebral direita ou esquerda, sendo que os restantes 75% não possuem tal dominância, processando informações em ambos os hemisférios, sendo denominados bihemisféricos. Diz ainda que, paralelamente ao fato da funcionalidade hemisférica, encontra-se a noção sobre a dominância estrutural, fenômeno associado à hipótese de que os neurônios residentes em cada hemisfério se especializam para desempenhos específicos. Estudos neurofisiológicos de populações clínicas e normais têm definido este fenômeno como a lateralização de funções cerebrais. Bryden (1990 apud SPRINGER e DEUTSCH, 1998) desenvolveu um modelo de função cerebral, no qual os hemisférios cerebrais possuem, também, dominância para processar habilidades específicas. Nesta linha de pesquisa, foi Murray (1979 apud FERRAZ, 2008) quem investigou, de modo 1
Doutorando em Neurociências - Universidad de La República (Montevideo); Mestre em Ciências da Motricidade Humana - Universidade Castelo Branco; Mestre em Ciências do Desporto - Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Graduado em Educação Física Universidade Federal do Rio de Janeiro; Docente da UNIABEU - Curso de Educação Física
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pioneiro, a hemisfericidade como um fator de habilidade preponderante no aprendizado motor, encontrando um emparelhamento das características de hemisfericidade com estratégias de ensino hemisféricas que podem aumentar o nível de aquisição de habilidades. Este mesmo autor afirma, ainda, que indivíduos hemisféricos direitos processam informações com maior facilidade se estas forem explicitadas através de estratégias holísticas e não verbais, enquanto os indivíduos hemisféricos esquerdos o fazem através de estratégias de ensino analíticas e verbais. Tais variações estruturais podem estabelecer relações conflitantes, ao passo que o tipo de preferência de processamento de um determinado indivíduo não coincide com a natureza estrutural de sua hemisfericidade. Outra pesquisa conhecida nesta área foi desenvolvida por Fairweather e Sidaway (1994 apud MEDEIROS e SILVA, 2008). Nesta, indivíduos sem preferência hemisférica foram investigados. Divididos em três grupos, cada grupo recebeu diferentes estratégias de ensino para a habilidade com o golfe. No primeiro grupo - hemisférico esquerdo, as estratégias de ensino para o golfe eram verbais; no segundo grupo, formado de hemisféricos direitos, as estratégias de ensino foram holísticas; e, finalmente, o terceiro grupo era composto por bi-hemisféricos, com estratégias holísticas e verbais de ensino. Os melhores resultados para a aquisição e retenção da habilidade com o golfe foram para o grupo bi-hemisférico, uma vez que este teve dois tipos de estratégias de ensino, uma verbal e outra holística, o que representa a interação dos dois processos de aprendizagem. Dentre outros pesquisadores, foi Murray (1979 apud FERRAZ, 2008) que sugeriu a necessidade de haver uma alteração em modelos pedagógicos que não apresentam especificidade correlacionada ao tipo de hemisfericidade do estudante, visando o emparelhamento das partes a fim de proporcionar uma melhor assimilação, por parte do aluno, dos conteúdos pertinentes à aprendizagem e desenvolvimento deste. Assim sendo, um hemisfério preferido para processar uma dada informação possui, estruturalmente, os conteúdos funcionais necessários àquela informação, tornando facilitada a absorção da informação. Por conseguinte, a tarefa de aprender apresenta-se menos complexa e o desempenho, mais apropriado.
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Desta forma, este trabalho objetivou identificar a preferência de processamento hemisférico de estudantes de ambos os gêneros, na faixa etária entre 8 e 10 anos, da instituição ABEU Colégios, situada em Belford Roxo, no Rio de Janeiro, além de averiguar a veracidade da literatura no que diz respeito à porcentagem de indivíduos que possuem uma dada dominância hemisférica, e de servir como objeto de promoção de uma abordagem metodológica, por parte dos profissionais da área de educação, específica para cada tipo hemisférico. Mesmo que estes profissionais não consigam identificar a hemisfericidade individual de seus alunos, é fundamental que variem suas abordagens pedagógicas a fim de que consigam atingir a totalidade dos indivíduos envolvidos na situação de ensino-aprendizagem. Esta pesquisa se justificou pela inexistência na literatura especializada de evidências científicas que comprovem que a hemisfericidade, enquanto um fenômeno caracterizado por diferenças individuais com forte influência no processamento de informações, seja um fator significativo a ponto de influenciar o sucesso e a eficiência da aprendizagem no ambiente pedagógico e, também, no ensino de habilidades motoras. De acordo com Lent (2001), o comportamento motor humano é influenciado de forma categórica pelo cérebro. É ele quem estabelece padrões de comunicação que vão dos movimentos corporais à fala, e estabelece também limites no volume de informação que pode ser absorvido e processado. É o órgão mais influente do corpo, modificado e alargado na porção anterior do sistema nervoso central (SNC). É circundado por três membranas protetoras, chamadas de meninges, ajustado dentro da cavidade craniana, e formado de neurônios (ou células nervosas) e células gliais. Silva e Clark (1991) mostram que em aproximadamente 1 quilo e 500 gramas de cérebro, que corresponde à massa encefálica de um adulto, cerca de 100 bilhões de células nervosas estão em atividade, o que leva cada uma dessas células a se ligar a milhares de outras células, formando uma rede bastante precisa e delicada com mais de 100 trilhões de conexões. Graças a esta rede, o homem consegue se desenvolver em seus aspectos físicos, psíquicos, sociais e cognitivos, ou seja, consegue pensar, raciocinar, lembrar, enxergar, ouvir, aprender e, também, se emocionar.
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É importante frisar que essa teia, no homem, não vem pronta e acabada. O cérebro de um recém-nascido guarda os neurônios de toda uma vida, entretanto, as conexões ainda não estão totalmente desenvolvidas e a diferença de peso entre o cérebro de um adulto e o de um bebê vem exatamente deste fato, pois as fibras nervosas capazes de ativar o cérebro precisam ser construídas e, para que isso possa acontecer, é preciso que a criança seja submetida a estímulos, exigências e desafios, principalmente entre o nascimento e os quatro anos de idade. Isso porque o homem nasce com habilidades motoras muito rudimentares. Le Boulch (1982) sugere que através de estimulações e de uma prática ativa, especialmente durante a infância, é que a criança gradativamente se desenvolve e aprende as diferentes tarefas, isso porque o cérebro é o órgão mestre de processamento de informação e de tomada de decisões do corpo. Ele recebe mensagens dos receptores, integra essas informações com experiências passadas, avalia todos os dados e planeja a ação. Como descrevem Silva e Clark (1991), nos bebês o cérebro é um órgão de grande plasticidade. Seus dois hemisférios - o esquerdo e o direito - ainda não se especializaram, o que só irá acontecer entre os cinco e dez anos de idade. Dentro de cada hemisfério no nível do córtex cerebral, ainda não se plugaram as terminações nervosas responsáveis por funções elementares tais como a fala, a visão, o tato, ou refinadas como o raciocínio matemático, o pensamento lógico ou musical. Os circuitos cerebrais responsáveis por diferentes funções amadurecem em períodos diferentes da vida, o que, em outras palavras, podese dizer que dentro de uma visão desenvolvimentista, existem épocas mais propícias para estimular os circuitos. No início da formação cerebral, as células nervosas são minúsculas e há grande distância entre elas. A célula só passa a ser denominada neurônio depois de estabelecer uma comunicação com outro neurônio. Pode-se afirmar, portanto, que o cérebro, para se desenvolver, precisa de estímulos, apesar de haver uma potencialidade genética. Pesquisadores em geral, dentre eles Le Boulch (1992), afirmam que até os cinco anos há o desenvolvimento da percepção de formas. Os circuitos neurais da linguagem, em processo de amadurecimento, entram em rede com a habilidade motora. Essa fase é plenamente observável, pois quando a criança
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fala: "eu vou abrir a porta", ela concretiza seu objetivo. A linguagem organiza as ações, que por sua vez, passam a ser intencionais. Nessa fase ainda, se iniciam os jogos simbólicos. Essa é a fase do desenvolvimento em que o cérebro da criança começa a se especializar. Os hemisférios, esquerdo e direito, passam a se ocupar de funções diferentes e bem definidas. Essa especialização permite à criança desenvolver o sentido de lateralidade
e
direcionalidade.
Observa-se
um
aperfeiçoamento
da
coordenação motora e da percepção do corpo no espaço. Aqui há um reforço dos circuitos que ligam a intenção a um ato concreto e, como consequência, a criança passa a se movimentar com mais precisão e desenvoltura. Paralelamente, desenvolve-se o raciocínio lógico-formal, sendo que a partir do décimo ano de vida é observado um predomínio das funções simbólicas sobre a motora. Portanto, na fase da adolescência os circuitos neurais estão praticamente todos desenvolvidos, com o cérebro assemelhado ao dos adultos. Silva e Clark (1991) frisam ainda que o meio ambiente tem íntima relação com o desenvolvimento cerebral. Através de estímulos, impulsos, desafios, tarefas a executar e aceitação de normas, o cérebro vai adquirindo grande experiência no processo de desenvolvimento de suas funções. Independente das capacidades inatas, tudo o mais precisa ser aprendido. Quanto maior a exposição da criança a estímulos variados e benéficos, maior a possibilidade de um pleno aproveitamento das potencialidades do seu cérebro. Embora, de uma maneira geral, o cérebro seja considerado como uma estrutura única, na realidade, é dividida em duas metades. Essas, chamadas de hemisférios, estão compactamente encerradas juntas dentro do crânio e ligadas por vários feixes distintos de fibras nervosas, que servem como canais de comunicação entre elas. Cada hemisfério parece ser anatomicamente uma imagem especular do outro, de forma muito semelhante à simetria geral dos lados direito e esquerdo do corpo humano. Muitas evidências, ao longo dos anos, mostraram que o cérebro esquerdo e o cérebro direito não são iguais em suas competências ou organizações. Em
vista
disso,
descobriu-se
que
o
hemisfério
esquerdo
está
predominantemente envolvido em processos analíticos, em especial na produção e compreensão da linguagem, além de parecer processar dados de uma forma sequencial. Já o hemisfério direito parece ser responsável por
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certas capacidades espaciais e habilidades musicais, assim como pelo processamento simultâneo e holístico da informação (SPRINGER e DEUTSCH, 1998, apud FERRAZ 2008). Nesse sentido, Bogen (1975 apud SPRINGER e DEUTSCH, 1998), neurocirurgião envolvido na pesquisa com a comissurotomia (pacientes submetidos à cirurgia para cortar as fibras nervosas que, em situação normal, funcionam como caminhos ou trilhas corticais, interligando os hemisférios cerebrais), sugeriu que as pesquisas das diferenças hemisféricas têm importantes implicações para a questão da educação. Esse autor afirmou ainda que a atual ênfase na aquisição de habilidades verbais e no desenvolvimento de processos de pensamento analítico (hemisfério
esquerdo)
negligencia
o
desenvolvimento
de
importantes
habilidades não verbais (hemisfério direito). Ou seja, a falta de estimulação nessa metade do cérebro resulta num descaso sobre sua potencial contribuição para o desenvolvimento global do indivíduo. Um importante progresso nessa área foi a descoberta de diferenças significativas e bastante consistentes no tipo de desempenho apresentado por pessoas portadoras de lesão no hemisfério esquerdo e pessoas com lesões no hemisfério direito, em testes psicológicos padronizados. Esses testes foram inicialmente desenvolvidos para estudar e comparar sujeitos normais, no decorrer de dimensionamentos tais como: habilidade verbal, avaliação de relações espaciais e habilidades para manipular formas. Os resultados deste e de estudos subsequentes foram impressionantes. Descobriu-se, em regra geral, que a lesão do hemisfério esquerdo resulta num desempenho pobre, em testes que dão ênfase à habilidade verbal. E que pacientes com lesão no hemisfério direito, habitualmente, saíam-se pior em testes não verbais envolvendo a manipulação de figuras geométricas, montagem de quebra-cabeças e outras tarefas que incluíssem forma, distância e relações de espaço. Assim, pode-se dizer que a importância de se atentar para a estimulação de ambos os hemisférios está no fato de que contribuem para a atividade mental complexa, embora diferindo em suas funções e organizações. Essa ideia de que cada hemisfério é especializado em diferentes funções é conhecida como especialização complementar.
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Espera-se que os resultados obtidos através deste estudo, somados aos já existentes na área de aprendizagem motora, possam contribuir com dados e informações comprovadas cientificamente sobre a importância da função cerebral no que diz respeito ao processamento específico de habilidades motoras, podendo tais informações contribuir para a formação teórica e prática de professores de Educação Física e outros profissionais ligados a esta área de estudo. Pressupõe-se, ainda, que os referidos resultados possam vir somar informações, na expectativa de poder contribuir de forma positiva para o desenvolvimento de teorias de aprendizagem motora, bem como de técnicas e metodologias de ensino, compatíveis e adequados à natureza do indivíduo aprendiz. 2. A ESPECIALIZAÇÃO DOS HEMISFÉRIOS
Num dos vários encontros da sociedade médica de Montpellier, em 1836, o médico francês Marc Dax relatou que, durante sua carreira como clínico geral, havia observado que muitos pacientes, em consequência de danos ocorridos no cérebro, apresentavam perda da voz (afasia). Embora esta observação não fosse uma novidade, se mostrava impressionado pela associação existente entre a perda da voz e o lado do cérebro em que havia ocorrido a lesão. Em mais de quarenta pacientes com afasia, havia encontrado sinais de danos produzidos na metade esquerda do cérebro. E, dentre todos os casos investigados, não conseguiu descobrir um único caso sequer com lesão apenas no lado direito. Nesta oportunidade, fez um sumário dessas observações, que o levaram à conclusão de que cada metade do cérebro controla diferentes funções, sendo que a função da fala é controlada pela metade esquerda. Dax veio a falecer no ano seguinte (1837) sem imaginar que tinha antecipado uma das mais excitantes e produtivas áreas da pesquisa científica da segunda metade do século XX: a investigação das diferenças entre o cérebro direito e o cérebro esquerdo (SPRINGER, S. P. e DEUTSCH, G. 1998). Empregando, ainda, outras técnicas que limitam a informação visual e auditiva a um hemisfério de cada vez, foi demonstrada a ocorrência de
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diferenças significativas nas capacidades dos dois hemisférios em pacientes comissurotomizados. Encorajados por essa descoberta feita com base em pacientes com lesões cerebrais e daqueles submetidos a comissurotomia, os pesquisadores buscaram meios de estudar as diferenças hemisféricas em indivíduos neurologicamente normais. Ainda nessa linha de raciocínio, Sperry (1966 apud SPRINGER e DEUTSCH, 1998), pioneiro em trabalhos com pacientes comissurotomizados, propôs que em cada um dos hemisférios reside um curso independente de consciência. Este modelo leva à especulação sobre uma dupla consciência em um cérebro normal intacto sob certas condições. Outros pesquisadores enfatizaram a importância das diferenças entre os hemisférios, reivindicando que essas diferenças refletem claramente dualismos tradicionais, tais como: intelecto e intuição. Porém, de acordo com Ornstein (1977 apud SPRINGER e DEUTSCH, 1998), a pesquisa do cérebro mostra que essas distinções não são simplesmente um reflexo da cultura ou filosofia. De outra forma, pesquisadores como Bogen e outros, afirmaram que cada indivíduo pode ser classificado como hemisférico direito ou hemisférico esquerdo, dependendo
de qual hemisfério guie o conjunto do seu
comportamento. Nesse sentido, Bogen (1975 apud SPRINGER e DEUTSCH, 1998), neurocirurgião envolvido na pesquisa com a comissurotomia, sugeriu que as pesquisas das diferenças hemisféricas têm importantes implicações para a questão da educação. 3. A LOCALIZAÇÃO CEREBRAL E O HEMISFÉRIO ESQUERDO
Sabe-se no campo científico que foi Franz Gall, anatomista alemão, o primeiro a propor que o cérebro não é uma massa uniforme, e que várias faculdades mentais podem ser localizadas em diferentes partes do cérebro. Segundo esse autor, a faculdade da fala localiza-se nos lobos frontais (a parte de cada hemisfério mais próxima da parte frontal da cabeça). Entretanto, a ideia básica de que diferentes funções são controladas por diferentes áreas do cérebro atraiu muitos seguidores, dentre os quais Jean Baptiste Bouillaud, um professor de medicina francês.
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Por muitos anos, a maioria dos cientistas se alinhou em um dos lados dessa questão. Pois, enquanto um grupo acreditava firmemente que a fala é controlada pelos lobos frontais, o outro assegurava que uma determinada função não podia ser localizada em regiões específicas do cérebro. A controvérsia terminou em 1861, numa reunião da Sociedade de Antropologia, em Paris, onde Ernest Auburtin reiterou a afirmação de Bouillaud, de que o centro controlador da fala se encontra nos lobos frontais. Contudo, foi Paul Broca quem, através de exames post-mortem em cérebros de pacientes que sofriam da perda da fala, demonstrou lesões semelhantes em parte do lobo frontal. Apenas em 1864 é que se determinou a importância do hemisfério esquerdo na fala. A partir de muitos exames de necropsia, percebeu-se que lesões nesses diferentes sujeitos encontravam-se sempre no lado esquerdo. Com essa descoberta foi estabelecido que a faculdade de articular a linguagem estivesse localizada
no
hemisfério
esquerdo,
ou,
pelo
menos,
que
dependia,
prioritariamente, desse hemisfério. Por isso, Broca foi considerado como o principal proponente da localização de função cerebral. Em função deste fato, a área do cérebro envolvida em casos de perda de fala passou a ser conhecida como área de Broca. Além disso, tratou, também, da relação entre o uso da mão e a fala. Ele propôs que a fala e a habilidade manual são atribuíveis à superioridade inata do hemisfério esquerdo nos destros. A lei de Broca, que conceitua de que o hemisfério controlador da fala se encontra no lado oposto à mão predominante, exerceu bastante influência nos estudos científicos do século XX. Portanto, além de ter sido a primeira pessoa a chamar a atenção da comunidade médica para a assimetria do cérebro humano com relação à fala, Broca também foi o primeiro a estabelecer o elo entre assimetria e preferência manual (SPRINGER e DEUTSCH, 1998). 4. A DOMINÂNCIA DOS HEMISFÉRIOS CEREBRAIS A ideia da existência de um hemisfério “condutor” foi proposta por Jackson (1968 apud SPRINGER E DEUTSCH, 1998). Essa noção pode ser vista como precursora da ideia de dominância cerebral. Esse autor afirma que os dois
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cérebros não podem ser meras duplicatas. Assim, se a lesão ocorrida em apenas um deles pode deixar um indivíduo sem fala, calcula-se que deve haver um lado que está conduzindo esses processos. Com isso, concluiu que, na maioria das pessoas, o lado esquerdo do cérebro é o lado condutor, ou o lado da vontade, e que, o lado direito é o lado automático. Por volta de 1870, outros pesquisadores começaram a perceber que muitos tipos de distúrbios da linguagem poderiam resultar de lesão no hemisfério esquerdo. Atribui-se a Karl Wernicke (apud SPRINGER E DEUTSCH, 1998), neurologista alemão, a demonstração de que uma lesão na parte posterior do lobo temporal do hemisfério esquerdo poderia produzir dificuldades na compreensão da linguagem. De modo semelhante, problemas na leitura e na escrita eram identificados e mostrados como resultado de lesão no hemisfério esquerdo, não no direito. No final do século XIX, emergia claramente a configuração de um quadro em que o hemisfério esquerdo exercia um papel de grande importância nas funções da linguagem em geral, e não somente na fala em si (SPRINGER E DEUTSCH, 1998). Consideradas em conjunto, essas descobertas formaram a base de uma ampla concepção da relação entre os dois hemisférios. Um hemisfério, geralmente o esquerdo, em destros, era visto como o diretor da fala e de outras funções superiores, e o hemisfério direito não possuía funções especiais e estava subordinado ao controle do “dominante” esquerdo (SPRINGER E DEUTSCH, 1998). 4.1 O CÉREBRO DIREITO - O HEMISFÉRIO IGNORADO
Quase ao mesmo tempo em que o conceito de dominância cerebral tornase cientificamente popularizado, surgem evidências que atribuem ao hemisfério direito a existência de habilidades especializadas. A preocupação era com a localização das várias funções no hemisfério esquerdo. Essencialmente, o direito era ignorado. Na década de 1930, entretanto, foram coletados mais dados que mostravam desempenhos especializados do hemisfério direito e, a partir daí, os cientistas começaram a reconsiderar as suas ideias sobre as funções da metade considerada menos importante do cérebro.
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Um importante progresso foi a descoberta de diferenças significativas e bastante consistentes no tipo de desempenho apresentado por pessoas portadoras de lesão no hemisfério esquerdo e pessoas com lesões no hemisfério direito, em testes psicológicos padronizados. Esses testes foram inicialmente desenvolvidos para estudar e comparar sujeitos normais, no decorrer de dimensionamentos tais como: habilidade verbal, avaliação de relações espaciais e habilidades para manipular formas. Descobriu-se, em regra geral, que a lesão do hemisfério esquerdo resulta num desempenho pobre, em testes que dão ênfase à habilidade verbal. E que pacientes com lesão no hemisfério direito, habitualmente, saíam-se pior em testes não verbais envolvendo a manipulação de figuras geométricas, montagem de quebra-cabeças e outras tarefas que incluíssem forma, distância e relações de espaço. A razão mais provável para o demorado reconhecimento da importância do hemisfério direito reside no fato de que quaisquer incapacidades, causadas por lesões neste hemisfério, não eram tão fáceis de serem analisadas e ajustadas às ideias tradicionais relativas à função do cérebro. A maioria das lesões no hemisfério direito não suprimia nenhuma habilidade humana evidente de forma radical. Ao contrário, perturbavam o comportamento de maneira bastante discreta. Alguns dos problemas que aconteciam nas lesões do cérebro direito não eram tão fáceis de serem classificados, como os problemas associados a danos no hemisfério esquerdo. Com certa frequência, esses problemas não eram notados ou, então, eram mascarados por incapacidades físicas mais óbvias, tais como encontradas na maior parte das vítimas de acidente vascular cerebral - AVC. Vale aqui lembrar que o efeito mais debilitante é a paralisia, que acaba sendo a principal queixa do paciente. Uma lesão cerebral proveniente de traumas como acidentes ou ferimentos produzidos por armas é, também, seguido por complicações que dificultam a distinção de prejuízos sutis ao intelecto, em meio a um conjunto de outros problemas. Assim pode-se dizer que ambos os hemisférios contribuem para a atividade mental complexa, embora diferindo em suas funções e organizações. Essa ideia de que cada hemisfério é especializado em diferentes funções é conhecida como especialização complementar.
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5. DIFERENÇAS ENTRE OS GÊNEROS
Devido ao avanço da tecnologia, os neurocientistas podem hoje utilizar-se de técnicas de imagens sofisticadas e não invasivas, como a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) e a Ressonância Magnética funcional (RMf), para observar o cérebro em ação. Tais experimentos com imagens permitem revelar que estas diferenças anatômicas ocorrem em uma série de regiões do cérebro. De acordo com Ferraz (2008), pesquisadores da Faculdade de Medicina de Harvard descobriram que determinadas partes do córtex frontal (envolvido em funções cognitivas importantes) são proporcionalmente mais volumosas em mulheres do que em homens, assim como partes do córtex límbico (envolvido nas reações emocionais). E que em homens, por outro lado, partes do córtex parietal, ligado à percepção espacial, são maiores do que nas mulheres, assim como a amígdala - estrutura em forma de amêndoa que reage a informações que despertam emoções. Foi publicado recentemente na revista "Cerebral Cortex" o resultado de uma pesquisa realizada na John Hopkins University, de que existe uma região no córtex chamado de Lóbulo Ínfero-Parietal (LIP), que é significativamente maior nos homens do que nas mulheres. Essa área é bilateral, localizada no córtex parietal, sendo que nos homens o lado esquerdo do LIP se apresenta maior do que o lado direito, porém nas mulheres a assimetria é exatamente inversa, sendo o lado direito maior que o esquerdo. Tais diferenças não são tão importantes nas mulheres quanto nos homens. Um exemplo disso é que esta área foi demonstrada ser maior no cérebro de Albert Einstein e em outros físicos e matemáticos. Portanto o tamanho do LIP está correlacionado a habilidades mentais em cálculos. Ainda segundo o autor, os estudos dirigidos pelo Dr. Godfrey Pearlson demonstraram que duas áreas nos lobos frontais e temporais relacionadas à linguagem (conhecidas como áreas de Broca e Wernicke, em homenagem a seus descobridores) são significativamente maiores nas mulheres. Devido a esta concepção, justifica-se, em termos biológicos, a notória superioridade mental das mulheres no quesito linguagem. E, apesar da semelhança estrutural, os lobos frontais exibem diferenças e assimetrias morfológicas de
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gênero. Pois, no cérebro humano, as diferenças inter-hemisféricas, esquerdodireito, estão mais presentes na mulher. Um grupo de pesquisadores da University of Cincinnati, nos Estados Unidos, apresentou evidências morfológicas de que os homens possuem um maior número de neurônios no córtex cerebral, ao passo que, as mulheres são possuidoras de um espaço entre os corpos celulares, que contém as sinapses, dendritos e axônios mais desenvolvidos, permitindo uma melhor comunicação entre os neurônios. Outros pesquisadores comprovaram que as mulheres processam a linguagem a partir dos dois hemisférios do cérebro frontal, enquanto que os homens tendem a processá-la apenas no hemisfério esquerdo. Têm sido encontrados indícios de que, além do córtex cerebral, são, também, encontradas diferenças de gênero em partes mais primitivas do cérebro, citando-se o hipotálamo. Foi descoberto que o volume de um núcleo específico do hipotálamo (terceiro grupo de células no núcleo intersticial do hipotálamo inferior) é duas vezes maior em homens heterossexuais do que nas mulheres e nos homossexuais (WEINECK, 2005 apud FERRAZ, 2008). Um diferencial entre os gêneros, em geral, encontrado em estudos, foi que os
homens,
enquanto
executavam
tarefas
completamente
diferentes
(linguística e espacial), apresentavam maiores assimetrias na atividade do lobo frontal, enquanto as mulheres, no lobo temporal.
Com isso, Weineck
(2005) afirma que “na média, as mulheres são de 10 a 15cm menores e de 10 a 20kg mais leves que os homens”. Ainda de acordo com este autor, no que diz respeito às capacidades coordenativas, a coordenação motora da mulher é maior em momentos em que a força não é um fator preponderante. Conjuntamente, as habilidades óculo-manual e óculo-podal são desenvolvidas da mesma forma em ambos os sexos, claro que se considerando as características específicas de cada sexo. Assim, compreender as diferenças entre homens e mulheres é de suma importância para se considerar como os gêneros hemisféricos direitos de ambos os gêneros reagem, expostos a tarefas específicas do hemisfério direito.
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6. HEMISFERICIDADE X GÊNEROS
De acordo com estudos, citando autores como Murray, Penna, Ferraz, assim como outros, a hemisfericidade é um fator preponderante no aprendizado, sendo que, quando associado ao gênero, se torna ainda mais efetivo. Ferraz (2008) afirma que várias pesquisas têm revelado algumas tendências associadas ao tipo de preferência de processamento hemisférico de crianças, adolescentes e idosos, quase sempre marcando evidências de que, em muitas situações, o tipo de preferência de processamento, alinhado à natureza estrutural do hemisfério, pode ser mais benéfico do que quando não alinhada. Desta forma, se faz necessária a intervenção na metodologia do processo ensino-aprendizagem de profissionais da área de educação. Além de considerar a relação hemisfericidade-gênero do indivíduo em questão, individualmente. Sendo, para isso, fundamental se aplicarem metodologias diversificadas sempre que possível, devendo, assim, cada profissional atuar de diversificadas formas visando atingir todo o contingente de aprendizes em suas especificidades de processamento. Importante ressaltar que a principal função dos métodos de ensino é nortear educadores em seu planejamento e sua prática, visando atingir os objetivos propostos, sendo que estes não necessitam ater-se a apenas um método
de
ensino,
podendo
utilizar-se
de
variadas
metodologias
simultaneamente. É importante buscar e analisar quais possuem maior influência benéfica no aprendizado dos alunos. Assim sendo, deve utilizar e reutilizar diversificados métodos e metodologias, a fim de atingir toda a demanda de alunos. Sobre a questão da aplicabilidade prática dos estudos sobre a hemisfericidade, segundo a hipótese desenvolvida por Ferraz (2008:3) em sua pesquisa, ele afirma que: “estudos significativos na área do processamento de informações demonstraram que indivíduos hemisféricos direitos, quando comparados aos hemisféricos esquerdos, ou bi-hemisféricos e, quando o conteúdo da tarefa tenha sido compatível com a estruturação funcional do hemisfério direito, foram melhores no desempenho da tarefa”.
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Interessante observar que os indivíduos hemisféricos direitos (HD), considerando tarefas de cunho espaço-temporal, obtêm melhor desempenho do que indivíduos hemisféricos esquerdos (HE), e ainda que os bi-hemisféricos (BH). Sendo que no primeiro caso, significativamente melhores em termos estatísticos. Nesse sentido, também Márquez (2006 apud Ferraz, 2008) observou este ponto de racionalidade da pesquisa, investigando os efeitos de estimulação cortical em crianças com dificuldade de aprendizagem, verificando, assim, que os hemisféricos direitos eram mais beneficiados que os hemisféricos esquerdos, em tarefas de cunho psicomotor de grande complexidade em termos espaciais e temporais, porém não sendo observado quando a demanda se relacionava a assuntos de linguagem. Pode-se assim observar que os indivíduos hemisféricos direitos (HD) são beneficiados em tarefas específicas deste hemisfério, seguindo-se a estes os indivíduos bi-hemisféricos (BH) e, por último, os hemisféricos esquerdos (HE). 7. MÉTODOS DE ENSINO
Depois de anos misturando metodologias diferentes no sentido de buscar um caminho coerente com seus objetivos, a Educação Física contemporânea, de acordo com a concepção de Betti (1992), passa a ter uma função pedagógica de integrar e introduzir o aluno no mundo da cultura corporal, visando a formação de um cidadão consciente e crítico, para que ele possa produzir, transformar, partilhar e usufruir das diferentes formas de cultura de atividades físicas, bem como do jogo, do esporte, da dança e da ginástica. Xavier (1986) diz que a grande maioria de educadores afirma que professores
que
apresentem
postura
tecnicista
e
autoritária
e,
consequentemente, métodos de ensino não voltados para a inclusão do aluno, para o respeito à sua individualidade e, também, para as suas limitações, estariam apenas desenvolvendo movimentos repetitivos, sem nenhuma preocupação com a formação do ser humano, que, entendemos, deva ser uma formação que o ajude a desenvolver uma consciência, crítica, humanista, participativa e solidária.
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Importante ressaltar que a principal função do método é nortear o educador e os educandos para tentar alcançar os objetivos propostos, podendo, assim, o professor utilizar-se de vários métodos sucessivamente, visando sempre o nível de alcance da aprendizagem do aluno. Deve-se lembrar que se torna de inteira responsabilidade do professor selecionar qual ou quais os métodos que trarão melhores resultados. Com relação à aprendizagem do aluno, é de sua inteira responsabilidade, também, avaliar constantemente o método que está eventualmente sendo utilizado, no sentido de poder concluir se esse método está realmente garantindo uma verdadeira ação educativa, com caráter integrador, criativo e crítico. Ressalta-se ainda que Xavier (1986) demonstra que um método que garanta essas ações educativas precisa ser um método educativo, ativo, simples, útil, interessante, integral, prático, econômico, psicológico, socializador e gradual em relação aos diferentes níveis e capacidades do aluno. Entendemos que o conhecimento é, na sociedade moderna, fundamental na existência, nas ações e nas realizações de todo ser humano. A cognição assume um papel estratégico no contexto da sociedade atual, onde as mudanças são rápidas e imprevisíveis. Em função disso, o conhecimento representa hoje, para o homem, um fator de investimento altamente cultural nas sociedades mais desenvolvidas. Cognição pode ser entendida como o ato de conhecer ou de captar, integrar, elaborar e exprimir informação (FONSECA 1998). Este tema interessa não só a todos os educadores, mas também a todos os cidadãos, sem exceção, pois a sua abrangência e complexidade refletem na concepção de um ser humano adaptado ao seu contexto sócio-cultural, preparando-o para a resolução de problemas. Importante caracterizar que, desde o nascimento, o homem se inicia em um processo informal de aprendizagem, que naturalmente o levará a fixar as bases do seu conhecimento ilimitado, que, por sua vez, se desenvolverá até o final de sua vida. Grande parte deste conhecimento origina-se de uma aprendizagem formal, onde a aprendizagem motora e aprendizagem da linguagem são as grandes estruturas que constituem o complexo cognitivo.
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Ainda segundo Fonseca (1998), como seres humanos somos organismos complexos, cuja evolução, tanto na filogênese quanto na ontogênese, retrata uma interação multifacetada entre o corpo, o cérebro e os vários ecossistemas (exemplo: família, creche, escola, emprego, comunidade etc.), e é dessa interação que ocorre o desenvolvimento cognitivo, através do qual nos adaptamos ao meio exterior que nos envolve e o transformamos de acordo com nossas necessidades. Sabe-se, através de inúmeras pesquisas nesta área, que a evolução da espécie humana é um longo caminho de aprendizagem e adaptação, que vai do ato ao pensamento e do gesto à palavra. Implícito nesta transição evolutiva está o desenvolvimento cognitivo, onde o ser humano é o principal responsável pela transformação que se estabelece na ação, ou seja, uma ação corporal guiada por processos cognitivos intencionais processados cerebralmente. Sem cognição, portanto, não podemos explicar nosso passado como espécie, nem preparar o nosso futuro, onde irão surgir novos desafios. A cognição, como processo e produto da atividade do cérebro e da sua interação com o meio ambiente, está na origem da adaptabilidade e da aprendizagem que caracterizam a espécie humana, sem as quais a civilização não se poderia conceber, explicar e transformar. Ainda segundo Fonseca (1998), o desenvolvimento da inteligência e da cognição é realizado pela interação entre as gerações, como um produto de uma experiência de aprendizagem mediatizada. Essa pode ser definida como sendo uma mudança de comportamento provocada pela experiência de outro ser humano e, não meramente pela experiência própria e prática em si, ou pela repetição ou associação automática de estímulos e respostas. Logo, a aprendizagem humana é possível pela ação de um mediador que se interpõe entre os estímulos e o organismo para captar da mente do indivíduo as significações interiorizadas, que advêm da própria experiência de aprendizagem, para provocar nele estados de alerta, de processamento, de planificação e de transcendência, mudanças e arranjos de informação autônomos, modulando o tempo, o espaço e a intensidade dos estímulos, humanizando-os
e
conferindo-lhes
significação,
como
instrumentos
psicológicos mais aptos e flexíveis para produzirem soluções às situaçõesproblema provocadas pela natureza e pela cultura (FONSECA, 1998).
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Neste contexto, a aprendizagem humana emerge da relação do indivíduo com o meio, mediada por outro indivíduo mais experiente, cujas práticas e crenças culturais são transmitidas às gerações futuras, promovendo nelas zonas mais amplas de desenvolvimento cognitivo crítico e criativo. Com base nessas afirmações, compreende-se que o papel do professor é de fundamental importância na orientação do aprendiz, objetivando a construção. A criança, não sendo capaz de construir o conhecimento de uma ação complexa sozinha, precisa do professor para orientá-la no processo cognitivo sobre os links e nódulos de cada ação, para poder surgir a construção.
8. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS
A pesquisa contou com 90 alunos de ambos os gêneros, na faixa etária entre 8 e 10 anos, da rede de ensino ABEU Colégios, situada no município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro. A participação dos indivíduos tornou-se possível devido à liberação prévia por parte da instituição de ensino, sendo realizados os testes em horário de aula. Os alunos eram liberados para testagem em pequenos grupos, acompanhados de um coordenador responsável do colégio. Os testes utilizados para determinação da hemisfericidade dos elementos participantes do estudo são testes validados e de ampla utilização em pesquisas nesta área. Tal validação foi obtida através de comparações entre o teste comportamental e verificações de comportamento em situações gerenciadas por aparelhos eletroeletrônicos magnéticos de alta precisão, como: Tomografia Computadorizada, Tomografia por Emissão de Prótons (PET) e outros similares. Baseado nessas testagens científicas e considerando as altas validades alcançadas nas comparações de testes por inferências comportamentais versus testes eletrônicos, o teste utilizado nesta pesquisa foi tão somente o de inferência comportamental ou, mais especificamente, o teste do CLEM (Movimento Conjugado Lateral dos Olhos), para identificação do tipo de hemisfericidade dos indivíduos participantes. Desta forma foram coletados dados através do teste do CLEM (Movimento Conjugado Lateral dos Olhos), validado através do Neurocomp, PROCOMP+,
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fabricado pela Thought Tecnology, Ltd., com utilização do programa Biograph (Versão 2.1). Este teste é aplicado com o objetivo de identificar tendências de dominância cerebral em processamentos mentais. 8.1 INSTRUMENTOS
O teste do CLEM é destinado a registrar o movimento conjugado lateral dos olhos (determinante do hemisfério do testado em processamento no momento) e a análise é registrada no modelo de sistema numérico de “face de relógio” de Brog (1983 apud MEDEIROS e SILVA, 2008: 8). “O movimento de olhos lateral conjugado é a divergência de ambos os olhos de um foco central em resposta a uma questão reflexiva” (BAKAN, 1969 apud MEDEIROS e SILVA, 2008: 8). Para realização dos testes foram necessários uma câmera de vídeo, um cartão branco medindo 5 x 10 cm, colocado logo acima da lente da câmera, que direciona o olhar do testado, e uma cortina preta (neste caso, sendo feita de tecido TNT), que separa a câmera e o operador, e demais profissionais, do testado. O espaço utilizado para realização dos testes foi uma sala, da própria instituição, medindo 4 x 3,5 metros, nela estando um sofá e uma cadeira para os pesquisadores e uma cadeira para o testado. Esta sala possuía paredes pintadas em cores suaves. Foram utilizadas 15 perguntas para avaliar o testado, sendo 5 analíticas, 5 espaciais e 5 analítico-espaciais. Cada resposta, pensada ou balbuciada, correspondeu a uma pergunta (problema) que foi dirigida ao testado, todas com relações específicas a um ou outro hemisfério ou a ambos. A equipe de teste foi composta por três examinadores, o coordenador do Projeto de pesquisa e dois bolsistas discentes graduandos do curso de educação física, participantes da pesquisa do Projeto (PROAPE). 9. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Os resultados obtidos a partir da aplicação do teste do CLEM foram comparados aos da literatura, quando foram observadas concordâncias. Por norma metodológica, foram apresentadas cinco questões específicas de cada
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tipo hemisférico (HD ou HE) e cinco para bi-hemisféricos (BH) a cada testado, detectando-se através da filmagem o movimento lateral conjugado dos olhos. Esse movimento conjugado dos olhos foi registrado através de filmadora para posterior avaliação e análise de preferência de processamento hemisférico, quando, então, era comparado ao modelo de sistema numérico de “face de relógio” de Brog. A respeito desse movimento ocular conjugado, pode ser dito, de acordo com a literatura, que quando o movimento dos olhos é feito para o lado direito é indicativo de atividade no hemisfério cerebral esquerdo, e que, quando o movimento é para o lado esquerdo, indica atividade no hemisfério cerebral direito. Verificou-se também, através da metodologia descrita, que em cada dez indivíduos pré-testados, de dois a três deles exibiam uma clara definição de hemisfericidade, ou seja, ora dois hemisféricos direitos e um esquerdo, ora dois hemisféricos esquerdos e um direito ou, vez por outra, apenas um hemisférico direito e um esquerdo, sendo que, quase sempre, sete deles eram bihemisféricos. A análise da amostra de 90 crianças compôs-se, então, de 67 indivíduos bi-hemisféricos (BH), 13 hemisféricos esquerdos (HE) e 10 hemisféricos direitos (HD), de ambos os gêneros, sendo representativa para a pesquisa a totalidade de indivíduos. O percentual descrito na literatura científica, que diz que aproximadamente 25% de uma dada população são hemisféricos, ou seja, processam informação em apenas um hemisfério cerebral, e 75% são bihemisféricos, confere com a pesquisa realizada. Nos gráficos a seguir são apresentados os resultados oriundos das análises da amostra, conforme especificadas na sessão que descreveu a metodologia desta pesquisa. 40 35 30 25 HD
20
HE
BH
15 10 5 0 MASCULINO
FEMININO
Gráfico 1. Predominância de processamento hemisférico por gênero
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O gráfico acima indica que através do teste do CLEM, com um número de 90 indivíduos de ambos os gêneros, foram encontrados 5 HD do gênero masculino, 5 HD do gênero feminino, 4 HE do gênero masculino, 9 HE do gênero feminino, 36 BH do gênero masculino e 31 BH do gênero feminino.
80% 70% 60% 50%
HD
40%
HE
30% BH
20% 10% 0% MASCULINO
FEMININO
Gráfico 2. Percentual de indivíduos especificados por gênero
De acordo com o gráfico acima, constata-se que, ao se dividir o total de indivíduos por gênero, por hemisfério, encontraram-se 50% HD do gênero masculino e 50% HD do gênero feminino, 30,77% HE do gênero masculino e 69,23% HE do gênero feminino, e 53,73% BH do gênero masculino e 46,27% BH do gênero feminino. Observa-se aqui que há uma diferença percentual significativa entre os gêneros, em relação ao Hemisfério Esquerdo (HE). 80% 70% 60% 50% 40% H
30%
BH
20% 10% 0% HEMISFÉRICO
BI-HEMISFÉRICO
Gráfico 3. Percentual total de indivíduos por hemisfério
O gráfico acima demonstra uma coerência da pesquisa realizada em relação ao que a literatura especifica, ou seja, que 74,43% do total de sujeitos da amostra colhida são bi-hemisféricos (BH) e 25,54% hemisféricos (HD ou HE). Isto indica que a população brasileira se enquadra nos parâmetros científicos apontados pela literatura mundial, que diz que 75% de uma dada população são bi-hemisféricos (BH) e que 25% são hemisféricos (HD ou HE).
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Importante ainda considerar que nossa amostra foi colhida em um município da Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro. Desta forma, ao serem analisados os resultados obtidos, pode-se observar que houve predominância em ambos os gêneros de indivíduos bi-hemisféricos (BH). Ressaltando-se, também, que houve predominância do gênero feminino em relação a indivíduos hemisféricos esquerdos (HE) e equivalência entre indivíduos hemisféricos direitos (HD) de ambos os gêneros. 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através
desta
pesquisa
foi
possível
apontar
algumas
questões
fundamentais sobre a especialização hemisférica, por exemplo, que ao se analisarem as características dos sujeitos, mediante suas respostas às questões
explicadas
anteriormente,
percebeu-se
que
indivíduos
HD
responderam melhor às questões espaciais, ao passo que os indivíduos HE responderam melhor às questões mais analíticas e que os BH respondiam melhor as questões analítico-espaciais. Quando se correlaciona tal fato à especificidade dos gêneros, os indivíduos de gênero feminino obtiveram um resultado significativamente maior nas tarefas relacionadas ao hemisfério esquerdo, o que pode ser um indicador que o gênero feminino é mais analítico, enquanto o gênero masculino mais espacial, porém, esta questão requer um maior aprofundamento em outras pesquisas. Em relação ao percentual de sujeitos bi-hemisféricos encontrados, houve compatibilidade com as especificações da literatura, no que diz que 75% de uma dada população são BH. Em função dos resultados encontrados nesta população pesquisada, podese dizer que o percentual de indivíduos hemisféricos e de indivíduos bihemisféricos foi compatível com o que diz a literatura mundial, ou seja, que 25% são mono-hemisféricos e 75% são bi-hemisféricos. No que diz respeito aos profissionais de educação de uma maneira geral, este é um fator de suma importância, visto que, se cada indivíduo processa informações de modo especializado, e isso consequentemente denota um modo pessoal de assimilar informação e de aprendizagem de novos
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conhecimentos, torna-se necessário constituir metodologias de ensino adequadas a diversas características hemisféricas. Acreditamos, portanto, que uma vez que se os profissionais de educação ofereçam metodologias de ensino variadas em termos de conteúdos específicos, o processo de ensino-aprendizagem se tornará mais eficiente e prazeroso.
11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEAR, M. F. CONNORS, B. W. e PARADISO, M. A. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. Porto Alegre: Artmed, 2002. 855 FERRAZ, P.C.G. Hemisfericidade e Especificidade da Tarefa: Análise entre Gêneros. Dissertação de Mestrado defendida em Agosto de 2008 no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Motricidade Humana - PROCIMH, da Universidade Castelo Branco (UCB-RJ), sob a orientação do Prof. Dr. Vernon Furtado da Silva, Rio de Janeiro. 2008. 137 FONSECA, V. Manual de Observação Psicomotora - significação psiconeurológica dos fatores psicomotores. Porto Alegre. Artes Médicas, 1992. 371 LE BOULCH, J. O Desenvolvimento Psicomotor: Do nascimento aos seis anos. 7ª Ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. 220 LENT, R. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociência. São Paulo. Editora Atheneu, 2001. MAGILL, R.A. Aprendizagem Motora: conceitos e aplicações. 5ª Ed. São Paulo: Blucher, 2000. 369 MEDEIROS, L. H. O. e SILVA, V. F. Assimetrias cerebrais funcionais em indivíduos hemisféricos direitos e hemisféricos esquerdos. Novo Enfoque, v. 06, p. 06, 2008. MOSSTON, M. e ASHWORTH, S. Do Comando à Descoberta: a ciência e a arte do ensino. New York: Longman Publishers, 1989.
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PINHEIRO, J. de P. e CORRÊA, U. C. Desempenho em uma Tarefa Complexa de “Timing” coincidente com Desaceleração do Estímulo Visual em Indivíduos de Diferentes Idades. In. Revista Brasileira de Educação Física e Esportes. São Paulo, v. 19, n.1, pp. 61-70, jan/mar, 2005. SILVA, V. F.; VALLADO, S. Y. ; DELGADO, G. P. O. ; RESENDE, D. O. ; MELO, W.de P. Correlação entre hemisfericidade e o aprendizado psicomotor em tarefas de comunicação gestual. Fisioterapia Brasil, Rio de janeiro, v. 05, n. 01, pp. 12-15, 2004. SPRINGER, S. P. e DEUTSCH, G. Cérebro Esquerdo, Cérebro Direito. São Paulo: Summus, 1998. 412 XAVIER, T. P. Método de Ensino em Educação Física. São Paulo: Manole. 1986
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A LÍNGUA ESTRANGEIRA NA ESCOLA PÚBLICA POPULAR: DILEMAS DO CONTEXTO DE ENSINO E DA PREPARAÇÃO DE PROFISSIONAIS Edson de Siqueira Estarneck1 1. INTRODUÇÃO Neste trabalho, apresentamos os resultados da pesquisa vinculada ao projeto intitulado Investigação na sala de aula como ponto de partida para propostas de projetos de ensino de Língua Estrangeira (LE), promovido pelo Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão (PROAPE) da Associação Brasileira de Ensino Universitário (UNIABEU - Centro Universitário). Devido à nossa posição de docente em escola da rede pública do Rio de Janeiro, de formador de profissionais da área de Letras e de participante de projetos de pesquisa em Linguística Aplicada, percebemos a necessidade de pensar o ensino de LE por meio de uma atuação contextualizada, orientada pela reflexão crítica e participativa dos agentes da escola. De maneira geral, buscamos observar o contexto de ensino de LE na escola pública popular para uma percepção das peculiaridades de suas condições ao atender comunidades socialmente
desprestigiadas na
Baixada
Fluminense.
De
forma
mais
específica, ressaltamos dois pontos que norteiam os interesses deste projeto. Um se refere à obtenção de percepções que orientem professores das escolas dos ensinos fundamental (de 5ª a 8ª série) e médio. A proposta é conhecer a realidade do ensino da LE para condução de abordagens didáticas orientadas pelo contexto de tais escolas e refletir na relevância socialmente prática do ensino dela para os grupos que as frequentam. Buscamos reconhecer propostas efetivamente contextualizadas para atender, de forma específica, as classes sociais que compõem a escola popular, a fim de, num desdobramento dos resultados analisados, proporcionar eventos e encontros dentro da escola para reflexão e novos posicionamentos dos seus participantes. Tal momento é o
segundo
passo
da
identificação
de
problemas
e
construção
de
inteligibilidades da investigação para a realização de uma pesquisa de intervenção. O outro ponto desta pesquisa está relacionado à preparação de profissionais do ensino de LE pelo curso de Licenciatura em Letras da 1
Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Coordenador do Curso de Letras da UNIABEU.
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UNIABEU, oportunizando aos colaboradores discentes do projeto, graduandos de Letras, vivência científica e experiência na área de sua formação para, a partir de investigação e observação no contexto da sala de aula da escola pública popular, obter resolução de problemas identificados. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O referencial teórico tem como base estudos que se amparam na Linguística Aplicada (LA), que buscam analisar e estudar problemas do uso da linguagem enfrentados por participantes de um contexto social específico. Moita Lopes expõe seu entendimento sobre a LA como uma área de investigação aplicada, mediadora, interdisciplinar, centrada na resolução de problemas de uso da linguagem de natureza processual, que colabora com o avanço do conhecimento teórico e que utiliza métodos de investigação de natureza positivista e interpretativista (MOITA LOPES, 1996, p.22).
Partimos, assim, de estudos que observam a interação dos participantes e a construção de conhecimento dentro da sala de aula, sem a idealização de propostas que pouco se aplicam a contextos definidos (cf. MOITA LOPES, 1996; CELANI, 2002; MAGALHÃES, 1998). Cremos na importância de deixarmos bem claro nosso posicionamento diante de um estudo que analisa o contexto escolar de classes socialmente desprestigiadas. Nossa proposta tem relevância social, porquanto busca orientações para o ensino de LE a um grupo social que sofre a imposição de valores de uma minoria hegemônica e que detém o poder política e economicamente. Colocamo-nos a refletir a escola dos menos favorecidos e compreender seus dilemas, uma vez já reconhecida a imposição tradicional dos valores linguísticos e culturais de uma classe social, que excluem os dos oprimidos (cf. SIGNORINI, 1994, MOITA LOPES, 1996, SOARES, 1995). O tema desenvolvido subjaz o par inclusão/exclusão de questões que envolvem as escolas que só são conhecedoras do saber que prestigia os valores dos grupos sociais detentores de poder político e econômico do país. Sendo assim, a exclusão social é evidenciada na escola por motivos lógicos, como é lógica a manutenção e apropriação dos valores dos que são
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pertencentes à classe que os institui. Sob a mesma lógica se reflete o fracasso daqueles que não veem suas referências culturais e linguísticas nas construções de conhecimento que a escola promove: É momento então de refletirmos. Como qualquer construção - e a do conhecimento não é diferente, o saber novo precisa partir de algum elemento formado anteriormente. De que maneira o ensino que não considera os valores de seus participantes poderá estruturar o conhecimento sem a presença de alicerces fundamentais para a negociação e construção do novo? A não aceitação dos valores, da cultura (e o dialeto está incluído nela) dá aos que não têm constituído uma estrutura básica de uso e interesse nesses valores dificuldades em se integrarem às propostas oferecidas na sala de aula através do ensino formal. Assim é fundamental para aqueles que trabalham com o ensino compreender o contexto das comunidades com as quais lidam e sugerir ações inclusivas de seus participantes, seus valores, sua cultura e sua variante dialetal para o sucesso do aprendizado (ESTARNECK, 2009, pp. 3-4).
Além de reconhecimento das necessidades do ensino-aprendizagem em LE no contexto de escolas populares, existe aqui uma busca por justiça social, por trabalhar pela igualdade de oportunidade, pela formação de profissionais que saibam construir da escola um espaço de referências culturalmente múltiplas e justas, onde todos, não só os da cultura dominante, tenham assegurados seu dialeto e valores; por uma escola que ofereça referências sociais diversas e que seja lugar em que os alunos também reconheçam as bases pertinentes à classe a que pertencem. Logo, é um desafio da escola e dos professores levarem aqueles que não possuem as mesmas referências sociais de prestígio à posição de igualdade. Para tanto, a escola precisa entre seus agentes construir aliados, colaboradores para alcançar entendimentos que surjam de reflexões críticas, a fim de obter a compreensão de como proporcionar contextos em que as práticas de sala de aula e as intenções em agir de alunos, professores e/ou coordenadores e pesquisadores sejam problematizadas, compreendidas e transformadas à luz de novas informações construídas, durante trocas discursivas entre coordenadores e professores e/ou entre pesquisadores e professores/coordenadores (MAGALHÃES, 1998, p.171).
É preciso esclarecer e ressaltar dois pontos que orientam as propostas deste projeto. Um é concernente à intenção de inclusão dos alunos, sem desprestigiar sua fala e cultura nos projetos a serem apresentados. O outro é
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concernente à busca pela análise de objetivos das ações em sala de aula, do currículo e de projetos socialmente funcionais. Entre os dilemas do ensino, reconhecemos as questões que apontam problemas na obtenção de coerência entre a teoria e a prática, no reconhecimento do aluno como sujeito e na utilização do ensino como ação interacionista de relevância para dentro e fora da escola (KLEIMAN, 1989). O ensino precisa estar fundamentado para uma função social, isto é, precisamos avaliar os objetivos da LE que pouco contribuem para a sociedade (MOITA LOPES, 1996). No entanto, os desafios enfrentados pela escola pública popular fazem com que a realidade das sociedades atuais não seja percebida ao ponto de surgir interesse em aprender uma língua estrangeira conforme se observa a demanda mundial. Vemos o problema da falta de objetivos claros e práticos no ensino de LE, que definam na cabeça de professores e alunos o motivo de se ensinar e aprender uma língua estrangeira. Como dizem os PCNs, o ensino de uma língua estrangeira vai muito além da aquisição de um conjunto de habilidades linguísticas, pois promove uma “apreciação dos costumes e valores de outras culturas e contribui para o desenvolvimento da própria cultura por meio da compreensão da(s) cultura(s) estrangeira(s)” (BRASIL, 1998, p. 37). Segundo os PCNs (BRASIL, 1998), a determinação de ter ou não a LE no currículo escolar depende da função social que desempenha na região. Dessa forma, ela é facultativa e, em alguns lugares, pode não ter característica reprovativa. Há estados em que ela compõe a grade curricular de uma ou duas séries do ensino fundamental e, em outros, nem mesmo existe. Além disso, os Parâmetros expõem a pouca relevância do ensino da habilidade oral e focaliza a pertinência da função da leitura no contexto brasileiro. (BRASIL, 1998, p. 20). Eles expõem também a realidade da maioria das escolas para o ensino de língua estrangeira em suas quatro habilidades linguísticas: Deve-se considerar também o fato de que as condições na sala de aula da maioria das escolas brasileiras (carga horária reduzida, classes superlotadas, pouco domínio das habilidades orais por parte da maioria dos professores, material didático reduzido a giz e livro didático etc.) podem inviabilizar o ensino das quatro habilidades comunicativas. Assim, o foco na leitura pode ser justificado pela função social das línguas estrangeiras no país e também pelos
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Ensinar é uma ação de posicionamentos políticos, e forças distintas se antagonizam no contexto escolar. Segundo Signorini, há, nas escolas, por um lado, a proposta de um projeto de emancipação do sujeito e do coletivo através do letramento e, por outro, uma ação oposta, estabelecida por “mecanismos sociopolíticos de controle do acesso às práticas letradas de prestígio”. Assim há contradições das tradições escolares que podemos relacionar: a) o saber sobre a língua segundo os padrões escritos; b) os textos objetivos segundo o saber técnico-científico manipulados em textos didáticos, que restringem as atividades com os textos a meras ações de decodificação (já que o que está ali está atestado e não deve ser contestado, tão somente aprendido); c) o contexto de passe e repasse do conhecimento e d) o uso da linguagem, que estão restritamente relacionados a um modo de “raciocinar/ agir/ avaliar” típicos de grupos socioculturais e econômicos que estabelecem formas padronizadas de uso. É o que a autora expõe como sendo uma “aludida inculcação de valores e aspirações da sociedade burocrática e dos grupos que detêm o controle da produção cultural hegemônica” (SIGNORINI, 1994, p. 169). Os impedimentos construídos na aprendizagem de línguas se constituem mais enfaticamente no âmbito social. São restrições de acesso e engajamento dos grupos marginalizados no processo de aprendizagem. Stein & Eastman são relembrados por Signorini, quando historicamente se reporta às condições restritas do acesso de grupos socioeconomicamente marginalizados de imigrantes no processo de aprendizagem de segunda língua: A razão do fracasso dos grupos de menor prestígio na aprendizagem dos padrões sócio-discursivos dominantes não deve ser buscada no grau de domínio de estruturas gramaticais, mas na falta de acesso desses grupos aos recursos econômicos e às instituições socialmente hegemônicas (1993, apud SIGNORINI, 1994, p.170).
A necessidade urgente de formar indivíduos aptos para uma sociedade nos padrões atualmente estabelecidos pelo perfil da globalização faz ecoar a temática inclusiva dos sujeitos que vivem no âmbito das classes que não têm acesso aos recursos exigidos pelas sociedades do mundo atual. Repensamos
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na escola na séria função de prestar-se à inclusão dos pertencentes às classes economicamente subalternas em seu aspecto de cidadania. Se o ensino de uma língua estrangeira é dever da escola, e se grande parte das escolas oferece exclusivamente o inglês, e ainda se, no caso dos alunos das camadas populares, a escola pública é o único lugar de aprendizado desse idioma, é de se esperar que seu ensino seja eficaz e significativo para eles, possibilitando-lhes o acesso ao direito de formação integral do indivíduo a fim de que possam exercer a tão proclamada “cidadania” e utilizar o conhecimento adquirido como mecanismo de inclusão social, encontrando assim um “lugar nas redes articuladas de fluxos de capitais e informações”, no atual mundo globalizado. (CHARLOT, 2005, p. 133).
Acontece que as razões que evidenciam a desigualdade social e a necessidade política de construção de igualdade de oportunidade para grupos de classes distintas são escamoteadas e invertidas num processo de inculcação de valores como sendo corretos e adequados àqueles que pertencem aos contextos socioeconômicos de prestígio. No final da história, são, enganosamente, apresentadas as “deficiências” linguísticas e culturais dos alunos oriundos de classes desprestigiadas, deixando-os como responsáveis pelo seu insucesso na escola. Soares explica isso como um “mito” que serve para excluir os verdadeiros responsáveis pelo fracasso escolar deles: uma sociedade estratificada, uma estrutura socioeconômica nacional em prol de uma filosofia capitalista. Evidenciamos, portanto, uma estrutura que exclui a responsabilidade social sobre as diferenças e que deixa recair o fracasso da escola pública popular sobre os que não têm habilidades necessárias para a educação escolar. Amparados ainda em Soares, fazemos uma ressalva que nos lembra que a linguagem das classes subalternas só é tomada como deficiente porque as classes dominadas são sempre tomadas como deficitárias. Sendo assim, o cerne da questão se instaura no âmbito políticosocial e econômico e não sobre a natureza linguística e cultural dos menos favorecidos (SOARES, 1995). Não obstante dessa discussão, a compreensão das motivações de alunos e professores é evidenciada quando buscamos uma visão das condições do ensinar e do aprender. As realidades que cercam os elementoschave do par ensino e aprendizagem, professor e aluno, têm sido discutidas nos meios acadêmicos há muito tempo. Entender como se ensinar e como
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aprender são pontos abrangidos por diversos estudos. Mas o que realmente se faz com todo esse conhecimento teórico construído? A posição assumida pelo projeto aqui descrito sugere a aproximação dos participantes em sala de aula e reflete sobre as necessidades de professores entenderem como os alunos de escola popular aprendem na prática. Um entendimento sobre isso já reconhecemos: que as pessoas aprendem quando elas constroem bases que se relacionam com o que elas já têm construído, e assim o conhecimento novo se institui e possibilita uma atmosfera harmoniosa e de motivação, como Vygostky mesmo já expôs: A construção da motivação é um dos pilares para um bom clima da sala de aula. O professor tem que conhecer como o aluno aprende e usar de estratégias de ensino que lhe dê a sensação de estar conquistando algo importante no ato simples de cumprir tarefas que estão de acordo com a sua zona proximal de desenvolvimento. (VYGOTSKY, 1993, p. 102).
Essa visão crítica da realidade de nossa escola pública popular nos leva a perguntar por que os estudos realizados sobre o ensino de LE obtêm tão pouco resultado na melhoria do ensino público. Moita Lopes diz que é preciso uma revisão crítica da lógica das áreas de conhecimento científico. Particularmente entendemos que a Linguística Aplicada muito se volta ao reconhecimento dos problemas do uso da linguagem e de seu ensino, mas pouco se dedica à resolução de tais problemas, tal como se diz: A LA não tenta encaminhar soluções ou resolver os problemas com que se defronta ou constrói. Ao contrário, a LA procura problematizálos ou criar inteligibilidades sobre eles, de modo que alternativas para tais contextos de usos da linguagem possam ser vislumbradas (MOITA LOPES, 2006, p.20).
Eis uma grande necessidade de fazer de fato com que o conhecimento científico alcance a realidade das sociedades, inclusive as desprestigiadas. Uma das questões que podemos apontar é que o conhecimento, construído sobre a sala de aula no âmbito das pesquisas de pós-graduação, pouco consegue contribuir para intervir na realidade da sala de aula das escolas públicas populares. Análises científicas ficam reservadas aos estudos acadêmicos lato e stricto sensu, numa esfera inatingível das inteligibilidades sobre temas relacionados ao ensino popular, que não alcançam as salas de
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aula. Outra questão refere-se à formação de profissionais de língua, que são pouco preparados para construírem conhecimentos práticos a respeito dos contextos das escolas públicas populares. A percepção real do ensino público é estabelecida à distância. É preciso preparação fundamentada na realidade de tais escolas para uma capacitação de professores que possam atuar nesses contextos de maneira efetiva. Celani também faz sua crítica sobre as propostas curriculares da formação de profissionais de línguas, que colocam o foco das disciplinas nas bases teóricas, e se refere a elas como “uma ação desmedida” na atenção ao componente “teórico” e “técnico” (CELANI, 2002, p.21). E quanto aos professores que já atuam nesse espaço, veem-se em uma condição de inoperância para articulações de projetos de integração e reflexões críticas sobre o contexto em que operam. Eles se encontram, assim, isolados, como nos lembra Celani, quando fala da percepção de investigadores sobre os professores: para o professor, a compreensão crítica, o questionamento e a transformação das crenças e valores que dão forma à sua ação não é tarefa fácil em virtude do isolamento na escola, da falta de conhecimento sobre teoria e/ou sobre como relacionar teoria e prática, e da complexidade que caracteriza a sala de aula, onde inúmeras variáveis convivem simultaneamente e dificultam uma ação reflexiva (CELANI, 2002, p.26)
É preciso criar um contexto que proporcione a reflexão e a articulação dos agentes da escola (MAGALHÃES, 1998, p.171). É urgente que propostas de estudos aplicados ao contexto de investigação compreendam os dilemas dos participantes e amparem as reflexões sobre as ações e promovam oportunidade de mudança e novos posicionamentos.
3. METODOLOGIA
Depois de observar o contexto por dois meses, verificamos a necessidade de amparar nossa investigação em dois tipos de pesquisa utilizados no campo da LA: a pesquisa de diagnóstico e a pesquisa de intervenção (MOITA LOPES, 1996, pp. 86-87). Nos moldes de uma pesquisa de diagnóstico, fizemos um levantamento de dados que orientou uma investigação em sala de aula do processo de ensino-aprendizagem e como ele se constituiu efetivamente na
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prática cotidiana dos grupos observados. Este momento foi importante para nortear o passo seguinte deste trabalho, na forma do segundo tipo de pesquisa adotado por este projeto, a de intervenção. Com o intuito de intervir no contexto investigado e gerar dados a partir dos resultados, propomos projetos iniciais para mudança das percepções dos agentes sobre o ensino de LE na escola pública e orientamos ações integradoras entre eles em regime de colaboração dos agentes da escola, a fim de que fossem oportunizadas novas informações sobre os processos de ensinar e aprender vistos de dentro da escola e não, como muito acontece, em propostas construídas fora dela para tão somente serem cumpridas. A etapa da pesquisa que relatamos aqui neste artigo trata da fase de diagnóstico. Para seguirmos as propostas apresentadas neste projeto, conjugando uma percepção de dentro da sala de aula e tomando como reflexão a fala dos participantes do contexto investigado, esta pesquisa segue os moldes de investigação da Linguística Aplicada, buscando aliar a pesquisa de base interpretativista de cunho etnográfico com representações positivistas de alguns dados coletados, cuja combinação convergente é referida como procedimento que se completa em pesquisa em LA (cf. CAVALCANTI 1991, COHEN 1989, MOITA LOPES 1996). A etnografia busca a descrição dos padrões de comportamento diários dos participantes de um contexto investigado, tomando como base a orientação que fazem a respeito dos problemas observados (cf. MOITA LOPES, 1994, p.334). Sendo assim, este projeto conta com a coparticipação dos integrantes da escola em estudo. O local escolhido para a geração de dados é uma escola da rede municipal do Rio de Janeiro, que atende a classes populares, em distinção a outras escolas, também públicas, que atendem a grupos sociais mais prestigiados economicamente. Nesse caso, caracterizamos a escola referida aqui como sendo popular por lidar com um contexto social de grupos pouco favorecidos. No desenvolvimento do estudo, utilizamos observação participante para anotações de campo, questionários e entrevistas direcionados a professores de LE e a alunos da escola investigada. Pretendemos obter através dos dados gerados um apontamento para o tipo de ação que resultasse na valorização do ensino de LE na escola através de projetos que tanto integrem ações para construção de soluções para as necessidades
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escolares, e, neste caso, para o ensino de LE, quanto articulem procedimentos de conhecimento sobre as peculiaridades da escola pública popular nas instituições de formação de professores de língua estrangeira, cuja ênfase maior ainda se encontra no conhecimento de preparação teórica e que pouco propicia a reflexão a respeito da escola popular a partir da prática. Prática esta que deveria envolver propostas de interação social e reflexão crítica, que normalmente ficam restritas aos espaços acadêmicos (CELANI, 2002, p.21). Nosso primeiro passo foi acompanhar quatro dos professores de LE da escola investigada (dos quais um era de língua francesa e os demais de língua inglesa) e registrar, através de anotações de campo, as aulas deles para identificar os pontos que entrariam na proposta dos projetos de ensino de interesse desta pesquisa. Foram acompanhadas turmas de níveis diferentes da educação básica, cinco turmas ao todo. As turmas foram acompanhadas por quatro colaboradoras discentes, bolsistas do projeto e graduandas de Letras, que ajudaram na coleta de dados, fazendo os registros diários das aulas em anotações de campo, aplicando os questionários com os alunos em cada turma e gravando as entrevistas com os professores.
4. ANÁLISE DOS RESULTADOS
Os dados analisados são resultantes dos registros feitos em sala de aula, das entrevistas com os professores das turmas investigadas e dos questionários feitos com os alunos. A partir deles constatamos um abismo intercomunicativo que distancia professor e alunos em níveis variados de turma para turma, uma falta de interação, de compreensão de interesses e de articulação de propostas contextualizadas às comunidades atendidas. Dentro dessas condições, os participantes do contexto da sala de aula são levados a comprometer suas motivações quanto ao objetivo de ensinar e aprender a língua estrangeira. 4.1 ANOTAÇÕES DE CAMPO Para iniciarmos a exposição dos registros feitos em sala de aula, começaremos por um trecho de um dos registros de uma aula observada, cujo
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tipo de comportamento dos participantes foi recorrente em outras anotações de campo: “Um aluno bate com a cabeça na parede após outro tê-lo empurrado. Ele cai desacordado. A professora levanta-se de onde está e vai em direção ao aluno caído. Perplexa diz ao que empurrou “olha só o que você fez!”. O aluno que está no chão pisca para os demais alunos da sala evidenciando, assim, a intenção em assustar a professora. Ela vê, percebe a brincadeira e, quando faz menção de falar algo a respeito da situação criada, recebe uma bolinha de papel nas costas”. Esta cena foi uma das constantes confusões que vivenciamos nas aulas de língua estrangeira. Buscamos assim entender as intenções que estão por trás de tais ações, compreender as relações dos participantes da sala de aula e propor reflexões. Perguntamos à professora de língua inglesa como ela se sentia no cumprimento de sua função e quais eram suas motivações. Ela nos respondeu sem muito pensar: “é a necessidade”. Referia-se ao contexto pessoal de sobrevivência, de quem não mais expõe positivamente sua motivação em ensinar LE e, por isso, não conseguia mais intervir com propostas diferentes para mobilizar os alunos para uma participação e aprendizado mais efetivos. Essa percepção se esclarece quando falava, em resposta a outra pergunta, sobre quais outras estratégias construía para envolver os alunos (cf. comentário da fig. 3). As emoções de outra docente acompanhada revelavam uma motivação enfraquecida, quando nos disse “os alunos não ligam para a disciplina e nem para mim”. Evidenciávamos um problema. Nas anotações de aula, em grande maioria, continham registros dos comportamentos relativos à deficiência na atenção e troca entre professor e alunos. Também nesses registros evidenciamos diversas interrupções da aula pela intervenção dos professores em função das brincadeiras, das conversas, das intrigas, dos MP3 e celulares que eram usados entre os alunos para reproduzir e compartilhar, por diferentes sistemas de transmissão, músicas, fotos e jogos. Havia muitos ruídos provocados pela conversa e dispersão dos alunos nas aulas de LE. Embora tais problemas não fossem evidenciados apenas nas aulas de LE, nelas as
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proporções eram grandes, segundo observação da conversa entre professores de diferentes disciplinas quando se reuniam. A disciplina de LE obtém, de certa forma, na comparação com outras disciplinas, uma posição de inferioridade, percebida não apenas pelos alunos e pelos professores de outras disciplinas, com também no próprio contexto do currículo escolar. Sendo assim, falas como “Dar nota baixa para o aluno em Língua Estrangeira! Se ainda fosse Português ou Matemática!”, “Mas Inglês não reprova, né?” evidenciam a percepção discriminatória em relação à disciplina de LE, que não só partia dos alunos, mas também era evidenciada nos conselhos de professores, em que se ouvia de docentes, direção e coordenadores pedagógicos falas que refletem o que percebemos dos alunos em relação ao valor do aprendizado de LE em comparação com outras disciplinas vistas como mais importantes. Dessa maneira, ficava evidente a falta de prestígio da disciplina de LE na escola. Na continuidade da investigação, reconhecemos a necessidade de criar uma intervenção inicial para promoção de colaboração entre os agentes da escola, entre os pesquisadores e os professores de LE; entre estes e os professores de outras áreas, como também entre o grupo de apoio: direção, coordenação pedagógica e pais. Foi nesse momento que, com o apoio dos agentes da escola, construímos o projeto intitulado I Semana de Estudos de Língua Estrangeira na Escola, em que foram criados pelo pesquisador pequenos projetos para a valorização do ensino de língua estrangeira para o envolvimento e participação de todos os professores das diversas áreas de conhecimento do currículo escolar. O grupo de professores foi convidado a participar do projeto a partir da apresentação do seguinte texto, que constava na folha de proposta para a sua disciplina: “A I Semana de Estudo de Língua Estrangeira na Escola tem como proposta promover uma ação de colaboração interdisciplinar na busca pela valorização do ensino de língua estrangeira na unidade escolar. É um desdobramento de um projeto que conta com a atuação de todos os profissionais de ensino da escola para desenvolver atividades pertinentes a sua área de conhecimento, mas que transmitam a importância da língua estrangeira como instrumento de um sistema social global para a divulgação do conhecimento, da arte e do esporte e para o contexto do trabalho e interação social. São ponto central para os estudos que se realizam na Semana a
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A articulação foi definida pelo grupo de pesquisa inicialmente, mas desempenhada pelos diversos segmentos da escola. Esta foi a estratégia inicial para: 1. Promover valorização do ensino de LE; 2. Construir espaço para a reflexão crítica sobre o processo de ensinar e aprender a partir dos resultados do evento, objetivando a percepção de que o conhecimento não se constrói de maneira segmentada sempre; e 3. Estruturar o movimento de colaboração entre os participantes da escola. Dizemos, baseados nesses dados, que a construção de propostas depende da participação reflexiva dos agentes do contexto investigado sobre o problema do ensino e do estudo das línguas estrangeiras e da percepção dos valores que estão socialmente ligados ao seu aprendizado. Ou seja, as ações necessárias são oriundas da percepção interna dos participantes com a pretensão de uma reculturação e não de uma aculturação (cf. CELANI, 2002, p.33). Sendo assim, o processo de mudanças na escola e no ensino deve partir de dentro da escola através da participação reflexiva dos agentes envolvidos e não de fora dela, pela imposição externa de propostas educacionais que devem ser assumidas e cumpridas a rigor. A compreensão das condições de ensino e de aprendizagem de LE na escola investigada abrangia a visão obtida das necessidades fora e dentro da sala de aula. Fora de sala, era necessário propor ações que promovessem um sistema de colaboração e participação de todos os agentes da escola. Dentro da sala de aula, era preciso que os professores de LE compreendessem a importância de haver relação da área de conhecimento de sua disciplina com a realidade social. Fazia-se necessário a atenção às necessidades e aos interesses que cercam os grupos atendidos, e, não, simplesmente isolar o conhecimento construído na escola do mundo que nos cerca. Temos registrado
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um dia em que a professora reinicia a correção de um exercício, e, ao mesmo tempo, os alunos começam a conversar sobre o “Caso Eloá” (um crime que aconteceu naquela semana em Santo André, São Paulo). A professora chamalhes a atenção dizendo o que interessava naquele momento era a aula e não o que estava acontecendo lá fora. E insistindo, um aluno se expressou dizendo: “Que é isso professora, esse cara merece morrer!”. O comentário não foi respondido e a correção do exercício continuou. Este dado ecoa no resultado do questionário passado na mesma turma em que se perguntou “Qual tipo de ação você gostaria que o professor fizesse em sala de aula?” e 72% da turma responderam que “trouxesse novidades como filmes, músicas, jogos, assuntos da atualidade etc.”. É claro que o professor, nesse caso, precisa usar criatividade para aproveitar as informações da atualidade para envolver seus alunos. Mas a questão perpassa pelo viés da motivação do docente e pela capacitação profissional e/ou reflexão para um novo posicionamento, a de um professor crítico, a de um professor-pesquisador. 4.2 ENTREVISTAS COM OS PROFESSORES
Em entrevista com outra professora acompanhada, ela analisa a atual situação do ensino de língua estrangeira na escola de rede pública, fazendo uma retrospectiva de como eram as aulas de LE há 40 anos, quando iniciou sua carreira:
E: Qual a importância do ensino de língua estrangeira para a formação do aluno de ensino fundamental? P: O papel da língua estrangeira é dar para o aluno a possibilidade de ampliar horizontes, de conhecimento universal, de ter uma base para sua vida acadêmica e profissional. Eles vão encontrar um mercado competitivo quando saírem da vida escolar e é necessário ter uma boa base de ensino de língua estrangeira para dar um salto maior de sucesso no futuro.
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Ela expõe o valor do ensino de LE como meio para construção de base para o futuro do estudante no âmbito profissional. Refere-se a uma dedicação pela qual o aluno obterá resultados em um tempo adiante de sua atualidade, ou seja, não para agora. Se pensarmos no grau de conscientização para envolver alunos na idade de 10 a 15 anos para desfrutar de um aprendizado de língua estrangeira com vistas para o futuro, que pode lhes parecer muito distante, ou inatingível, dependendo dos referenciais sociais que têm perto deles, chegaríamos à conclusão da inadequação da proposta ao nível de maturidade do grupo nessa faixa etária. Fica uma pergunta: E para agora, em que o estudo de LE pode envolvê-los para o uso mais imediato, a fim de atingir positivamente sua motivação?
E: E qual importância o ensino de língua estrangeira está tendo para os seus alunos no momento? P: Atualmente estou achando que nenhuma. Eles vêm semianalfabetos na própria língua, na língua materna e juntamente com isso eles têm uma dificuldade incrível de assimilar qualquer língua estrangeira. Eles não conseguem compreender textos, eles leem muito mal. Então com a língua estrangeira essa dificuldade aumenta.
Vemos, segundo a fala da professora entrevistada, que ela faz a relação entre a questão de problemas de aprendizagem em LE com deficiências do aluno na apropriação da língua escrita em português. A discussão pode perpassar pela inculcação histórica de interesses políticos pela patologização da pobreza que apontam respostas sobre dificuldades de aprendizagem segundo as condições linguísticas e culturais da classe pobre e que se reproduzem até hoje (cf, SOARES, 1995), mas apontamos para a questão do fracasso do ensino de língua às comunidades socialmente desprestigiadas devido à própria falta de conhecimento da escola de como lidar com diversos interesses que rodeiam os grupos sociais, e, principalmente, como levar alunos de uma classe social economicamente subalterna a conquistar condições de ascensão social sem inferiorização de sua base linguística e cultural. Ou seja, a escola pública popular mostra não saber como construir conhecimento senão pela imposição de valores pertencentes à classe social de prestígio sem
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elementos referenciados no contexto social do aprendiz (cf. ESTARNECK, 2009).
E: O que faz a língua estrangeira ser importante no currículo escolar? P: É ter uma ideia universal, ter em mente que a língua estrangeira não é algo distante de nós. Que somos e vivemos em sociedade, que não somos uma sociedade distante. A ideia é que ela seja uma matéria complementar e não uma matéria “de outro mundo”, uma matéria imposta.
Esta professora mostra entendimento da função da LE, de que a LE serve-nos primordialmente em contextos nacionais internos e deve ser apresentada como conhecimento para uso em situações reais perto de nós. Mas o que se tem feito para mostrar isto aos alunos? Que projetos educacionais envolvem tais objetivos? Com que frequência, professores aplicam esta relação em suas propostas em sala de aula? Podemos ressaltar dois pontos reflexivos destas questões. Um diz respeito a interesses políticos e outro, a relação entre teoria e prática, isto é, saber e colocar em prática. Com base nos registros das aulas acompanhadas, tais objetivos de relacionar o ensino com uma realidade de uso atual, em contextos nacionais, não foram apresentados, e, quando surgiam oportunidades para fazer a ligação com os interesses do grupo, não vimos ação a favor disso. Afinal, a LE deveria ser apresentada de uma forma que não fosse vista como “uma matéria de outro mundo”. Há o entendimento de que as políticas educacionais privilegiam o produto e não o processo, deixando de dar espaço aos objetivos do ensino de LE.
E: E como tem sido atualmente o papel da escola que a senhora leciona em relação ao ensino da língua estrangeira? P: O papel da escola mudou muito nesses últimos anos. A escola perdeu a sua função de dar aos alunos uma base cultural, uma base geral da língua estrangeira e de prepará-los para a vida e para até mais tarde conseguirem usar a língua estrangeira como um instrumento de trabalho
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mesmo. Ultimamente a escola tem se preocupado com questões de faltas, evasão, merendas e não com o processo de aprendizagem. Não procura ver se o aluno realmente aprendeu aquilo que foi proposto.
Notamos que professores de LE se sentem isolados, largados à própria sorte de terem que se organizar para promover uma diretriz para o ano escolar, sem estabelecer pontos viáveis para concretização do aprendizado promovido, sem acompanhamento efetivo de suas propostas, sem colaboração de outros docentes. A exposição da visão crítica que têm sobre as condições do ensino não é ouvida e, no fim, vemo-los desmotivados, mais uma vez:
E: A senhora sente-se motivada a atuar no ensino de língua estrangeira? P: De jeito nenhum. Eu me sinto desmotivada. Faz tempo que minhas ilusões acabaram. No início da carreira, eu tinha material para trabalhar, trabalhei com recursos audiovisuais, trabalhava também a oralidade e o aluno sente-se útil também em trabalhar com essa oralidade, porque é prazeroso, eles estão participando da aula, estão falando. Hoje em dia isso não acontece. Você simplesmente joga uma enxurrada de conhecimentos que ficam apenas ali, durante aquela aula, mas não será absorvido. Está faltando controle da própria disciplina.
As condições das escolas para o ensino de LE estão descriminadas nos PCNs (BRASIL, 1998, p. 21), que citam alguns fatores que dificultam o desenvolvimento linguístico das habilidades de ler, ouvir, escrever e falar, devido a classes lotadas, falta de recursos audiovisuais e material didático.
E: A senhora acredita que qualquer outra matéria é mais importante que a língua estrangeira? P: Todas são importantes. Todas contribuem para a formação, a capacitação do aluno. Acredito também que essa desvalorização deve-se ao fato de ela (língua estrangeira) ser posta como uma matéria superficial, sem cunho importante para a formação do aluno.
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Vivemos questões problemáticas em relação ao ensino, de dilemas que se constituem dentro e fora da escola. Fora da escola estão as questões políticas que conduzem a uma organização de relações entre os responsáveis pela educação, que se transformam em um sistema inatingível por aqueles que vivem as consequências no nível interno. É comum ouvirmos quem diga que a disciplina A é mais importante que a B, que disciplina C não reprova, que se a disciplina não faz parte do núcleo comum do currículo escolar, ela não tem tanta importância assim. Sabemos que a exposição em graus classificatórios de níveis de importância, que orienta posições de valor de um tipo de conhecimento
em relação
a
outro
tem fundamento
nos
parâmetros
educacionais, mas refletem nos comportamentos e influenciam os interesses dentro da sala de aula. Entramos nas discussões que expõem que o conhecimento não é fragmentável como é exposto pela grade curricular.
E:
A senhora está se aposentando no magistério, disse que já vivenciou momentos bons na vida escolar no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem, de valorização do ensino e hoje a senhora vê, como disse, um descaso total no ensino de língua estrangeira, um resultado desastroso. Como a senhora vê o futuro do ensino de língua estrangeira nas escolas públicas?
P: Olha, infelizmente eu estou me aposentando sem ver uma fagulha de melhoras em relação a isso. Eu desejo de todo coração que nossos governantes deem uma atenção emergencial ao sistema de ensino público brasileiro. Que eles possam enxergar que a educação é a base de todas as relações humanas. Eu espero que esses alunos se esforcem para dar continuidade aos seus estudos e que vocês, professores, que estão ingressando agora no magistério, entrem com amor, garra e vontade, porque não vai ser fácil. Se tiver que mudar, também não vai ser num passe de mágica. É e sempre será necessário muito amor à profissão, carinho e dedicação.
A necessidade de apoio ao ensino de LE na escola pública popular é intensa. A docente entrevistada declara que o seu trabalho de ensinar LE tem sido em vão, pois sabe que os alunos da sua turma possuem várias
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deficiências de aprendizagem e diz temer pelo futuro dos mesmos. Como crítica ao sistema educacional e medidas estabelecidas pelo governo como inclusão de indivíduos portadores de necessidades especiais, dizia de sua expectativa em se aposentar para não mais ter que presenciar “cenas de descaso com a educação”. Entramos novamente em questões que devem ser refletidas com os docentes, tais como sobre a visão da origem do mito das deficiências, das propostas de inclusão social dos portadores de necessidades especiais, da atuação investigativa como cumprimento de atribuições de professores em regime de colaboração etc. Tais observações se fazem necessárias na etapa de intervenção deste trabalho.
4.3 ANÁLISE DO QUESTIONÁRIO APLICADO AOS ALUNOS
Com o objetivo de analisar a visão que o aluno da escola pública popular tem do ensino de LE, foi aplicado um questionário com diversas perguntas sobre a importância da disciplina, a opinião sobre as aulas e o grau de interesse pela mesma. Obtivemos 161 questionários respondidos entre as cinco turmas investigadas, quatro turmas de inglês (uma de cada série do ensino fundamental - de 5ª a 8ª série e uma turma de francês da 5ª série). Na apresentação do questionário aos alunos, cada questão foi lida em conjunto com eles e cada questão respondida tão logo todas as eventuais dúvidas estivessem sanadas. Em uma das questões perguntamos sobre como percebiam a importância do aprendizado de LE para a formação deles. Tal questão foi orientada para que respondessem segundo a opinião que tinham e não o que simplesmente ouviam dizer. Quatro foram as possibilidades de escolha: a) não tem importância; b) tem pouca importância; c) é necessária, mas não sei para quê, e d) é importante para a formação do aluno e é fundamental para o mercado de trabalho. Observando os comportamentos nas aulas de LE na escola investigada, possivelmente pensaríamos que a maioria dos alunos não achasse a disciplina importante, e assim estaria explicada a falta de interesse em se estudar LE na escola. Porém, o resultado nos diz que 88% dos alunos afirmaram que ela é importante e relacionam tal importância à sua formação e preparação para o mercado de trabalho.
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100 80
Importante para formação e mercado de trabalho
60
Necessária, mas não sei para quê
40
Tem pouca imortância
20
Não tem importância
0 Importância
Fig. 1. Qual a importância da língua estrangeira?
Com estes resultados, percebemos que apenas fazer que os alunos saibam que é importante e reconheçam na sociedade o valor da aprendizagem de uma segunda língua não é o suficiente para determinar uma postura de interesse deles em aprender uma LE. Os resultados iniciais no primeiro momento de investigação demonstram que a desvalorização da LE na própria escola configura um dado mais forte para a desmotivação do aluno em estudar outra língua. Assim, os dados nos informam que, além do desprestígio que esta disciplina goza no âmbito da escola pública popular em relação às outras disciplinas, o ensino de LE sofre também com situações existentes dentro da própria escola, reforçadas nas condições que lhe são dadas em relação a projetos educacionais, materiais didáticos de apoio, tempo de aula, número de alunos em sala e outros. Tendo reconhecido a existência de uma consciência sobre a importância em se aprender uma língua estrangeira, buscamos entender então, numa percepção mais próxima possível dos interesses dos estudantes, em que sentido de importância ou de utilidade prática os alunos consideram os estudos de língua estrangeira. Para isso, perguntamos (fig. 2): 25
Prestar o Vestibular
20
Dar-se bem na vida
15
Aprender música
10 5
Ter acesso a outros conhecimentos Usar melhor o videogame e a internet Viajar para o exterior
0 Fig. 2. Por que é importante aprender uma língua estrangeira?
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Em primeiro lugar, 24% dos estudantes a julgaram importante para “se dar bem na vida”, no sentido de ser bem sucedido futuramente, ganhar dinheiro. Mais uma vez, observamos que noções gerais, pouco práticas, no sentido de aplicação mais imediata e objetiva na vida do aluno são pouco trabalhadas no ensino de LE. É como se o melhor que o estudante venha a obter com o estudo dela só será possível num futuro distante. A segunda maior porcentagem dos alunos (19% deles) julgou o aprendizado de língua estrangeira importante para viajar para o exterior. No contexto social em que vivem, esta é uma realidade que não faz parte da vida da grande maioria. No entanto, este dado mostra que as funções do conhecimento de LE, na visão dos alunos, não são novamente de aplicação imediata ou de propósitos para interesses nacionais. É possível que tenhamos reconhecido nesta questão o que Moita Lopes (1996) já havia apontado no ensino de LE: um deslumbramento nacional do que é e vem do exterior. Surge a necessidade de trabalhar a consciência desses alunos para uma função social dentro de uma realidade nacional, dentro de uma perspectiva realmente prática para os interesses sociais. Neste mesmo sentido, seguem as opções “prestar vestibular”, que para alunos do ensino fundamental ainda é uma realidade percebida distante de seu presente. Percepções mais próximas da vivência do aluno, como obter “acesso a outros conhecimentos” ou até mesmo “aprender músicas” ou “usar melhor o videogame e a internet”, por exemplo, não ocuparam os primeiros lugares. Em outra pergunta do questionário, onde indagamos sobre o tipo de ação que gostariam que o professor tivesse em sala para envolvê-los mais, observamos que músicas e assuntos da atualidade foram para 62% dos alunos informantes os recursos mais interessantes a serem usados nas aulas, e 27% expuseram que o professor precisa ter empatia para melhor envolvimento dos alunos. Sendo assim, analisar o nível de motivação desse professor é importante para entender melhor o que os participantes apontam. Ao perguntar aos alunos sobre a dificuldade em aprender uma língua estrangeira na escola, observamos um ponto que influenciou as respostas: o tipo de relacionamento entre alunos e professor. Pois em apenas uma das cinco turmas investigadas, que descreveu problemas de relacionamento com o docente, apontou em primeiro lugar (38% da turma) a relação que tem com
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professor como causa principal de seu problema de aprendizagem, contribuindo para destacar que 18% dos 161 alunos entrevistados pensam da mesma maneira. Já as demais turmas apontam que o principal responsável pelas dificuldades em se aprender LE é o próprio aluno, devido ao falatório durante as aulas. 35
Pouco tempo de aula
30
Relacionamento com o professor
25
Falta de interesse pela disciplina
20
Falta de material didático
15
Conteúdo repetitivo
10 Falatório de colegas
5
Nenhuma
0
Fig. 3. Quais as dificuldades que você enfrenta para aprender Língua Estrangeira?
Considerando as relações de causa e efeito na motivação dos participantes
do
contexto
investigado,
buscamos
compreender
quais
dificuldades são apontadas para o processo de ensinar e aprender LE na sala de aula. Os discentes, por sua vez, reconheceram que o falatório dos colegas dificulta o aprendizado, conforme 34% dos alunos que responderam o questionário. Eis um dado que é constante nas notas de nossas observações, onde se relata, com frequência, a dispersão dos estudantes por se ocuparem de outras atividades que não as propostas pelo professor. Propostas estas que não são integralmente cumpridas, mesmo quando se aplicam medidas mais impositivas. Em uma das aulas, por exemplo, no momento da aplicação de um teste, observamos uma mobilização da turma para realizar a verificação de aprendizagem, mas que durou apenas alguns minutos e logo dissipou-se. É nítida a dificuldade na manutenção das propostas que, naquele grupo, se mostram evasivas. A motivação logo passa. O que não faz parte do interesse dos estudantes fica em segundo plano ou plano nenhum. Até mesmo os aparelhos eletrônicos tais como celulares, câmeras digitais, MP3s etc. são
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levados para a sala de aula como mais uma forma de distração. Assim ouvem músicas, falam ao celular, tiram fotos. A presença do professor de língua inglesa, naquele contexto, não fazia interferência considerada eficiente para mobilizar as ações para o aprendizado. Em conversa com um dos professores informantes, ele pareceu ter desistido da aplicação de novas metodologias de abordagem do conteúdo da disciplina quando, na entrevista, afirmou já ter tentado uma vez inovar, fazer diferente, mas que, como o mesmo disse, “só deu certo por aproximadamente 20 minutos”. Disse que estava doente, sentindo taquicardia devido aos constantes estresses que tem passado em sala de aula. Diante desse quadro, nossa proposta passou a ser, após essa fase inicial de análise e reflexões, organizar projetos de ensino em que articulassem diferentes disciplinas da escola e mobilizassem diversos agentes escolares, ou seja, criar contextos de participação e, por consequência, possibilidades de reflexão sobre tal ação. A proposta inicial é apresentar, primeiro, uma demonstração de como seriam os estudos multi, trans e interdisciplinares em prol do ensino de língua estrangeira através de uma semana de estudos para envolver e conscientizar todos os agentes da escola de que a parceria interna dela pode dar resultados positivos e prósperos. Tais ações teriam lugar no que ficou intitulado como a I Semana de Estudos de LE na Escola, evento planejado em função desta pesquisa, como espaço pensado para criar condições de reflexão dos participantes da escola e desenvolver estrutura de participação que se quer apresentar no material em construção, conforme justificativa deste projeto e a partir das questões observadas em sala de aula. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS É inquestionável o valor do ensino de LE na sociedade e sua importância no mundo atual, mas sua aplicação na escola pública popular tem sido restrita devido a dificuldades geradas dentro e fora do contexto escolar, estando carente de projetos que estabeleçam a conexão entre a sala de aula com as demandas da sociedade e dos grupos sociais a que serve. O objetivo deste trabalho foi mostrar a opinião dos participantes do contexto escolar (professores e alunos) a respeito da LE na escola e relacioná-
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los à situação em que se encontra o processo de ensino-aprendizagem na escola pública popular. A geração de dados e sua análise nos revelam a importância de diagnosticar o grau de interesse do aluno pelo aprendizado da LE, a relevância que esta disciplina possui para o seu futuro acadêmico e social e em quais aspectos ela se insere em seu cotidiano. Os resultados obtidos mostram que existe uma falta de compreensão prática para que ensinar e aprender LE. Evidenciamos que os envolvidos nesse processo não lidam com objetivos práticos para a vida social e se perdem no entendimento de suas participações como agentes desse contexto. O ensino no espaço escolar público popular sofre com a falta de ações que partam das peculiaridades de suas necessidades pelos participantes envolvidos. Ou seja, é fundamental que todos os agentes da escola, professores e alunos, estejam cientes dos objetivos do ensino de LE na escola. Chegamos à conclusão de que há um problema no ensino de línguas nas escolas e que não podemos ficar apenas no nível da compreensão do problema, é preciso intervenção. Para tanto, é preciso conhecer quais são os problemas existentes e que não sejam analisados à distância, apenas no nível inteligível das ações e dos comportamentos, mas que sejam vistos dentro da escola e da sala de aula com projeções de intervenção, vistas sob o olhar crítico, investigador e colaborativo de todos os agentes. Ao observarmos o que está acontecendo com o ensino de LE na escola pública, reconhecemos que a disciplina de LE e seus professores sofrem com a inferiorização de sua importância no currículo escolar. Reconhecemos com isso um campo árido para trabalhar o ensino de LE, quando os alunos percebem a desvalorização da disciplina em relação a outras, reforçada nas condições em que ela se sustenta dentro e fora de sala, por exemplo, em relação à falta de uso de livros didáticos, ao número excessivo de alunos em turma, ao tempo reduzido etc. Não é por menos que professores de LE se sentem desprestigiados e, por consequência, desmotivados. Dizemos isto para expor nossa percepção de que não é o caso de culparmos os professores de LE, mas evidenciá-los como agentes isolados e esquecidos. É preciso que, ao menos, eles se articulem entre si para proporem mudanças. Mas como? Simplesmente identificar uma falta de articulação é mantermo-nos à distância da tentativa de
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resolução do problema. É preciso criar um contexto que proporcione a reflexão e a articulação dos agentes da escola. É por isso que conduzimos este projeto com base na geração de dados que construa condições para intervir no contexto estudado, propiciando condições para que, sob uma ação colaborativa dos agentes escolares, todos reflitam, à luz de um olhar crítico de dentro da escola, sobre novos rumos e posicionamentos para o ensino da escola pública popular. Concluímos também que existe uma falta de conhecimento sobre as necessidades da escola pública popular no que se relaciona aos centros de formação de professores de LE. A ênfase no conteúdo teórico nos cursos superiores de licenciatura deixa uma lacuna na formação de docentes que estejam capacitados para atuarem nesse contexto. É preciso iniciativa para que se conheça mais a escola pública popular e capacite profissionais que sejam capazes de atuar de maneira articulada, assumindo a posição de professor crítico, reflexivo e pesquisador. A proposta do projeto Investigação na sala de aula como ponto de partida para projetos de ensino em LE busca oportunidades de experiência com o espaço público popular de ensino na formação de futuros profissionais de LE e o conhecimento das necessidades desse contexto para elaboração de material que contenha propostas para articulação de ações pelo ensino e valorização da LE na escola.
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NEUROEVOLUÇÃO: UM ESTUDO COM RESPOSTAS ORGÂNICAS NA HIPERTENSÃO ARTERIAL Hugo Jorge Almeida Jacques 1. INTRODUÇÃO A
civilização
moderna,
com
toda
sua
tecnologia,
globalização,
capitalismo, luta pela sobrevivência, desigualdades sociais, competições, necessidades básicas não atendidas, tais como: transporte, moradia, educação, alimentação, segurança, saúde aliada aos hábitos insalubres de vida, estresse etc., tem causado vários males às sociedades. Dentre eles, destaca-se a hipertensão arterial, que é causadora de complicações fisiopatológicas irreversíveis para o organismo humano. “Aparentemente, baixos níveis de atividade nociceptiva são importantes durante as tarefas cotidianas.” (BEAR, 2002, p. 409). Raciocinando sobre esta problemática complexa dos dias atuais, ditos modernos, resolvemos empreender esta pesquisa para investigar se indivíduos hipertensos submetidos ao tratamento com exercícios neuroevolutivos, são beneficiados profilaticamente e se melhoram o seu quadro clínico. Saber enfim, se este método é eficaz para isso. A pesquisa se justifica e assume importância, na medida em que, se comprovando a eficácia do método aplicado, possa trazer inúmeros benefícios para toda uma sociedade afetada pelos males que a hipertensão arterial provoca. O estudo é relevante porque atuará na prevenção e melhoria desse grande mal que afeta tantas pessoas, e que é causadora de complicações severas como o acidente vascular cerebral, o infarto agudo do miocárdio, a cegueira, a insuficiência renal e outras. A relevância se amplia, na medida em que possibilitará reeducar toda uma sociedade sobre este assunto, e orientar quanto à mudança de estilo de vida, hábitos benéficos e profiláticos contra a hipertensão arterial. O estudo realizado pode transferir conteúdo ou novo conhecimento para o contexto atual dessa atmosfera reinante, dita moderna, afetando de forma positiva toda uma sociedade com seus indivíduos hipertensos. As filas
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hospitalares, com certeza, agora irão diminuir por conta disso tudo que foi descoberto, principalmente na comunidade onde foi realizado o estudo. Os
exercícios
neuroevolutivos
são
originários
de
uma
herança
filogenética, ou da espécie humana. É inata, já vem conosco naturalmente, de dentro para fora. É uma memória da espécie, porque trazemos guardado em nosso
DNA
lembranças
de
nossos
ancestrais.
Quando
nascemos,
apresentamos todo um comportamento oriundo dessa herança, ao qual chamamos de exercícios neuroevolutivos. “Diversos comportamentos são realizados por um impulso interior surgido de necessidades corporais por forças instintivas mal conhecidas.” ( LENT, 2002, p. 485). O recém-nascido não tem atividade mental consciente, age por instinto, e, à medida que vai se desenvolvendo, passa a agir em função das recordações das experiências passadas. Assim, toda essa herança filogenética vai sendo potencializada e transformada com a experiência com o meio em que vivemos. A criança sofre, ou passa por uma série de transformações desde a formação do ovo até o ser perfeito. Adquire com a experiência com o meio. É adquirida, aprendida, de fora para dentro. A criança vai construindo a imagem do corpo, fazendo esquema corporal, ou seja, o cérebro vai guardando a imagem dos movimentos, das experiências, o que se expressa no corpo permitindo a adaptação e sobrevivência. Sem dúvida, é uma vantagem evolutiva, que começa no meio intrauterino e só é conscientizada após o nascimento. Chamamos de herança ontogenética que vai potencializar a filogenética e transformá-la para permitir a sobrevivência. “Temos um instinto primitivo, animal.” (MORRIS,2001, p.39). Em nossas raízes orgânicas, há uma passagem do instinto à inteligência onde a programação genética se expressa no corpo em forma de reflexos que se atenuam ou desaparecem, fica inibida, adormecida, e na falta do controle suprassegmentar, ou do controle do cérebro sobre o corpo, reaparece. À manifestação desse instinto chamamos de interiorização ou aprendizagem, e de exteriorização ou conduta da experiência com o meio. Tudo que somos ou fazemos é fruto do nosso passado que nos é transferido geneticamente e adquirido no meio. O instinto é uma espécie de pré-inteligência orgânica, hereditariedade programada, é por isso que o homem nasce e não tem atividade mental consciente, age por instinto, e mais tarde, na
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medida em que vai se desenvolvendo, passa a agir em função das recordações das experiências anteriores. Isso é filogenia e ontogenia agindo em conjunto no ser humano. Isso tudo: herança filogenética, instinto reflexo e ontogenética, se traduz em exercícios que condicionam a criança para aquisição dos esquemas sensoriais e motores. É o caminho para o conhecimento e adaptação ao meio que vai permitir a sobrevivência e perpetuação da espécie humana. Os reflexos, assim, são respostas involuntárias, reações primárias estereotipadas desencadeadas por estímulos que impressionam receptores específicos que tendem a favorecer a adequação do indivíduo ao ambiente. O Sistema Nervoso se desenvolve de trás para frente e de baixo para cima. Já o tônus se desenvolve de cima para baixo, de trás para frente, do maior para o menor músculo, do centro para a extremidade e do hipo para o hipertônico. De posse desse conhecimento sobre o desenvolvimento neuroevolutivo do ser humano, aproveitamos suas fases ou níveis, onde a criança apresenta diferenciados e específicos comportamentos ou ajustes corporais, impulsos internos realizados ante as motivações impostas pelo meio com a finalidade de adaptação ao momento, para aplicá-los nos pacientes hipertensos e verificar sua eficácia ou não, frente a essa patologia, no sentido de adquirir mais um procedimento para seu tratamento e prevenção. Só para que fique bem clara a origem dos exercícios neuroevolutivos, deixo uma pequena explicação sobre a evolução. A biologia diz que evolução é o processo de mudança e desenvolvimento pelo qual os seres humanos emergiram como uma espécie distinta e busca entender como isso acontece. A biologia evolutiva diz que é mudança das características hereditárias de uma população de uma geração para outra e que esse processo faz com que as populações de organismos mudem ao longo do tempo. Evolução ocorre quando as diferenças hereditárias tornam-se mais comuns ou raras numa população de maneira não aleatória através da seleção natural ou aleatoriamente através da deriva genética. Evolução depende da situação do momento e nos adaptamos. Só existe evolução com variação genética, que é mudança ocorrida em nível de DNA, que se expressa no corpo permitindo as características ou vantagens evolutivas. Por causa dessa variação genética, alguns são mais bem sucedidos que os demais na competição pela vida.
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Os órgãos sofrem adaptação aos ambientes onde vivem e adaptação física ocorre devido à necessidade de sobrevivência imposta pela natureza. “O medo é uma experiência subjetiva que surge quando algo nos ameaça e que provoca comportamento de fuga ou luta.” (LENT, 2002, p. 652). Os genes são sensíveis às alterações e restrições do ambiente, eles mudam e passam para frente. É hereditariedade adquirida, é herança dos caracteres hereditários. O que é adquirido é geneticamente herdado. Existe semelhança hereditária entre pais e descendentes e disto decorre que as gerações subsequentes manterão e aumentarão o grau de aptidão dos pais. Tudo que somos e fazemos é fruto do nosso passado que nos é transmitido geneticamente e adquirido no meio. “Evolução significa mudança, mudança na forma e no comportamento dos organismos ao longo das gerações.” (RIDLEY, 2006, p. 28). De tempos em tempos a evolução dá um salto. Para que se tenha uma noção melhor de como herdamos os comportamentos ancestrais, deixamos aqui uma historinha passada. Há milhões de anos, constantes mudanças ambientais alteraram padrões atmosféricos e vários ambientes desapareceram interferindo nos habitats, o que diminuiu drasticamente a alimentação. Quem não procurou outros ambientes para sobreviver foi extinto. A procura, a busca pelo alimento, principalmente a caça, estimulou o desenvolvimento e a adaptação de diferentes órgãos e sistemas, o que obrigou a modificar o modo de locomoção, ocasionando importantes mudanças anatômicas na cabeça, coluna, tronco e membros. Ocorreu uma intensa atividade de coordenação óculo-motora, óculo-manual, cérebro-mão, onde a mão se tornou o elo entre o cérebro e o ambiente. O homem pegava o utensílio do meio, interagia, pensava, criava e transformava de acordo com suas necessidades no momento. Foi guardando essas experiências e passando para frente para outros, e assim foi evoluindo e mudando. Desenvolveu supersentidos para informar ao cérebro sobre o perigoso mundo exterior, e o cérebro tinha que interpretar rapidamente o que poderosos sentidos lhe informavam, principalmente à noite, para, assim, sobreviver. Desenvolveu, assim, a memória, o sentido de abstração para separar mentalmente as coisas. Desenvolveu consciência, raciocínio e linguagem, o que desencadeou uma
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superioridade técnica que deu um impulso à atividade laboral e produtiva e aperfeiçoamento da vida em sociedade, que determinou o futuro da humanidade e tornou possível a nossa complexa vida moderna. As características físicas constituíram um fator determinante para a realização das tarefas produtivas e laborais que são exclusivas do ser humano. O aperfeiçoamento da postura ereta e da locomoção permitiram a posição vertical, a mobilidade do tronco e a libertação dos membros dianteiros (braços), que puderam ser usados para lançar objetos à distância, carregar alimentos, construir tecnologia para defesa e ataque. “As formas dos organismos, em todos os níveis, desde sequências de DNA até a morfologia macroscópica e o comportamento social podem ser modificados a partir daquelas dos seus ancestrais durante a evolução.” (RIDLEY, 2006: 28). Como vimos acima, o Homo sapiens pôde se estabelecer devido a suas características que lhe trouxeram vantagens evolutivas. Separou-se de seus ancestrais ao longo da evolução. A postura ereta foi assumida devido à evolução da espécie e da necessidade de sobrevivência imposta pela natureza. O grande salto para longe dos outros primatas foi a plasticidade de seu cérebro, ou seja, uma forma de reagir ao meio e a ele se adaptar. A genética deu os 2% onde está a plasticidade, e o meio fez o resto. O cérebro cresce por aquisição de novos conhecimentos, porém a repetição inibe a resposta cortical. O cérebro também cresce, evolui com os estímulos do meio e pela motricidade. Foi pelo movimento que o homem evoluiu. A necessidade de sobrevivência imposta pelo meio dá velocidade e aumenta a velocidade do desenvolvimento cerebral. O cérebro desenvolveu raciocínio para melhorar as condições de vida e atender o biológico do homem e criou tecnologia também para isso. A tecnologia também permitiu dominar o território, o ambiente ao redor. Assim, vemos que a consciência do homem está ligada às suas habilidades tecnológicas. A essência da humanidade vem da interação dos genes com o ambiente. A inteligência do homem vem da interação com o planeta. Vimos que, pela seleção natural, apenas o Homo sapiens sobreviveu devido a suas características que lhe trouxeram vantagens evolutivas, e pelo desenvolvimento cognitivo que lhe permitiram a fala articulada e ter padrão de vida baseado em cultura. A coordenação óculo-manual foi essencial para o aparecimento das características humanas. O fenótipo é uma resposta do
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genômio às incitações do meio. Temos naturalmente um poder endógeno de mutação e recombinação, onde o organismo inventa por combinações uma solução original e conducente a um novo reequilíbrio. A evolução nos mostra que todo animal tem comportamentos filogenéticos e sociais, e o que mais caracteriza o homem como animal é a construção de seu ninho como qualquer outro, e que, apesar de todos os seus dons, o homem continua a possuir no seu invólucro corporal a marca indelével da sua humilde origem. “Adaptação refere-se à concepção de vida - aquela propriedade dos seres vivos que os tornam capazes de sobreviver e de se reproduzirem na natureza” (RIDLEY, 2006, p. 29). A neuroevolução é o caminho para o processo de hominização. Segundo a dimensão bioconservativa da neurociência, à medida que o Sistema Nervoso foi crescendo, se desenvolvendo, evoluindo, foi conservando as características dos sistemas nervosos de todos os seres que nos precederam, e as foi passando para as gerações posteriores. O nosso cérebro, então, é um conjugado de todos os cérebros das outras espécies animais. O sistema nervoso do homem é um somatório de todos os cérebros das outras diferentes espécies. A modificação desse sistema nervoso foi devido à motricidade do corpo, sempre em função do estímulo do meio imposto pela natureza impulsionando a adaptação e sobrevivência. “As adaptações evoluem por meio da seleção natural, e esta ajusta as frequências dos genes ou dos organismos” (RIDLEY, 2006, p. 339). Os genes que criaram os ossos, pele, músculos etc. em outros animais são os mesmos genes que formam nosso corpo humano. Eles são arquitetos e foram fazendo experiências com as diferentes espécies, aprimorando o que dava certo e inibindo o que não dava, sempre em função da adaptação e sobrevivência das espécies. “A camuflagem é um claro exemplo de adaptação” (RIDLEY, 2006, p.29). Essas experiências se transformavam em comportamentos adaptativos e motivados para atender as necessidades biológicas do ser humano. É por isso tudo que o ser humano tem comportamentos estranhos. Se o sistema nervoso deixa de ser estimulado e cai na rotina, por exemplo, o sistema deixa de ter função, de atuar e, assim, faz dinâmicas para não alienar suas células. O
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estímulo é o alimento do neurônio, se faltar, tudo regride porque o sistema nervoso humano deleta essa rotina ou joga-a para o cérebro primitivo das outras espécies que carregamos conosco, e isso gera comportamentos também animalescos, sem evolução. O cérebro humano gosta de coisas novas que captem a sua atenção. A repetição inibe a resposta cortical. É só usar um perfume muito tempo que o cérebro o deleta e a pessoa passa a não mais sentir a sua fragrância. Podemos estar a funcionar em qualquer nível ou zona do cérebro, ou seja, em um dos três cérebros como afirma a dimensão bioconservativa. Para ela, temos 3 cérebros e podemos estar a funcionar em qualquer um deles a qualquer hora do dia. O 1º cérebro, diencefálico, instintivo com o qual nascemos. O 2º cérebro, límbico ou emocional-afetivo. O 3º cérebro é o cortical, evoluído, cultural, civilizado. O sistema nervoso já existia nos animais antes de nós, como, por exemplo, nos animais com uma só célula. No ser humano, o cérebro civilizado é apenas 2% e o animalesco é 98%. Assim, temos uma tendência a assumir a nossa animalidade. É por isso que temos que saber todos os dias em que área do cérebro estamos atuando, para poder controlar as nossas ações. O estudo do genoma feito por vários países, dentre eles o Brasil, comprovou, deixou bem claro que nos 2 metros de DNA, apenas 2cm são da espécie humana, o restante são carregados de genes de bactérias. Isso ajudou porque a essência da humanidade está na interação desses genes com o ambiente. É daí que vêm as paixões, medos, capacidade de fazer guerra etc. Só 2% do nosso DNA são compostos de genes. O DNA que não tem gene é chamado de DNA lixo, que é 98% de todo ele. Também tem papel importante na evolução da espécie humana e na proteção natural contra mutações prejudiciais. O genoma deixou isso bem claro, e que o papel do ambiente é maior do que se imaginava. Dos 30 mil genes, só 1% é humano. “O projeto genoma compreende que o conjunto de genes da espécie humana representa os
alicerces
da
maioria
de
suas
características
e
comportamentos”
(LEMGRUBER, 2010, p. 27). O grande achado do projeto genoma foi o de revelar que a complexidade das diferentes espécies não está no número de genes ou em sua estrutura, mas, sim, nos mecanismos de controle de sua expressão. Revelou também a
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possibilidade de herança de certas tendências comportamentais e as relações entre suscetibilidade individual, presença de marcadores genéticos e certas doenças, inclusive, transtornos mentais. Isso provocou uma mudança na forma de se conceber o determinismo genético e o ambiental. Ficou provado que o ser humano já nasce equipado com uma espécie de setup neuroquímico, porém esse é passível de modificação pelo meio. Assim, cada indivíduo é determinado pela reação de seu genótipo com o meio ambiente, sendo uma resultante da integração desses dois vetores. Donde, a forma como a carga genética vai se expressar em cada indivíduo depende das circunstâncias com as quais os genes se defrontam no meio externo. Há uma relativa autonomia para os seres humanos, pois os genes, mesmo que forneçam as bases, só se tornam ativos através da interação do indivíduo com seu meio ambiente. O ser humano apresenta um alto grau de plasticidade mental em resposta às mudanças necessárias ao seu desenvolvimento pessoal e à sua adaptação ao meio ambiente. Os genes, mesmo que forneçam as bases estruturais e constitucionais do temperamento e do comportamento humano, só terão sua expressão fenotípica através da interação do ser humano com seu ambiente externo. A plasticidade neuronal do ser humano implica na capacidade de mudanças de conexões entre os neurônios durante toda a vida e é básica para a sua sobrevivência. Enfim, a nossa pesquisa se valeu desse 1º nível do comportamento ou desse 1º cérebro, que já nasce nos controlando, com instinto de sobrevivência que controla todos os mecanismos de controle do corpo, tanto mental quanto motor e vegetativo, para atender as nossas necessidades biológicas para que possamos sobreviver, e que é um nível primitivo que já nasce evoluído para nos controlar primeiro e, assim, permitir que os outros níveis evoluam até o último ou cortical, civilizado, racional, consciente. É um nível que atua para ajustar os sistemas do corpo, porque, no recém-nascido, o sistema nervoso e endócrino é mais lento e não dá tempo para ajustes rápidos, e é aí que entra esse nível automático do cérebro, provisório e que não é muito preciso. Mas, à medida que o sistema nervoso vai se relacionando com o meio, vai ocorrendo o desenvolvimento de baixo para cima de todo o sistema nervoso. São desses movimentos comportamentais e que englobam movimentos, por exemplo, de
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réptil, anfíbio, mamífero (cobra, jacaré, rã, pássaro, urso), que tiramos os exercícios neuroevolutivos naturais para aplicar nos pacientes hipertensos.
2. METODOLOGIA
Esta pesquisa caracterizou-se por ser um modelo descritivo-causalcomparativo que consiste em observar, registrar, coletar, analisar e correlacionar fatos ou fenômenos (variáveis), sem manipulá-los. Pautou-se em aplicar os exercícios neuroevolutivos, coletar e registrar os resultados ou respostas orgânicas apresentadas pelos sujeitos, onde os dados foram construídos em grupos naturalmente constituídos, e teve como principal objetivo, investigar se indivíduos hipertensos submetidos ao tratamento com exercícios neuroevolutivos são beneficiados profilaticamente e se melhoram o seu quadro clínico. Saber, enfim, se este método é eficaz para isso.
2.1 SUJEITOS DA PESQUISA
Os indivíduos inseridos no projeto foram selecionados aleatoriamente na cidade de Belford Roxo. Foi feita uma propaganda com cartazes fixados em locais estratégicos, oferecendo tratamento gratuito para a hipertensão arterial. 2.2 INSTRUMENTO DO ESTUDO
Para a realização do estudo, foram escolhidos indivíduos do sexo feminino, com hipertensão arterial, na faixa etária entre 35 e 55 anos. Foi utilizada a verificação da pressão arterial no início e no final da aplicação do tratamento com exercícios neuroevolutivos. No final, a verificação era feita após um descanso de 5 minutos.
2.3 PROCEDIMENTO DE COLETA DE DADOS
A coleta de dados do presente estudo foi realizada no período de agosto de 2008 a agosto de 2009, e contou com a ajuda de 4 discentes: 1) Fernanda
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da Silva Nascimento, 2) Tânia Cristina da Silva Hermínio, 3) Leilane Costa Leal, 4) Rafaela Mª de Paula Costa. Os exercícios neuroevolutivos foram por elas aplicados na clínica de fisioterapia da UNIABEU, onde também foi realizada a verificação da pressão arterial antes e após os exercícios. Os resultados obtidos foram alocados em fichas específicas e individuais e passados para um mapa de controle para posterior estudo estatístico. A aplicação dos exercícios neuroevolutivos apresenta como principal objetivo investigar se os mesmos são significativos para a prevenção, tratamento e abrandamento do quadro clínico da hipertensão arterial em indivíduos ou pacientes nessa faixa etária citada.
3. APRESENTAÇÃO DOS DADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Foram avaliados 15 sujeitos da amostra na clínica escola de Fisioterapia da UNIABEU, do sexo feminino na faixa etária entre 35 e 55 anos. Os sujeitos desse estudo foram avaliados individualmente em relação à hipertensão arterial na própria instalação da clínica, no período de um ano, às segundas, quartas e quintas-feiras, onde foram aplicados os exercícios neuroevolutivos e coletados os resultados ou resposta orgânica pelos quatro discentes e pelo coordenador da pesquisa. Após a coleta dos dados, os mesmos foram alocados em fichas individuais e analisados em separado e enviados para o estudo estatístico, que apresentou os seguintes resultados:
3.1 APRESENTAÇÃO DOS DADOS
Apresentamos aqui os dados relacionados ao grupo estudado e citado que representa todos os sujeitos de nossa amostra. De acordo com os resultados no quadro estatístico, quanto à pressão arterial dos pacientes, observamos os seguintes resultados: Dos 15 pacientes estudados durante 1 ano, a grande maioria apresentou significativa melhora do quadro clínico. Dos 15 pacientes, 9 tiveram suas pressões arteriais sistólicas e diastólicas diminuídas; 1 paciente continuou no mesmo parâmetro do início do tratamento, isto é, nem abaixou nem aumentou sua pressão arterial, tanto sistólica quanto diastólica; 4 pacientes só tiveram diminuída sua pressão
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arterial sistólica, e a diastólica continuou no mesmo parâmetro do início do tratamento, ou seja, continuou igual, nem abaixou nem aumentou.
250 200 150 100
PAS antes PAS depois
50 0
Figura 1. Gráfico apresentando a pressão arterial sistólica (PAS) dos sujeitos da amostra.
Figura 2. Gráfico apresentando a pressão arterial diastólica (PAD) dos sujeitos da amostra.
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160 140 120 100 80
PAS Antes
60
PAS Depois
40 20 0 Média
Moda Bruta
Moda czuber
Mediante
Desvio Padrão
Coeficiente de Variação
Figura 3. Gráfico apresentando a média das pressões arteriais sistólicas (PAS) dos sujeitos da amostra. 120 100 80 60 PAD Antes PAD Depois
40 20 0 Média
Moda Bruta
Moda czuber
Mediante
Desvio Coeficiente Padrão de Variação
Figura 4. Gráfico apresentando a média das pressões arteriais diastólicas (PAD) dos sujeitos da amostra.
3.2 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS No decurso desta discussão vamos apresentar os resultados da seguinte forma: dos 15 sujeitos que formam a amostra perfazendo um total de 100%, observou-se que 60%, ou 9 sujeitos da amostra estudada, apresentaram uma
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resposta orgânica favorável e sensível ao tratamento proposto, melhorando o quadro clínico da hipertensão arterial. 26,666...%, ou 4 sujeitos da amostra estudada, só diminuíram a pressão arterial sistólica. A diastólica continuou no mesmo parâmetro verificado no início e no final dos exercícios. 6,666...%, ou 1 sujeito da amostra estudada, continuaram no mesmo parâmetro verificado no início e no final dos exercícios, ou seja, não apresentaram alteração em sua pressão arterial, tanto sistólica quanto diastólica. 6,666...%, ou 1 sujeito da amostra estudada, ou seja, somente 1 paciente teve sua pressão arterial aumentada, tanto sistólica quanto diastólica.
4. CONCLUSÃO
Com base nos resultados apresentados e alicerçados pelo estudo estatístico, encontramos fortes evidências comprobatórias de que os exercícios neuroevolutivos são benéficos para pacientes hipertensos, amenizando o seu quadro clínico e atuando na profilaxia dessa patologia. Os resultados são relevantes e comprovam a eficácia do método aplicado. O tratamento da hipertensão arterial conta agora com mais uma ferramenta importante, na medida em que possibilitará a reeducação, mudanças de hábitos que, com certeza, trarão grandes benefícios à sociedade como um todo, e que é afetada por múltiplos fatores impostos, criados pela civilização e modernismo com seus subprodutos causadores desse grande mal que se mostra silencioso e devastador para todo o organismo humano. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LENT, Roberto. Cem Bilhões de Neurônios. 1ª ed. São Paulo: Atheneu, 2002, 698 p. MORRIS, Desmond. O Macaco Nu. 4ª ed. Rio de Janeiro: Atheneu, 1998, 188p. MARK, F. Bear. Desvendando o Sistema Nervoso, 2ª ed. São Paulo. Art. Méd. 2002, 857 p.
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HOUZEL, Suzana Herculano. O Cérebro Nosso de Cada Dia: Descobertas da Neurociência sobre a vida cotidiana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Vieira e Lent Casa Editorial. 2002, 90 p.
RIDLEY, Mark. EVOLUÇÃO.Henrique Ferreira, Luciane Passaglia, Rivo Fischer, 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2006, 752 p.
NEUROCIÊNCIAS, Psicologia. Revista Multidisciplinar das Ciências do cérebro, São Paulo. Atlântica Editora, 2010, 76 p.
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REPENSANDO A EDUCAÇÃO E A SOCIEDADE NA BAIXADA FLUMINENSE: OLHARES DE INVESTIGAÇÃO E PESQUISA1
Ivonete Cristina Campos Lima “... a história regional, essa construída num pequeno espaço,... é a que talvez possa perseguir fornecer e chegar mais precisamente aos objetivos do sentido da História”. Miridan Britto Falci 1. APRESENTAÇÃO O presente trabalho resulta da pesquisa financiada pelo PROAPE, nos anos de 2008 a 2010, da UNIABEU, onde pudemos contar com discentes bolsistas integrados ao Programa (Marcelo Santos de Almeida e Priscilla Bezerra Barboza) e com bolsistas voluntários (Diego Grillo, Fabiane Aparecida e Joana Freitas). A pesquisa visa à compreensão das relações existentes entre os fatores que atuaram no sistema educacional brasileiro, especialmente nos anos 50 e foi desenvolvida da seguinte forma: leitura e sistematização de toda bibliografia possível pertinente à investigação em questão; encontros periódicos para reflexões sobre os resultados, pontuando os avanços significativos da pesquisa em todas as instâncias (coordenação, docentes e discentes envolvidos); entrevistas pessoais, administrativas e institucionais com os agentes sociais diretamente envolvidos com a trajetória da educação na Baixada Fluminense; visitação periódica às Instituições tradicionais no cenário da Baixada Fluminense (Jornal - O Correio da Lavoura, Instituto Iguaçuano, Colégio Leopoldo, ABEU/UNIABEU, Instituto Rangel Pestana, Rádio Solimões, Instituto Educacional Santo Antônio- IESA, ABE - Associação Brasileira de Educação e Biblioteca Nacional (estas duas últimas instituições se localizam no centro da cidade do Rio de Janeiro), bem como entrevistas com os gestores e participação em simpósios, eventos e congressos (docentes e discentes).2
* O título original do projeto de pesquisa inscrito no PROAPE era “Educação e Sociedade na Baixada Fluminense: a trajetória da ABEU e da UNIABEU”. 2 Tivemos a participação diretamente do professor Ronald Apolinário de Lira, Mestre em Ciências Sociais pela UERJ e bolsista do PROAPE.
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Naturalmente, tudo isso nos exigiu um esforço de caráter metodológico: de registrar os fatos, sistematizá-los e de tentar interpretá-los de forma a aproximá-los da perspectiva do diálogo com as fontes, escapando assim da redução simplista ao refletir o cenário da investigação em pauta e, para isso, nos apropriamos da História Oral/da Memória utilizada por nós de forma a esclarecer algumas lacunas que, antes mesmo de iniciarmos a pesquisa, já eram evidenciadas, a exemplo, do surgimento em massa dos cursos técnicos e profissionalizantes na Baixada Fluminense. Logo, optamos por estabelecer a investigação partindo do cenário de outrora do espaço estudado, de como se deu a expansão da educação na sociedade baixadense, nos anos 50, atrelando, é claro, com o desenrolar das dinâmicas políticas e econômicas do país, e traçar algumas luzes conclusivas diante de todo material coletado e analisado pela equipe da pesquisa que, por hora, abre oportunidades para novas contextualizações para a realização de novas perspectivas históricas diante da mesma temática. 2. BAIXADA FLUMINENSE: O CENÁRIO EM QUESTÃO
Situada entre a capital metropolitana carioca e um interior montanhoso, encontra-se a populosa região que conhecemos como Baixada Fluminense. É comum somente vê-la pelo viés de questões políticas e econômicas, a exemplo da notável Vila Iguassú. Todavia, o recorte temporal que aqui privilegiamos são os anos 50, sob a perspectiva da abordagem educacional, e de como a dimensão deste caminho proporcionou um diferencial, que hoje podemos constatar a partir de Instituições de renome e, em especial, a ABEU Colégios e a UNIABEU. Entretanto, revelar a identidade desta região pela via da educação certamente será um desafio, que obviamente necessitará de pressupostos teóricos referentes à trajetória histórica deste espaço fluminense. Para isso, tornar-se-á significativo que, ao investigar a educação da região, possamos estabelecer previamente os contextos das influências locais por onde trilharia o caminhar das instituições educacionais, bem como delinear os aspectos de ocupação da Baixada Fluminense.
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Podem-se demarcar dois momentos distintos na história de ocupação da Baixada Fluminense: a partir do século XVII, quando a possível região fora palco de extração de madeira (BEZERRA, 1999, p.13), e durante o século XIX. A extração da madeira estimulou a ocupação local por tropas vindas do centro administrativo colonial fluminense, cuja missão era retirar a madeira (ipê, jacarandá, pinho) e transportá-la para a Europa, em função dos caminhos fluviais que ligavam a zona portuária do Rio de Janeiro ao interior iguaçuano. Daí a importância da Vila de Iguassú, que, nos tempos áureos, prósperos e com a abertura da Estrada Real do Comércio, dominou toda a dinâmica local. No entanto, conflitos político-administrativos fizeram com que a vila acabasse por se tornar um povoado morto (SEGADAS, 1960, p.64); e, durante o século XIX, especialmente na 2ª metade, por conta da estação de trem, a mesma impôs a transferência para a localidade de Maxambomba, que passou a exercer toda a movimentação política e econômica da região. Mais tarde, em 1916, a nova sede do município de Iguassú passou a se chamar Nova Iguaçu (BELOCH, 1980, p.50). Nos anos 30, o povoamento desta região cresceu em média 239% (BELOCH, 1980, p.52). A atividade da citricultura, bem como a explosão demográfica, fez com que a região começasse a se preocupar com a questão da implantação de escolas, mesmo que de forma isolada, uma vez que não era objetivo do governo neste momento garantir uma educação pública de qualidade na região e muito longe de querer assegurar este serviço para todos. Em especial em Nova Iguaçu, a elite, que tinha os seus méritos por conta da vantajosa situação econômica advinda da produção da laranja, que compunha a denominação local e conhecida por todo o estado como “cidade perfume” (PEIXOTO, 1963, p.18), já estava preocupada com o deslocamento de seus filhos para o centro do Rio de Janeiro. No final dos anos 40, a citricultura não era mais o foco central da região, por conta das pragas e infortúnios acarretados pela 2ª Guerra Mundial. Logo, a crise cítrica foi precursora do início dos loteamentos baixadenses como uma alternativa imediatista para os fazendeiros endividados até então (MONTEIRO, 2001, p.22).
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3. POR ONDE CAMINHOU A EDUCAÇÃO?
A educação tem como marca a estada jesuítica em terras brasileiras, a partir do século XVI, que estabelece práticas de inserção ideológica, ao ensinar pelo viés da cultura religiosa branca, os indígenas que, ludibriados com as novidades e sem perspectivas diante do medo da escravidão, se deixam levar diante “das obras humanitárias dos salvadores de almas”, que são transmitidas nos sermões. Com a expulsão da Companhia de Jesus, o Marquês de Pombal desmantela o sistema de ensino em prol do Estado forte e iluminado aos pés do senhor absoluto e acrescenta em suas reformas as cartas/aulas régias, após um período de ausência de 13 anos de um plano pedagógico educacional para o Brasil (ROMANELLI, 1986, p.36). Em fins do século XVIII, com a descoberta dos metais preciosos, surge no Brasil uma classe intermediária, classificada como uma pequena e principiante burguesia (WERNECK, apud, ROMANELLI, 1986, p.39), que se concentrava na zona urbana da cidade. Estes pequenos burgueses (pequenos comerciantes, artesãos) percebem a importância da educação como forma de inserção no contexto político e econômico brasileiro. Com a chegada da corte no início do século XIX e de todo aparato burocrático, as transformações trazidas por D. João VI, se fazia necessário ter conhecimentos científicos e administrativos; a criação dos primeiros cursos superiores vem como alternativa para suprir contextos que elucidavam a seleção de pessoas preparadas para exercerem especificados ofícios. Vale ressaltar que a classe intermediária começou a frequentar a mesma escola secundária que os filhos da elite oligarca rural. Aquela, inspirando-se no modelo eurocêntrico, vê-se influenciada pelas ideias liberais, que acabam por gerar impactos diante dos pensamentos e ações ideológicos, enfraquecendo as oligarquias rurais. Mesmo assim, a educação foi direcionada para as elites, ou seja, a herança da educação do Brasil colonial se reafirmava como realidade no Brasil Império. Para esta classe intermediária, absorver as práticas da oligarquia é caminho para se conseguir o exercício da hegemonia e garantir para si os
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mesmos benefícios dos grandes proprietários rurais. Neste momento, as alianças com este objetivo são claras e evidentes e, mais uma vez, a questão educacional, que deveria ser prioritária, é deixada em segundo plano. Em início dos tempos republicanos, não era interessante o ensino técnico.
O
Brasil
se
encontrava
em um processo
muito
lento
de
industrialização. Ainda o país tinha as suas práticas políticas e econômicas voltadas para o campo. Herdeiros de uma sociedade completamente escravocrata e de um liberalismo de pura dignificação - “o trabalho enobrece o homem”, ir para escola estava bem distante das camadas populares. Não havia sentido, porque as técnicas rudimentares de plantio e colheita eram aprendizagens conquistadas no dia a dia da labuta rural. (GHIRALDELLI, 1994, p. 58). Ainda, mesmo com a classe intermediária almejando condições melhores de conhecimentos, a escola era o alvo das classes dominantes e operárias, esta última com o desejo de garantir uma função nas primeiras fábricas instaladas. Logo, percebemos que o que houve até então em modelos educacionais foi a dinâmica do dualismo. Ora garantindo inserções de diferentes grupos sociais, ora corroborando com a permanência da política de alianças diante do poder das classes dominantes. 4. COMO CHEGA A EDUCAÇÃO NA BAIXADA FLUMINENSE?
A análise da participação dos grupos sociais na sociedade da Baixada Fluminense explica-se pelas razões do contexto sociopolítico dos anos 30, que se impunham diante das novas conquistas institucionais que vieram corroborar a dinâmica desse espaço regional, transformando a paisagem natural, o que encontrou ressonância diante das instituições privadas que deram início à dinâmica educacional local. Portanto, investigar os anônimos componentes da região, que de forma peculiar foram inclusos nas entrelinhas sociais, é a proposta desta pesquisa. Para isso, analisar a trajetória de algumas escolas e seu papel como instituição educacional é o objetivo deste trabalho.
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Inicialmente, não se tem por enfoque atribuir às Instituições uma relevância isolada que levaria ao esquecimento dos grupos sociais que atuaram de forma pertinente na educação local, em especial nos anos 50, mas, sim, inseri-las no conjunto da sociedade. É a temática a ser investigada a partir da representatividade das diversas trajetórias. O universo de discussões sobre o caminho das instituições de ensino, no que diz respeito ao cenário sociopolítico a partir dos anos 50, é bastante significativo. Em princípio, a produção historiográfica das décadas de 50 e 60 trata a educação sob o prisma econômico, como sendo o caminho de enaltecimento para o ato civilizador, a partir da formação do trabalhador. Alguns educadores afirmam que a tendência à modernização da economia já vinha sendo desejada desde os anos 30. Como afirma Florestan Fernandes (1966, p. 56), foi construído no Brasil um modelo político e econômico conhecido como nacional-desenvolvimentista, com base na industrialização. Teixeira (1957, pp. 88-89) aborda também esta questão. Retrata que as evidências desenvolvimentistas refletiam as práticas educacionais. O autor assinala que ficou evidente a tendência à retomada dos princípios voltados para a formação do trabalhador, de acordo com o modelo urbano-industrial. Embora o autor, sutilmente, em sua obra, faça críticas a esse modelo, ele não nega a importância do momento diante das transformações no campo da Educação. Assim, as instituições dessa região têm sua origem neste contexto. Um novo olhar historiográfico, voltado para a produção econômica, ainda na década de 60, incrementa o espaço das práticas educacionais, que passaram a ser destaque como fator de desenvolvimento. A teoria do capital humano, concepção importada dos Estados Unidos, ressaltava que o caráter econômico do homem precisava ter como caminho a educação. Entretanto, paralelamente a estes investimentos internacionais, o mercado de trabalho exigirá uma reorganização na economia, que infalivelmente contará com as instituições educacionais para a implementação efetiva desse novo campo de atuação.
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5. ABEU COLÉGIOS E A UNIABEU EM BELFORD ROXO
CONEXÃO UNIABEU - Capa alusiva à comemoração aos 50 anos da ABEU
A ABEU Colégios foi inaugurada na década de 50 com o nome de Ginásio Belford Roxo. Segundo seu fundador, professor Valdir Vilela, na região não existia nenhum curso ginasial e, quando os alunos terminavam a 4ª série primária, para concluírem os seus estudos, se dirigiam ao centro do município de Nova Iguaçu que, para a maioria, era muito distante. Por acreditar no local, promissor de grande investimento, Vilela decidiu edificar o prédio.3 O distrito de Belford Roxo ganha um tom diferente em sua paisagem agrária e rural. Seus aspectos físicos serão transformados a partir da construção de instituições, a exemplo da BAYER do Brasil e da ABEU COLÉGIOS, ou seja, novos ares acabam por mudar a região. Segundo Romanelli, (1986, p. 138), a estratégia de ajuda internacional para o desenvolvimento da educação dentro de uma perspectiva moderna representava uma forma de criação ou expansão de mercados que favorecia os países assistentes. Assim, a tecnicidade com vistas à produtividade ganha espaço no cenário brasileiro.
3
Conexão UNIABEU. 50 anos de História. Belford Roxo, Ano I, nº 1, abril/junho, 2008, p. 8.
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Inserindo-se nesta nova exigência de mercado, as instituições, nas décadas de 60 e 70, implantaram o curso Técnico de Contabilidade, e o Ginásio passou a se chamar Colégio Belford Roxo. Com a inauguração de outros cursos técnicos, passou a denominar-se Escola Técnica Belford Roxo, oferecendo, além do curso Técnico de Contabilidade, os seguintes cursos: Patologia Clínica, Química, Administração, Eletrônica e Eletrotécnica. Nesse
caminho,
a
instituição
expandiu
a
oferta
do
ensino
profissionalizante na Baixada Fluminense, criando um Centro Tecnológico, no município de Nova Iguaçu, com o propósito de abrigar todo o ensino técnico e laboratórios. Observa-se
que
o
ensino
secundário,
por
sua
vez,
tornou-se
integralmente profissionalizante, ou seja, o CFE (Conselho Federal de Educação), através do parecer nº 45/72, relacionou 130 habilitações técnicas que poderiam ser adotadas pela escola para seus respectivos cursos profissionalizantes (GHIRALDELLI, 1994, p. 182). Em 1972, a instituição ingressou no ensino superior, oferecendo os cursos de Administração de Empresas e Ciências Contábeis, ambos em funcionamento em sua sede, no então distrito de Belford Roxo. Em 1984, a ABEU criou, na Ilha do Governador, no município do Rio de Janeiro, a Faculdade de Educação Osório Campos, ofertando os cursos de Pedagogia e de Formação de Professores. Em 1986, essa unidade de ensino converteu-se na Faculdade da Ilha, com os cursos de Administração e Sistemas de Informação. Prosseguindo com o processo de expansão, a ABEU implantou, no município de Nilópolis, o curso de Tecnologia em Informática, posteriormente estruturada em Faculdades Integradas. Por fim, em 1988, implantou, no município de Angra dos Reis, estado do Rio de Janeiro, o curso de Administração. Assim, a ABEU conquista efetivamente o seu espaço educacional ao promover a inserção dos moradores da Baixada Fluminense no ensino técnico profissionalizante e no ensino superior, marcando a sua trajetória como um divisor de águas das práticas pedagógicas existentes até então, garantindo à população da região um aprendizado de qualidade. Por fim, como resultado de seus 40 anos na área educacional, a instituição, em maio de 2002, elevou-se à categoria de Centro Universitário -
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UNIABEU, com sede no município de Belford Roxo, tendo campi nos municípios de Nilópolis, Nova Iguaçu, Angra dos Reis e na Ilha do Governador.
6. LUZES CONCLUSIVAS: PARA NÃO COLOCAR UM PONTO FINAL NA HISTÓRIA...
A construção de uma trajetória de um determinado objeto leva o historiador a uma tentativa de buscar, através das experiências e motivações existentes em sua vida, algo que o surpreenda e ao mesmo tempo contribua com as múltiplas facetas do saber acadêmico. Apropriar-se de uma pretensa imparcialidade é querer obrigatoriamente preencher os vazios da própria pesquisa, uma vez que a construção do objeto é primordial quando se refere ao próprio homem. (CARDOSO, 1997, p. 34). A relevância desta pesquisa vem ao encontro a um desejo de criar um acervo documental expressivo dentro das instituições que certamente colaboram para o crescimento do município e cuja história faz parte indiscutivelmente de Belford Roxo: a ABEU COLÉGIOS e a UNIABEU CENTRO UNIVERSITÁRIO. Sob uma abordagem sociocultural, a investigação permitirá que se efetive a instalação de um acervo memorial aberto não somente para toda a comunidade da Baixada Fluminense como também para todos que se interessam por pesquisas no tocante à História Regional e Local, enriquecendo assim os espaços da Academia e contribuindo para a efetiva multiplicação do saber. É a partir do repensar da investigação da educação e sociedade na Baixada Fluminense que percebemos que, com êxito, chegamos às luzes de um aproximado perfil educacional que se vislumbra na região. Essa construção se deu em torno da análise de todas as fontes possíveis em que nos debruçamos, bem como das entrevistas realizadas, que foram extremamente importantes para delinearmos a trajetória da dinâmica escolar, relacionada com os agentes sociais da região e a escola, concebida como instituição social. Segundo Selva Guimarães, ...a escola concretiza as relações entre educação, sociedade e cidadania, sendo uma das principais agências responsáveis pela
83 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1 formação de novas gerações... . Realiza a mediação entre as demandas da sociedade, do mercado e as necessidades de autorrealização das pessoas; [...], transforma-se junto com a sociedade e também colabora e participa das mudanças sociais (GUIMARÃES, 2007, p. 152)
A partir da inauguração do Gymnasio Leopoldo em 1933, de origem religiosa espírita (Allan Kardec), podemos constatar que a caridade aos menos favorecidos era em torno da educação, mas, um detalhe importante, a elite não se misturava com os pobres, somente para fotos. Estes pobres eram assistidos separadamente, em outras classes e em outras dependências. Tinham, porém, o mesmo tratamento e o mesmo nível de instrução da elite, os alunos da primeira turma, mais tarde se tornaram professores e muitos abriram os seus próprios colégios, a exemplo do professor Leonardo de Almeida, dono do Curso Iguassú, estudante do Leopoldo. Outro dado constatado é que estudantes mulatos que já faziam parte da nata iguaçuana, ou seja, de famílias mestiças ricas, que exerciam influência nas decisões políticas, participavam desse mesmo privilégio garantido à elite, que era o acesso à escola.
Gymnasio Leopoldo - Inaugurado em 1933 - 1ª turma da escola
O dono do jornal Correio da Lavoura, fundado em 1917, era mulato e pertencia a uma família influente da região, ligada à produção de laranja, logo, estes agentes sociais chegaram e permaneceram. Sua chegada está
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relacionada à trajetória dessas escolas, colocando-se como um suporte diferencial no que tange às práticas de Educação da Baixada Fluminense, como meio de divulgação.
Sr. Silvino Hypolito de Azeredo Coutinho - fundador e dono do jornal - O Correio da Lavoura, fundado em 22 de março 1917.
A visão de detalhes como este descrito acima, importantes para a região, transforma uma localidade marcada pela exclusão social da maior parte da população, tendo em vista que conhecer e divulgar o percurso de seus vários agentes é, antes de tudo, uma perspectiva de fortalecimento da cidadania na comunidade local, que revalorizará seu cotidiano e sua contribuição para a construção e reconstrução de sua própria história. Apontando a memória como foco condutor, devemos, assim, descrever como ela é compreendida no meio historiográfico, delimitando seu alcance e profundidade no presente trabalho. Quando nos propomos a resgatar a história de algumas Instituições que se perpetuam por mais de meio século, é na memória de seus fundadores e na daqueles que se lhes avizinham, acompanhando seu desenvolvimento, que poderemos alcançar o registro histórico não só das instituições, mas de toda a região que as cerca.
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Temos o depoimento do atual gestor do Instituto Iguaçuano, professor Adilton Rodrigues da Silva de Almeida, que nos revela momentos interessantes: “..., o trem era o veículo principal dos alunos. Próximo à hora da entrada e da saída, o colorido da estação de Nova Iguaçu, era o branco e o azul... Alunos nossos vinham de trem, faziam baldeação, para chegar em Duque de Caxias...”. (entrevista concedida em 8 de abril de 2009). O Instituto Iguaçuano foi inaugurado nos anos 40, com o nome de Curso Iguassú e teve o seu diferencial, a sua marca baseada em uma administração feminina, a professora Elza Rodrigues, esposa do professor Leonardo de Almeida. Hoje, observamos que a esposa do atual gestor está à frente do Instituto. Logo, o registro local se torna uma preciosa ferramenta para construirmos o debate que procuramos elaborar.
Reportagem do Correio da Lavoura sobre o Curso Iguassú
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Fotos da Srª Elza Rodrigues - gestora do Instituto Iguaçuano, nos anos 40 - homenagem alusiva ao Dia Internacional da Mulher em 2009.
Tivemos também depoimentos significativos de duas ex-professoras do IESA, que afirmaram que a instituição foi sem dúvida um marco na região com o seu trabalho assistencialista, voltado para a caridade também. Existia a modalidade de externato para meninas e meninos pobres, e a Igreja Católica era o link que sustentava todas as práticas pedagógicas, todavia, era um sonho de consumo para a elite, estudar nesta instituição. Seus
gestores
tinham
grande
influência
política
conseguindo
significativas somas de dinheiro para o desenvolvimento da instituição, proporcionando assim um diferencial competitivo importante entre as escolas de Nova Iguaçu.
Decreto lei de fevereiro de 1950 - referente ao Projeto que garantia recursos para as escolas particulares - IESA.
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Assim, compreendendo a memória como um conceito amplo e abrangente, temos como reconstruir o histórico de uma instituição e, ao mesmo tempo, entrelaçar no discurso histórico a caminhada da comunidade que a cerca. (AMADO, 2004, p. 15) O conceito de memória, segundo Le Goff, vem sendo compreendido de diversas formas durante o tempo. Ele não pertence apenas ao cabedal conceitual dos historiadores, mas também ao de outros campos, como, atualmente, a antropologia. E ainda, além dos diferentes campos que o têm, como o familiar, o conceito de memória nem sempre possui a mesma semântica, às vezes nem mesmo dentro de uma mesma disciplina (LE GOFF, apud, BURKE, s/d, p. 23). Checando as nossas lembranças, nos remetemos à pesquisa para constatar os tempos prósperos da implementação dos cursos técnicos e profissionalizantes nas escolas privadas da Baixada Fluminense. O Estado não conseguia atender a demanda da região, uma vez que por conta da ocupação desenfreada desse espaço, temos um número significativo de mão de obra a ser lançada no mercado de trabalho, e nesse momento a localidade ganha vulto por emitir, através da educação, pessoas qualificadas e aptas ao trabalho. Assim, a trajetória histórica das Instituições ultrapassa o tempo e faz-se presente na região da Baixada Fluminense. É bom lembrar que a pesquisa não se esgota pelo fato de conseguirmos alguns resultados significativos, mas, sim, que ela abriu portas para novos objetos de estudos e outras reinterpretações. Portanto, ao longo desses dois anos, verificamos que a amplitude do objeto de estudo em questão fez-nos perceber que a História, pelo viés da educação, não para, e as indagações provocadas no decorrer da pesquisa vieram consolidar e aumentar o nosso desejo de querer buscar mais. Pudemos compreender que a educação de hoje vivenciada na região ainda traz marcas das práticas dos anos 50. Dessa forma, acreditamos que construímos um conhecimento sólido e com possibilidades de futuros desdobramentos.
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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMADO, Janaína; MORAES, Marieta. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro, FGV, 2004. BELOCH, Edith Maria. Loteamentos periféricos: algumas considerações sobre essa forma de moradia proletária. Tese de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, mimeo, 1980. BEZERRA, Nielson Rosa. Baixada Fluminense: pau para toda a obra. Sentidos de ocupação da região. Rio de Janeiro, FEUDUC, 1999. BRITTO, Miridan de. História Regional: conceito, problemas e tipologias. Rio de Janeiro, IGHV, 2005. BURKE, Peter. O mundo como teatro: estudos de Antropologia Histórica. São Paulo, Difel, s/d. CARDOSO, Ciro Flamarion S.; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história. Rio de Janeiro, Campus, 1997. CONEXÃO UNIABEU. 50 anos de história. Ano 1, nº 1, abril/junho, 2008. FERNANDES, Florestan. Educação e sociedade no Brasil. São Paulo, EDUSP, 1966. GHIRALDELLI, Paulo Jr. História da educação. 2ª ed., São Paulo, Cortez, 1994. MONTEIRO, Ana Maria; GASPARELLO, Arlete Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. (Orgs.). Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro, MAUAD X, FAPERJ, 2007. MONTEIRO, Linderval Augusto. Baixada Fluminense: identidade e transformações: estudo de relações políticas na Baixada Fluminense: a criação do município de Belford Roxo e a mitificação política de seu primeiro prefeito. UFF, CFCH/ICHF, Rio de Janeiro, 2001. PEIXOTO, Ruy Afrânio. Imagens iguaçuanas. Nova Iguaçu, mimeo. 1963.
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ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil: 1930 a 1973. 12ª ed., Petrópolis, Vozes, 1986. SEGADAS, Maria Therezinha. Nova Iguaçu: absorção de uma célula urbana pelo grande Rio de Janeiro. Tese de livre docência em Geografia. Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Filosofia, mimeo, 1960. TEIXEIRA, Anísio. A educação não é privilégio. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957.
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A MELHORIA DA VIDA POSSÍVEL: A HISTÓRIA DA ABEU/UNIABEU E DE SEU FUNDADOR1 Ronald Apolinário de Lira*
1. INTRODUÇÃO Não se consegue muita informação histórica na Baixada Fluminense.2 Esse foi um triste atestado durante dois anos de pesquisas sobre a história da ABEU/UNIABEU, efetuadas por mim e pela professora Ivonete Campos Lima no projeto “Educação e Sociedade na Baixada Fluminense: a história da ABEU e UNIABEU”. A bolsa de pesquisa cedida pelo PROAPE - Programa de Apoio à Pesquisa e Extensão da UNIABEU - permitiu que nos desdobrássemos em busca de material historiográfico escrito para traçarmos nossas metas, mas quase
nada
encontramos.
A
professora
Ivonete,
responsável
pela
contextualização da história da Educação na Baixada, assim como eu, responsável pela compreensão da história da ABEU/UIABEU, visitamos diferentes órgãos públicos e privados, recebendo a mesma resposta: “não podemos ceder os documentos”. Assim, optamos pela alternativa de basearmos nossos estudos na História Oral. O presente artigo é resultado da minha contribuição nesse projeto de pesquisa. O debate sobre como a memória pode ser considerada História já é antigo no meio historiográfico (ALBERTI, 2004), alimentado principalmente pelo fator subjetivo de suas fontes. Uma segunda questão se refere ao binômio verdade/ficção, onde os documentos escritos teriam um valor maior do que as fontes orais de memória. O sociólogo Maurice Halbwachs (2009), seguidor da escola durkheimiana, analisa a construção da memória de uma forma diferente: ao invés de seguirmos pela via única de entrevistador e entrevistado - esse último como possuidor de um conhecimento ímpar e particular - o autor propõe uma ideia de “memória coletiva”, ou seja, a memória como fato social. Certamente não *Professor titular da UNIABEU, Mestre em Ciências Sociais pela UERJ, Doutorando pela mesma instituição. 1 Parte do presente artigo foi apresentado no X Encontro de História Oral, em Recife, em abril de 2010. 2 Eu seria muito ingrato e parcial se não apontasse o maravilhoso acervo de pesquisa da Diocese de Nova Iguaçu, organizado pelo senhor Lacerda. Mas, infelizmente, o que eu precisava para minha parte específica da pesquisa, não era da alçada daquele acervo.
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somos os únicos a nos lembrar de certos fatos, pois, por sermos seres sociais, construímos a memória junto com todos à nossa volta, assim, a memória do entrevistado é composta - e recomposta - pela sua vida social e pelas pessoas que fizeram parte dela. A história da ABEU/UNIABEU pode ser tratada tanto como o resultado do empenho e trabalho de seu fundador - o professor Valdir Vilela - como pela comunidade que a cerca. Essa troca de experiências vividas entre professores e alunos, comunidade e instituição e pela direção desta e a política educacional da Baixada Fluminense fez com que hoje tivéssemos uma memória digna de nota. No ano de 2009, a Associação Brasileira de Educação (ABE) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), através da Folha Dirigida, decidiram premiar o professor Valdir Vilela com uma comenda. Em seu discurso para a comemoração ele diz: “... Mais um título que transfiro à ABEU. Através dela me realizo, materializando, dia a dia, o meu compromisso com a educação. Minha missão de vida.”
3
A partir dessas palavras, teremos o fio condutor para
entendermos o movimento de simbiose existente entre o fundador e sua escola, que hoje passa dos seus cinquenta anos. Realizar-se através de sua obra significa, no caso da ABEU/UNIABEU, dedicar cinquenta anos de sua vida para a educação e influenciar politicamente o município onde se instalou, e, principalmente, envolver-se em nível pessoal no seu trabalho - já que aqui “trabalho” se confunde com “vida” - já seriam feitos notáveis, principalmente quando grandes empresas se afastam do envolvimento humano na direção do seu negócio, preferindo modelos mais flexíveis de organização capitalista - veja o exemplo do Ponto Frio, Casas Bahia, Extra e Sendas que, nos dias de hoje compõem o grupo Pão de Açúcar, sendo que, a rede de supermercados Sendas sempre foi lembrada pela família que a fundou e mantinha. Mas o que queremos saber com essa história de crescente sucesso é como o criador se vê - e se reconhece - dentro de sua criatura.
3
Grifo nosso.
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Nesse sentido, o autor deste trabalho decidiu apresentar como a trajetória do presidente da ABEU - através de seu discurso autobiográfico4 - lhe servirá de fio para entendermos a história de sua instituição, sua importância local e sua contribuição na esfera da Educação. Para isso, diversas entrevistas foram concedidas.
2. O UNIVERSO DA PESQUISA E SEU ATOR PRINCIPAL
No seu artigo sobre o trabalho de arquivistas e historiadores quando da organização de um acervo de História, Tourtier-Bonazzi afirma (2008, p. 244) que podemos “querer enriquecer o conteúdo dos arquivos escritos conservados (...)”, mas o que fazer quando esses arquivos não existem e, quando existem, não são disponibilizados para pesquisa? A metodologia oferecida pela História Oral - deixando bem claro de antemão que ela não se resume apenas a essa utilização - se apresenta como uma possibilidade amiga para o historiador. Assim afirma a historiadora Verena Alberti (2004, p. 23): “Só convém recorrer à metodologia de História Oral quando os resultados puderem responder a nossas perguntas e quando não houver outras fontes disponíveis - mesmo entrevistas já realizadas - capazes de fazê-lo”. Sem a possibilidade oferecida pela História Oral, não seria possível dar conta de um trabalho de pesquisa que tem como base a Educação na Baixada Fluminense, já que nessa localidade, inexistem arquivos públicos municipais e toda a documentação cartorária e local é tida como particular ou, no mínimo, confidencial aos pesquisadores. O depoimento, a história de vida e o discurso autobiográfico puderam sanar muito do necessário, não só para o presente artigo, mas, principalmente, para toda a equipe envolvida na pesquisa, e não apenas isso. Inicialmente, acreditávamos que o depoimento serviria como uma compensação, como já foi apontada, para a falta de fontes documentais, mas ao longo do trabalho, pudemos ver que, ao contar sua vida, o entrevistado ia, lentamente, ordenando memórias e construindo uma narrativa que não só dava cabo de sua própria história, mas nos oferecia diferentes elementos para
4
O termo “discurso autobiográfico” se limita à construção de um discurso automático existente dentro da narrativa de reconstrução da memória. Para mais detalhes sobre autobiografia e seus diferentes sentidos, Cf. DOSSE, 2009; LEJEUNE, 2008.
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compreendermos o caminhar da instituição e a organização social do município que a rodeia. A sede da instituição é localizada numa área extremamente pobre - o município de Belford Roxo, vítima de um clima de violência e do eterno título de “cidade dormitório” - e conseguiu manter-se ativa durante cinquenta anos alavancando-se num crescimento ininterrupto; não só expandindo-se para outros municípios, como alcançando, ao fim, o status de centro universitário. E, dentro desse fenômeno, a figura de seu fundador, que desde o início direciona a sua instituição. “Melhorar a vida das pessoas através da educação”. Esse epíteto pode ser lido em todos os lugares do Centro Universitário ABEU, que não se resume apenas em uma instituição de ensino superior particular da Baixada Fluminense e de outros municípios do Rio de Janeiro. A instituição cinquentenária é composta, hoje, por colégios de ensino infantil, fundamental e médio; campi universitários e uma escola de formação técnica e tecnológica. Soma-se a esse conglomerado um resort em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. 5 De longe a ABEU - Associação Brasileira de Ensino Universitário, sigla que surge no fim dos anos 1970 com o início dos cursos de nível superior na instituição - é hoje uma das maiores instituições de ensino privado na Baixada Fluminense, não levando em conta, é claro, as instituições católicas ali residentes. Durante cinquenta anos, o antigo Ginásio Belford Roxo foi se transformando em um nome respeitado na educação fluminense. Mas, para entendermos a ABEU é necessário entender seu fundador, o professor Valdir Vilela. A tática de iniciarmos o trabalho apresentando primeiramente a “criatura” e não seu criador não é meramente um requinte de estilo, mas uma necessidade, pois é na sua criação que podemos compreender a trajetória do seu fundador e atual presidente. Sua biografia contribui diretamente sobre a educação na Baixada, de forma pessoal e direta, assim como a instituição que 5
Os campi da ABEU são: Belford Roxo - sede administrativa, escola de Ensino Infantil, Ensino Fundamental e Médio, Ensino Superior; Nilópolis - escola de Ensino Infantil, Ensino Fundamental e Médio, Ensino Superior; Angra dos Reis - escola de Ensino Fundamental e Médio, Ensino Superior; Nova Iguaçu (José do Patrocínio) - escola de Ensino Fundamental e Médio; Nova Iguaçu (CETEC) Cursos tecnológicos de níveis Médio e Superior; Petrópolis Centro de convenções e resort.
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criou. O lugar social representado pelo Professor Valdir se mescla com a sombra de seu construto.
3. AS ENTREVISTAS E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA No seu livro “O Bispo”, a biografia do religioso Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcelo Tavolaro afirma:
(...) nós, os autores [do livro], Douglas Tavolaro, diretor de jornalismo e Christina Lemos, repórter especial em Brasília (...) somos funcionários da Rede Record de Televisão. Em português claro: Edir Macedo é nosso patrão. Como ter isenção para contar a vida de quem paga nosso salário? (TAVOLARO, 2007, p. 14-15)
Isso é uma questão que deve ser levada em consideração em pesquisas como esta, que dispõe de uma bolsa de incentivo à pesquisa para traçar a história da Educação na Baixada Fluminense, mas, também, a história da instituição de que somos funcionários! Entrevistar seu patrão é uma situação difícil, além de um desafio à imparcialidade científica. Mas, ainda seguindo o mesmo Tavolaro na sua conclusão do assunto, nos apropriamos de suas palavras: “tínhamos consciência do valor jornalístico formidável dessa obra. Do que ela pode representar como documento histórico.” (TAVOLARO, 2007, p.15)”.6 O “valor jornalístico” de Tavolaro poderia ser substituído por “valor histórico” para a pesquisa no qual esse artigo é uma pequena parte. Até o presente momento o professor Vilela só havia sido entrevistado por um historiador, segundo ele; ainda que esse profissional não estivesse compilando uma história sobre o presidente da ABEU ou sobre sua instituição de ensino, mas sobre o município de Belford Roxo. Esta é a primeira vez que uma equipe decide produzir essa história. O papel da “grande testemunha” (VOLDMAN, 2008, p. 41) de sua própria história institucional, representado pelo professor Valdir, não poderia ser deixado de lado por nós, interessados na história da educação na Baixada e no papel da ABEU em tudo isso. A pertença ao grupo de funcionários não invalida a sincera intenção de produzir uma história isenta de comprometimento, principalmente pelo fato de o projeto já
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Grifo nosso.
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existir antes da bolsa de fomento, ou seja, não se trata de uma história encomendada pela instituição. Mas, não podemos nos isentar completamente da parcialidade que todo o historiador pode permear em sua obra, já que, durante as entrevistas - e principalmente na construção prévia de seus roteiros - o historiador constrói a narrativa de seu trabalho junto com seu entrevistado. O laço institucional, longe de limitar a escrita, nos permite ver, por dentro, as engrenagens da máquina. A entrevista, como afirma Verena Alberti (2004, p. 34) quando aborda a entrevista como “relato de ações passadas e resíduo de ações desencadeadas na própria entrevista”. O ato de entrevistar e de ser entrevistado pode ser percebido como uma obra composta por dois autores: (...) enquanto na autobiografia há apenas um autor, na entrevista de História Oral há no mínimo dois autores - o entrevistado e o entrevistador. Mesmo que o entrevistador fale pouco, para permitir ao entrevistado narrar suas experiências, a entrevista que ele conduz é parte do seu próprio relato - científico, acadêmico, político etc. - sobre ações passadas e também suas ações. (ALBERTI, 2004, p. 34)
Os encontros da equipe com o professor Valdir Vilela ocorreram, até o momento, três vezes, acarretando entrevistas com, em média, 150 minutos. Ele inicialmente não tinha ideia do nosso projeto, mas, desde o início, foi muito receptivo. Pudemos notar que, durante a primeira entrevista, houve certa preocupação por parte do entrevistado referente ao uso dos dados a serem obtidos e seus usos futuros. No segundo contato, com a equipe completa, tivemos como expandir nossas dúvidas acerca da primeira entrevista. Logo de início, na segunda entrevista, o professor nos explica o prêmio recebido pela ABI/ABE: V. Vilela: Eu fui eleito, agora em 2009, personalidade educacional pela ABE, que é a Associação Brasileira de Educação, e ABI, Associação Brasileira de Imprensa. Essas duas associações promovem esse evento, ele é apoiado pela Folha Dirigida. Todo ano acontece e eu fui eleito por outras personalidades educacionais a personalidade de 2009. Eu fui receber o prêmio e ele está até aí na entrada. Eu sou contra qualquer tipo de modéstia, mas eu estou dedicando isso à ABEU, pois foi a ABEU que me possibilitou ter sido escolhido. Então eu estou transferindo aí esse prêmio à comunidade. Então, minha preocupação de início com a Baixada é um exemplo disso, da trajetória desde 1958; é uma história que merecia ser escrita, a trajetória em torno disso, a origem, como começou (...)7.
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Entrevista de 04 de novembro de 2009. Grifo meu.
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O professor Vilela é consciente da importância que sua pessoa tem sobre a sua instituição, e, no caminho inverso, que sua instituição tem sobre sua pessoa. A ideia de trajetória que o entrevistado propõe - um caminho que possui sentido e que deve ser registrado - está premente em todas as suas falas com a equipe de trabalho. Seus depoimentos apontam uma vontade voraz de perpetuar sua história através do seu discurso linear, onde seus feitos se iniciam na educação e terminam nela. Ela se inicia em uma pequena cidade de Pernambuco, Bom Conselho, em meados da década de 1940, V. Vilela: Essa é uma história... é um livro. Eu sou do nordeste. Sou pernambucano. Vim para o Rio encaminhado pelos meus pais, para estudar. Eu tinha nove anos de idade. Na minha cidade, Bom Conselho, interior de Pernambuco, não havia ginásio e meus pais estavam preocupados em colocar-me em uma cidade vizinha, que era Garanhuns [...]. Em Garanhuns, havia ginásio. Meus pais estavam preparando-se para me matricular no ginásio em Garanhuns8.
Sua vida no interior de Pernambuco se modifica ao se mudar para o Rio de Janeiro para encaminhar seus estudos. No Rio, morando na casa de seus tios, Valdir Vilela se matricula no colégio Pio Americano, referência de ensino no município. V. Vilela: A sede que eles estavam ainda tinha a Tinha até uma capela. Mas na época em que eu fui leigo. Então eu fui para casa dele, ele procurou colégio era um internato e externato. Tinha alunos 9 tinha alunos externos. Frequentava todo mundo .
estrutura antiga. estudar lá já era me localizar. O de todo Brasil e
Durante anos, ele estuda no mesmo colégio, mas com o tempo, passa a ser funcionário. Com o passar dos anos, Valdir Vilela galga postos no colégio: subsecretário e secretário, mas com o despejo da escola de sua sede, as dificuldades financeiras abalam as suas estruturas. É decidido que, para manter a escola em funcionamento, um grupo de professores assumiria a instituição como uma sociedade: V. Vilela: Pra se manter, o colégio teve que se transformar em uma sociedade de professores. Porque tinha o tempo de casa naquele tempo, existia a estabilidade, não se podia mandar embora. Então, 8 9
Entrevista de 26 de junho de 2009. Grifo nosso. Idem.
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Com a sociedade formada, dos novos donos do Pio Americano teremos mais adiante no tempo, a união de quatro professores que serão o embrião da ABEU: Joaquim de Freitas, José Avenino Xanxão, José Vinícius Marinho e Valdir Vilela, já formado em matemática. A equipe responsável pelo Colégio Pio Americano e mais um prévestibular no centro do Rio agora estava frente a um novo desafio: abrir um ginásio no coração da baixada Fluminense. O professor Avenino Xanxão, casado com a professora Maria C. Pereira Xanxão, recebeu de seu sogro a proposta de dirigir uma escola ginasial no bairro de Queimados - ainda pertencente a Nova Iguaçu - a qual ele havia construído em meio dos laranjais. A infraestrutura da Baixada nos anos 1950 era tipicamente rural; Nova Iguaçu era conhecida por seu grande potencial citricultor, o que não significava uma estrutura urbana, muito pelo contrário. Em Queimados da década de 1950 somente havia uma condução: o trem. Os empreendedores assumiram o colégio, “Ginásio Manoel Pereira”, vendendo suas cotas do Pio Americano para um dos sócios. O investimento na região rural iguaçuana se tornou a única fonte de rendimentos para os quatro. Sabendo da impossibilidade e limitações da divisão dos lucros do ginásio entre quatro pessoas e da precariedade de transporte, o professor Valdir decide abrir um novo ginásio em Belford Roxo - sem se separar totalmente da equipe de Queimados -, que será conhecido como “Ginásio Belford Roxo”. O ano é 1959. Belford Roxo, ao contrário de Queimados, possuía uma melhor estrutura viária, além de presença política favorável para a construção de uma escola ginasial privada, inexistente naqueles dias. Analisando o que temos de suas falas, está sempre presente a intenção não só de construir um novo empreendimento econômico, mas também trazer a educação para uma região onde a formação ginasial era inexistente. A visão
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Idem.
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de lucro não é inexistente no seu discurso, mas, já aqui, a ideia de missão se torna bem clara em suas entrevistas. A construção do ginásio em Belford Roxo foi paulatina. Em um território pertencente a antigos barões, parte da Fazenda do Brejo, loteada por seus donos, inicia-se a construção: V. Vilela: Eles tinham doado este terreno aqui onde hoje é a ABEU para o Estado fazer um grupo escolar, mas o Estado não se interessou e, no meio das conversas, ele falou sobre este terreno. Disse que o Estado não se interessou e disse que poderia me vender. Daí ele me vendeu o primeiro pedaço e eu, com meus “fartos recursos”, com todas as dificuldades, comprei o terreno e comecei a construção. Tem a foto aí. Então, eu comecei sozinho, mas eu arregimentei meus amigos do colégio Pio Americano, os colegas de faculdade. Eu tive uma ajuda muito grande. Está aí o início da ABEU11.
Durante os vinte primeiros anos, o Ginásio Belford Roxo cresceu. Passa a oferecer o curso de admissão, cursos técnicos e Normal; passa a se chamar Colégio Belford Roxo. O primeiro curso na área técnica foi o de química. A ideia de um curso de tal envergadura - levando em consideração o custo de se construir um laboratório completo para as aulas práticas - num município da Baixada, era, de longe, um desafio. Segundo Valdir Vilela, esse foi o primeiro curso profissionalizante de química em uma escola privada no Estado. Ela contava com a organização do químico chefe da Bayer do Brasil, vizinha da escola. O curso não decolou como esperado. Com a presença da multinacional alemã na vizinhança, pensava Vilela, não haveria de faltar demanda para químicos de nível médio. Mas a Bayer não se mostrou interessada na absorção de profissionais locais. Desde a década de 1970, os diálogos entre a ABEU e a Bayer sempre se tornaram previsíveis, já que ambas possuíam a mesma idade no local, além de serem, ao longo do tempo, os maiores empreendimentos de Belford Roxo. As tentativas de inserir uma educação diferenciada em Belford Roxo deram frutos em outros lugares ao longo do tempo. O nome passa a ser ABEU - ainda na década de 1970, quando do nascimento do curso superior em administração - Associação Brasileira de Ensino Universitário. Uma enorme expansão ocorre, com o campus de Nova Iguaçu, incluindo o CETEC, em 1981, e outro em Nilópolis. Na década de 1990, a ABEU se eleva à categoria 11
Entrevista de 26 de junho de 2009.
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de Faculdades Integradas e, em 2002, torna-se Centro Universitário, dividindo suas atividades: ABEU Colégios, administrando a gama da educação de ensino médio formal e técnico, e UNIABEU, centralizando o controle das faculdades. Mas onde se encontra o criador ao longo desse crescimento, de um espaço com algumas salinhas e um banheiro para um império empresarial de educação? Como ele diz, tudo se inicia desse jeito: V. Vilela: (...) eu vislumbrei aqui... aqui tinha ônibus para a Praça Mauá, tinha táxi, ponto de táxi, tinha o trem, tinha duas linhas de ônibus para Nova Iguaçu e passava pertinho de onde eu morava em São Cristóvão, o ônibus daqui. Aqui era bem próximo de Nova Iguaçu, daí eu vislumbrei a possibilidade de abrir um ginásio aqui12.
Ele se encontra em todos os momentos da construção de sua obra, narra de forma pessoal e apaixonada cada passo, onde está pessoalmente presente. Nas poucas fontes iconográficas, ele está presente em todas as inaugurações e formaturas, seja no nível médio, técnico ou superior. É o diretor do colégio assessorado por sua primeira esposa, no início -; o reitor das faculdades e o coordenador da expansão. Nada é feito sem sua opinião ou permissão até muito tarde. Ele aponta sua missão de forma exaltante: V. Vilela: Eu me realizei e continuo me realizando, porque eu não espero morrer amanhã. Eu quero viver mais, mas eu quero viver de uma forma talvez mais contemplativa, não atuando. É claro que vou dar os meus pitacos aqui, ali, acolá, olhar, chamar a atenção, como faço hoje, não é bem assim, não é por aí. Isso eu fiz muito com o Roberto, um Reitor novo, sem experiência e eu tive que mostrar os caminhos. E vou fazer sempre, vou fazer com o Júlio, vou fazer com você se necessário for, com os professores, com os funcionários. Mas, quero ver a ABEU crescer e a ABEU sempre foi a minha meta, eu tenho espírito empreendedor, eu não vou me contentar, nunca me contentei com pouco, sempre me contentei com muito de qualidade. Porque o muito que eu digo, não é ser grande, imponente. Não, eu quero ser grande em poder dar o maior número de vagas aos estudantes da Baixada Fluminense e fazer com que eles possam ter... tenham a oportunidade de ter um curso técnico. Não foi possível, ainda não foi. Nós fomos a melhor escola técnica particular, talvez do estado do Rio de Janeiro, particular. Nós chegamos a formar 1.200 técnicos por ano, mestre! Olhe que não é brincadeira! 1.200 técnicos nas várias habilitações. Então, a história está aí para contar. Nossa formatura era feita no Rio Centro, não tinha lugar pra comportar. Nós deslocávamos alunos de ônibus daqui, eram quarenta ônibus para fazer uma formatura no Rio Centro. Eu tenho as fotos aí, eu posso te mostrar depois. Tem história13.
12 13
Entrevista de 26 de junho de 2009 Entrevista de 15 de março de 2010.
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Um fato, que descobrimos apenas na última entrevista, nos deixou curiosos: a residência do professor Valdir se localiza dentro da sede da ABEU de Belford Roxo. Mesmo depois de um visível crescimento ao longo desse cinquentenário, o seu criador decidiu morar, desde o início, dentro de sua criatura. Abordamos assim esse assunto na nossa última entrevista: R. Lira: e o senhor mora aqui mesmo em B. Roxo? V. Vilela: Sim, moro aqui mesmo dentro do campus, moro aqui do lado, minha casa é parede vizinha aqui. Abriu a porta ali, está na minha sala (risos). Eu sempre morei aqui, desde o início da construção do Ginásio eu vim para aqui. Isso aqui era tudo mato, era até perigoso, quer dizer, perigoso não, mas dava medo ficar aqui dentro do mato e eu fiquei, sozinho às vezes durante a semana. Eu era corajoso, quando se é jovem se é impetuoso, tudo se pode. Juventude é bom por isso. Impetuosidade às vezes trás coisas ruins, mas é característica da juventude. Então, eu me fixei aqui, gostei, casei a primeira vez e construí uma casa, que é aquela que tem ali na frente onde é hoje pré-escolar. Aquela casa foi construída por mim; casei e vim morar aqui. A minha esposa veio trabalhar comigo, porque ela é professora também. Depois, uma vez morando aqui, ela trabalhava comigo no Ginásio. Daí, já era colégio, já havia realmente avançado construções etc. E nesse caminhar fui convidado para ser Secretário de Educação de Nova Iguaçu. (...) Daí, fiquei aqui e gostei, nunca quis me afastar daqui. Vou te dizer, eu não me arrependo em momento algum. Falavam que se eu morasse perto do colégio as pessoas iam me incomodar muito. Até que eu construí uma casa muito boa e nunca tive problemas. Moro aqui do lado e nunca tive problemas. Mas, também, eu soube separar e conduzir. Determinadas normas têm que ser seguidas: eu não posso ser incomodado. É uma tran quilidade muito grande morar aqui. Estou aqui há cinquenta e tantos anos e nunca tive problema nenhum, nada. No meu primeiro casamento moramos aqui, no segundo também, a família, estamos aqui 14.
O depoimento acerca da sua escolha de morar dentro do campus deve se ligar a outra para que possamos esboçar uma conclusão do seguinte trabalho: quando o criador deixa de ser a criatura? Quando o professor Vilela deixa de ser o centro, o que se torna impossível com o tempo, para se tornar parte de um corpo de comando? Sua presença física constante não evitaria o distanciamento do comando de sua criatura. Diferentemente dos grandes conglomerados citados no início do artigo, o professor Vilela consegue, ainda hoje governar pessoalmente seu construto, ainda que a descentralização tenha certo lugar no seu império. Assim nos referimos à questão: 14
Entrevista de 15 de março de 2010.
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R. Lira: Nós sabemos que o senhor estava à frente, como o senhor mesmo disse, isso até certo ponto, até certo momento da ABEU, mas nós sabemos que a ABEU hoje é uma instituição múltipla, tem colégio, infantil, médio e superior, como hoje. Em que momento o senhor deixa a cadeira do articulador para entrar um pouco mais na cadeira do apoio, do background? O senhor, além de ser o reitor da faculdade, ser o presidente? Em que momento o senhor viu que era o momento de pegar um pouco mais da articulação por trás das linhas e não à frente? V. Vilela: O que motivou isso... em primeiro lugar, não tenha dúvida que eu estou começando a ficar cansado, porque não é brincadeira. É um desgaste realmente muito grande. Eu acho que eu mereço um alívio, ou seja, descansar um pouco mais, este é um dos motivos. E para dar oportunidade também aos mais novos, também isso, e com a possibilidade de coisas novas. Quando nós envelhecemos, eu digo “nós”, eu não quero dizer a pessoa, eu digo a estrutura, e com o cansaço também a pessoa vai deixando de ter um olhar mais apurado para as coisas no momento, do dia. Um programa hoje, uma definição é hoje, amanhã já não é mais. É a evolução do mundo e de tudo. Então, eu acho que estava realmente na hora da ABEU ter um olhar mais atualizado, com o linguajar de hoje. Quando eu digo linguajar, eu estou me referindo ao know-how, à vivência, à participação do mundo atual, da evolução. Não que eu não tenha, eu leio muito, eu estou atualizado, mas há o cansaço também físico. O cansaço físico ele vem por causa da idade, é natural e você não rende mais o que gostaria, então, tem que delegar, tem que colocar... experimentar outras coisas. Isso foi a motivação minha. Eu experimentei delegações, foi feito, mas não deu certo e eu tive que intervir, retornar para tentar novamente. Isso acontece a toda hora porque é grande, não é? A ABEU é como uma prefeitura, uma prefeitura pequena mas é, tem todos os seus problemas. É uma loucura. Até em obra eu tenho que intervir para sair alguma coisa. Construção de salas, nós estamos construindo aí, não sei se você viu, é ampliação aqui no Filgueiras. Então eu tive que voltar para ficar à frente senão não anda. Quando aparece um problema que eu tenho que intervir, eu tenho que intervir, mas não na estrutura acadêmica da faculdade nem do colégio, isso aí não. Eu quero que isso venha a fluir por intermédio do reitor e do diretor, da diretora dos colégios e que ela possa formar uma equipe e andar. Eu ficarei sempre como presidente para ir levando algumas coisas de tradição, de imagem. Meu nome e o da instituição têm que ser preservados, pois no mundo de hoje conta muito, não é? A imagem, a marca é realmente um dos grandes capitais em qualquer empresa.15 R. Lira: Essa delegação de funções, ela obedecia à lógica de funcionários? Como foi? V. Vilela: Sim! Sempre foi. A minha tendência, a minha orientação sempre foi prestigiar o pessoal da casa, tanto é que o exemplo está aí: tem gente de trinta anos, trinta e tantos anos, houve muitos. Uns já faleceram, outros saíram por motivos variados, mas ainda tem remanescentes de longa data. Só saem, na realidade, por motivos próprios ou falecimento ou por ter encontrado uma coisa realmente mais compensadora. Ou viajar. Isso ocorre dessa forma e, às vezes, voltam. A minha administração sempre foi centrada, desde o início16.
15 16
Entrevista de 15 de março de 2010. Grifo nosso. Idem.
102 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
O seu nome, sua marca. Essas duas palavras podem nos ajudar a compreender o andamento desses cinquenta anos de trabalho. A trajetória de Valdir Vilela, que durante meio século atuou marcadamente em sua criação e, por conta dela, se tornou um vulto importante nos lugares onde marca presença. Um bom exemplo foi sua atuação como secretário de Educação de Nova Iguaçu e conselheiro estadual de Educação, na década de 1970. Claro que seu diálogo com a política local e estadual sempre se fez intenso, mas, sem dúvida, foi sua bem-sucedida criação que lhe possibilitou vulto para tanto. Sua marca e seu nome são a ABEU, pois não se pode facilmente separá-los ao longo do tempo. Utilizando uma linguagem weberiana, poderíamos dizer que o carisma pessoal do presidente da ABEU está intimamente ligado ao carisma institucional de sua obra (WEBER, 2004), mas não é novidade que o carisma pessoal do líder pode ser fruto da instituição de que faz parte, como, por exemplo, acontece com um presidente da república. Mas, mesmo no governo, os presidentes altamente carismáticos - como o presidente Lula - às vezes emprestam seu carisma à instituição, numa benigna forma de simbiose. A existência de um carisma pessoal por parte do fundador da ABEU, o que pode ter sido o segredo do sucesso da instituição durante seus cinquenta anos, um dia deverá ser posto à prova, quando este vier a falecer. Segundo Weber, a passagem do carisma do líder para seus seguidores não acontece de forma natural, mas sim numa rotinização. A dominação carismática dá lugar a uma forma burocratizada de organização, organizada pelos herdeiros ou outros gestores, formando um quadro administrativo (WEBER, 2004, V. 1: 139-147). Na última entrevista, essa questão veio à tona: R. Lira: O senhor acha que o seu construto, a sua obra de vida, ela vai passar a ser uma obra da família? V. Vilela: Em termo familiar, eu não tenho, digamos assim, uma sucessão familiar, porque a minha família nunca quis se enveredar. Eu até tive algumas experiências, irmãos meus da segunda família do meu pai, eu tentei introduzir aqui na estrutura, mas eles mesmos não tinham aptidão e nem quiseram. Seguiram outros caminhos. Então, a preservação da ABEU... eu acho que vai ficar e eu farei isso, não tenha dúvida, não vou deixar a ABEU ficar acéfala. Também não tenho a intenção que o governo tome conta disso, em absoluto. Eu sei o que isso deu pra ser construído, e entregar isso para o governo,
103 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1 isso vai ter uma associação, a instituição vai continuar se Deus quiser, e muitas vezes melhor do que, talvez, até agora.17
A instituição apontou grande crescimento de matrículas nos últimos anos. Seu crescimento é visível aos olhos de todos, assim como sua importância política e social nas áreas de atuação.18 Ela é um dos últimos exemplos de instituições familiares longevas que temos nos municípios. O professor sabe que isso é um caráter em declínio, mas ainda assim acha que essa é a forma da ABEU: V. Vilela: Como se diz, como todo comandante, vamos dizer assim, de indústria, de tudo a indústria é o resultado, quando vira uma sociedade anônima, acabou; as empresas familiares, que tem um começo e tem um fim talvez com o seu mentor ou seu idealizador sempre é o retrato. Se você vê, por exemplo, um Antonio Ermírio de Moraes, um grande capitão de indústria, claro que ele não tem condições de transmitir a personalidade dele, nem na administração maior, não tem; porque não dá tempo de convivência, de penetrar, e aí toma as decisões. Ele é visto como o realizador; é um homem que tem um trabalho realizado, de progresso, de interesse do país, sem dúvida alguma. Então, quando é pequeno, familiar, isso é mais diagnosticado, com mais precisão. É isso. 19
Ao fim da última entrevista concedida, perguntamos ao professor Valdir: R. Lira: E onde começa o professor Valdir e onde termina a ABEU? Essa é a pergunta da missão. Quando se fala em ABEU, se pensa automaticamente no professor Valdir Vilela, e vice-versa. Eu gostaria de saber se o senhor vê alguma separação entre o senhor e a ABEU? V. Vilela: Não tem como separar a minha pessoa da ABEU e a ABEU da minha pessoa, eu acho! Não cem por cento, eu não digo que isso seja total, em absoluto! A ABEU tem o meu caráter, a minha maneira de ver, de enxergar, a minha ideologia, o propósito, está dentro da ABEU, não tenha dúvida que isso foi transmitido. Muita gente que está aqui dentro realmente é o produto, é o resultado disso tudo que nós tentamos construir, quer bem construído ou não, enfim. Se for analisar, eu posso ser olhado com todas as virtudes, e, no caso, também com todos os defeitos que temos. Devo ter errado muito, mas sempre com o propósito do acerto, de querer fazer o melhor possível. Tanto isso é verdade, professor, que é uma instituição, é um empreendimento que teve um ideal, teve o sonho, o propósito e a construção. Isso teve uma sequência, isso não foi aleatório. O meu propósito de vir para a Baixada... eu era do Rio, a tendência normal era eu continuar lá, eu já tinha um relacionamento... colégio já... ficar por lá, mas demandei à Baixada, e chegando aqui, no caso de Queimados, eu verifiquei o seguinte: que havia uma carência muito grande. E havia mesmo. No caso de Queimados, não tinha nada. Fomos para lá com aquilo que lhe falei. Vim para aqui também, digo, 17
Entrevista de 15 de março de 2010. Segundo o próprio professor Valdir, o papel da ABEU na emancipação de Belford Roxo, ocorrida em 3 de abril de 1990 foi deveras relevante. 19 Entrevista de 15 de março de 2010. 18
104 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1 não é aqui que eu vou cumprir com o meu ideal que está aí expresso na frase que nós usamos: “Melhorar a Vida das Pessoas Através da Educação”. Isso eu fiz desde o começo, quando abri um ginásio aqui, e tenho trabalhado, digamos, com muito afinco pra que isso se realize. E tanto é que isso cresceu, é uma organização, quer queira, quer não. Quem não quiser realmente dizer isso está querendo realmente esconder alguma coisa. Está na cara, a ABEU está na cara. Então, as pessoas que me conhecem sabem disso tudo que eu estou falando aqui com você. O meu ideal, os meus propósitos, como você falou, o meu carisma, o que leva a entender como sou carismático, a simplicidade, a firmeza de propósito, não é? E o caráter, enfim, que reúne tudo isso, com o olhar sempre para o carente, para o pobre. (...) E as pessoas reconhecem isso, todo mundo reconhece. Quando a gente começa a falar das coisas e não sei onde a gente separa o que é ABEU e o que é Valdir Vilela, então, isso eu confirmo e posso dizer que é verdade. Não sei como separar, por quê? Na minha apreciação e no dia a dia, no ver, no observar, no fazer e no praticar, eu encontro isso nas pessoas; quer dizer, eu forjei no caso concreto realmente uma coisa que esta aí, se boa ou ruim, está aí, e eu, naturalmente, serei carimbado com isso. O que prestar, vamos carimbar no professor Valdir, que é a ABEU. E é isso que eu quero, que eu desejo. Não interessa a mim. Eu sou apenas um elemento que teve a oportunidade de fazer tudo isso. O que eu quero é perpetuar a ABEU. A ABEU é que tem que ficar e, naturalmente, dar continuidade a isso tudo que, sem dúvida, foi construída por nós. E digo mais, eu não tenho vaidade. Construí tudo isso porque tive a capacidade de reunir pessoas boas junto de mim. Naturalmente que no meio do caminho tem pessoas que [inaudível] em todo grupamento, mas eu tive essa sensibilidade e essa possibilidade. Deus me ajudou para que isso acontecesse. Sem dúvida alguma, muitos que por aqui passaram contribuíram grandemente. Agora esse poder de arregimentar, de chamar, de trazer para você, é cada um de nós que tem. É isso que você fala, carisma. É isso que você tem, e eu tive.20
Não há como separar o criador da criatura, e ele tem plena consciência do fato. Traçando, ainda hoje, uma história tão pessoal como administrativa, comandando sua opera acima das hierarquias que instituiu.
4. CONCLUSÃO: O FUTURO
O conglomerado de educação ABEU/UNIABEU hoje representa um grande ator, tanto econômico como político, dentro dos municípios em que se faz presente. Mas não é possível fazermos previsões acerca de seu futuro. Seria, no entanto, possível entendermos as políticas que serão necessárias para que a instituição possa atravessar outras décadas. Mesmo sendo a presença do professor Valdir Vilela um fator importante para a compreensão da ABEU/UNIABEU, a organização dos diferentes 20
Entrevista de 15 de março de 2010.
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organismos da instituição se dá também em escala micro, com as coordenações do Colégio, do Ensino Infantil e do Ensino Técnico. Isso mostra, ainda, que o fator subjetivo de organização, representado pela relação do presidente com seu construto, passou, desde cedo, a possuir uma forma organizacional baseada na racionalização administrativa. Isso significa que, ao longo das próximas décadas, é claramente possível a continuação do trabalho da ABEU/UNIABEU, mesmo sem a presença de seu fundador. Não seria necessário, para tanto, abraçar a lógica impessoal de gestão, mas, sim, seguir o processo de constante comunicação com as atuais tendências e demandas socioeconômicas, o que já é feito desde a década de 1950. O compromisso de “melhorar a vida das pessoas através da educação” nunca perdeu sua validade e, talvez, seja o motor moral para a continuidade do processo de crescimento (e, em caso de não crescimento, pelo menos a manutenção) da ABEU/UNIABEU.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DOSSE, François. O Desafio Biográfico: Escrever uma vida. Tradução Gilson César Cardoso de Souza, São Paulo: EDUSP, 2009, 438 p. ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: Textos em História Oral, Rio de Janeiro: FGV. 2004. 194 p. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução Beatriz Sidou, São Paulo: Centauro, 2009, 222 p. LEJEUNE, Philippe. O Pacto Autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes, Belo Horizonte: UFMG, 2008, 404 p. TAVOLARO, Douglas. O Bispo: história revelada de Edir Macedo, SP: Larousse, 2007, 265 p. TOURTIER-BONAZZI. Chantal. Arquivos: propostas metodológicas. In Usos & Abusos da História Oral, Rio de Janeiro: FGV. 2008, pp. 233-245. VOLDMAN, Danièle. Definições e Usos. In Usos & Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2008, pp. 33-41. WEBER, MAX. Economia e Sociedade. São Paulo / Brasília: UNB / Imprensa Oficial, v.1, 2004, 422 p.
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NUPESAS/BF: CONTRIBUIÇÕES PARA O DESENVOLVIMENTO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NA BAIXADA FLUMINENSE Simone Eliza do Carmo Lessa1 1. INTRODUÇÃO A reconquista da democracia política brasileira a partir dos anos de 1980 recolocou para o país a imensa relevância dos debates que haviam sido iniciados e amadurecidos em movimentos que marcaram o final dos anos de 1950 e o início da década de 1960 (principalmente aqueles em torno de reformas de base e as movimentações por educação e cultura). A reconstrução da democracia política no início dos anos de 1980 recolocou o tema das reformas e dos direitos na pauta da sociedade brasileira, apesar dos limites da ordem burguesa a sua efetivação2. Um destes temas pulsantes diz respeito à Política de Assistência Social e sua construção como política pública universal e não contributiva. Nós, do Núcleo de Pesquisa sobre a Política de Assistência Social na Baixada Fluminense (NUPESAS/BF), entendemos que a construção de uma sociedade democrática, dotada de políticas de recorte social evidente, articuladas de modo eficiente, transferidoras de renda e que, portanto, atuam em prol do combate à desigualdade, passa pela organização de uma política pública de Assistência Social de qualidade. Por conseguinte, entendemos que esta política pública deve estar no centro dos debates em torno do combate à pobreza e à desigualdade, desenvolvendo papel de diagnóstico das condições de vida da população mais fragilizada economicamente e de diálogo permanente com a mesma. Seu papel vai muito além da prestação de ajuda emergencial, eventual, e não especializada.
1
Assistente Social do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ). Especialista em Políticas Sociais (UERJ), Mestre em Educação (UFF), Doutora em Serviço Social (UFRJ). Ao longo do percurso participaram do NUPESAS os estudantes: Viviane Medeiros, Márcia Pereira de Souza (na condição de estudante e, posteriormente, como assistente social voluntária), Lúcia Helena Oliveira, Beatriz Rosa, Marianne Pinheiro e o assistente social Anderson Carvalho Chagas. 2 Neste sentido, apesar de terem sido lançados os pilares da democracia política, a democracia social e econômica permanece como um capítulo em construção. Na avaliação de Boron (2003), a democracia na América Latina tem estado limitada, historicamente, ao campo eleitoral.
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Entendemos que a viabilização desta política dentro deste padrão de qualidade das políticas públicas3 e da democracia participativa (ainda muito frágil) é um dos grandes desafios em termos de direitos sociais contemporâneos, assim como uma importante provocação para o Serviço Social brasileiro (ainda que este espaço não seja exclusivo para esta profissão). Entendemos, porém, que os desafios para o Serviço Social são bastante específicos, visto que a profissão tem sido chamada a atuar na linha de frente desta política pública ao longo de sua trajetória, no contato direto com estes usuários e na gestão. O citado desafio não se limita ao adequado e competente atendimento ao usuário, lá na ponta da execução, mas recorta aspectos diversos que passam pelas reflexões (e reivindicações) em torno das condições do exercício da Assistência Social, pela elaboração de pesquisas e diagnósticos sobre sua efetivação, pelo conhecimento de seus usuários e pela importância do aprofundamento do debate político em torno da sua construção. Este desafio também passa pela necessidade de construção e fortalecimento de espaços democráticos de controle social para que os usuários da Assistência, destituídos historicamente de voz e de espaços de participação real, possam ser protagonistas. Os desafios são muitos e ainda presentes. Finalizada esta jornada inicial de estudos, ficamos com a sensação positiva das metas alcançadas, do amadurecimento dos estudantes, do próprio docente e da rica interlocução com os profissionais da região.
2. O NUPESAS/BAIXADA FLUMINENSE
O Núcleo de Pesquisa sobre a Política de Assistência Social na Baixada Fluminense (NUPESAS/BF) foi estruturado oficialmente em setembro de 2008, graças ao suporte oferecido pelo PROAPE (Programa de Apoio ao Ensino e Pesquisa) da UNIABEU (ABEU - Centro Universitário), instituição privada de grande tradição e visibilidade na região da Baixada Fluminense, que estruturou seu curso de Serviço Social a partir de 2005. Graças ao Proape o docente coordenador recebeu uma bolsa de apoio à pesquisa e os 3
Estamos falando do padrão neoliberal de gestão do Estado brasileiro, que tem fragilizado investimentos no campo social.
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estudantes receberam descontos no pagamento da mensalidade (de caráter integral ou parcial, segundo a carga horária dedicada ao Projeto). O objetivo da proposta é fornecer formação para além da dinâmica da sala de aula, preparando estudantes para o olhar de pesquisador e experiência práticoteórica neste campo. Dialogamos com estudantes4 e profissionais atuantes na política de Assistência Social da região. Este é o nosso público alvo essencial. Nosso núcleo de estudos teve como motivação inicial a constatação de que a maioria das vagas de estágio e as primeiras experiências dos profissionais de Serviço Social na Baixada estavam localizadas na política de Assistência Social - que está em evidente expansão em todo o Brasil, visto que é uma ação obrigatória do âmbito municipal, que conta com financiamento das três esferas. Objetivávamos um projeto de estudo regional e de interlocução com os profissionais desta política, em um território do estado do Rio de Janeiro marcado por altos níveis de vulnerabilidade social. Neste sentido, entendíamos a relevância do nosso núcleo de estudos, não só pelas condições em que nosso objeto se efetivava, especialmente se falamos das condições de trabalho e de execução das ações de Assistência Social, mas pela novidade do tema. Nossa equipe de trabalho contou com um professor coordenador, três bolsistas pesquisadores e dois assistentes sociais pesquisadores voluntários de municípios da região. Nossas reuniões de formação aconteciam semanalmente, na biblioteca institucional. Nestas, lançamos mão de uma base de bibliografias essenciais ao debate da política de Assistência Social. Nestas, ainda, amadurecemos e trocamos experiências, uma vez que alguns de nossos bolsistas são (ou foram) estagiários nos CRAS, CREAS e secretarias de Assistência Social da região. A relação de ensino-aprendizagem do grupo esteve baseada na troca constante de saberes, entendendo que o conhecimento que abordamos é histórico e, portanto, está em permanente transformação e elaboração, sendo 4
Destacamos o perfil médio do estudante do curso de Serviço Social da UNIABEU, conforme levantamento amostral feito na disciplina de Pesquisa I: basicamente feminino, marcado por mulheres trabalhadoras detentoras de múltiplas jornadas de trabalho, com idades concentradas nas faixas de 25 a 30 anos e de 30 a 35 anos, das quais, quase a metade, deixou de estudar há pelo menos uma década. A motivação pelo curso tem relação com experiências no desenvolvimento de atividades de perfil social junto a congregações religiosas, ONGs e prefeituras.
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multi-dimensionalmente determinado. Em nossos encontros construímos reflexões coletivas que levaram em conta estes aspectos, especialmente considerando o caráter recente da implementação desta política, a juventude dos profissionais que estão na linha de frente de sua execução, bem como a necessidade da crítica permanente às posturas clientelistas, superficiais, pragmáticas e eleitoreiras ainda presentes nas práticas de governos dos mais diversos matizes. Nos CRAS - Centros de Referência da Assistência Social, locus especial onde nossa pesquisa se desenvolveu - pudemos observar os desafios cotidianos da implementação de uma política de caráter público, estabelecida em lei e detentora de orçamento específico, em uma realidade (local e, é preciso dizer, também nacional) marcada por históricas práticas baseadas no clientelismo e na filantropia privada. Inadvertidamente, pode parecer para alguns que este tipo de iniciativa de pesquisa, formação e produção de conhecimento - por seu pequeno alcance tenha limitadíssima relevância social. No entanto, a análise da concretização de uma política pública nova em uma região localizada no entorno da capital do estado, onde reside significativa parte de sua população trabalhadora mais empobrecida,
revela-se
importante
elemento
de
conhecimento
local,
fortalecimento de experiências exitosas no campo dos direitos e de socialização de informações. Além deste aspecto, dentre as atividades realizadas pelo Nupesas/BF (a serem melhor delineadas em item posterior), destacamos como uma das mais importantes o diálogo permanente com estudantes e profissionais da área, através da manutenção diária do nosso blog, que atuava como rede social de informação, com cerca de 70 membros permanentes, somados aos visitantes eventuais. Nosso blog esteve ativo até outubro último (2010). Por fim, queremos destacar que entendemos que a pesquisa é um requisito indispensável para o trabalho do Assistente Social, visto que dá bases para se avançar no conhecimento da realidade onde estão presentes diversas expressões da “questão social”. Pesquisar é uma forma de intervir de modo crítico, qualificado e propositivo sobre esta. Em particular, na área da política de Assistência Social, são vastas as possibilidades para pesquisar e urgentes as necessidades por fazê-lo.
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3. NOSSO LUGAR DE ATUAÇÃO
A Baixada Fluminense, como o próprio nome revela, é uma região geográfica extensa e plana, localizada no entorno da Baía de Guanabara e, ao mesmo tempo, aos pés da Serra dos Órgãos. Por tais características, já foi denominada de quintal da Baía. Banhada por rios volumosos, a Baixada é também detentora de áreas de manguezais e de terrenos que ficam abaixo do nível do mar, o que repercute nas frequentes enchentes que marcam a região. Apesar de bastante degradada pela ocupação inadequada e pela ausência de políticas públicas neste âmbito, a Baixada Fluminense ainda nos reserva belezas naturais (como o Parque do Tinguá, a Serra do Mendanha e Guapimirim, por exemplo) e registros históricos da construção do estado do Rio de Janeiro e do Brasil (como a Igreja da Matriz em São João de Meriti e de sítios arqueológicos do período colonial, alguns recém-descobertos5). Atualmente é formada por 14 municípios de médio e de grande porte, alguns emancipados após a Constituição de 1988. Sua importância econômica é inegável, quer seja por seu potencial agrícola, por sua estrutura industrial ascendente, por suas refinarias de petróleo e, principalmente, por sua abundante força de trabalho, que se desloca diariamente para a capital do estado, para trabalhar ou para buscar trabalho, na medida em que as oportunidades de emprego ali oferecidas são precárias. Esta é uma característica que permite classificar a região como composta por cidades dormitórios. Habitada originalmente por índios jacutingas e por religiosos jesuítas que buscavam catequizá-los,
a
Baixada
começou
a
ser
ocupada
mais
efetivamente no início do século XX em função do plantio de laranjas, da expansão da Rede Ferroviária e da migração de mão de obra trabalhadora para as periferias da então capital do Brasil (IPAHB, 2010). Sua característica de entreposto comercial vem desde o século XVIII e permanece marcante. 5
Com as recentes obras de construção do arco metropolitano de transporte no estado do Rio de Janeiro, foram descobertos 22 sítios arqueológicos na região. Estes revelam fragmentos da vida de índios, escravos e colonizadores em séculos passados. Disponível no Jornal O Globo em http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/07/18/construcao-do-arco-metropolitano-levadescoberta-de-22-sitios-arqueologicos-na-baixada-756879349.asp, acesso em 12/01/2010
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Recebeu significativo afluxo de população do Norte e Nordeste brasileiros, atraída por melhores oportunidades de emprego nos centros urbanos do Sudeste - notadamente Rio e São Paulo - em especial depois da Segunda Grande Guerra, no contexto de aprofundamento do projeto nacional desenvolvimentista (AMMANN, 1987). A partir daí, tem passado por processo de inchaço populacional, o que descaracterizou sua inicial marca rural. Lembremos que a região Sudeste abriga 43% de toda a população nacional (POCHMANN e AMORIM, 2004) e na área metropolitana do estado residem 80% da sua população, dos quais, a metade nas áreas de periferia (ROCHA, 2007), incluindo a Baixada Fluminense. O inchaço populacional da região, portanto, é inegável. Atualmente possui o município mais populoso do estado - São João de Meriti - uma rede de educação e saúde públicas bastante fragilizadas e indicadores sociais e econômicos em crescimento, apesar de ainda revelarem o perfil empobrecido da região. Os Índices de Desenvolvimento Humano estão na faixa classificada como mediana (IPEA, 2003). Nacionalmente a região é conhecida por seus altos níveis de violência, ocupação desordenada e enchentes frequentes, que têm como consequência, significativos índices de desabrigados. A Baixada, ainda, está entre as áreas brasileiras em que mais morrem jovens vitimados por causas violentas (POCHMANN e AMORIM,op cit). Contraditoriamente, a região também abriga importantes indústrias - em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo - o que eleva seus indicadores econômicos (IPAHB, 2010), mas os níveis de desigualdade permanecem importantes, visto que seus níveis de concentração de pobreza e vulnerabilidade social continuam significativos. Em outras palavras, a riqueza ali produzida e os impostos ali gerados não têm sido instrumento de minimização das citadas desigualdades. Destacamos a relevância econômica e social da região no estado do Rio de Janeiro, bem como do tema pesquisado, no contexto atual de ampliação da execução de políticas sociais na Baixada Fluminense. Ali alguns municípios vivenciaram processo de emancipação em período posterior à Constituição de 1988, o que traz novidades e desafios às gestões municipais. Da mesma forma, mesmo em municípios mais antigos, novas têm sido
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algumas experiências de gestão descentralizada em termos de segurança e educação, por exemplo. Neste sentido, a região tem sido escolhida para implementar programas novos de âmbito federal, como o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania) ou o Bairro Escola. Este quadro de renovação revitaliza experiências, mas não tem sido suficiente para romper com o continuísmo das práticas tradicionais. Desta forma, temos como resultado a conjugação das marcas de tentativas de ruptura com as condutas conservadoras, presentes nas políticas da Baixada Fluminense. Na Assistência Social não é diferente.
3.1. CONHECENDO E REFLETINDO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NA BAIXADA FLUMINENSE
As ações do campo da Assistência Social têm conquistado grande visibilidade na contemporaneidade, diante de um modelo de economia global em crise, ainda mais em se tratando dos chamados países periféricos na divisão internacional do trabalho. Resultado dos processos democráticos em sociedades complexas, construídos como estímulo ao consumo e/ou suporte econômico frente à limitação de postos de trabalho, esta política tem estado sobre o tênue fio da navalha do reconhecimento do direito social, da valorização
das
demandas
das
populações
empobrecidas
e/ou
do
apassivamento de conflitos sociais. Efetivamente, a política de Assistência foi pensada em sua história como ação emergencial para a força de trabalho desprotegida, fragilizada em seu exercício produtivo (COUTO, 2004) e em sua vida, mas que não pode ser abandonada à própria sorte por seu estratégico papel na economia e no mundo do trabalho. Suas práticas iniciais foram marcadas pela filantropia privada, principalmente a de perfil religioso, dotadas de forte conteúdo moral em relação à pobreza. Estas características ainda se fazem presentes hoje, a despeito dos avanços no campo legal ocorridos nas duas últimas décadas falamos da Constituição de 1988, da LOAS e do SUAS. Este quadro aqui apresentado de forma bastante resumida nos faz pensar sobre as justificativas para o crescimento das políticas de assistência social no final do século XX e início do século XXI (MOTA, 2008), em
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consonância com as determinações feitas por organismos de financiamento internacional como o Banco Mundial6, em uma conjuntura que focaliza ações sociais na chamada pobreza absoluta7, o que termina por se constituir em uma limitação para o combate mais amplo à desigualdade. Vale lembrar que o Brasil tem sido reconhecido como um país detentor de experiências concretas de ação neste campo, em especial em relação à transferência de renda. Neste sentido, têm sido comuns as missões de outros Estados nacionais, especialmente os latino-americanos e africanos ao nosso país, na intenção de conhecer e executar programas de mesmo perfil. De fato, não há como negar que este reconhecimento é justificável, diante avanços políticos e sociais neste campo. Por outro lado, não há como deixar de reconhecer que precisamos ainda avançar muito no sentido da eficiência, da transparência e da noção de direito nas experiências aqui praticadas. Neste sentido, lançando nosso olhar para a região que ora analisamos, queremos ressaltar o caráter recentíssimo das experiências de assistência social como ação pública na Baixada Fluminense e o quão complexa tem sido a sua estruturação em uma realidade marcada pela presença de grupos ligados
ao
poder
local,
que,
tradicionalmente,
implementavam
e/ou
comandavam ações assistencialistas. De fato, esta é uma marca histórica, de âmbito nacional e não somente regional, na efetivação desta ação. Estamos falando do assistencialismo, da cultura do favor (SILVEIRA, 2009), das manipulações eleitorais, do personalismo, das parcerias nem sempre claras entre o poder público e as instituições privadas. Falamos, ainda, de uma infraestrutura material de efetivação desta política, que ainda está em construção e se mostra bastante precária. A concretização da política de Assistência Social para a população da Baixada, se dá através da criação dos CRAS (Centros de Referência da
6
Oliveira (2006), tratando das políticas educacionais, ressalta o papel de organismos de financiamento como o Banco Mundial na organização de políticas sociais em países periféricos, tais como o Brasil. Neste marco, prescrições quanto à focalização das ações em grupos de trabalhadores mais frágeis economicamente, sem acesso à proteção previdenciária, são comuns. Neste sentido, os programas de transferência de renda são exemplo importante. 7
Esta categoria tem sido assim definida por organismos internacionais (tais como o UNICEF) que analisam e propõem intervenções sobre a mesma. Os pobres absolutos teriam renda inferior a um dólar ao dia.
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Assistência Social), a partir de 2006, na região. Esta instituição social8 se constitui em fato inovador, que retesa a estrutura tradicional de poder através da organização de uma política de caráter público, detentora de base legal que versa sobre o “planejamento democrático” e sobre a qualidade do serviço, a participação e o controle social na gestão. A efetivação destas recomendações, porém, não é um processo simples. Resistindo ao mesmo, sobre a estrutura dos CRAS buscam avançar as práticas tradicionais de controle do aparato público, por grupos com longa trajetória de permanência no poder. Esta tensão traduz uma das contradições básicas das políticas sociais e se reflete nas práticas e preocupações dos profissionais que as implementam. Este contexto tenso e contraditório é reflexo da complexidade da sociedade contemporânea e suas repercussões na expansão das políticas assistenciais. Estamos falando de uma dinâmica complexa, que envolve o controle social através da ampliação das possibilidades de consumo para as populações trabalhadoras periféricas, desprotegidas em termos trabalhistas, em momento de sucateamento dos serviços públicos essenciais a que estas têm acesso. Também estamos falando de sociedades de representação democrática, com atores sociais organizados, que demandam acesso aos bens socialmente produzidos, em um ambiente em que os representantes do capital e do poder trabalham para tornar lucrativos todos os processos da vida social, inclusive aqueles relacionados à pobreza - todas estas características bastante representadas na Baixada. Falamos, ainda, de uma política pública de importante visibilidade, dotada de imenso apelo social, voltada para faixas populacionais que sobrevivem precariamente, historicamente abandonas pelo poder público. Esta política tem sido implementada por um governo eleito em meio à grande expectativa e apoio popular quanto a sua gestão - o de Lula da Silva - que costurou ampla base de apoio com o poder tradicional, o que tem implicado em limitações para a formulação de uma proteção social mais efetiva, visto que esta atacaria frontalmente os interesses das forças conservadoras que se perpetuam no interior do Estado brasileiro. Esta conjugação de elementos em 8
Optamos por não utilizar o termo “equipamento social”, pois acreditamos que este não revela a complexidade e tensões contidas nas instituições.
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conflito gera contradições e acordos políticos disputados, que nos dão pistas dos desafios presentes no cotidiano da Política de Assistência na Baixada (e no Brasil). A política de Assistência Social é resultado da semente plantada no processo de redemocratização da sociedade brasileira nos anos de 1980. Para pensarmos neste processo, lembramos da LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social), do SUAS (Sistema Único da Assistência Social) e dos CRAS como expressões de uma conjuntura de reconstrução democrática que se efetiva ao mesmo tempo em que as políticas de corte neoliberal9 ascendem na sociedade brasileira, em especial na segunda metade dos anos de 1990, colocando limites aos direitos sociais em processo de construção. Trata-se de uma experiência entre êxitos e perdas, que guarda as marcas da realidade nacional, aliadas a aspectos da situação regional. A PNAS/2004 e a criação do MDS, também no mesmo ano, garantiram ambiente institucional necessário para a implantação dos CRAS. Há mais de uma década, os NAFs - Núcleos de Atendimento Familiar estão implantados em diversos municípios brasileiros e, às vésperas da edição da PNAS, já referida, em setembro de 2003, os Centros de Referência da Assistência Social foram concebidos vinculados ao então Plano Nacional de Atendimento Integral à Família (BRASIL, 2008). Desta forma, nos CRAS, dentro da sistemática do SUAS, são colocados em prática dois conceitos fundamentais: a centralidade na família - abrigando o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF)10 e também a territorialidade, na medida em que devem ser instalados em áreas de extrema vulnerabilidade social, exercendo funções de vigilância social, articulando a rede socioassistencial local e coordenando a prestação de serviços do sistema. Em se tratando da Baixada, nestes territórios da região metropolitana do Rio de Janeiro, reside uma população de baixo poder aquisitivo - ainda que não somente - como já apontado anteriormente. Tais famílias estão fragilizadas por suas precárias condições socioeconômicas e sabemos que a 9
Sobre o tema destacamos o pensamento de Anderson (1995), que define as políticas neoliberais como ações que maximizam a ação estatal no sentido da proteção à acumulação e que minimizam as ações no sentido da proteção da força de trabalho, em especial nos países da periferia capitalista. 10 Programa instituído pela Portaria MDS nº 78, de 18 de Abril de 2004.
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miserabilidade é um fator que limita fortemente o acesso aos processos civilizatórios e à noção de cidadania - habitação, serviços de saúde e educacionais adequados, formação, trabalho, lazer, informação - atingindo os vínculos afetivos, a busca por melhores horizontes e influenciando a perpetuação dos ciclos de pobreza. A partir desta análise preliminar, pensemos na estruturação dos CRAS e da política de Assistência da Baixada Fluminense como tarefa desafiadora, frente às lacunas materiais desta política e também dada a realidade socioeconômica concreta em que vive a população da região. Uma vez que sua estruturação é recentíssima, percebemos ainda a ausência de uma cultura de valorização do direito social em torno da política de Assistência Social, bem como em torno do combate à pobreza (ainda entendida por alguns como um fenômeno individual e isolado), o que demonstra o quão importante é o trabalho nesta área. À política de Assistência e aos CRAS, suas vias de acesso principal, chegam de forma espontânea ou por encaminhamentos sociais, cidadãos, com demandas de origem socioeconômicas, voltadas especificamente para questões relacionadas ao desemprego, pobreza, privação alimentar, violência doméstica, alcoolismo, gravidez precoce, além de problemas com enchentes e desabrigamento, bem como questões afetas à retirada gratuita de documentos
indispensáveis
para
a
vida
social.
Além
disto,
estes
equipamentos públicos também passam a ser procurados para inscrição e orientação sobre os Programas de Transferência de Renda, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada. Observamos, ainda, demandas relativas à compra de medicamentos e de suporte para atividades escolares, tais como aulas de reforço. Este quadro indica limites relativos a outras políticas públicas - no caso, as de saúde e educação - que desembocam na política de Assistência, por dificuldades nas primeiras. Quanto à atuação da equipe técnica dos CRAS em voga, seus enfoques priorizam a família, conforme determinação oficial. Ali são desenvolvidas ações aos seus membros, através do acompanhamento sistemático dos mesmos, que permite que os técnicos apurem a escuta, apreendendo suas demandas e encaminhando-as para a rede de proteção social governamental e não governamental do território. Também é adotado o trabalho em grupo,
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oferecendo apoio e orientação quanto à prevenção de riscos, à promoção de direitos sociais, fortalecimento dos vínculos e informações temáticas das mais diversas áreas das políticas públicas. Estes
grupos,
geralmente,
ocorrem
por
meio
de
reuniões
socioeducativas organizadas por cada técnico de referência responsável por um grupo determinado de usuários nos CRAS. Apesar dos impasses e desafios, este trabalho tem dado frutos positivos na informação e formação do usuário, o que revela a importância deste acompanhamento próximo e contínuo no âmbito da política de Assistência Social. Diagnósticos sociais bastante ricos e reveladores das vozes destes usuários podem ser extraídos destas experiências e devem ser valorizados. Entendemos, portanto, que esta aproximação equipe técnica-usuário, além de essencial ao trabalho, é um importante instrumento de construção de conhecimento. Outra frente de trabalho muito evidenciada nos CRAS da região são as oficinas de geração de trabalho e renda, efetivadas por meio de aprendizagens relativas ao mundo do trabalho. Estas também têm representado uma possibilidade de geração de autonomia financeira. Vale frisar, porém, que as condições em que estas oficinas se efetivam demandam mudanças - das quais citamos a criação de infraestrutura adequada ao aprendizado, tais como a melhoria do espaço físico, o acesso a materiais e a professores qualificados, organização de parcerias com instituições de formação experientes, certificação dos cursos - para que a experiência de geração de renda e de acesso ao mercado de trabalho se concretize, de fato. Além destas necessárias mudanças, é preciso viabilizar o escoamento da produção elaborada nas oficinas de inserção produtiva, novamente para que a geração de renda e a valorização do empenho (e da expectativa) do alunousuário se efetive. Além destas considerações, queremos destacar que, dialogando com os profissionais da região sobre os impasses em seus trabalhos, identificamos inúmeras dificuldades e desafios que marcam a operacionalização dos CRAS da Baixada Fluminense. Uma delas refere-se à composição e às condições de trabalho dos profissionais dos CRAS. Neste sentido, é preciso que façamos uma importante consideração crítica: os profissionais da área social que lidam com os direitos sociais da população, informando-os sobre o acesso às
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conquistas sociais, eles próprios, acabam sendo negligenciados em seus direitos trabalhistas, gerando insatisfação e desmotivação na equipe técnica. De modo geral, uma parcela significativa destes profissionais é regida por contratos de trabalho por tempo determinado, através de cooperativas de serviços, que escamoteiam os direitos sociais, conquistados historicamente na sociedade ao longo do século XX. Este quadro entra em choque com a NOB / RH SUAS de 2007, resolução nº 01, de 25 de Janeiro de 2007, que especifica em seus princípios e diretrizes, o item 05, que diz: “nos serviços públicos, o preenchimento de cargos, devem ser criados por lei, para suprir as necessidades dos serviços, mediante a nomeação dos aprovados em concursos públicos, conforme as atribuições e competências de cada esfera de governo (...)”.
O
respeito
à
NOB/RH/SUAS
é
uma
forma
de
garantir
a
“desprecarização” dos vínculos trabalhistas e evitar a terceirização dos serviços, bem como de valorizar os profissionais e usuários, uma vez que o trabalho de garantir direitos deve ser executado por profissionais respeitados e protegidos. Outras dificuldades apontadas na operacionalização da política de Assistência foram sinalizadas pelos profissionais da área. Dentre estas, citamos a insuficiência de recursos humanos, a concepção distorcida sobre a ação
do
Serviço
Social, equivocadamente
identificado
com práticas
assistencialistas e da ajuda informal, espaço físico inadequado para a realização das atividades, visto que os CRAS funcionam muitas vezes em locais com características domiciliares, adaptados precariamente para se tornarem instituições sociais11. Também foram indicadas dificuldades relativas aos recursos financeiros para a execução de projetos e para a compra de materiais de consumo básico, tais como computadores, telefones, mesas, cadeiras, papel etc. A falta de veículos para realização de atividades externas também é um fator de limitação das ações, assim como a impossibilidade de 11
Vale ressaltar que muitos CRAS foram improvisados, são desconfortáveis, não garantem o sigilo nos atendimentos, possuem placas de identificação não condizentes com os critérios estabelecidos pelo MDS. Além destes problemas, ouvimos relatos, de Centros que funcionam em espaço sem rede elétrica.
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acesso à internet, como instrumento de suporte ao trabalho. Enfim, podemos afirmar que são inúmeras as dificuldades no cotidiano da Assistência Social. Entendemos como desbravadores os profissionais que se comprometem com a sua operacionalização, mesmo em condições tão adversas. Em item posterior, dada a relevância do tema, apresentaremos reflexão empírica acerca do perfil dos assistentes sociais da área, embora já tenhamos trabalhado alguns aspectos a respeito até o momento. Não poderíamos encerrar este eixo do nosso debate sem tratar do perfil da população que acessa a política de Assistência na Baixada. Entendemos que a compreensão deste perfil e das condições em que vivem estes brasileiros é um importante instrumento para superação de preconceitos e percepções equivocadas. Esta é uma lacuna a ser superada e uma atividade a ser estimulada e valorizada pelos gestores desta política. Buscando qualiquantitativo
contribuir
com
levantado
por
esta nosso
reflexão, grupo.
Este
reunimos perfil
material
não
difere
significativamente daquele apontado como médio nacionalmente, pelo próprio MDS, em relação aos usuários da Política de Assistência Social, notadamente aqueles que acessam o PBF. Vamos a ele. Na Baixada Fluminense observamos perfil de maioria feminina, chefes de família, residentes nas áreas urbanas, desempregadas ou autônomas, atuantes no campo do trabalho doméstico ou no comércio informal, especialmente na capital do estado, autodeclaradas pretas e pardas, segundo expressão utilizada pelos próprios usuários, também constante em formulários dos CRAS. Quanto ao aspecto educacional, a média de escolaridade está situada no primeiro segmento do Ensino Fundamental. A faixa etária que mais concentra membros nestas famílias é de crianças e adolescentes entre 7 a 14 anos. Sobre o aspecto da ocupação, vale destacar que os usuários permanecem trabalhando ou buscando atividade remunerada nas áreas do trabalho doméstico e comércio informal, mesmo depois do acesso ao Programa. Famílias que plantam ou criam animais também afirmam que não deixaram de fazê-lo depois de inseridas na política de Assistência, o que é justificável, visto que a transferência de renda praticada atualmente, não disponibiliza recursos suficientes para o provimento de um grupo familiar.
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Quanto à utilização dos recursos advindos desta política, seu uso permanece ligado às necessidades alimentares. No entanto, pesquisa do IBASE (2008) relativa ao PBF aponta que 55% dos usuários do programa ainda sofrem com déficit alimentar, já que consomem produtos mais calóricos, mas não necessariamente mais nutritivos12. Depois da alimentação, o material escolar, o vestuário e bens duráveis, (eletrodomésticos, material de construção) vêm a seguir, como prioridades, acompanhados da compra de remédios. Vale ressaltar que os usuários da assistência afirmam que sem o suporte financeiro do PBF, este tipo de consumo seria inviável, o que revela a potencialidade e o interesse em fazer crescer o ato de consumir nas periferias econômicas contidos no programa. Nas cidades de pequeno porte, este dado fica ainda mais evidenciado nas economias locais, uma vez que em ambientes menores, esta ampliação de consumo é mais facilmente identificável. Na região da Baixada, observamos a dinamização do comércio popular no contexto de ascensão da política de Assistência Social, mas não temos elementos para relacioná-la diretamente à transferência de renda. Percebemos também nas famílias acompanhadas, um importante número de filhos e de crianças agregadas, o que faz aumentar os índices de vulnerabilidade social, haja vista a ausência ou insuficiência de renda estável que lhes garanta o provimento necessário para subsistência de todos. Estas famílias acessam como renda regular (em oposição aos seus “salários” irregulares) os recursos municipais dos CRAS onde são atendidas - cestas básicas, leite em pó, fraldas descartáveis etc. - e dos programas de transferência de renda do Governo Federal. Em outras palavras, a essa política acorrem os segmentos mais fragilizados economicamente da população brasileira e na região da Baixada Fluminense este quadro não é diferente, o que é agravado pela precariedade 12
IBASE: Usuários do Bolsa Família ainda apresentam alimentação deficitária
http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/06/27/ibase_55_dos_usuarios_do_bolsa_familia_ainda_ sofrem_com_problemas_de_alimentacao-547002744.asp Tal referência diz respeito à Pesquisa do IBASE Repercussões do PBF na segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiárias
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de outras políticas de recorte social - e lembremos que os índices educacionais, habitacionais, de ocupação e de saúde são problemáticos na área. Finalizando
a
apresentação
deste
breve
perfil
queremos
citar
considerações contidas em monografia por nós orientada recentemente (RIBEIRO, 2009), que aponta um novo elemento às reflexões acima. Segundo verificado pela estudante, já temos uma segunda geração de usuários que integram os programas de transferência de renda. Em outras palavras, os antigos integrantes do Programa Bolsa Escola, formaram família e hoje se integram ao PBF, como pode ser verificado em municípios da região. Este quadro nos faz pensar na importância da efetiva articulação desta ação a outras políticas públicas, na otimização da transferência de renda, de modo a buscar a melhoria do potencial de rompimento ou minimização de ciclos de pobreza, como potencialidades contidas na Assistência Social.
3.2. O PERFIL DOS ASSISTENTES SOCIAIS ATUANTES NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NA BAIXADA FLUMINENSE
Logo de início ressaltamos que a apresentação deste perfil não tem a intenção de esgotar a análise do tema, em especial, a abordagem das condições de trabalho do assistente social atuante nos CRAS da Baixada. Esta é uma reflexão inicial, já socializada com estes profissionais em evento recente promovido pelo NUPESAS, que não se esgota neste texto. Nossa intenção, neste momento, é dividir este debate mais amplamente, em busca de similaridades e diferenças que nos ajudem a pensar em novas possibilidades de construção da política de Assistência Social. O primeiro ponto a ser destacado sobre este perfil de profissionais diz respeito ao gênero: trata-se de grupo essencialmente feminino (em nossa amostra foram encontrados somente 2 homens), o que não é uma novidade em se tratando de uma profissão que detém a característica do cuidado, da atenção e do diálogo (como tantas outras profissões). O gênero feminino, talvez, esteja mais presente na política de Assistência Social, pelas características que esta possui - voltada para as populações mais fragilizadas economicamente, executada através de ações que envolvem o diálogo e o
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acompanhamento, viabilizada em termos profissionais, em condições de trabalho marcadas pelo vínculo precário - mas esta é, ainda, somente uma hipótese. Além desta característica inicial relativa ao gênero, encontramos um grupo de profissionais jovens, em faixa etária concentrada entre 25 a 30 anos. Em consonância com a mesma, são também profissionais recém-egressos das instituições de formação, com uma média de 1 a 5 anos de tempo de formados e um tempo de 1 ano a 3 anos de experiência profissional, de 1 a 2 destes de exercício na política de Assistência Social, o que revela suas recentes contratações. Neste sentido, vale ressaltar que estes assistentes sociais, à exceção dos concursados, foram admitidos pelos prefeitos recém-eleitos. Quanto à formação, estes profissionais são oriundos de instituições privadas de ensino em 67% dos casos, em consonância com a predominância destas unidades na região. Vinte e nove por cento possuem pós-graduação, em especial Lato Sensu, mas nenhuma na área da política de Assistência, uma vez que, de fato, inexistem especializações voltadas especialmente para este campo, no momento, na região, o que nos revela importante lacuna de formação. Para 64% dos assistentes sociais, a atuação na Política de Assistência é o seu principal vínculo de trabalho. A vinculação trabalhista, vale ressaltar, é um dos aspectos que comprometem esta experiência uma vez que esta pode ser classificada como precaríssima. Concretiza-se através de contratos provisórios, sem proteção de qualquer tipo, estruturados a cada gestão municipal, o que pode implicar na descontinuidade das ações e na perda constante de profissionais com experiência na área. Neste sentido, vale ressaltar que somente três municípios realizaram concursos públicos em gestões anteriores e alocaram profissionais na política de Assistência. A carga horária média de trabalho está na faixa de 20 a 30 horas semanais e os salários estão na faixa de 2 salários mínimos (mais especificamente entre 700 e 800 reais). A remuneração é outra das fragilidades desta experiência e guarda identidade com o tipo de vínculo precário - praticado. Este quadro remete à desqualificação dos contratados, uma vez que os profissionais concursados recebem um salário superior em cerca de um salário mínimo em relação ao acima identificado. Gratificações e
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remunerações
suplementares não
foram mencionadas
e
mesmo
os
profissionais que assumem cargos de chefia não recebem, em sua maioria, remuneração especial para tanto. A baixa remuneração também deve ser entendida como resultado da equivocada compreensão do gestor frente às políticas para os mais fragilizados economicamente. No aspecto do espaço físico, como já foi destacado, observamos que os CRAS funcionam muitas vezes em locais com características domiciliares, adaptados precariamente à nova função. Este dado traz reflexos para a qualidade das atividades ali realizadas, seja quanto à impossibilidade de efetivação de ações com grupos maiores, seja pela absorção de tarefas nem sempre compatíveis com a política de Assistência Social, como a oferta de atividades aquáticas, no caso de um CRAS que funciona em um espaço com piscina. Em outras palavras, mais do que as demandas dos usuários, a infraestrutura do CRAS é que determina as atividades a serem ali desenvolvidas. Nesta mesma linha de reflexão chegamos aos projetos em execução nos CRAS. Dentre os de maior destaque nos CRAS citamos a chamada inserção produtiva, o reforço escolar, ações diversas para a terceira idade e o Projovem, o que nos remete ao debate em torno das atribuições da política de Assistência. Estaria esta política incorporando atividades que vão além do seu escopo, em razão de lacunas de outras políticas públicas - como o reforço escolar e a inserção produtiva, que revelam limites da política educacional, em especial aquela que se volta para a formação de trabalhadores? Acreditamos que sim. O quadro ora verificado nos dá indícios de que esta hipótese é real e que para a Assistência Social têm afluído demandas que extrapolam seu campo de ação. Acreditamos que esta situação não esteja restrita à realidade da Baixada, sendo demandatária de debate amplo por parte dos formuladores, gestores, executores e usuários desta política, sob pena da Assistência terminar por se tornar o local para onde são encaminhados grupos não absorvidos adequadamente em sua política de origem. Esta é uma interpretação equivocada da política de Assistência Social que precisa ser debatida e combatida.
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Em relação à absorção de força de trabalho de profissionais de nível superior por parte Assistência Social, um dado que nos chamou a atenção diz respeito ao fato de que os assistentes sociais atuantes nesta política não são residentes nos municípios onde trabalham. Estes profissionais residem, em sua maioria, em bairros da capital do Estado. Este quadro nos coloca a hipótese de que os municípios da Baixada ainda não possuem quantitativo de profissionais suficiente para atender à demanda desta política de recente implementação e intensa absorção de mão de obra - neste sentido, calculamos que existem um pouco mais de 100 profissionais de Serviço Social no desenvolvimento das ações socioassistenciais na região - o que nos revela a extrema potencialidade de geração de postos de trabalho da área e nos remete à importância do diálogo das instituições formadoras com os profissionais em exercício e seus contratantes. Por fim, na execução desta Política, encontramos, além dos assistentes sociais, os pedagogos, psicólogos (em quase todos os CRAS), professores da inserção produtiva e profissionais administrativos. Em somente um CRAS encontramos uma coordenação que não estava ao encargo do profissional de Serviço Social, o que confirma a potencialidade da área para a profissão. Pelo perfil brevemente traçado, podemos vislumbrar que da mesma forma que a estrutura da política de Assistência Social é apontada como meta por governos diversos, o que nem sempre é constatável para além do discurso, os profissionais de Serviço Social, apesar de desenvolverem atividades que são centrais na prática socioassistencial, não são tratados com a relevância que seu trabalho supõe. Trata-se do desenvolvimento de uma política empobrecida, realizada por profissionais fragilizados em suas condições de trabalho e remuneração, que em função destas marcas, empobrecem seus horizontes de atuação e de compreensão do fenômeno com os quais lidam cotidianamente. Trata-se de uma política voltada para os empobrecidos, executada por trabalhadores pobres. Diante deste quadro, prover qualidade a uma política pública tão relevante se torna uma tarefa da maior urgência.
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante
do
que
foi
apresentado
neste
texto,
com relação
ao
desenvolvimento da política de assistência social na região da Baixada Fluminense, constatamos que, apesar dos inegáveis avanços legais, ainda existem inúmeras dificuldades na operacionalização da política de assistência social, e, em especial, no âmbito da proteção social básica. Estes entraves já foram citados no decorrer deste artigo e têm sua origem de base histórica da atenção à pobreza no país, bem como nas relações personalistas e clientelistas, de intenções eleitoreiras, que passam à margem das instâncias de controle social, sendo indiferentes aos padrões normativos e técnicos que fundamentam o SUAS. Finalizando a primeira década do século XXI, a despeito das bases legais que nos garantem os já citados inegáveis, estas práticas continuam presentes no cotidiano da política analisada. A precariedade da infraestrutura material, na qual a Assistência Social permanece sendo efetivada, recoloca a ideia de que aos pobres está destinada uma atenção de segunda classe, ou, na concepção de Wacquant (2007), para estes se volta uma conduta pública punitiva, reiterada pelas políticas sociais. Da mesma forma, a atenção dispensada aos profissionais executores desta política - e os assistentes sociais, psicólogos e pedagogos estão na linha de frente deste processo - repõe o antiprofissionalismo histórico, o chamado “primeiro-damismo” das ações que se voltam para usuários que estão às margens das decisões e dos direitos que conduzem à emancipação humana. Muito além da denúncia pura e simples, nós do NUPESAS/BF quisemos, ao longo dos nossos estudos, refletir sobre uma realidade local, que
guarda
semelhanças
com
a
nacional,
contribuindo
com
o
amadurecimento e o enriquecimento de tema tão relevante e central hoje. Quisemos, ainda, reforçar a importância da Política de Assistência Social na atual conjuntura econômica e social brasileira, resguardando a importância de mudanças na infraestrutura de atenção ao usuário, assim como nas condições de trabalho daqueles que refletem e executam esta política. Quisemos, ainda, dialogar e valorizar o trabalho dos assistentes sociais atuantes na área, sem
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qualquer dúvida hoje implementadores (e desbravadores) de uma política nova, dotada de potencialidades e imensos desafios. Em resumo, nosso Núcleo de estudos pretendeu contribuir com as reflexões à construção e o questionamento de vertentes conservadoras presentes no cotidiano da Política de Assistência Social na Baixada Fluminense.
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Política
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A COMPOSIÇÃO CORPORAL DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES E SUA RELAÇÃO COM O TESTE DE SENTAR E LEVANTAR Paulo Gil Salles1 1. INTRODUÇÃO A obesidade é um fenômeno que vem preocupando muito os profissionais das áreas ligadas à saúde devido a sua relação com diversas doenças, pois ela se encontra como fator de risco para hipertensão arterial, hipercolesteremia, diabetes mellitus, doenças cardiovasculares e algumas formas de câncer (RYAN et al., 1994; MANSON et al. 1990; MYKKÄNEN, LAAKSO e PYÖRÄLÄ, 1992; GARFINKELL, 1985; NIEMAN, 1999). Segundo Brooks (2004), a gordura é uma reserva de energia que é utilizada prioritariamente em atividades físicas que utilizam o sistema de energia aeróbio, através de um processo de queima chamado Beta-oxidação, porém o acúmulo excessivo dessa gordura pode ocasionar ao indivíduo um estágio denominado obesidade. Esta, por sua vez se dá por diversos motivos, que vão desde a inatividade física, passando por transtornos alimentares e chegam até os distúrbios metabólicos e hormonais. Devido a fatores que já podem ser considerados epidemiológicos, a obesidade em crianças na fase escolar vem crescendo de forma abrupta. Segundo a WHO (World Health Organization) (1995) o fator alimentar é o maior causador deste fenômeno, devido a maus hábitos alimentares, com a excessiva ingestão calórica e a ausência da prática de atividades físicas. Estudos comparativos realizados nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, utilizando dados apresentados no ENDEF (Estudo Nacional da Despesa Familiar), nos anos de 1974/75, e na pesquisa sobre padrões de vida (1996/97), verificou-se um aumento na prevalência de sobrepeso e obesidade de 4,1% para 13,9% em crianças e adolescentes de 6 a 18 anos (WHO, 2002).
1
Doutorando em Fisiologia do Exercício - Universidad de La República (Montevideo); Mestre em Ciências da Motricidade Humana - Universidade Castelo Branco (RJ); Especialista em Hidroginástica e Natação - Faculdades Maria Thereza (RJ); Docente UNIABEU - Curso de Educação Física; pgsalles@terra.com.br
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Dentre os indicadores de estado nutricional, os que se baseiam na relação massa e estatura são os mais frequentemente utilizados, com destaque para o Índice de Massa Corporal (IMC) (ANJOS, VEIGA e CASTRO, 1998; COLE et al., 2000; BINI et al., 2000; DANIELS et al., 2005), que tem o mérito de ser um método simples na coleta dos dados, que não depende de alta tecnologia e que não necessita de avaliadores experientes. Uma relação massa/estatura desfavorável já se tornou um problema de saúde pública e pode causar efeitos negativos sobre a qualidade de vida relacionada à saúde e sobre a morbi-mortalidade, como descrito amplamente pela literatura científica (AGA, 2002; SWINBURN e EGGER, 2004; JAMES et al., 2001; LAWLOR e LEON, 2005). Utilizado em estudos epidemiológicos, o IMC é referenciado na literatura científica como um indicador do estado nutricional e composição corporal, embora muitos autores ressaltem as limitações deste instrumento (RICARDO e ARAUJO, 2002; GUO et al., 2002; AAC, 2003), pois é possível que diferenças sexuais, étnicas, e o padrão de atividade física regular contribuam para algumas distorções do IMC. A composição corporal determinada através da bioimpedância (BI) de membros inferiores é um método simples, seguro, barato e já foi referenciado como válido para a avaliação do percentual de gordura (%G) de adultos e de crianças (SUNG et al., 2001; PECORATO et al., 2003 e PIETROBELLI et al 2003). A BI é baseada no princípio de que a condutividade elétrica através dos fluidos corporais é maior na massa magra do que no tecido adiposo, em virtude do maior conteúdo de eletrólitos no componente isento de gordura (SUNG et al., 2001 e Mc CARDLE, KATCH e KATCH, 1998). O sistema de BI convencional requer quatro eletrodos colocados nos membros superiores e inferiores do indivíduo e este deve estar deitado em decúbito dorsal, a fim de fazer a medida. No entanto, o sistema de BI de membros inferiores mede a impedância da parte inferior do corpo através de quatro eletrodos que, montados em aço inoxidável na superfície superior da plataforma de uma balança, ficam em contato com a planta dos pés do avaliado, que só necessita ficar em pé descalço sobre os eletrodos para medir simultaneamente sua massa corporal e sua impedância.
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O Teste de Sentar-Levantar (TSL) foi proposto como um procedimento capaz de avaliar a destreza com que os indivíduos executam as ações de sentar e levantar do solo. Estas ações são movimentos simples que integram o repertório motor de adultos e crianças e exigem destes força e potência muscular, flexibilidade de membros inferiores, coordenação motora e dependem das dimensões corporais (ARAUJO, 1999(a); ARAUJO, 1999(b); LIRA e ARAUJO, 2000; RICARDO e ARAUJO, 2001; LIRA, FARINATTI e ARAUJO, 2002). O TSL consiste em quantificar quantos apoios (mãos e/ou joelhos no solo ou ainda mãos ou antebraços sobre os joelhos) o indivíduo utiliza para sentar e levantar do solo. Atribuem-se notas independentes para cada um dos dois atos - sentar e levantar. A nota máxima é 5 para cada um dos dois atos, perdendose um ponto para cada apoio ou ainda meio ponto para cada desequilíbrio perceptível. A associação do IMC com o TSL já foi descrita na literatura científica, quando Ricardo e Araújo (2001) concluíram que o excesso de massa corporal dificulta as ações de sentar e levantar em adultos, especialmente nas mulheres, provavelmente devido às diferenças de composição corporal evidenciadas pelo IMC. Em outro estudo, Lira, Farinatti e Araújo (2002), objetivando estudar a influência de variáveis morfo-funcionais nas ações de sentar e levantar do solo através do TSL, concluíram que policiais com idade entre 18 e 45 anos apresentavam desempenho no TSL altamente associados ao seu IMC. O objetivo desse estudo foi, além de traçar o perfil do IMC e do %G dos alunos avaliados, verificar se existe influência do sobrepeso e da obesidade sobre a execução de ações básicas do repertório motor de alunos do Colégio ABEU de Belford Roxo. 2. METODOLOGIA
2.1 Ética da pesquisa
O responsável por cada um dos menores avaliados foi informado, através de uma circular que foi enviada para a sua residência, dos procedimentos, dos
131 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
objetivos e das estratégias utilizadas na pesquisa e também sobre o sigilo dos dados individuais. Neste documento o pesquisador colocava-se à disposição para outras informações que por ventura o responsável achasse pertinente e solicitava que este assinasse o termo de consentimento livre e esclarecido que estava em anexo, se assim o desejasse. Somente foram avaliadas as crianças que expressaram verbalmente vontade de participar do estudo e que entregaram o termo de consentimento devidamente assinado pelo responsável. 2.2 Amostra
Foram avaliadas 486 crianças e adolescentes do Colégio ABEU de Belford Roxo, sendo 105 do 1º segmento do ensino fundamental (45 do gênero feminino e 60 do masculino), 179 do 2º segmento do ensino fundamental (75 do gênero feminino e 104 do masculino) e 202 do ensino médio (107 do gênero feminino e 95 do masculino). Os indivíduos do gênero masculino possuíam 13,3 ± 3,4 anos (média ± desvio padrão), variando de 6 a 19,5 anos, estatura de 159 cm ± 18 cm e massa corporal de 53,5 ± 17,8 kg, enquanto os do gênero feminino tinham 13,8 ± 3,3 anos, variando de 6,5 a 20 anos, estatura de 155 ± 13 cm e massa corporal de 51,2 ± 15,8 kg. 2.3 Material
A massa corporal e o %G foram medidos pelo menos duas horas após o café da manhã, utilizando uma balança eletrônica de bioimpedância da marca Tanita (TBF-401. Tanita Co, Tokyo - Japan), com os indivíduos descalços e utilizando apenas short e camiseta de malha como vestimentas. A estatura foi verificada utilizando um estadiômetro da marca Cardiomed (Brasil) e os alunos eram avaliados na posição ereta e descalços. A leitura da massa corporal e da estatura foi realizada com precisão de 0,1 kg e 0,5 cm, respectivamente, por um avaliador treinado para este fim. De acordo com o protocolo desenvolvido por Araújo (1999-a), o TSL foi administrado em uma superfície plana e não escorregadia, com o avaliado descalço e desprovido de roupas que pudessem limitar seus movimentos. O
132 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
avaliador posicionou-se próximo e em diagonal ao avaliado, para uma visão mais abrangente do teste. Foram realizadas até duas tentativas por avaliado. Na primeira o avaliado era instruído de forma simples e direta a sentar e levantar do solo utilizando o menor número de apoios possível e sem se desequilibrar. Caso o avaliado não obtivesse uma execução perfeita, o avaliador fornecia informações para que o avaliado melhorasse o seu desempenho na segunda tentativa. Ainda segundo o mesmo protocolo, o avaliado iniciou o teste com o escore máximo de cinco pontos para cada uma das ações de sentar e levantar, sendo subtraído deste escore um ponto para cada apoio (mão, braço, joelho) e meio ponto para cada desequilíbrio perceptível (tabela 1). Era permitido cruzar as pernas para executar os movimentos determinados pelo teste, porém não era permitido o indivíduo se jogar para trás ao tentar sentar, nem apoiar as mãos ou antebraços no joelho.
Pontos 5 4,5 4 3,5 3 2,5 2 1,5 1 0,5 0
Sentar
Levantar
sem apoio
sem apoio
1 desequilíbrio
1 desequilíbrio
1 apoio
1 apoio
1 apoio e 1 desequilíbrio
1 apoio e 1 desequilíbrio
2 apoios
2 apoios
2 apoios e 1 desequilíbrio
2 apoios e 1 desequilíbrio
3 apoios
3 apoios
3 apoios e 1 desequilíbrio
3 apoios e 1 desequilíbrio
4 apoios
4 apoios
4 apoios e 1 desequilíbrio
4 apoios e 1 desequilíbrio
mais de 4 apoios ou com a
mais de 4 apoios ou com a
ajuda do avaliador
ajuda do avaliador
Tabela 1. Resultados possíveis do TSL Fonte: Ricardo e Araújo (2001)
3.
MÉTODO
DE DEFINIÇÃO
DOS
PADRÕES DE NORMALIDADE,
SOBREPESO E OBESIDADE O IMC foi determinado utilizando a equação matemática - massa/estatura2 (kg/m2).
133 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
Em relação ao IMC, os indivíduos foram classificados em normais, com sobrepeso e obesos, de acordo com a tabela internacional de padrões por gênero e idade (TABELA 2), apresentada por Cole et al. (2000), que é aceita internacionalmente como um modelo representativo dos valores mundiais. IDADE
SOBREPESO
OBESIDADE
(ANOS)
IMC maior que
IMC maior que
MASC
FEM
MASC
FEM
2
18,41
18,02
20,09
19,81
2,5
18,13
17,76
19,80
19,85
3
17,89
17,56
19,57
19,36
3,5
17,69
17,40
19,39
19,23
4
17,55
17,28
19,29
19,15
4,5
17,47
17,19
19,26
19,12
5
17,42
17,15
19,30
19,17
5,5
17,45
17,20
19,47
19,34
6
17,55
17,34
19,78
19,65
6,5
17,71
17,53
20,13
20,08
7
17,92
17,75
20,63
20,51
7,5
18,16
18,03
21,09
21,01
8
18,44
18,35
21,60
21,57
8,5
18,76
18,69
22,17
22,18
9
19,10
19,07
22,77
22,81
9,5
19,46
19,45
23,39
23,46
10
19,84
19,86
24,00
24,11
10,5
20,20
20,29
24,57
24,77
11
20,55
20,74
25,10
25,42
11,5
20,89
21,20
25,58
26,05
12
21,22
21,68
26,02
26,67
12,5
21,56
22,14
26,43
27,24
13
21,91
22,58
26,84
27,76
13,5
22,27
22,98
27,25
28,20
14
22,62
23,34
27,63
28,57
14,5
22,96
23,66
27,98
28,87
15
23,29
23,94
28,30
29,11
15,5
23,60
24,17
28,60
29,29
16
23,90
24,37
28,88
29,43
16,5
24,19
24,54
29,14
29,56
17
24,46
24,70
29,41
29,69
17,5
24,73
24,85
29,70
29,84
18
25,00
25,00
30,00
30,00
Tabela 2. padrão de IMC por gênero e idade Fonte: Cole et al. (2000)
134 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
O padrão para normalidade e sobrepeso através do percentual do tecido adiposo (TABELA 3) foi determinado pela derivação dos valores internacionais de corte para sobrepeso segundo o IMC, extrapolado a partir do IMC<25 aos 18 anos (COLE et al., 2000; SUNG et al., 2001).
IDADE
MASCULINO
FEMININO
7
20
20,5
8
17,6
19,8
9
22,7
21,5
10
22,5
22,5
11
22,5
23
12
23
26,5
13
21,5
28,5
14
19,5
29,5
15
25,5
33,5
16
21,5
35,5
Tabela 3. Pontos de corte para obesidade dada pela percentagem de gordura corporal medida por BI de membros inferiores por idade e sexo Fonte: Sung et al. (2001)
4. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DE DADOS
Num primeiro momento, a amostra foi dividida por gênero. A partir de então, a fim de observar o perfil do IMC dos alunos voluntários, a amostra foi separada pela classificação de normal (N), com sobrepeso (S) ou obeso (O). O grupo N foi composto de jovens com o IMC menor que o valor padrão para sobrepeso de acordo com a tabela de idade e gênero (TABELA 2); o grupo S, foi composto daqueles que estavam com valor de IMC maior ou igual que o padrão por gênero e idade para o sobrepeso e menor que o padrão para obesidade. O grupo O foi formado pelos voluntários com valor de IMC maior ou igual ao padrão para obesidade segundo a tabela por gênero e idade. Da mesma forma, a fim de observar o perfil do %G por BI de membros inferiores, a amostra foi separada pela classificação de normal (%Gn) ou com sobrepeso (%Gs). O grupo %Gn foi composto de crianças com o %G menor que o valor do ponto de corte para sobrepeso da tabela de idade e sexo
135 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
(TABELA 3). Já o grupo %Gs foi composto daquelas que estavam com valor de %G maior ou igual que o ponto de corte para sobrepeso, da mesma tabela. A classificação de normalidade e sobrepeso através da BI de membros inferiores foi feita somente com os alunos do ensino fundamental, não sendo possível a classificação dos voluntários do ensino médio. Posteriormente, a amostra dividida por gênero foi separada pelas notas alcançadas no TSL em: indivíduos iguais a 5/5 (=5/5) e indivíduos menores que 5/5 (<5/5). O primeiro grupo foi composto pelos avaliados que obtiveram nota 5, tanto para ação de sentar quanto para a ação de levantar, e o segundo grupo expressou os indivíduos que não conseguiram escores máximos nas referidas ações motoras. Desta forma, podemos observar a influência do excesso de massa corporal medido pelo IMC e pelo %G por BI de membros inferiores e relacioná-lo com o desempenho no TSL. Para estimar o grau de associação entre as variáveis, foi utilizado o Coeficiente de Correlação de Spearman e o Coeficiente de Correlação Linear de Pearson, do pacote estatístico SPSS 9.0. 5. RESULTADOS
A tabela 4 mostra o perfil do IMC da amostra estudada dividida por gênero, com base nos pontos de corte para obesidade e sobrepeso descritos por Cole et al. (2000).
GRUPOS
MÍNIMO MÁXIMO
CV
MÉDIA
DP
MASC 183 53 23
20,63
±4,05
12,56
38,03
16,4%
162
20,96
±4,57
11,70
36,47
20,9%
N
FEM
S
49
O
16
N = normais, S = sobrepesados, O = obesos, DP = desvio padrão, C V = coeficiente de variação Tabela 4. Análise descritiva do IMC dos voluntários divididos por gênero
Assumindo que os voluntários que estão no grupo dos sobrepesados e dos obesos fazem parte de um grupo maior, daqueles que apresentam
136 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
composição corporal acima dos valores da normalidade, foi elaborada a tabela 5, que analisa a composição corporal dos voluntários divididos por gênero.
NORMAL
ACIMA
MASC
(183) 70,7%
(76) 29,3%
FEM
(162) 71,4%
(65) 28,6%
(n) = número absoluto de voluntários Tabela 5. Composição corporal dos voluntários divididos por gênero
O teste T de Student foi utilizado para verificar, tomando por base os resultados do IMC, se a diferença na composição corporal entre voluntários do gênero masculino e do gênero feminino era significativa, e foi encontrado p=0,38, mostrando que não existe diferença significativa entre os gêneros nesta questão. A tabela 6 mostra o perfil do %G dos voluntários do ensino fundamental divididos por gênero, com base nos pontos de corte para sobrepeso descritos por Sung et al. (2001). Não foi possível realizar a análise do %G entre os voluntários do ensino médio. GRUPOS
MÉDIA
DP
MÍNIMO
MÁXIMO
CV
67
29%
±
8%
49%
91%
65
21%
±9%
13%
54%
82%
N
S
MASC
97
FEM
55
N = normais, S = sobrepesados, DP = desvio padrão, C V = coeficiente de variação Tabela 6. Análise descritiva do %G dos voluntários divididos por gênero
Dentre os voluntários do gênero masculino, 41% (67) apresentavam %G medida por BI de membros inferiores acima dos valores para sobrepeso apresentados por Sung et al. (2001), e dentre o gênero feminino 54% (65) estavam acima deste limite. Os coeficientes de variação, tanto para os voluntários do gênero masculino quanto para o gênero feminino, são considerados elevados, demonstrando a heterogeneidade da amostra.
137 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
Com o objetivo de analisar a composição, com números absolutos, dos grupos N, S e O, que foram formados observando os pontos de corte do IMC, em relação aos resultados do TSL, foi elaborada a tabela 7.
N
S
O
= 5/5
< 5/5
= 5/5
< 5/5
= 5/5
< 5/5
MASC
150
33
15
38
2
21
FEM
134
28
10
39
1
15
=5/5 = grupo de voluntários que conseguiram escores máximos no TSL <5/5 = grupo de voluntários que não conseguiram escores máximos no TSL Tabela 7. Composição dos grupos N, S e O de acordo com os resultados do TSL
Os gráficos 1 e 2 mostram a composição relativa dos grupos N, S e O, masculino e feminino respectivamente, de acordo com os resultados do TSL, evidenciando forte relação entre o excesso de massa corporal detectada pelo IMC e desempenho inferior neste teste que avalia ações motoras consideradas básicas.
Gráfico 1. Composição relativa dos grupos N, S, e O masculino de acordo com TSL.
138 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
Gráfico 2. Composição relativa dos grupos N, S e O femininos de acordo com o TSL.
Para analisar a composição relativa dos grupos %Gn (voluntários do ensino fundamental que apresentaram %G por BI menor que os pontos de corte para sobrepeso) e %Gs (voluntários do ensino fundamental que apresentavam %G por BI maior ou igual aos pontos de corte para sobrepeso) de acordo com os resultados do TSL, foram elaborados os gráficos 3 e 4.
Gráfico 3. Composição dos grupos %Gn e %Gs masculino de acordo com o TSL
139 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
Gráfico 4. Composição dos grupos %Gn e %Gs femininos de acordo com o TSL
Os gráficos 3 e 4 também evidenciam a forte relação entre o excesso de massa corporal, neste caso detectada pelo %G por BI de membros inferiores, e os resultados obtidos pelo TSL. A fim de verificar a associação entre o IMC e o teste de sentar e levantar foi feito o teste de correlação de Spearman, que apresentou r= -0,487, no caso dos voluntários do gênero masculino e r= -0,579, no caso das voluntárias. Em ambos os casos o índice de correlação demonstra forte associação entre o IMC e o TSL. Essa correlação se dá de forma inversa, sugerindo que quanto maior o IMC, menores os resultados no TSL e vice-versa. Os gráficos de dispersão e o sentido das retas de regressão (GRÁFICO 5 e GRÁFICO 6) contribuem com a ideia de forte associação entre o IMC e o TSL. MASCULINO 40
IMC
30
20
10 3
4
5
6
7
8
9
10
11
TSL
Gráfico 5. Relação IMC vs TSL para os voluntários masculinos
140 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
FEMININO 40
IMC
30
20
10 3
4
5
6
7
8
9
10
11
TSL
Gráfico 6. Relação IMC vs TSL para as voluntárias.
Com o objetivo de verificar a associação entre o %G por BI de membros inferiores e o TSL, também foi feito o teste de correlação de Spearman, que, no caso dos voluntários do gênero masculino, apresentou r= -0,573; no caso das voluntárias, apresentou r= -0,663. Em ambos os casos o índice de correlação demonstra forte associação entre o %G por BI e o TSL. Essa correlação se dá de forma inversa, sugerindo que quanto maior o %G por BI, menores os resultados no TSL e vice-versa. Os gráficos de dispersão e o sentido da reta de regressão (GRÁFICO 7 e GRÁFICO 8) contribuem com a ideia de forte associação entre o %G por BI e o TSL.
MASCULINO 60
50
%G
40
30
20
10
0 3
4
5
6
7
8
9
10
11
TSL
Gráfico 7. Relação %G por BI vs TSL para os voluntários masculinos
141 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
FEMININO 60
50
%G
40
30
20
10
0 3
4
5
6
7
8
9
10
11
TSL
Gráfico 8. Relação do %G por BI vs TSL para as voluntárias
A associação entre o IMC e o %G por BI foi verificada através do Teste de Correlação Linear de Pearson, que apresentou r= 0,860, no caso dos voluntários do gênero masculino, e r= 0,899, no caso do gênero feminino. Em ambos os casos o índice de correlação demonstra forte associação entre os resultados do IMC e do %G por BI. Essa correlação acontece de forma direta sugerindo que, quando os resultados do IMC aumentam, os resultados do %G por BI de membros inferiores aumenta quase na mesma proporção, como demonstram os gráficos de dispersão 9 e 10.
MASCULINO 60
50
%G
40
30
20
10
0 10
20
30
40
IMC
Gráfico 9. Relação do IMC vs %G por BI para os voluntários masculinos
142 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
FEMININO 60
50
%G
40
30
20
10 10
20
30
40
IMC
Gráfico 10. Relação do IMC vs %G por BI para as voluntárias
6. DISCUSSÃO Nas duas últimas décadas, a prevalência da obesidade infantil tem crescido bastante em todo o mundo. No Brasil a média de crianças entre 6 e 9 anos com excesso de massa corporal, no ano de 1974, era de 4,9% e passou para 17,4% em 1997 (EBBELING, PAWLAK e LUDWIG, 2002). No presente estudo, de acordo com os cortes de IMC por idade e gênero, encontrou-se uma prevalência de 34,3% de excesso de massa corporal nos alunos do 1º segmento do ensino fundamental da escola pesquisada, valor mais elevado do que os descritos por Nunes et al. (2008) para crianças nas cidades de Belo Horizonte - MG (17,7%), Taguatinga - DF (22,1%), Cajamar - SC (17%) e Campo Grande - MS (30,4%). O baixo nível de atividade física das crianças já foi apontado como um dos principais fatores subjacentes no aparecimento do sobrepeso e da obesidade infantil (CRESPO et al., 2001; GIUGLIANO e CARNEIRO, 2004; GUERRA et al., 2003). Porém, intervenções para a prevenção e tratamento da obesidade infantil passam por atitudes mais complexas que simplesmente aumentar a quantidade de exercícios diários (EBBELING, PAWLAK e LUDWIG, 2002), envolvendo estratégias que reúnem a família, escola e a comunidade como um todo.
143 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
Os efeitos deletérios do excesso de massa corporal, no âmbito das doenças crônico-degenerativas, já são bastante conhecidos, constituindo-se num fator de risco importante para patologias como hipertensão arterial sistêmica,
dislipidemias,
diabetes,
doenças
coronarianas,
distúrbios
psicossociais e doenças músculo-esqueléticas (EKCEL, 2005; BARNES e PUJOL, 2004; NATIONAL TASK FORCE, 2000). Agora, como sugere este estudo, já se começa a relacionar estes efeitos às tarefas básicas do cotidiano (sentar, levantar, deitar, andar, subir escadas) e à maneira como podem influenciar na autonomia motora e na qualidade de vida. Embora, em alguns casos, o IMC seja contestado e questionado por alguns autores, o mesmo ainda é, dentre os índices antropométricos existentes, o procedimento de avaliação mais utilizado para mensuração de composição corporal (WHITAKER et al.,1998) pela facilidade para obtenção dos dados e não necessitar de avaliadores treinados. Os resultados da correlação entre o IMC e o %G por BI de membros inferiores era esperado que fosse elevado, como realmente aconteceu, pois ambos os testes foram idealizados como métodos capazes de avaliar a composição corporal. Apesar disto, nota-se uma diferença entre a prevalência de excesso de massa corporal medidos pelo IMC (29,3% - masculino e 28,6% feminino) e pelo %G por BI de membros inferiores (41% - masculino e 54% feminino), o que pode estar relacionado à dificuldade encontrada em controlar as variáveis intervenientes no processo de medida do %G por BI, como por exemplo, o nível de hidratação, a alimentação pré-avaliação e a quantidade de urina retida. Observou-se, ao relacionar a composição corporal medida através do %G por BI de membros inferiores e pelo IMC com os resultados do TSL, que os indivíduos de ambos os sexos que apresentavam excesso de massa corporal mostravam maior dificuldade na realização do TSL, o que corrobora as conclusões de Lira, Silva e Araújo (2000), que também observaram maior dificuldade na execução do TSL em indivíduos com excesso de massa em sua composição corporal. No presente estudo, foi verificada uma maior dificuldade na realização da ação de levantar do solo quando comparada à ação de sentar. Isso pode ser explicado devido ao fato do avaliado necessitar de maior força ou potência
144 | Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa V.1
muscular nos membros inferiores para realizar a ação motora de levantar, principalmente quando existe sobrecarga causada pelo excesso de massa corporal. Araújo (1999-b) e Ricardo e Araújo (2001) descreveram que o TSL pode ser caracterizado como um teste que avalia a aptidão muscular funcional mínima, uma vez que permite avaliar a relação entre a potência muscular e a massa corporal.
7. CONCLUSÃO
Com base nos resultados obtidos através do IMC e do %G por BI de membros inferiores e sua associação desses resultados com as habilidades motoras
básicas,
representadas
pelo
TSL,
pudemos
extrair
algumas
conclusões. Na amostra estudada, o IMC e o %G por BI de membros inferiores discriminam objetivamente aqueles indivíduos com dificuldade no desempenho do TSL, tanto para os do gênero masculino quanto para os do gênero feminino, ou seja, os indivíduos classificados como obesos ou sobrepesados apresentam mais dificuldade para sentar e levantar que os demais que se situam do outro lado da escala. Os resultados do estudo sugerem que a origem desta dificuldade motora está no aumento da quantidade de gordura corporal.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O USO DA PESQUISA COMO PRÁTICA DE ENSINO DO CURSO SUPERIOR: CONSTATAÇÕES A PARTIR DE UM PROJETO DE EXTENSÃO Alberto Alvarães39
INTRODUÇÃO
Nas diversas discussões a respeito da universidade, é possível regularmente encontrar discussões acerca de seu papel e de suas funções básicas. Ao definir o verdadeiro papel que a universidade possui, será possível esta se orientar para o tipo de metodologia de ensino a ser adotado (BORDENAVE e PEREIRA, 1977, p.11). Em uma visão crítica, ao se referir às funções básicas da universidade que sustentam o seu papel, quais sejam, o ensino, a pesquisa e a extensão, Bordenave e Pereira (ibidem) apontam que o ensino é a que recebe a maior parte das energias e recursos do sistema universitário e normalmente se nutre de conhecimentos de outros países em geral com pouca relação direta com os problemas locais da comunidade na qual a universidade está inserida. A pesquisa estuda problemas relativamente superficiais oferecendo poucas oportunidades de participação dos alunos. Por fim, a extensão universitária recebe uma atenção marginal do sistema levando à comunidade, de forma paternalista e unilateral, apenas resíduos de suas preocupações. Concluem os autores que nota-se um paralelismo e isolamento entre as três funções, de tal modo que nem a pesquisa alimenta o ensino, nem a extensão tem uma interação significativa com ambos. Nessa situação, é lógico e natural que a metodologia de ensino se caracterize por uma orientação “bancária”, de mera transmissão de conhecimentos “enlatados”. Diferente seria o panorama se as funções da Universidade fossem reformuladas e novas relações mais orgânicas e dinâmicas fossem estabelecidas entre Ensino, Pesquisa e Extensão. (ibidem).
Se por um lado são evidenciadas dificuldades, por outro tais percepções podem se apresentar como estímulos importantes em oportunidades que surgem no dia-a-dia de pesquisadores e professores. Uma dessas oportunidades surgiu em um projeto de extensão chamado Centro de Desenvolvimento Humano Uniabeu (CDHU) 39
Mestre em Educação pela UCP, Bacharel em Administração pela UFRRJ e especializado em Filosofia pela UCB, em Pedagogia Empresarial e Docência do Ensino Superior pela UCAM. É Coordenador de pós-graduação em Gestão de Negócios da SBAC e da Uniabeu e professor titular do curso de Administração da Uniabeu.
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implantado na Uniabeu Centro Universitário localizada na cidade de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. No decorrer do seu desenvolvimento, ao longo de dois anos, o seu objetivo de extensão universitária foi desenvolver ações que viessem a estimular a autoestima e autorrealização dos alunos para as suas futuras vidas profissionais. Conforme apresentado mais adiante, ao longo das atividades do projeto, surgiu a oportunidade de experimentar a pesquisa como prática de ensino em direção aos objetivos de extensão do projeto. Estava neste ponto consolidada uma oportunidade de integrar o ensino, a pesquisa e a extensão, integração esta defendida e considerada como fundamental por Bordenave e Pereira (1977). Desta forma, originado da experiência vivida no projeto de extensão CDHU, o objetivo do presente estudo é identificar em que medida a prática de ensino por meio da pesquisa pode contribuir como estímulo para o aumento da autoestima e da autorrealização de discentes do curso superior. Para tanto, serão abordados inicialmente a origem deste projeto de extensão e as razões empíricas que levaram o seu professor-coordenador, autor deste presente estudo, a apresentar essa proposta. Em seguida serão abordados os fatores teóricos a partir dos quais se sustentou esse projeto. Na sequência serão abordadas as especificidades, características e oportunidades do uso da pesquisa nas práticas de ensino. Por fim, apresentam-se a pesquisa aplicada aos alunos sujeitos do estudo oriundos do projeto, sua respectiva análise e conclusões. O PROJETO CDHU E SUAS ORIGENS
Em uma pesquisa desenvolvida por este autor ao longo de sete anos, foram observadas diversas situações envolvendo o relacionamento discente-docente ou discente-instituição de ensino superior as quais, a partir dos conceitos de Nietzsche de super-homem e de ressentimento e na hierarquia de necessidades de Maslow, deram origem ao artigo Estigmas de transferência de culpa: novas exigências no (re)pensar o papel do educador (ALVARÃES, 2008). Nesta pesquisa foram apresentados os cinco estigmas que mais se destacaram nesse relacionamento objeto de estudo e que evidenciam um possível enfraquecimento da autoestima do aluno e a sua consequente dificuldade na busca da autorrealização: injustiça, ironia, constrangimento, preconceito e discriminação. O conceito de autoestima bem como
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o de autorrealização se sustentam na definição de Maslow o qual, a partir de suas pesquisas, constatou que existem duas classes de necessidades: as necessidades de baixo nível ou primárias – como as necessidades fisiológicas e de segurança – que são satisfeitas externamente [...] e as necessidades de alto nível ou secundárias – como as necessidades sociais, de estima e de auto-realização – que são satisfeitas internamente. (apud CHIAVENATO, 2005, p.248).
Como
complemento,
é
na
definição
nietzscheana
de
super-homem
(Übermensch) que o seu personagem Zaratustra provoca eco no conceito de autorealização de Maslow, pois o discurso presente em Assim falou Zaratustra é dirigido a todos aqueles que depositam no além, no outro, a culpa de todos os seus desgostos, de todas as suas derrotas, de todas as suas próprias fraquezas. Zaratustra busca os seres superiores, aqueles que vêem aqui, em nosso mundo, a capacidade de libertação, de crescimento, de autorrealização (ALVARÃES, 2008).
Se o sujeito experimenta dificuldades em atingir a condição de ser potência, uma condição de superação no conceito de super-homem em Nietzsche, poderá estar segundo a teoria de Maslow, carente da satisfação de suas necessidades sociais e de estima pelos outros. Nesses níveis, sendo eles intermediários, o ser humano está submetido tanto a estímulos externos quanto a internos. Pode-se prever que se, de alguma maneira, o ser humano não estiver consciente desses fatores internos ou, até mesmo, redireciona-los para o exterior contra ele mesmo, estará provavelmente extirpando as suas possibilidades de autorrealização, de potência, pois não logrará motivação própria para isto. Neste ínterim, pode-se considerar nesse redirecionamento o que O’Connor (2006a) chama de crenças limitantes. Para ele, crenças são “as generalizações que fazemos sobre outros, sobre o mundo e sobre nós mesmos que se tornam nossos princípios operacionais. Agimos como se fossem verdadeiras e são verdadeiras para nós” (p.321) e crenças limitantes “são as principais acusadas por nos deter de atingirmos nossas metas e vivenciar nossos valores. Elas atuam como regras que nos impedem de conseguir o que é possível, do que nós somos capazes e do que nós merecemos” (2006b, p. 117). Acrescenta O’Connor que quando um sujeito pergunta ao outro o que o impede de atingir suas metas, normalmente as respostas apontam crenças limitantes que impedem a conquista daquilo que esse outro é capaz e merecedor.
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Corroborando com O’Connor e Nietzsche, Goleman (2001) em sua relevante pesquisa a respeito de inteligência emocional, suscita que em termos de motivação, quando as pessoas acreditam que seus fracassos se devem a algum déficit imutável em si mesmas, perdem a esperança e deixa de tentar. A crença básica que leva ao otimismo é de que os reveses ou fracassos se devem a circunstâncias sobre as quais podemos fazer alguma coisa a fim de mudar para melhor (p.111).
Ainda nessas contribuições, para Maslow (apud CHIAVENATO, 2005) as necessidades humanas obedecem a uma hierarquização de satisfações do ser humano que necessita ter, em primeira instância, o atendimento das necessidades primárias: fisiológicas e de segurança. A comida, a bebida, o sexo são exemplos de necessidades fisiológicas, fundamentais para que o ser humano busque motivação para outras conquistas. Enquanto não for atingida a satisfação das necessidades fisiológicas, ainda que parcialmente, o ser humano não encontrará motivação para as necessidades seguintes, as necessidades de segurança, nas quais o ser humano procurará a proteção de ameaças externas. Lograr moradia e estabilidade profissional são alguns elementos vislumbrados neste nível. A partir do atendimento integral ou parcialmente suficiente destes dois primeiros níveis, as necessidades primárias, o ser humano terá motivos (estará motivado) para buscar níveis de satisfações de mais alto nível. Na medida em que essas necessidades são gradualmente satisfeitas, os motivos que as estimulam são cada vez mais originadas no interior do que no exterior do sujeito, as chamadas necessidades secundárias com as quais o ser humano busca inicialmente a amizade, a participação de grupos, o amor e o afeto: as chamadas necessidades sociais. Após o sentimento de participar e de se sentir fazendo parte de um grupo, da sociedade, o ser humano busca satisfazer as necessidades de estima nas quais ele se sentirá apreciado, reconhecido, valorizado pelos outros. No último nível
da hierarquia das
necessidades de Maslow, o sujeito buscará a autorrealização, o sentimento mais elevado no qual reconhecerá a sua capacidade e o seu potencial. Essa será, para Maslow, a plenitude, o ponto mais alto de satisfação do ser humano consigo mesmo, a conquista de suas realizações. É no nível desta plenitude que analogamente está o super-homem de Nietzsche, aquele que estará no mais alto ponto da hierarquia das necessidades de Maslow, o sujeito que conseguiu atender as suas necessidades primárias, caminhou pela escalada hierárquica das necessidades
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secundárias em busca da autorrealização desprovido de carências afetivas, de carências de amizade, com o sentimento de auto-estima, de apreciação pelo outro, pois, se assim não o fosse, segundo Maslow, não poderia alcançar o ápice da realização humana. Pode-se considerar que essa caminhada é a representação, em Nietzsche, da vontade de potência. Para atingir a autorrealização, o ser humano deve se sentir reconhecido e estimado pelo outro, sendo isso condição e parte integrante do seu sentimento de autorrealização, sentimentos esses os quais mais do que sentidos de fora para dentro, devem ser sentidos de dentro para fora, pois como aponta Nietzsche, o homem é uma corda estendida entre o animal e o super homem – uma corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso. Amo os que não sabem viver senão no ocaso, porque estão a caminho do outro lado (2006, p.38).
A respeito desses sentimentos que vêm do interior ou do exterior do sujeito, Nietzsche também abordou a questão do ressentimento. Para ele, “o ressentido é o sujeito que padece de ressentimento, isto é, de um sentimento relacionado a alguém e que ele não conseguiu exteriorizar. Esse sentimento que não atingiu sua finalidade volta ao sujeito; daí o prefixo ‘re’, que, junto com ‘sentimento’, forma a palavra ‘ressentimento’” (PEREIRA, 2006, p.23). Portanto, a não aceitação do sentimento de que está burlando normas e leis, pode gerar o ressentimento no sujeito de que a sociedade, o outro, é injusto consigo. A não aceitação do sentimento de que alguém não cede ou reage aos seus apelos incomuns, pode gerar o ressentimento de que o outro, a sociedade está zombando desses seus apelos e, por conseguinte, rebaixao, isola-o, enfim, ironiza as suas atitudes. A não aceitação do sentimento de que alguém pode avaliá-lo diante do outro, diante da sociedade, pode levar o sujeito ao ressentimento do constrangimento no sentido de que isso, de alguma forma, agrideo emocionalmente. A não aceitação do sentimento de que alguém o repreende por uma postura inadequada, pode levar o sujeito ao ressentimento do preconceito por considerar que esta atitude, na realidade, está baseada em alguma pré-concepção de quem a faz. A não aceitação do sentimento de que alguém o obriga, de alguma forma, a fazer parte, a se incluir, pode levar o sujeito ao ressentimento contrário, o
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de que o outro, a sociedade, está descriminando-o, excluindo-o e diferenciando-o dos demais. Pôde-se concluir a partir das pesquisas iniciais deste autor que, em muitas situações, aqueles que acusam o outro ou a sociedade de injustiça, ironia, constrangimento, preconceito e discriminação, na realidade estão ressentindo, gerando sentimentos de defesa que o colocarão em uma posição de vítima, de excluído, de rebaixado, de incompreendido, de julgado. Ao ressentir, o sujeito estará exteriorizando e atribuindo a culpa ao outro, à sociedade e, sendo vítima, estará se excluindo da sociedade, do reconhecimento de outrem, impedindo, a partir da teoria de Maslow, as possibilidades de atendimento das necessidades sociais e de estima em busca da satisfação das necessidades de autorrealização. O ressentimento é, pois, a rejeição das supostas atitudes do outro, das atitudes que considera erradas pelo simples motivo de não serem aquelas que o sujeito gostaria que fosse. Ao outro, em um processo de transferência de culpa, fica atribuída toda a responsabilidade pelas suas fraquezas e incapacidades. Conforme aponta Nietzsche, todo aquele que exige justiça com ar de indignação é alguém que só percebe a própria dor e sofrimento como algo trazido ‘de fora’ por outro. Esse indivíduo [...] é incapaz de notar que seu sofrimento vem do seu próprio instinto de vida enfraquecido e da sua incapacidade de criar algo afirmativo (PONTE, 2007, p.15),
gerando, em si mesmo, estigmas que segundo o dicionário Houaiss, é uma “marca ou cicatriz deixada por uma ferida” (2004, p.314). Para Goleman (2001), é necessário ao sujeito descobrir os seus motivos, a sua motivação para combater as suas fraquezas, ou seja, “é preciso a motivação certa. Quando as pessoas vêem que sua hostilidade pode levá-las para a cova cedo, se dispõem a tentar” (p.125). O artigo científico publicado por este autor que aborda o conceito de estigmas de transferência de culpa se transformou em estímulo para a proposta de implantação do Projeto de Extensão CDHU (Centro de Desenvolvimento Humano) que será apresentado a seguir. QUESTÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS DO PROJETO CDHU
O CDHU foi um Projeto de Pesquisa inserido no curso Tecnológico de Recursos Humanos da Uniabeu, tendo sido iniciado em agosto de 2008 com um
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prazo de dois anos. O CDHU teve como objetivo promover ações que viessem a estimular a autoestima e a autorrealização profissional do alunado da IES e da comunidade relacionada no seu entorno social. Este projeto, totalmente financiado pela IES, contou com um professor coordenador bolsista vinculado aos cursos de Administração e de Recursos Humanos e dois alunos bolsistas do primeiro curso. Figura 1: esquema do CDHU
FATORES FUNDAMENTAIS
PESSOAS
NIETZSCHE
MASLOW
SUPER-HOMEM VONTADE DE PODER
HIERARQUIA DAS NECESSIDADES
CENTRO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
AUTO-MOTIVAÇÃO AUTOCONHECIMENTO AUTOCONTROLE EMPATIA SOCIABILIDADE
CRENÇAS LIMITANTES DESENVOLVIMENTO DE METAS
TEORIA DOS DOIS FATORES
GOLEMAN
O’CONNOR
HERZBERG
DESENVOLVIMENTO DA AUTO-ESTIMA E DA AUTO-REALIZAÇÃO
FATORES DE SUSTENTAÇÃO Fonte: do autor
A base teórica do CDHU foi composta por dois grupos de fatores. No primeiro grupo de fatores se situam as teorias de Nietzsche (apud ALVARÃES, 2008) e Maslow (apud CHIAVENATO, 2005) que tratam de maneira fundamental das questões de autoestima e de autorrealização. No segundo grupo estão três teorias que sustentam as condições de autoestima e de autorrealização: 1) a teoria da inteligência emocional (GOLEMAN, 2001) que apresenta as condições necessárias para que os sujeitos alcancem seus objetivos (automotivação, autoconhecimento, autocontrole, empatia e sociabilidade); 2) a teoria das crenças limitantes e o desenvolvimento de metas de O’Connor (2006a; 2006b) a qual apresenta o
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pressuposto de que os sujeitos devem se libertar daquilo que o bloqueia sem razão e definir metas para atingir os seus objetivos; e 3) a teoria dos dois fatores de Hetzberg (apud CHIAVENATO, 2005) que discute as condições externas entregues ao sujeito necessárias para a sua motivação. A Figura 1 apresenta em um diagrama em blocos a representação desses grupos de fatores e suas respectivas teorias. A metodologia seguida nas ações do CDHU no que tange o desenvolvimento da autoestima e autorrealização seria, inicialmente, operacionalizada a partir de ações de sensibilização por meio de palestras, eventos, notas, cartazes e publicações diversas que levassem dados e informações acerca de estudos e teorias que viessem a provocar reflexões e discussões acerca do potencial humano. Entretanto, nas primeiras ações de comunicação direta aos alunos sujeitos do processo, uma constatação mudou o rumo metodológico do projeto a partir de uma oportunidade identificada e apresentada a seguir.
A OPORTUNIDADE DA PESQUISA COMO PRÁTICA DE ENSINO NO PROJETO CDHU Durante as primeiras ações de comunicação direta, foi possível perceber nos discursos apresentados pelos discentes da IES que poderia ser em vão a tentativa de ações de elevação de autoestima e autorrealização profissional uma vez que, diziam, não encontravam relevante estímulo em sala de aula. Tal constatação fez com que os participantes do Projeto CDHU começassem a pensar em uma transferência das ações de elevação de autoestima e autorrealização para dentro da sala de aula. Foram percebidas situações nos discursos dos alunos nas quais eles se sentiam em condição passiva, como receptores de conhecimento, sem agir sobre o processo de aprendizagem o que seria similar ao conceito de Freire (1979) de uma consciência bancária da educação na qual “o professor ainda é um ser superior que ensina a ignorantes. [...] O educando recebe passivamente os conhecimentos, tornando-se um depósito do educador. Educa-se para arquivar o que se deposita” (p.38). Em Ronca (1996, apud SANTOS, 2008, p.64) foi possível encontrar uma contribuição para este projeto num interessante questionamento seu acerca dessa situação: “se o papel do professor é dar aulas, enquanto ele dá a sua aula, o aluno faz o quê?”. A partir dessas constatações, optou-se buscar práticas de ensino que, de alguma forma, estimulassem os alunos ao aprendizado e, por consequência,
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elevassem a sua autoestima e a sua autorrealização. A equipe do CDHU buscava algo além das simples práticas pedagógicas ou técnicas de ensino que por meio de dinâmicas ou atividades lúdicas pudessem motivá-los de forma extrínseca na qual há a necessidade de uma “força externa ao indivíduo movendo-o em direção ao ato de
estudar”
(PEIXOTO
e
GUIMARÃES,
2005,
p.75-76).
Buscavam-se,
primordialmente, meios de promover uma motivação intrínseca a qual considera “alguma coisa dentro da pessoa que a leva ao estudo” (ibidem), ações que pudessem ser duradouras e representativas em sua atual vida acadêmica e em sua futura vida profissional. Em meio a essas reflexões, a instauração de uma nova disciplina no curso tecnológico de Recursos Humanos intitulada Cultura, Clima e Comportamento Organizacional abriu uma oportunidade que poderia gerar resultados para a consecução dos objetivos do CDHU: a implantação da pesquisa como prática de ensino cuja teoria explanada a seguir. Baseada em Demo (2003) e Bordenave e Pereira (1977), esta prática surgia como sustentação desta oportunidade. A PESQUISA COMO PRÁTICA DE ENSINO
Para Bordenave e Pereira (1977, p.11), é necessário às IES situar o verdadeiro papel do ensino em relação à sociedade. A clareza desse papel permitirá a elas a definição do tipo de metodologia de ensino a ser adotada. A proposta do CDHU, como essência básica de um projeto de extensão universitária, foi a de levar benefícios à sociedade. Neste caso, as suas ações foram concentradas em uma parcela do alunado da IES financiadora deste projeto, considerando-se que o tema de estudo deste, se desenvolvido por uma metodologia de ensino baseada na pesquisa poderia de forma direta atingir a comunidade por meio deste alunado fazendo com que “relações mais orgânicas e dinâmicas fossem estabelecidas entre Ensino, Pesquisa e Extensão. [...] A pesquisa tornar-se-ia genuíno instrumento de ensino. A avaliação da aprendizagem não terminaria na medição ‘do que se sabe’, mas estender-se-ia também à orientação ‘do que se faz’” (ibidem, p.12). Ao promover um ensino pela pesquisa o sujeito que aprende “deixa de ser objeto de ensino, para tornar-se parceiro de trabalho” em uma relação de sujeitos participativos que possuem um questionamento reconstrutivo como objetivo comum sem a distribuição de receitas prontas (DEMO, 2003, p.2).
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Para Demo (2003), a proposta de educar pela pesquisa possui o que chama de pressupostos cruciais: 1) a educação pela pesquisa é especificidade própria da educação acadêmica; 2) o questionamento reconstrutivo com qualidade formal e política é o cerne do processo de pesquisa; 3) a pesquisa deve ser um ambiente didático cotidiano; e 4) a educação é um processo de formação da competência humana histórica. No primeiro pressuposto, destaca-se que nos diversos espaços e agentes da educação do sujeito como a família, o trabalho e os amigos a base da educação são outros expedientes que não o da pesquisa. Já na educação escolar, sua base é a pesquisa, não a aula, ou o ambiente de socialização, ou a ambiência física, ou o mero contato entre professor e aluno. A pesquisa se valoriza na medida em que promove a proximidade entre conhecer e intervir,
porque conhecer é a forma mais competente de intervir, a pesquisa incorpora necessariamente a prática ao lado da teoria. [...] A aula que apenas repassa conhecimento [...] não sai o ponto de partida, e, na prática, atrapalha o aluno, porque o deixa como objeto de ensino e instrução. Vira treinamento. (DEMO, 2003, p.6-7).
No segundo pressuposto, Demo clarifica o que é questionamento e reconstrução. Pela primeira “compreende-se a referência à formação do sujeito competente, no sentido de ser capaz de, tomado consciência crítica, formular e executar projeto próprio de vida no contexto histórico.” (p.10). Por reconstrução, compreende-se “a instrumentação mais competente da cidadania [...] a base da consciência crítica e a alavanca da intervenção inovadora, desde que não seja mera reprodução, cópia, imitação” (ibidem, p.11). Complementarmente, este questionamento reconstrutivo deve ser comprometido com a qualidade formal e política no sentido do sujeito não ficar com o conhecimento, mas usá-lo em um processo emancipatório composto de meios (conhecimento inovador) e fins (cidadania e ética). No terceiro pressuposto considera-se que a pesquisa deve fazer parte da vida acadêmica desconstruindo crenças infundadas de que pesquisa é algo difícil ou restrito para apenas algumas pessoas, crenças essas que limitam até mesmo o próprio professor o qual “também não se entende por pesquisador. Acha que o pesquisador é um ser complicado, que faz coisas complicadas, que ele mesmo não estaria à altura de fazer. Foi
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treinado dentro do método de aula copiada, e só sabe dar aula copiada” (ibidem, p.12). No quarto pressuposto, entende-se a competência como a condição de não apenas fazer, mas de saber fazer, um “atributo da cidadania, do sujeito consciente e organizado, capaz de história própria e solidária” (ibidem, p.14). A partir desses pressupostos, buscou-se estabelecer nessa nova disciplina instaurada no curso de Tecnologia em Recursos Humanos, um campo de estudo no qual os alunos pudessem ter a oportunidade de se tornarem sujeitos ativos, conscientes de suas responsabilidades e capacidades, que pudesse cada aluno ir às aulas “para trabalhar junto, tendo no professor a orientação motivadora” (ibidem, p.15) e, a partir disto, desenvolver um melhor grau de autoestima e autorrealização.
A PRÁTICA IMPLANTADA NA IES
Por
ocasião
da
instauração
da
disciplina
chamada
Cultura,
Clima
e
Comportamento Organizacional no curso de tecnologia de Recursos Humanos da Uniabeu, foi introduzida nesta a prática da pesquisa como método de ensino. Esta disciplina se localiza no segundo período letivo semestral de um total de quatro no curso. Os alunos se organizaram em grupos de no máximo cinco alunos sendo cada grupo de alunos-pesquisadores responsável pelo desenvolvimento de um artigo científico. O total de grupos foi de oito. Para tal prática, os alunospesquisadores desenvolveram durante o semestre letivo estes artigos científicos passando pelas seguintes fases: 1.
Aquisição
de
conceitos
básicos
científicos:
nesta
fase
os
alunos-
pesquisadores passaram por uma capacitação de oito horas quando receberam as informações do que é um artigo científico, sua estrutura, sua utilidade e seus propósitos. Além disto, foram apresentadas as principais formatações das produções científicas requeridas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Vale ressaltar que tal capacitação foi necessária, pois este curso não contemplava a disciplina de metodologia científica.
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2.
Definições iniciais: nesta fase de, aproximadamente três semanas de duração, foram definidos os temas e os objetivos dos artigos científicos. Os temas foram variados e escolhidos pelos próprios grupos tendo como limite o perímetro de conteúdo do ementário da disciplina.
3.
Desenvolvimento
e
apresentação
do
projeto
de
pesquisa:
durante
aproximadamente um mês e meio os alunos-pesquisadores desenvolveram o projeto de pesquisa referente ao artigo científico no qual constavam as seguintes
partes:
introdução,
fundamentação
teórica,
metodologia
e
bibliografia. Após este desenvolvimento, os grupos fizeram apresentação pública tendo o professor orientador executado suas últimas avaliações e considerações antes do desenvolvimento do artigo científico em si. 4.
Desenvolvimento da fundamentação teórica: pesquisa bibliográfica pelos grupos de alunos-pesquisadores com o objetivo de buscar os autores e teorias mais pertinentes aos seus temas e objetivos. Esta fase teve a duração de aproximadamente um mês.
5.
Desenvolvimento da metodologia e aplicação da pesquisa: durante aproximadamente um mês os alunos documentaram a metodologia a ser utilizada, seus instrumentos e fundamentos que justificaram as suas utilizações. Além disto, colocaram em prática a pesquisa em si tendo, a maioria dos grupos optada por pesquisas em campo nas quais, dependendo da pesquisa, estudantes, funcionários de empresas ou gestores passaram por entrevistas ou responderam a questionários.
6.
Fechamento da pesquisa: em aproximadamente três semanas os grupos de alunos-pesquisadores fecharam os seus desenvolvimentos fazendo a análise das coletas de dados, elaborando suas conclusões e procedendo aos últimos acertos.
7.
Apresentação pública do artigo científico: por ocasião de uma jornada acadêmica de gestão empresarial ocorrida na IES ao final do semestre, os grupos de alunos-pesquisadores fizeram a apresentação pública de seus artigos científicos em oficinas paralelas que foram amplamente divulgadas na instituição as quais contaram com a participação de alunos de todos os cursos e períodos além de convidados externos, alunos de outras instituições, parentes e amigos.
8.
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Durante todo o semestre, o professor da disciplina acompanhou todos os grupos em sala de aula ou na biblioteca, ora atuando como orientador individual, ora como elemento provocador de debates acerca dos temas, ora auxiliando aos alunos na elaboração textual, pesquisa bibliográfica e desenvolvimento dos instrumentos de pesquisa.
A METODOLOGIA E O LEVANTAMENTO DOS INDICADORES DA PESQUISA COMO PRÁTICA DE ENSINO
Por ocasião do encerramento do semestre na mesma época da apresentação dos trabalhos na jornada acadêmica, foi aplicado um questionário utilizado como instrumento de levantamento de dados quantitativos que objetivava o levantamento de indicadores com as percepções desses alunos-pesquisadores neste momento, como sujeitos do estudo do Projeto CDHU, no intuito de investigar o quanto que a pesquisa como prática de ensino contribuiu para o aumento da autoestima e da autorrealização de seus discentes. Este questionário, igual para todos os respondentes, era composto por dezesseis questões em cujas respostas, do tipo escala de Lickert, os respondentes indicaram o seu grau de concordância ou discordância em relação à sentença apresentada.
Utilizaram-se
as
opções
concordo
totalmente,
concordo
parcialmente, não concordo nem discordo, discordo parcialmente e discordo totalmente. Com este instrumento “obtém-se uma graduação quantificada das proposições que são distribuídas entre os indivíduos a serem pesquisados [expressando] o ponto de vista favorável ou desfavorável ao assunto que se quer pesquisar” (MARCONI e LAKATOS, 2008, p.110). Essas dezesseis questões estavam subdivididas em elementos de investigação relativas aos dois grupos de fatores da fundamentação teórica do Projeto CDHU conforme apresentado no quadro 1. Responderam a esse questionário 46 alunos-pesquisadores e foi possível constatar os resultados relativos aos fatores fundamentais apresentados na tabela 1. Na tabela 2 estão apresentados os resultados os relativos aos fatores de sustentação. Os percentuais apurados representam o percentual quantitativo em
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que os respondentes declararam ter sido possível desenvolver a respectiva percepção a partir da prática de ensino com o uso da pesquisa.
Grupo de Fatores
Fundamentais
Sustentação
Conceito relacionado
Elemento a ser investigado
Nietzsche e os conceitos de super-homem e vontade de poder.
Percepção de sentimento de autorrealização.
Maslow e o conceito de autoestima.
Percepção de sentimento de autoestima.
Goleman e o conceito de inteligência emocional.
Percepção de controle da inteligência emocional.
O’Connor e o conceito de crenças limitantes.
Percepção de possibilidade de vencer as crenças limitantes.
Herzberg e o conceito de motivação.
Percepção da possibilidade de identificar e controlar dos fatores externos que influenciam a autoestima e a autorrealização.
Quadro 1 – Estrutura teórica para a coleta de dados Fonte: do autor
Tabela 1 – Levantamento de indicadores relativos aos fatores fundamentais do Projeto CDHU Agrupamento de investigação
Percentual de Percepção
Percepção de possibilidade de autorrealização.
88%
Percepção de possibilidade de autoestima.
81%
Fonte: do autor
Tabela 2 – Levantamento de indicadores relativos aos fatores de sustentação do Projeto CDHU Agrupamento de investigação
Percentual de Percepção
Percepção de possibilidade de inteligência emocional.
84%
Percepção de possibilidade de vencer as crenças limitantes.
93%
Percepção de possibilidade de controle de fatores externos.
94%
Fonte: do autor
Além deste levantamento quantitativo, na mesma ocasião da aplicação do questionário, foram levantadas algumas percepções qualitativas dos alunos-
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pesquisadores durante a apresentação das pesquisas na jornada acadêmica. Dentre essas percepções, destacam-se a seguir algumas que corroboram com os indicadores numéricos. Não foram identificadas quaisquer percepções negativas. · “Esse trabalho mudou a minha vida!” (Aluna-pesquisadora A). · “Descobri potenciais os quais não sabia que existiam em mim!” (Alunapesquisadora B). · “No início pensei que seria impossível, agora vejo que sou capaz!” (Alunapesquisadora C). · “O sacrifício valeu a pena, pois vi algo, um resultado que nasceu de mim, como um filho!” (Aluna-pesquisadora D). · A partir desses resultados foi possível traçar algumas relevantes conclusões em relação à possibilidade da pesquisa como prática de ensino ser um estímulo para a autoestima e para a autorrealização de alunos do curso superior conforme se apresenta a seguir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto de extensão CDHU que se configurou como campo de estudo nesta pesquisa oportunizou a análise do uso da pesquisa como prática de ensino juntamente com a ação da extensão possibilitando assim a sistematização das três funções básicas da Uniabeu. Neste sentido, buscou-se uma experiência processual tendo a pesquisa como recurso, o ensino como processo e a extensão como destino dos resultados. Além dos resultados pedagógicos e didáticos do uso da pesquisa como prática de ensino, buscou-se a possibilidade de que essa prática pudesse gerar resultados para a sociedade por meio dos discentes pertencentes ao campo de estudo, neste caso, o desenvolvimento da autoestima e da autorrealização, escopo do objetivo de estudo desta pesquisa. Nos resultados levantados foi possível constatar que a pesquisa como prática de ensino pode ser considerada como uma relevante possibilidade para o aumento tanto da autoestima quanto da autorrealização de discentes do curso superior. Da mesma forma esta prática também foi considerada como fonte de estímulo aos
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diversos fatores de sustentação usados no referencial teórico deste estudo. Em especial, os valores percentuais maiores nos fatores de crenças limitantes e controle de fatores externos vão ao encontro do discurso de alguns alunos pesquisadores no qual indicam que as mudanças ocorreram na sua capacidade interior. Entretanto, este estudo não tem como pretensão esgotar o assunto, na consciência de que ainda há muito que explorar. Buscou-se investigar os efeitos que a pesquisa poderia provocar na autoestima e na autorrealização dos discentes. Aprofundamentos deste estudo em áreas como a da cognição, a da ética, a da cidadania e a da política poderiam contribuir para maiores conclusões do efeito da pesquisa como prática de ensino. Como reflexão final, e talvez questão de partida para alguns desses outros estudos, apresenta-se a importância da necessidade dos professores vencerem as suas próprias crenças limitantes que os impedem de se verem como pesquisadores, de estimularem suas autoestima e autorrealização em direção a “uma condição essencial primeira [de] que profissional da educação seja pesquisador [...] mudar a definição do professor como perito em aula, já que a aula que apenas ensina a copiar é absoluta imperícia” (DEMO, 2003, p.2).
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MARCONI, Marina de A.; LAKATOS, Eva M.. 7ª ed..Técnicas de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 2008. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. O’CONNOR, Joseph. Coaching com PNL: como ser um coach master. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2006a. __________, Joseph. Manual de Programação Neurolinguística: um guia prático para alcança os resultados que você quer. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2006b. PEIXOTO, Maurício A. P.; GUIMARÃES, Maria Teresa. Aprender a aprender. Rio de Janeiro: Campus, 2005. PEREIRA, Luciano. Vingança adiada. In: Discutindo Filosofia. São Paulo: Escala Educacional, 2006, ano I, nº 2. PONTE, Carlos R. Sales da. Vingança como vontade e ressentimento. In: Discutindo Filosofia. São Paulo: Escala Educacional, 2007, ano II, nº 8. SANTOS, Julio C. Furtado dos. Aprendizagem significativa. Porto Alegre: Mediação, 2008.
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Sobre o organizador Marcelo Mariano Mazzi
Marcelo Mariano Mazzi é graduado em História, mestre em Educação e Gerente de Pós-graduação, Pesquisa, Extensão e Responsabilidade Social do UNIABEUCentro Universitário. Com vasta experiência no ensino superior, também faz parte do quadro de avaliadores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira- INEP.
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Pesquisa em Foco PROAPE-Pesquisa Volume 1
Marcelo Mariano Mazzi Org.
UNIABEU- Centro Universitário