Conto: Taí

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FORTALEZA - CE, DOMINGO - 10 DE FEVEREIRO DE 2013

7 CONTE ESSA CANÇÃO

Taí

A fantasia de um amorr que ecoa pelo tempo. Um pierrot errot que guarda a mania de gostar de alguém

Urik Paiva ESPECIAL PARA O POVO

N

ós dois temos a mesma idade e somos vizinhos desde sempre. Nossos pais se conheceram num baile qualquer de clube e eram melhores amigos de carnaval e de vida; tanto que resolveram morar próximos, pelas bandas do Jacarecanga. Sou doido por ela, pelo perfume dela, pelas mãos dela, pelo jeito dela pronunciar a palavra “folia”. Os pais lhe puseram o nome de Lorena, para a chamarem de Loló. Eu amo Loló. “Pedro, vem cá me alisar os cabelos”, ela me grita com seus treze anos, mas é um imperativo tão carinhoso, que é como se eu recebesse ordens para ingressar no Paraíso. E fico lá, mexendo naqueles cachos durante horas, e nada mais no mundo existe. Então ela se cansa e me manda buscar a manga mais bonita da mangueira, que também é a mais alta e me faz despencar no chão e quebrar a perna. Como não digo um “ai” sequer de dor, ela apenas pega a fruta da minha mão e diz apressada que vai chupá-la no caminho da loja de fantasias. Meu pai decidiu que nesse carnaval de 1930, por causa do gesso e dos curativos, eu sairia de doente. Ele, louco, foi de louco, dentro de uma camisa de força. Mamãe era nossa enfermeira. Os vizinhos se fantasiaram de família real, deixando nossa temática hospitalar no chinelo. Eu não gostava de Carnaval, mas fingia que sim. Por causa dela. O Carnaval era sua grande paixão; então devia ser a minha também. E como a princesa dança pelo salão! Como rodopia ao som da grande música daquele carnaval: “Pra você gostar de mim - Taí”. A voz é de uma tal de Carmen Miranda, e é a primeira música de Carnaval que me soa bem; fico em polvorosa quando ouço “você tem, você tem, você tem que me dar seu coração”. Olho para Loló dançando e canto “você tem, você tem, você tem que me dar seu coração”. E mais alto quando ela puxa minha cadeira de rodas do canto e me faz girar pelo salão. Penso que é agora que ela vai me dar seu coração, mas de repente me abandona para ir ter com um rapazinho norteamericano, o filho do sócio do pai dela. Eles dançam juntos, enquanto sou pisoteado pelos bêbados do baile. A cada dia fico mais apaixonado por Loló. Um ano se passou e a música de Joubert de Carvalho é novamente o sucesso do carnaval, mas agora eu já aprendi outros versos, como os que dizem que se Deus me ajudasse eu não pensaria mais no amor. Loló chega ao baile acompanhada do gringo, seu namorado. Ela me beija a bochecha, diz “Pedro, você ainda é meu favorito” e sorri. Está de Carmen Miranda e seu chapéu de frutas só ba-

ÃO GOSTAVA EU NÃO RNAVAL L, MAS DE CARNAVAL, A QUE SIM. FINGIA AUSA DELA. O POR CAUSA AVAL ERA SUA CARNAVAL DE PAIXÃO; GRANDE O DEVIA SER ENTÃO HA TAMBÉM. A MINHA MO A E COMO CESA DANÇA DANÇA A PRINCESA PELO SALÃO!

lança para o loiro dos olhos azuis. Minha fantasia é de cisterna, um desastre confeccionado por minha mãe. Alguns bailes depois, estamos com 22 anos. Faço Direito e ela se casou com o galego, mas quero acreditar que eles são muito infelizes. Sou desmentido por seu sorriso frenético de odalisca, rodopiando nos braços do marido. Estou de Rui Barbosa, mas definitivamente esta não é a melhor fantasia do baile de Carnaval do Clube dos Diários nesse ano de 1938. Tempos depois, o marido de Loló morre baleado por nazistas na Segunda Guerra, fato que comemoro vivamente. Vou até sua casa mais elegante possível com flores e um anel de noivado. Faço mil declarações de amor e ela profere a pior frase que um ser humano pode ouvir: “Nós somos apenas bons amigos”. Ela diz isso com seus olhos de Colombina oblíqua e dissimulada. Já havia um anel de noivado em seu dedo. No Carnaval de 43, estava casada com um jornalista de esquerda famoso na cidade, seu antigo amante, e morava num palacete na Aldeota. Disse para mim, vestida de Cleópatra, que eu era seu melhor companheiro de Carnaval. Eu estava fantasiado de Rick Blaine, pois Ilsa Lund havia escolhido ficar com Vitor Lasz-

Trecho “Meu amor, não posso esquecer... Se dá alegria, faz também sofrer A miha vida foi sempre assim Só chorando as mágoas que não tem fim” Joubert de Carvalho

lo. Desfilamos os três na Senador Pompeu; os dois se beijam e eu falo baixinho: “Here’s look at you, kid”; e completo: “Meu bem, não faz assim comigo, não”. Havia mais lágrimas minhas pelo chão do que confete e serpentina. Os anos se passam. Nossos pais foram morrendo com o tempo – o que jamais nos impediu de brincar Carnaval. Mesmo tantos fevereiros lhe marcando a pele, Loló se mantém firme na alegria. Eu havia tido alguns relacionamentos, mas nada que pudesse me tirála da cabeça. Alguns maridos depois – e sem nunca ter engravidado, ela está devidamen-

te casada com um advogado comunista. Estoura o Golpe de 64, logo após o carnaval, no ano em que os dois haviam se fantasiado de Frida Khalo e Diego Rivera. Eles vão para a luta armada e eu a vejo muito pouco durante os anos seguintes, e somente no Carnaval: uma vez em 70, como hippie, e como gótica em 81. As minhas fantasias vão ficando cada vez mais casmurras: eu saia vestido como enxadrista, enciclopédia ou armário, por exemplo. No primeiro Carnaval após a abertura política, resolvo tentar impressioná-la me fantasiando de Gorbachev (raspo o cabelo e pinto uma mancha na careca), mas eu devia ter escolhido algo mais nacional. Nesse 86, ela está fantasiada de Lula. Conta que voltou viúva do exílio em Cuba. Combinamos de voltar a sermos vizinhos, embora tenhamos passado os carnavais seguintes fora de Fortaleza, em toda a sorte de lugares: Aracati, Paracuru, Recife, Olinda, Salvador, Rio de Janeiro. Querendo fugir dos clichês, ela costurava fantasias muito peculiares para nós: livro-peixe, gueixa psicodélica, Goethe de saias, Titanic lilás, refrigerador cubista, amor. Amor é uma mania que as pessoas têm. Eu me divertia, mas era tudo muito triste, pois não éramos amantes, apesar de eu já ter feito tudo para ela gostar de mim.

ELA COSTURAVA FANTASIAS MUITO PECULIARES PARA NÓS: LIVROPEIXE, GUEIXA PSICODÉLICA, GOETHE DE SAIAS, TITANIC LILÁS, REFRIGERADOR CUBISTA, AMOR

Só voltamos a brincar carnaval em Fortaleza em 2010. Peço-a em casamento novamente, na Praia de Iracema, quando o Fausto Nilo está no palco cantando “Zanzibar”. Ela me diz então a segunda pior frase que um ser humano pode escutar: “Eu já lhe disse que nós somos apenas bons amigos”. As estrelas não são azuis. Nosso primeiro beijo na boca é um roubado, quando ela está dormindo em meu quarto, de ressaca, na quarta de cinzas de 2037. Loló acorda de repente e diz que sou muito apressado e que talvez um dia ela ainda se apaixonasse por mim. Fico me perguntando quando

ela vai me entregar seu coração, pois acho que não temos mais tanto tempo. Estamos com 305 anos e somos vizinhos na réplica de Fortaleza construída em Marte (a Terra havia se tornado inviável). Quando fevereiro chegar, sairemos pelo Centro de nossa cidade marciana pilotando um trio elétrico voador chamado Expresso 2222, com hologramas de figuras carnavalescas como Carmem Miranda, Dodô, Osmar e Gil. Mas Loló fica doente e é internada ainda no fim de janeiro. Passo a morar na sala de espera do hospital. Num dia de fevereiro, uma terça de Carnaval, o doutor vem dizer que ela havia morrido. Ele conta que seu último suspiro foi um assopro numa língua-de-sogra. Dias depois recebo a visita do testamenteiro de Loló, que me entrega um pote de vidro. Diz que ela havia deixado expresso no testamento que, após sua morte, seu coração deveria ser entregue a mim, mergulhado numa solução de formol e álcool. Estava em minhas mãos, dentro do pote. Fecho os olhos e imagino-a me dizendo, com seu jeito rápido e provocativo: “Taí, não era isso que você queria?”. Eu tinha finalmente o coração de Loló. Urik Paiva é escritor.


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