Caravana de estudantes secundaristas de SP em visita Ă s escolas ocupadas do Rio de Janeiro, na semana de abertura dos Jogos Olimpicos 2016
foto Murilo Salazar
ão estranhe a ausência de notícias sobre os acordos de gabinetes nas páginas que preenchem esta revista. É impossível escapar do momento histórico em que estamos inseridos, mas é necessário fugir das narrativas hegemônicas que estão estampadas nas manchetes dos jornais. A mudança não virá de quem ocupa as cadeiras que pertencem aos mesmos interesses que as criaram. Os que lideram o suposto embate dos altos círculos da política continuam a passar por cima dos braços e pernas de quem dizem defender. Daquelas e daqueles que, de fato, construíram este país. A locomotiva do progresso segue sua marcha e os corpos resistem sob suas rodas. Buscamos, nas páginas a seguir, retratar algumas das histórias de quem sempre foi oposição. Questão de sobrevivência. No front, estão as catadoras de materiais recicláveis de uma cidade que produz 20 mil toneladas de lixo por dia. As pretas e pretos contrariando estatísticas e o silenciamento. As ocupações das escolas públicas, que mostram como o ensino precisa se transformar. As famílias da última favela do centro de São Paulo, resistindo ao cerco de fogo que as rodeia. Nos quatro anos de Vaidapé, nosso maior aprendizado foi entender que crescer com junho de 2013 é não esquecer das Mães de Maio de 2006. E reconhecer que a resistência também é rimada pelas minas, pixada nos muros da cidade, dançada na capuêra. Nossa contribuição nesta luta é fazer circular gratuitamente a publicação que você agora tem em mãos. Boa leitura. Informação não é mercadoria.
REDAÇÃO
André Zuccolo Carolina Martins Clara Lisboa Gil Reis Henrique Santana Isadora Souza Iuri Salles Jay Viegas Julia Mente Paulo Motoryn Patricia Iglecio Thiago Gabriel Victor Santos FOTOGRAFIA
André Zuccolo Jay Viegas João Miranda Julia Mente Murilo Salazar Paula Serra Rafael Prado William Oliveira COMUNICAÇÃO
Deco Napchan João Miranda Ubirajara Iglecio PROJETO GRÁFICO
Fernando Imai DIAGRAMAÇÃO
Fernando Imai, Jay Viegas, Vinícius Pereira ILUSTRAÇÃO
Beatriz Navarro OEL Linoca Souza Lola Ramos Pedro Mirilli Pedro Pessanha Tauan Gon CURADORIA ARTÍSTICA
Pedro Alves Pedro Mirilli COLABORADORES
Gabriel Carneiro Isis Naomí Jornalistas Livres Lira Ali Mamana Foto Coletivo Mídia Ninja Nina Sodré REVISÃO
Verônica Miranda IMPRESSÃO
Gráfica Cillpress Papel Couché Fosco; 90g; 170x240mm; 64 páginas 5.000 exemplares
Realização
crônica Jay Viegas ilustração Pedro Pessanha
8
VAI
texto Thiago Gabriel fotos André Zuccolo ilustração Yandi
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MEU TRAMPO: CATADORA
poema Lira Ali ilustração Beatriz Navarro
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NÓS POR NÓS
texto Henrique Santana fotos Jay Viegas ilustração Oel
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NA ÚLTIMA FAVELA DO CENTRO
relato Cripta Djan entrevista Iuri Salles fotos Rafael Romo Prado
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QUATRO PIXAÇÕES HISTÓRICAS DO CENTRO DE SP
texto Carolina Martins e Clara Lisboa fotos Paula Serra
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MALOCAS RESISTEM
texto Jay Viegas colaboração Isis Naomí e Gabriel Carneiro
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COISA DE PRETO: TECNOLOGIA E RESISTÊNCIA
por Vaidamina fotos Paula Serra
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VAIDAMINA
texto Victor Santos e Thiago Gabriel
40
FREQUÊNCIA COMUNITÁRIA
texto Paulo Motoryn fotos William Oliveira
46
REDUÇÃO É SOLUÇÃO? A MAIORIDADE PENAL EM DEBATE
fotos Julia Mente
51
ENSAIO: RIO DA VIDA
texto e fotos André Zuccolo
56
SER CAPUÊRA PARAGUASSU, ANGOLA & LIBERDADE VAIDAPÉ | EDIÇÃO_05 2016 3
8 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
VAI
crônica Jay Viegas ilustração Pedro Pessanha
ESCREVE O QUE TE PILHA, POESIA, HISTÓRIA, RIMA, ESCREVE PELA AUTO-ESTIMA, PRA ENTENDER TUA CONDIÇÃO DE FILHA, TUAS ARMADILHAS E TUA FAMÍLIA. ESCREVE O QUE VIER, O QUE À LUZ DA VELA INSPIRA, ESSA CIDADE QUE ME PIRA - HOJE VI VIVI OREI OUVI SENTI, ONZE MILHÕES DE IDEIAS, ALGUMAS ATÉ ME LEMBRARAM DE TI. ALGUMAS PARECIAM SER COISAS QUE JÁ ENTENDI E OUTRAS EU NEM PERCEBI, ATÉ PARECIA QUE EU NÃO ERA DAQUI. A RIQUEZA SORRIU CONTENTE E EU ARDI COM A IRONIA DA LUZ DO FLASH QUE REGISTRAVA A INSÔNIA DA DESIGUALDADE, A FOME, A NOSSA VERGONHA - A POBREZA É FEIA PORQUE FAZ PARTE DA TEIA, PRISÃO DO QUE NUTRE O SANGUE DA MINHA E DA TUA VEIA. O DOCE GOSTO DO VINHO DA ÚLTIMA CEIA, PRODUZIDO EM MASSA PARA A MASSA ENVASADA EM ALGUM TIPO DE ESTEIRA ENQUANTO TU OLHAVAS ESTRELAS E BEBERICAVA BESTEIRAS, TARDES OU VIDAS INTEIRAS, TERÇAS OU SEXTAS-FEIRAS, TANTO FAZ - QUAL FOI A ÚLTIMA VEZ QUE TU PERDEU AS ESTRIBEIRAS? SAI PRA RUA, VAI PRA NOITE, FICA NUA, VISTE A LUA? NÃO DEU. SÓ VI A CHUVA, CAIU COMO UMA LUVA E ESCORREU PELOS MEUS DEDOS COMO NOSSO RIO DE ÁGUAS TURVAS, NOSSO RIO QUE CORRE SEM CURVAS, CERCADO POR ESCOLTAS ARMADAS COM DENTES BRILHANTES E UNHAS SUJAS.
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LINOCA SOUZA 27 ANOS
“PENSO QUE O ARTISTA TEM UMA OBRIGAÇÃO COM A SOCIEDADE. OBRIGAÇÃO DE REGISTRAR E EXPRESSAR SENTIMENTOS, CAPTANDO EMOÇÕES E FAZENDO COM ELAS O QUE ESTA SOCIEDADE NEM SEMPRE CONSEGUE. PORÉM, O ARTISTA QUE VEM DA PERIFERIA, O QUE A RETRATA, OU O QUE FALA DE TUDO AQUILO QUE É EXCLUÍDO, TEM UMA OBRIGAÇÃO DUPLA. ALÉM DE EXPRESSAR SENTIMENTOS, ESTE ARTISTA TEM A FUNÇÃO DE REEDUCAR ESTA MESMA SOCIEDADE QUE EXCLUI. ISSO EXIGE UMA VIDA DE RESISTÊNCIAS E OLHOS ATENTOS SEMPRE, UMA VEZ QUE UM ARTISTA É ARTISTA O TEMPO INTEIRO.”
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por Thiago Gabriel fotos André Zuccolo ilustração Yandi
‘SOU EU QUEM TIRA O LIXO PRO SEU CARRÃO DE LUXO ANDAR NA CIDADE’
*DULCINEIA, CATADORA DE MATERIAIS HÁ QUASE DUAS DÉCADAS
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venida Henrique Schaumann, zona oeste de São Paulo. Os milhares de motoristas que se afunilam no trânsito pouco sabem que logo abaixo deles, sob o viaduto Paulo VI, funciona a mais antiga cooperativa de catadoras e catadores de materiais recicláveis da América Latina. Há 33 anos, a Coopamare (Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis) atua no mesmo local fazendo a coleta, triagem e reciclagem de resíduos, em uma cidade que produz cerca de 20 mil toneladas de lixo diariamente. O terreno foi informalmente cedido aos catadores em 1989, durante a gestão de Luiza Erundina como prefeita. Sem a autorização em papel, porém, a Coopamare sofreu ao longo das gestões posteriores a ameaça do despejo. Durante o governo de Gilberto Kassab na Prefeitura, a concessão de uso do espaço foi finalmente oficializada para o funcionamento da cooperativa.
Quem nos conta a história da Coopamare é Maria Dulcineia Silva Santos, uma das 28 pessoas que trabalham atualmente no local com coleta e reciclagem de resíduos. Natural do município de Imperatriz, no Maranhão, Dulcineia conhece, como poucas, a história da cooperativa e a realidade dos catadores e catadoras em São Paulo. Há 19 anos, veio para a capital paulista trabalhar como doméstica. Antes, já havia deixado a roça para tentar a sorte na mesma profissão em uma cidade grande do estado natal. “Fiquei quase 15 anos trabalhando para uma família só”, conta, sobre a experiência ainda no nordeste, que chegou ao fim com a possibilidade de vir para São Paulo. “Era muito trabalho e pouca remuneração. Aí veio a ideia de vir pra cá, tinha umas amigas que já estavam aqui e me convidaram. O salário era melhor, assinavam carteira, aí eu vim”. Ao chegar em São Paulo, Dulcineia conta que gostou da cidade, e se apavorou apenas com o frio: “A primeira noite quase congelei”. A grande dificuldade, porém, não foi a baixa temperatura, mas a morte de sua mãe, poucos dias após a chegada. “Fiquei meio revoltada que eu nunca mais ia ver ela… Mas assim, era coisa que tinha de acontecer.” Após a morte da mãe, ela afirma que passou por um período difícil enquanto tentava se adaptar à cidade: “O salário de doméstica não dava porque eu mandava pra minha família para ajudar. Nessa época eu gostava muito de beber também, de balada. Fiquei um ano de doméstica, mas nos meus finais de semana, de noite, eu catava latinha e vinha vender aqui na Coopamare. Porque eles já pagavam na hora”. A convivência na cooperativa e a possibilidade de trabalhar com mais autonomia fizeram com que apostasse na nova profissão: “Depois de um ano no trabalho de doméstica eu saí e fiquei na Coopamare em definitivo. Fiquei morando na rua uns seis, sete meses, bebia muito, mas sempre trabalhando aqui”. Dulcineia encontrava um cantinho para descansar embaixo da carroça toda noite, “não que nem esse povo que dormia em qualquer lugar, sempre procurava um cantinho afastado, lá no Jardins”. Foi nesse período que a cooperativa tornou-se mais do que seu local de trabalho. “Comecei a frequentar a Coopamare direto. Tinha uma assistente social que me convidou para as reuniões que tinha de quinta-feira aqui. Graças a essas reuniões eu saí dessa vida.” As lembranças são de um tempo em que a população e o poder público não facilitavam o trabalho dos catadores na cidade. “Na época que eu comecei, a comunidade não aceitava muito os carroceiros. Fui muito xingada de macaco, burro de carga, cavalo, égua, jogavam restos de comida pra mim, tudo isso eu passei quando eu cheguei aqui, no comecinho. Hoje em dia o pessoal passa, cumprimenta. No meu ver, a sociedade tá vendo o catador como um ser humano mesmo, uma pessoa que tá ali fazendo o seu trabalho, que eu tenho certeza que é digno.” VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 13
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Hoje, por conta dos 52 anos e as dores que carrega do tempo de carroceira, Dulcineia fica na estação de separação e triagem dos resíduos coletados. Ela foi presidenta da Coopamare durante quatro anos, a partir de 2011. Neste período, entrou em contato com as dificuldades que se apresentam ao buscar apoio do poder público para uma cooperativa autogestionada. “Eu acho que o poder público ainda vê a gente como um ‘João Ninguém’. Nós não recebemos um centavo de ajuda aqui. A despesa do espaço é mais ou menos uns 10 mil reais por mês.” Os resíduos que são separados para reciclagem na Coopamare não entram nas estatísticas oficiais do município, que patrocina seu próprio programa de Coleta Seletiva, desde 2007. Sobre a atuação municipal, Dulcineia aponta: “Eles não fizeram o projeto de Coleta Seletiva com os catadores. Se eles tivessem feito com a gente, acho que teria dado mais certo. Fizeram dentro de gabinete”. Os problemas na concepção do projeto municipal impedem uma das maiores cooperativas do país de se tornar parte das instituições conveniadas pela Prefeitura. Dulcineia explica: “Nunca aceitamos fechar com a Prefeitura por causa do caminhão compactador. Aqui, a gente não conseguiria atender a meta deles, que é de seis “EU COMECEI caminhões por dia. Nós não temos estrutura pra isso, e eles não CATANDO NA CABEÇA quiseram fazer uma estrutura melhor. Só queriam enfiar aqueles ca- OU EM CARRINHO DE minhões aqui juntando tudo, inclusive orgânico. A comunidade nos SUPERMERCADO. AÍ apoia em tudo que precisamos, então a gente pensou muito que ia COMECEI A CATAR atrapalhar com mau cheiro, com inseto”. MAIS MATERIAL O atual programa de Coleta Seletiva de São Paulo conta com 31 E DAVA MUITAS centrais de triagem de resíduos em 23 cooperativas conveniadas. Quando perguntamos à Dulcineia se seria bom para a Coopama- VIAGENS. TINHA re fazer parte do programa, ela afirma: “Seria, e olha que a gen- UM PESSOAL NA te já propôs várias sugestões, vários jeitos. Até de usar os nossos COOPAMARE QUE próprios veículos, para eles só bancarem gasolina, motorista essas FAZIA CARROÇA. coisas… Estamos lutando. Quem sabe um dia a gente consegue fa- ENCOMENDEI UMA, zer um convênio que seja decente tanto pra eles quanto para nós. PAGUEI EM DUAS Porque eles só veem o lado deles, né?”. Apesar das dificuldades, a Coopamare ainda possibilita uma recicla- VEZES E DE LÁ PRA CÁ PUXEI CARROÇA gem de vida para muitas pessoas através do trabalho. A coordenação do espaço e a mão-de-obra são DIRETO. DURANTE UNS responsabilidade de todos que trabalham ali, que 10 ANOS MAIS OU recebem mensalmente o valor total do montante MENOS” arrecadado dividido pelo número de horas trabalhadas por cada um. “Cooperativa é muito mais saudável para você trabalhar, é mais horizontal. Você tem mais liberdade de espaço, de agir, de fazer as coisas certas.”, conta Dulcineia. Sobre a profissão, ela não pensa duas vezes antes de responder se gosta do que faz: “Adoro. O que eu mais gosto é que a gente é livre, num tem patrão. Lógico que tem obrigação com a cooperativa, tem documento pra assinar. Mas de alguém chegar e falar: ‘faz isso, tá mal feito, faz de novo’, nós não temos esse problema. É essa parte que eu gosto do meu trabalho.” VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 15
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NÓS POR NÓS poema Lira Alli ilustração Beatriz Navarro
MILHARES MILHÕES DE NÓS QUE SE ENTRELAÇAM NA VIOLENTA TRAMA | HISTÓRIA DA NOSSA GENTE POVO DE POVOS DE TODOS OS CANTOS DO MUNDO
MOVIMENTO EM MARCHA PERMANENTE FAZENDO REVOLUÇÃO A CADA AÇÃO FORMAÇÃO ORGANIZAÇÃO ACAMPAMENTO NA BEIRA DA ESTRADA OU NO CORAÇÃO DA CIDADE EM CADA RUA ESCOLA ARENA PRAÇA OCUPADA POR UM IDEAL UMA FESTA UMA PROPOSTA DE AMOR EM LEVANTE JOVENS | CADA VEZ MAIS JOVENS SEM SABER DO POSSÍVEL FAZEM FAZENDO, SABEM SABENDO UMA NOVA ALVORADA SEM CAPITAL COLONIAL PATRIARCAL SISTEMA UMA TERRA ONDE A VIDA TEM VALOR ABSOLUTO
EM RODA CIRANDA CARNAVAL COMUNHÃO SOB A LUZ DA LUA SALPICANDO O CHÃO É RESPONSA, É PARCERIA, É TUDO PARENTE QUEM RESISTE COM FÉ NO COLETIVO COMO QUEM PLANTA PARA QUE COLHAM AS PRÓXIMAS GERAÇÕES COMO QUEM AMA A HUMANIDADE.
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O QUE É O RAP? foto: João Miranda
MINAS NO MIC
LÍVIA CRUZ RAPPER “
ão existe inserção da mulher no hip hop. A gente tá cavando na unha o nosso espaço e já temos algum, mas precisamos de mais. E nós que vamos construir ele, ninguém vai dar pra gente. Inclusive porque ninguém deu o espaço do hip-hop para o hip-hop, tipo: ‘vocês chegaram, tá tudo bem’. Não tá tudo bem! Até hoje a gente é música de bandido, nós somos os vagabundos que tão na rua rimando, né? Num tá mamão, pode ser que esteja bonitinho pra galera do YouTube, mas pra nóis que estamos aqui num é isso tudo também não. A gente ainda tá nessa construção, e continuaremos.” Assista a entrevista completa com Lívia Cruz para a série O que é o Rap? da Vaidapé em vaidape.com.br
NA ÚLTIMA FAVELA DO CENTRO por Henrique Santana fotos Jay Viegas ilustração Oel
ENTRE OS EDIFÍCIOS DE SP, UMA COMUNIDADE RESISTE AO CERCO DA ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA, DA POLÍCIA E DA PREFEITURA. ALI DENTRO, ALESSANDRA CONTA SUA HISTÓRIA, COSTURADA PELAS LUTAS DA FAVELA DO MOINHO lessandra Moja nasceu na zona norte de São Paulo. Hoje ela é uma das cerca de 1.500 pessoas que vivem na Favela do Moinho, a última comunidade que sobrou no centro da cidade após uma série de políticas de remoções e valorização da região. Lá, diferentes caminhos foram percorridos pelos moradores até a chegada na ocupação. O de Alessandra começou há cerca de 25 anos, durante sua infância na Vila Nova Cachoeirinha. Filha de nordestinos, quando era criança viu sua família sofrer com a crise inflacionária que abalou o Brasil no início dos anos 1990. A situação ficou tensa, seu pai vendeu tudo que tinham e se mandou com mulher e filhos para o Ceará, sua terra natal, na busca de tentar uma vida melhor. Alessandra começa a narrar sua trajetória a partir daí, em uma bate papo na laje do recém construído cinema do Moinho. “A minha história é essa. A história de uma família pobre, com um sonho de conseguir uma vida melhor no nordeste que não virou. A gente chegou lá e passou muita fome, muita necessidade. Tivemos que voltar para São Paulo, mas quando chegamos aqui não tinha nem onde morar. Nove crianças e um casal. Para onde vai? Não tem onde ir, entendeu? Foi aí que começamos a morar na rua.”
Na volta para o sudeste, a família se alojou embaixo do viaduto Bresser, na região da Mooca, início da zona leste da cidade. Foi quando conheceram um catador de materiais recicláveis que lhes apresentou a incipiente ocupação da Favela do Moinho. Na época, cerca de 30 barracos compunham a comunidade, em um terreno vazio sob o viaduto Engenheiro Orlando Murgel, entre os bairros de Campos Elísios e Bom Retiro. Situado entre duas linhas de trem, o local era um antigo moinho de trigo da tradicional família Matarazzo. O terreno foi passado para frente como forma de sanar dívidas e, a partir dos anos 90, a área se tornou palco de uma disputa jurídica que corre até hoje na justiça para definir quem é o verdadeiro dono. O crescimento da comunidade aconteceu no final da década de 90, sobretudo com as políticas de revitalização do centro de São Paulo,
“ANTES A GENTE JÁ TINHA TENTADO ENTRAR, MAS FAZIA DOIS, TRÊS BARRACOS E A CPTM VINHA E BOTAVA FOGO” que acompanharam uma série de remoções de pessoas que habitavam prédios e cortiços da região. Alessandra explica que, por conta desses desalojamentos, a população da favela aumentou, com ocupações dentro e ao redor do prédio, onde funcionava o moinho de trigo. “Antes a gente já tinha tentado entrar, mas fazia dois, três barracos e a CPTM vinha e botava fogo”, diz. A TRETA COM A PM Os conflitos entre os moradores do Moinho e a polícia são de longa data. Alessandra conta
1990
2000
2008
O COMEÇO DA FAVELA DO MOINHO
INÍCIO DA OCUPAÇÃO DO TERRENO
MORADORES GANHAM DIREITO DE PERMANECER NO LOCAL
Não se sabe a data exata, mas as primeiras famílias que começaram a montar barracos no Moinho chegaram no local por volta de 1990. Alessandra chegou com sua família quatro anos depois, em 1994.
Com uma série de desapropriações no centro da cidade, o número de famílias que buscava abrigo no Moinho aumentou e os moradores entraram no terreno e no prédio do Moinho Matarazzo.
Os moradores resolveram defender o terreno judicialmente e entraram com um pedido de usucapião coletivo na justiça. O juiz afirmou que os moradores poderiam permanecer no local enquanto o processo não julgasse quem é o dono da área.
que, antes da chegada das famílias, a polícia fazia uso do terreno como cemitério clandestino. “Eu lembro que quando eu era criança tinha várias galerias no subterrâneo. Os policiais vinham e jogavam os corpos lá dentro. Então a treta é até por causa disso. Como que é um lugar deles e a gente entra?” Depois da ocupação, as abordagens policiais na comunidade nunca mais cessaram. “Cada dia eles vêm aqui com uma desculpa diferente. Acham que tudo que acontece no centro é a Favela do Moinho. Se roubam lá em Santa Cecília, foi a Favela do Moinho. Se roubam em Higienópolis, foi a Favela do Moinho...” O rancor de Alessandra com a corporação não é descabido. Além da vigília constante sobre a favela, ela mesma já viveu um episódio dramático com a PM. Em 2003, com apenas 15 anos, seu irmão foi assassinado pelas armas policiais. “Foi morto ali atrás, perto da Estação da Luz. Arrastaram ele na linha do trem e deram 18 tiros nele.” Questionada sobre o motivo, ela retruca: “Polícia. Polícia mata cidadão na favela por que? Porque é favelado”. DEZ/2011
FOGO NO MOINHO Além dos conflitos com a polícia, a história de Alessandra caminha lado a lado com outro inimigo constante do Moinho: o fogo. Nos últimos anos, uma sucessão de incêndios tirou o sono dos moradores da comunidade. O maior deles aconteceu em dezembro de 2011. As chamas destruíram o edifício que ficava no terreno e os barracos ao redor, o que totalizou mais de 700 famílias desabrigadas e, segundo os dados oficiais, três mortes. Alessandra questiona os números: “Teve muita coisa que não foi divulgada. Eles falavam que era um prédio abandonado, mas tinha muita gente morando lá que não teve tempo de sair. Quem tava perto do prédio ouvia os gritos lá de cima. Como que morreram só três?”. Ela estima que cerca de 30 pessoas perderam a vida naquele dia. A suspeita dos moradores é de que o incêndio foi criminoso, sobretudo pela velocidade com que as chamas se espalharam. “Eu nunca vi tijolo pegar fogo. Até hoje não teve perícia, não teve nada. E lá foi surreal, um fogo de combustão mesmo”, denuncia Alessandra.
JAN/2012
JAN/2012
PRIMEIRO GRANDE INCÊNDIO NO MOINHO
PREFEITURA DEMOLE O EDIFÍCIO MOINHO MATARAZZO
O ‘MURO DA VERGONHA’ DE KASSAB
O fogo tomou conta do prédio e de parte dos barracos. Nessa época, a favela já totalizava mais de 1200 famílias, sendo que ao menos 450 viviam dentro do edifício. Os moradores acreditam que o incêndio foi criminoso.
Com 800 quilos de dinamite, o imóvel foi implodido. A estrutura do edifício não cedeu e o que sobrou foi derrubado por máquinas. A demolição gera suspeitas sobre a alegação de que a estrutura havia sido comprometida pelo incêndio.
Antes da demolição, foram colocadas duas fileiras de tapumes entre a comunidade e a área que havia pegado fogo. Os mesmos tapumes serviram como suporte para a Prefeitura construir um muro dividindo a favela ao meio.
INCÊNDIOS EM FAVELAS DE SP
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INCÊNDIOS
MÉDIA DE MAIS DE 100 POR ANO 2008
2011
Em janeiro do ano seguinte, a Prefeitura sob a gestão Kassab, implodiu o prédio que havia sido tomado pelas chamas e construiu um muro de 55 metros de extensão separando o Moinho das ruínas que sobraram na antiga área. Para Alessandra, a demolição foi “uma ocultação de cadáver”, que teria servido também à especulação imobiliária, uma vez que os moradores não conseguiram retornar para o terreno que ocupavam. No mesmo ano, em 2012, outro grande incêndio tomou o Moinho, deixando mais um morto e outros 300 desabrigados. Na soma dos dois, foram ao menos 800 famílias que ficaram sem moradia, cerca de 3.200 pessoas. Dessas, apenas 450 pas-
saram a receber uma bolsa aluguel da Prefeitura. Com a sucessão de tragédias, o Corpo de Bombeiros emitiu, ainda em 2012, um laudo que apontava “a necessidade imediata” de criação de uma rota de fuga, que só seria possível com a demolição do muro. Nada foi feito até o ano seguinte, quando os moradores resolveram derrubar a parede de concreto construída por Kassab com as próprias mãos. A CHEGADA DE HADDAD “Haddad, você sustenta o muro da vergonha do Kassab”, era o que se lia na parede que dividia o Moinho antes de ser derrubada pela comunidade. A eleição do prefeito, em 2012, se comprometeu em atender reivindicações históricas do Moinho. No entanto, os anos de Haddad à frente da prefeitura se resumiram a um jogo de cobranças e promessas descumpridas pelo prefeito. O último ato desta saga foi em dezembro de 2014. Após muita pressão do Moinho, o prefeito foi à comunidade acompanhado de técnicos da Sabesp e da Eletropaulo. Haddad garantiu que, em um mês, as obras de infraestrutura bá-
SET/2012
AGO/2013
DEZ/2014
O SEGUNDO GRANDE INCÊNDIO
NA MARRETA, MORADORES DERRUBAM O MURO
HADDAD SE COMPROMETE A INICIAR OBRAS NO MOINHO
A versão oficial diz que o incêndio foi causado por uma briga de casal. Após o conflito um deles teria ateado fogo à casa. Alessandra acredita que o fogo foi criminoso, sobretudo pela velocidade que as chamas se espalharam.
Mesmo com um laudo emitido em 2012 pelo Corpo de Bombeiros, que pedia a derrubada do muro, nada foi feito pela Prefeitura. Assim, os moradores resolveram derrubar a parede de concreto com as próprias mãos.
“Vamos garantir saneamento, água, esgoto e energia. Isso é importante porque dá segurança, tanto do ponto de vista sanitário, quanto de combate a incêndios”, disse o prefeito aos moradores. As obras, no entanto, nunca aconteceram.
sica para o Moinho teriam início, disse ainda que “quando tudo estiver funcionando, eu venho aqui para tomar um café”. O ano virou, janeiro passou e nem um dedo foi movido pela Prefeitura. “Depois disso, eles nunca mais apareceram aqui”, conta Alessandra.”E pior: fomos várias vezes até a Prefeitura cobrar e ele nem recebeu a gente. Agora nem dialogam mais.” MOINHO: ‘CIDADE AUTÔNOMA’ Antes de Haddad, Kassab, dos incêndios e até da morte de seu irmão, Alessandra já havia sofrido com outros golpes na vida. Seu pai faleceu em 2000, logo no início da ocupação e, no ano seguinte, ela teve sua primeira filha. O pai da criança desapareceu, mas, ainda assim, ela continuou sua militância por moradia digna no centro, tornando-se uma das principais lideranças da Favela do Moinho. Até hoje, é ela que encabeça uma série de lutas na comunidade. “Luta autônoma, diferente de todos os órgãos. Sem partido, sem nada”, enfatiza. Em 2004, por exemplo, foi estruturada a
Associação de Moradores do Moinho, o que levou mais tarde à articulação da defesa jurídica do terreno. Anos depois, Alessandra se uniu com um grupo de jovens e, através de editais de fomento, conseguiu verba para equipamentos de filmagem, projeção e edição de vídeos para a favela. “Eu falo para eles: ‘essa aqui é a nossa arma’. Quando a polícia vem aqui, filmar é o único jeito que a gente tem de se proteger”. O passo seguinte foi a construção do cinema da comunidade, que aos finais de tarde de sexta-feira, lota para as exibições. “A ideia é que a gente faça ainda mais coisas aqui dentro”, continua Alessandra, “estamos querendo construir no futuro uma fábrica de tijolos. Se você precisa reformar o seu barraco, dá para ir lá e produzir. As sobras nós venderíamos para converter em dinheiro para a comunidade. Eu falo que aqui é uma cidade dentro da cidade. Uma cidade autônoma. O meu sonho é ver isso aqui se transformar em uma Chiapas, que nem é com os Zapatistas lá do México”.
A Vaidapé pediu esclarecimentos à Prefeitura, que enviou a seguinte nota através da Secretaria de Habitação: “A área da Favela do Moinho está localizada entre trilhos da CPTM e em parte debaixo do Viaduto Orlando Murgel, num contexto que impossibilita qualquer nível de urbanização. Em dezembro de 2011, um grande incêndio ocorreu na comunidade. Na ocasião, a Sehab entrou na área e cadastrou tanto as famílias que haviam perdido suas moradias no incêndio quanto as que lá permaneceram, totalizando 768 cadastros (domicílios). Nessa época, por volta de 450 famílias começaram a receber o auxílio aluguel para posterior atendimento em Unidade Habitacional. Em 2012, as famílias foram orientadas a comparecer na Central de Habitação para entregar comprovante de aluguel/moradia, totalizando um novo cadastro de 370 auxílioaluguel atualizado. Hoje existem 362 famílias em auxílio aluguel, com compromisso de atendimento no empreendimento Ponte dos Remédios (2º fase). Entretanto, é importante destacar que ocorreu um processo de reocupação na área durante esse período, mas não houve atualização de cadastro pela impossibilidade de entrar no local, uma vez que ele passou a ser dominado pelo crime organizado. Desde o final de 2014, as equipes sociais da Sehab têm sido impedidas de ingressar na área da favela, recebendo diversas ameaças. Por diversas vezes, a Prefeitura pediu providências ao governo estadual, responsável pela segurança pública e pelo combate ao crime ligado ao narcotráfico.” Questionada sobre as promessas feitas em 2014 por Haddad de instalar a infraestrutura básica na região, a Secretaria preferiu não enviar novas respostas. VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 23
4 PIXAÇÕES HISTÓRICAS DO CENTRO DE SP
por Cripta Djan
reportagem: Iuri Salles fotos: Rafael Romo Prado
DEMOS UM PEÃO COM O PIXADOR CRIPTA DJAN PELO CAÓTICO CENTRO DE SÃO PAULO PRA SACAR ALGUMAS DAS PIXAÇÕES MAIS IMPORTANTES DA REGIÃO, PELO OLHAR DOS PRÓPRIOS PIXADORES jan é um dos principais nomes do pixo em São Paulo. No início dos anos 2000, brilhou na modalidade de escalada, quando o pixador escala os prédios pelo lado de fora. Depois de ter atingido seus objetivos no rolê como pixador, passou a registrar a cena. Ele participou do premiado documentário “Pixo”, apresentou seu trampo em galerias de arte na Europa e é uma das lideranças do grupo de pixadores “Os Mais Fortes”. Se liga como foi o relato dele durante o rolê da Vaidapé pelo centro de SP EDIFÍCIO ITÁLIA: Esse prédio, pros caras da modalidade de pegar prédios, é a cereja do bolo. Os primeiros a pegar o topo do [edifício] Itália foram os pixadores dos anos 90, o Tchento, Xuim, Batalhão, Apache, agora os manos poucos caras pegaram esse prédio. Ali no topo foi o Jé, do “Mais Imundos”, e o “Dominius”, que não conseguiu terminar. Quando não termina conta também velho, só do cara ter subido e lá e tentado fazer, se ele tivesse deixado uma letra ali a galera já ia saber que alguém tentou.
24 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
É muito louca essa ocupação, poucos tiveram o prazer de “fazer” esse prédio. Na modalidade de prédios, tem poucos picos que sejam equivalentes ao Edifício Itália. Tem o Banestado e tem o Conjunto Nacional, que só o DI pegou e outro mano da zona sul. Antigamente tinha o lance que os caras não queriam pixar um prédio que já tinha sido feito por outro pixador. Os caras só queriam barato inédito. O DI mesmo nunca quis fazer o Itália, porque o Xuim já tinha feito e outros caras também.
UM PRÉDIO NA REPÚBLICA: Esse prédio tem uma janela de escalada, que é bem difícil de se fazer. O parapeito é descaído, não tem marquise. Ou seja não tem descanso, é realmente uma escalada bem difícil. E infelizmente foi aqui que um integrante do meu grupo, o Laelson, que assinava LCT, caiu do quinto andar. Foi muito triste, porque o moleque tava no auge do rolê dele, tinha feito várias escaladas naquele ano, estava se consagrando tanto no Cripta na história do pixo paulista. Foi uma noite de point, e é uma noite que não teve fim pra gente. O outro pixador que tava com ele ficou no quinto andar e teve que chamar os bombeiros, saiu na TV e tudo. Eles desciam um ajudando o outro cara, um se segurava na perna do outro se firmava bem na grade e descia.
PRÉDIO QUE ERA DA POLÍCIA FEDERAL: esse prédio aí era da Polícia Federal. Ele tá desocupado há quase uma década e representa bem a nossa ocupação aqui. Já tem quase 10 anos que abrimos um point dos pixadores aqui na Galeria Olido. E esse prédio aí, por ter sido da Polícia Federal, tem toda uma simbologia. Eu não cheguei a pixar ele, mas a galera do meu grupo pixou.Tá ali: “Os Mais Fortes”. Os primeiros a pegar o prédio foram o Gomes e o Jets [o finado Alex, assassinado pela PM de São Paulo enquanto pixava um edifício]. É como se o prédio fosse nosso cartão postal. Quando você chega no point, já dá pra ver ele. No dia que os moleques pegaram o prédio foi muito louco, porque tava todo mundo assistindo lá no point e a gente tava quietinho vendo os caras. Esse era um rolê pra se fazer de madrugada, mas eles fizeram no horário do point [21h], que é um pouco cedo. Olha como ele ficou. É um barato que todo mundo quer pixar, é o prédio da polícia federal. VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 25
A ESQUINA DA XAVIER DE TOLEDO COM A 7 DE ABRIL: Aqui era o famoso point do Anhagabaú, começou nos anos 90 com os office boys que paravam aqui pra almoçar. Quando eu passei aqui a primeira vez só tinha pixação até o primeiro andar. Aí a partir de 99, comecinho dos anos 2000 eu comecei a fazer bastante segunda [fazer a segunda é pixar o segundo andar do prédio]. E é tudo escalada, escalada de janela. A gente escala subindo por essas grades, pelo ar condicionado ou com o pé nas costas. Quando eu tava fazendo esse quarto andar juntou um monte de gente, até os seguranças ficaram admirando. Eles ficaram curiosos pra saber como a gente fazia aquilo. Até elogiaram quando a gente desceu. É uma das esquinas mais importantes de São Paulo porque tem pixações de 1997, até mais antigas talvez. Por exemplo, esse RGS do Telo, no primeiro andar. 26 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
“QUANDO VOCÊ SAI COM UMA LATINHA DE TINTA NA MÃO VOCÊ ESTÁ EXPOSTO A TUDO, TANTO AO RISCO DE ACIDENTE DURANTE UMA ESCALADA, QUANTO AO RISCO DA REPRESSÃO POLICIAL E DA SOCIEDADE. TEM VÁRIOS CASOS DE AMIGOS QUE FORAM ASSASSINADOS, SÓ QUE A GENTE NÃO CONSEGUE PROVAR. POR ISSO MUITA GENTE PARA”
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COMO FAZER LAMBE-LAMBE por João Miranda ilustração Fernando Imai
ESPALHE SUA MENSAGEM PELAS RUAS DA CIDADE: FOTOGRAFIAS, POESIAS, DESENHOS, CRÍTICAS. O LAMBE É LIVRE
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passe a cola na superfície que deseja colar e na parte de trás do lambe
1 Para fazer a cola, misture 250ml de água fria com 10 colheres de sopa de maisena adicione 750ml de água fervendo e misture durante 5min até engrossar
e em seguida adicione 2 colheres de sopa de vinagre
coloque tudo em um recípiente
imprima seu lambe Papel sulfite A3 ou a4 Impressão: jato de tinta laser
posicione o papel e passe mais uma camada de cola por cima do lambe
MALOCAS RESISTEM por Clara Lisboa e Carolina Martins fotos Paula Serra
NO BRÁS, PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA OCUPAM TENDA DESATIVADA DA PREFEITURA E RESISTE EM UMA COMUNIDADE AUTÔNOMA, ONDE VIVEM CERCA DE 150 PESSOAS
ocupação Alcântara Machado, localizada embaixo de um viaduto na região central de São Paulo, foi uma das Tendas de Assistência Social criadas pelo ex-prefeito Gilberto Kassab, em 2012. Com banheiros, chuveiro e cozinha coletiva, o equipamento tinha como objetivo fornecer uma estrutura mínima para pessoas em situação de rua. No final de 2015, porém, as tendas foram desativadas. Com isso, aqueles que eram atendidos pelo serviço ocuparam o espaço. Hoje, cerca de 90 pessoas utilizam desta infraestrutura e dormem em barracas ou colchões. Outras famílias montaram malocas ao lado de fora da tenda. No final de seu mandato, o prefeito Fernando Haddad anunciou que o terreno sofrerá reintegração de posse. Apesar das pressões, os moradores lutam pelo direito à moradia digna e buscam construir um modelo de organização horizontal. Todas as decisões da ocupação, por exemplo, são definidas em assembleias, que acontecem todas às terças-feiras. Em conjunto com as pessoas em situação de rua, ex-funcionários da tenda atuam dentro do Coletivo Autônomo de Trabalhadores Sociais (CATSO), formado em 2013, com o intuito de ajudar a combater a repressão contra o povo de rua e lutar por uma cidade que seja para todos. A ideia é construir alternativas emancipatórias fora das vias burocráticas e institucionais. “Não é a primeira vez que se ameaça reintegrar a Alcântara e não foram poucas as vezes que a repressão comeu solta no viaduto. As pessoas estão se articulando e resistindo a mais uma ameaça desta cidade que insiste em ver o povo de rua morrer. O povo de rua insiste em querer viver”, diz Paulo Escobar, integrante do CATSO desde a formação do coletivo.
THAÍS, 24, VIVE NA ALCÂNTARA Machado há dois anos e recebeu a Vaidapé em sua casa. Ela conta que hoje cuida de uma parte importante na organização do espaço: é uma das responsáveis por dividir as tarefas de limpeza, cozinha e vigília noturna. “Uma vez, à noite, apareceram dois moleques e tentaram botar fogo em um carro que fica aí fora abandonado. Quase conseguiram. Foi sorte que a gente viu e eles entraram correndo em um táxi. Ainda bem, porque senão ia pegar fogo em todos os barracos! É incêndio criminoso isso aí”, denuncia. Quando aparece alguém precisando de um lugar para dormir, é Thais quem acomoda os recém-chegados. Ela explica as prioridades: “Se for mulher, idoso ou família, a gente libera um barraco do lado de fora, onde há mais privacidade. Se for homem solteiro, fica dentro da tenda em um colchão ou barraca. Mas aqui tem que ajudar na organização do espaço. Se não ajuda, a gente pede para ir embora. Sem violência nem nada, mas é que é um lugar coletivo”. Thaís viveu em abrigos desde muito cedo, pois sua família não tinha condições de cuidar dela.
Sorrindo, ela lembra dos tempos de adolescência, quando “botava o terror” nos inspetores das diversas instituições pelas quais passou. Hoje em dia, seu barraco possui sofá, geladeira e fogão, que são, em sua maior parte, doações. No entanto, ela segue sua luta por melhores condições: “Eu quero conseguir uma moradia, porque ninguém quer viver debaixo de um viaduto, aqui tá cheio de rato”. Os ratos não são o maior problema de Thaís. Ter um endereço fixo também é essencial para conseguir retomar a guarda de seus filhos, que atualmente moram com um parente. “EU QUERO “Falam pra gente arranjar CONSEGUIR emprego pra ter moradia, mas como a gente arranja emprego UMA sem moradia?”. MORADIA,
PORQUE NINGUÉM QUER VIVER DEBAIXO DE UM VIADUTO, AQUI TÁ CHEIO DE RATO”.
CAREQUINHA TEM 37 ANOS e também cuida da organização da comunidade, além de ter um bar ao lado da tenda, onde vende as cachaças que ele mesmo faz. Frequenta o espaço desde que era administrado pela Prefeitura. Na época, não era permitido dormir dentro da tenda, por isso, já havia barracos construídos ao seu redor. “Já tinham os barracos fora e outras pessoas na calçada. Depois de quatro anos, fecharam sem explicação. Aí, nós ocupamos para usar a cozinha comunitária, os banheiros e um espaço pra assistir televisão. Mas lá dentro não tem álcool, não tem drogas, não tem baderna”, relata. Segundo Carequinha, muitos dos moradores já buscaram auxílio em albergues da Prefeitura, mas por conta da autonomia que a comunidade proporciona, preferem ficar ali. Ele conta que, depois que a tenda foi desativada, o poder público não arcou com nenhuma responsabilidade com a população que utilizava o local. “Agora eles vêm com reintegração de posse? Só falta cortarem água, luz e fechar o espaço que serve para famílias e crianças. Onde é que esse povo vai ter um lugar pra dormir, comer, pra não estar em uma área de risco? Estamos sem saída, sem ter para onde ir. Isso aqui é um pouco da nossa história.” Para Carequinha, a comunidade está exercendo funções que deveriam ser feitas pelo poder público. “Se chegarem aqui oferecendo uma moradia só para mim, como a gente vive em uma comunidade, eu não posso aceitar e abandonar os demais. Só eu vou ser beneficiado porque eu contei uma história e alguém se comoveu?”
COISA DE PRETO:
TECNOLOGIA E RESISTÊNCIA
por Jay Viegas colaboração Isis Naomí e Gabriel Carneiro
A PRESENÇA DE NEGRAS E NEGROS NO UNIVERSO DA CIÊNCIA & TECNOLOGIA NÃO É NENHUMA NOVIDADE. MAS SE TORNOU UMA FORMA DE RESISTÊNCIA AO APAGAMENTO DE NOSSA HISTÓRIA 32 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
uando estamos na escola, pouco paramos para pensar sobre quem elaborou aquela fórmula, texto ou diagrama chato que precisamos memorizar para a prova. Afinal, temos outras preocupações, desde coisas bobas como pelos estranhos nascendo em lugares ainda mais estranhos, até questões mais profundas tipo: quem somos no mundo, o que queremos fazer da vida e todo o processo de formação da nossa identidade individual e coletiva. Essas coisas todas e a fórmula chata de química inicialmente não parecem fazer parte do mesmo processo histórico, afinal não estamos acostumados a relacionar aquilo que aprendemos em uma aula de biologia sobre a evolução do homo-sapiens com uma aula de história sobre a revolução industrial, muito menos com uma aula de matemática sobre o sistema decimal. A relação entre essas coisas? Nenhuma delas teria sido possível sem as contribuições - por vezes forçada - do continente africano e do povo negro. A África é considerada por cientistas e historiadores o berço da civilização humana. O Egito Antigo, apesar de nos filmes aparecer como uma terra habitada por reis e rainhas de pele branca, era negro. Lá ocorreram alguns dos maiores avanços da tecnologia humana, desde grandes feitos em engenharia e astronomia, até a produção de tecidos e o desenvolvimento da matemática. Ainda assim, o pensamento científico moderno apoia-se em obras de autores que ignoram completamente o papel do povo negro na construção dos saberes. Nas poucas vezes em que a África e a cultura negra aparecem no currículo escolar, é ensinada a história de um continente que só se tornou relevante a partir do momento em que foi colonizado pelos europeus, como se o negro praticamente não existisse antes de se tornar propriedade do branco. Qual a relação entre isso e o fato de que, em 2015, apenas 26% dos bolsistas da CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) se autodeclararam pretos ou pardos? Carlos Eduardo Machado é bacharel licenciado e mestre em história pela USP, e autor do livro “Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente”. Ele aponta que “uma das primeiras grandes estratégias de dominação, que fez com que o continente europeu, um dos menores do mundo, se tornasse uma potência mundial, foi a escravização. E nesse processo de exílio forçado,
para você destruir uma pessoa, não basta o uso de armas, chicotes e correntes. Também são necessárias armas psicológicas. Afastar uma pessoa da sua família, vilarejo e batizá-la com um novo nome católico e europeu é uma violência física, cultural, simbólica e psicológica muito grande contra nossa gente.” O processo de descaracterização do negro a partir do apagamento de sua identidade cultural foi uma estratégia consciente de dominação, com consequências que ainda hoje estão enraizadas no imaginário individual e coletivo da população. Afinal, para transformar pessoas em mercadoria, é necessário algum tipo de justificativa, moral ou científica, que apague a noção de que quem é ex-
O RACISMO NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO CIENTÍFICO
“O negro representa o homem natural, selvagem e indomável. (...) Neles, nada evoca a idéia de caráter humano. (...) Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar. - FRIEDRICH HEGEL, filósofo alemão do final do século 18, considerado um dos pensadores mais importantes e influentes da história. Trecho extraído de “a filosofia da história” (1837)
“Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. (...) Não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes..” - IMMANUEL KANT, filósofo prussiano considerado um dos principais da era moderna. Trecho extraído de “Observações Sobre o Sentimento do Belo e do Sublime”(1764) VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 33
plorado é igualmente humano - é necessário dissolver a possibilidade de qualquer tipo de relação de empatia com o próximo. “Uma das coisas que falavam pra nós, e que muitos de nós ao longo desses séculos absorvemos, é que o povo negro é feio, é sujo, criminoso, não é inteligente. Aprendemos que não temos história, que nada que vem da gente é bom, que só o que interessa é nossa força física. E, no caso das mulheres, servir também na cama desses homens brancos escravizadores”, diz Carlos. A construção de uma narrativa histórica que coloca o negro sempre como inferior, também afeta profundamente a forma como somos percebidos em lugares que destoam daqueles determinados pela branquitude. As poucas representações da população negra para além das páginas policiais - costumam ser restritas aos cadernos de esporte ou cultura. Mas quantas vezes vemos um especialista negro comentando o panorama econômico brasileiro, ou falando sobre algum novo avanço na ciência? Preto é dança, é música, é arte, é habilidade esportiva, mas tá bem longe de ser só isso. Preto também é ciência, engenharia e computação. E, atualmente, as profissões ligadas a essas áreas são as que mais crescem no mundo. Bárbara Paes, 23 anos, é uma das fundadoras do projeto Minas Programam, que procura incentivar a autonomia de mulheres nas áreas de computação e tecnologia. “Hoje em dia, profissões relacionadas a esse universo existem num espaço de muito poder econômico, dentro do sistema capitalista. Então, a gente precisa entender que a exclusão das pessoas negras desse espaço é mais uma forma de limitar as nossas possibilidades dentro do sistema”, conta. Para ela, é preciso incluir as mulheres para desenvolver soluções verdadeiramente democráticas. “Além de ser um ambiente muito masculino, a tecnologia também é uma área predominantemente branca.” Bárbara aponta o fato de que a pouca expressividade no número de pretas e pretos nesse universo é reflexo das desigualdades estabelecidas pela estrutura racista da sociedade brasileira. 34 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
Mesmo quando ultrapassados os obstáculos que impedem o acesso ao ensino superior, muitas outras pedras atrapalham o caminho para carreiras de sucesso em áreas historicamente ocupadas por homens brancos e de classes abastadas.
“OS PROFESSORES CRIAM UMA SÉRIE DE EXPECTATIVAS PARA AS MULHERES NEGRAS, E ESSAS EXPECTATIVAS NÃO INCLUEM TER UMA CARREIRA BEM SUCEDIDA EM ÁREAS RELACIONADAS À CIÊNCIA, TECNOLOGIA, ENGENHARIA E MATEMÁTICA”
A escassa oferta de bolsas e subsídios que auxiliem a permanência estudantil é outro obstáculo para que o povo preto se mantenha dentro das universidades. “Essa série de ataques ao intelecto negro afasta ainda mais, desde a perspectiva de entrar numa universidade, até a possibilidade de trabalhar com tecnologia”, afirma. Ao alcançar o mercado de trabalho, mais barreiras. Bárbara comenta que a troca de experiências proporcionada pelo projeto a ajudou a perceber que suas vivências não eram casos isolados. “Muitas mulheres negras que trabalham em diferentes áreas da tecnologia compartilham relatos e situações muito semelhantes no ambiente de trabalho, que vão desde a exclusão na convivência com os demais colegas brancos, até a percepção de que recebiam salários inferiores aos de pessoas que realizam as mesmas funções.” “Muitas empresas fazem eventos pontuais de inclusão racial, uma semana ali ou aqui. Mas é necessário que se tenha um compromisso sério de contratação de pessoas negras, através de uma reestruturação dos recursos humanos.” INVENÇÕES NEGRAS
ALEXANDER MILES - ELEVADOR DRA. PATRICIA BATH - LASER UTILIZADO EM CIRURGIA PARA CATARATA FREDERICK JONES - AR CONDICIONADO GARRET A. MORGAN - SEMÁFORO JOHN STANDARD - GELADEIRA MARIE V. B. BROWN - CIRCUITO FECHADO DE TELEVISÃO
Buh D’ Angelo é uma das criadoras do projeto InfoPreta que, desde 2013, promove serviços de manutenção, informática, oficinas e cursos de tecnologia da informação por e para mulheres negras. Com apenas 22 anos, já é formada em eletrônica, automação industrial, manutenção, tecnologia da informação e robótica. Perguntada sobre o que a inspirou a ir adiante com a iniciativa, ela afirma que:
“AO INVÉS DE EU FICAR ESPERANDO ME DAREM ESPAÇO EU RESOLVI CRIAR O MEU. FOI A FORMA QUE EU ENCONTREI PARA ME SENTIR INCLUÍDA E INCLUIR OUTRAS MULHERES NA TECNOLOGIA E NESSES MEIOS” A criação de iniciativas autônomas é apontada por Buh como uma das ferramentas que podem combater reações de desconfiança e estranhamento que afirma já ter recebido de clientes, em especial homens brancos, “A gente faz essa mudança e quebra o padrão, mostra que preto não é só bandido, que não é só coisa errada”. Em um país em que o assassinato de jovens negros é praticamente uma política de estado, muitos não tem a oportunidade de aprimorar e exibir seus talentos. “Saber é poder” e romper com a lógica colonizadora e eurocêntrica da produção dos saberes é uma tarefa indispensável para o avanço em direção a uma sociedade mais justa e igualitária. A presença de Bárbara, Buh e Carlos em ambientes de produção científica e tecnológica ainda é exceção. Não deveria. Nossa simples existência nestes espaços é uma afronta a um sistema construído ao longo de 400 anos, para objetificar e desumanizar corpos e mentes negras. E é por isso mesmo que vamos ficar. A tecnologia e a ciência sempre foram coisa de preto. A questão agora é reconquistar aquilo que nos foi negado, roubado, renomeado e apagado. CONTATOS DOS PROJETOS: WWW.FACEBOOK.COM/INFOPRETA MINASPROGRAMAM.COM
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Desde o seu início, a Vaidapé esteve em falta com pautas que abordassem gênero.Não à toa: o coletivo é composto majoritariamente por homens. Está ai, então, a necessidade e importância da criação da Vaidamina, um espaço feito só pelas minas. Novo, incipiente, sem forma nem limite definidos. Nasceu de um forte desejo de ser algo distinto do que está dado. AÍ SIM, VAIDAPÉ
SE ESSA ESCOLA FOSSE NOSSA INAUGURAMOS UMA NOVA SESSÃO NA REVISTA COM UM TEMA ATUAL: O DEBATE SOBRE GÊNERO DENTRO DAS ESCOLAS PÚBLICAS DE SÃO PAULO. TRÊS ESTUDANTES QUE PARTICIPAM DO MOVIMENTO SECUNDARISTA RELATAM AS OPRESSÕES COTIDIANAS SOFRIDAS DENTRO DO AMBIENTE ESCOLAR Gabriela Coutinho, 14 anos, Escola Estadual Virgília Rodrigues Alves Carvalho Pinto a escola, Gabriela e as amigas se interessavam por feminismo. Aos poucos, começaram a participar do movimento, tendo como momento marcante o ato que marchou em protesto contra a cultura do estupro. A manifestação ocorreu em maio deste ano, após uma garota de 16 anos ter sido estuprada por 33 homens, no Rio de Janeiro. Gabriela diz que sua liberdade mudou depois que “descobriu” o movimento de mulheres. “Eu sempre fui meio preconceituosa, sabe? Pensava: ‘Nossa, a roupa daquela menina está muito curta e pá’. Mas agora, para mim, a menina usa a roupa que ela quiser, no momento em que quiser. Não importa se é curta ou longa. A liberdade é da mina”, reflete. Ela conta que a diretoria segue agindo de forma autoritária, mesmo após a ocupação. “Eles querem formar uma pessoa alienada, que não entende o que está acontecendo, só o básico. Você só vai formar um cidadão que vai fazer faculdade e olhe lá.” Com relação aos alunos, Gabriela relata que muitos deles são “bastante machistas e mente fechada”. No entanto, depois da ocupação, os que participaram do movimento “mudaram um pouco”. O racismo também é um assunto fundamental para ela. Sobre a diferença no tratamento de mulheres negras e brancas, ela diz que uma garota negra com shorts curto é julgada como “macaca”, já uma branca é “bonita”.
“AS REGRAS SÃO TOTALMENTE MACHISTAS. OS MENINOS PODEM IR DE BERMUDA NA EDUCAÇÃO FÍSICA E PODEM TIRAR A BLUSA, ENQUANTO NÓS NÃO PODEMOS ENTRAR COM SHORTS LEGGING. NÃO PODEMOS IR DE REGATA QUE JÁ VIRA UM CAOS”
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Rayssa Larrissa, 15 anos, Escola Estadual Virgília Rodrigues Alves de Carvalho Pinto A MOBILIZAÇÃO dos alunos do Virgília Rodrigues abriu portas para que os estudantes se organizassem dentro de outros movimentos, como o feminismo. Sobre o machismo dentro da escola, Rayssa aponta as normas de vestimenta como um dos principais pontos de opressão. Blusas com alça fina ou que mostrem a barriga e shorts acima do joelho são motivos de punição. No início deste semestre, uma aluna foi barrada ao entrar na aula por estar vestindo um shorts justo. “Daí eu e as minhas amigas, que também são feministas e vão em atos, começamos a discutir com os inspetores e com a professora. ‘Vocês vão ter que deixar a mina entrar, vocês estão loucos’, a gente dizia. O vice-diretor da escola chegou no meio da discussão e deixou a menina assistir a aula.” No dia seguinte, em solidariedade ao ocorrido, as estudantes combinaram de ir todas de shorts. Foram convocadas, individualmente, à sala da diretora por estarem infringindo as normas impostas pelo conselho escolar. “Foi muito importante ter entrado no movimento estudantil e no feminismo para me entender como negra. Não que antes eu me considerasse branca. Mas por eu ser negra e ter a pele um pouco mais clara e não ter tanto os traços dos meus ancestrais, sempre fui julgada. Uma hora me falavam que eu era negra, outra que eu era branca. Daí eu pensava: ‘será que eu sou realmente negra?’. Eu sou negra sim, minha mãe é negra e sempre colocou isso na minha cabeça.” Sobre a reação da família ao seu ativismo, Rayssa conta que a mãe apoia sua participação no movimento. “A primeira vez que eu pedi para ir no 38 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
ato, minha mãe falou: ‘vai, mas se você tomar tiro de borracha nem me liga’. Ela apoia em partes, mas sente orgulho e sempre fala para os nossos familiares que eu sou feminista.” Rayssa mora com alguns primos e as tarefas domésticas de casa sempre recaem sobre ela. “Conhecer o feminismo me fez ter outra visão sobre mim mesma. Antes eu ficava muito presa a alguns padrões. ‘Será que se eu fizer isso as pessoas vão me julgar? Será que vão me chamar de vagabunda?’. Agora eu mudei dentro de casa e cobro a minha mãe para que meus primos ajudem na limpeza”, reflete.
Guilherme Augusto Silva, 14 anos, Escola Municipal José Blota Junior NO FINAL DO ANO passado, Guilherme começou a usar saias e diz que gostou porque se sentia livre. “Na primeira vez que eu fui de saia para a aula, a galera ficou dando risada. A coordenação quase convocou minha mãe para comparecer na escola. Eles disseram que se eu me sentia bem de todo mundo me zuar, tudo bem. Mas isso precisava ser explicado. Eu escondia minhas saias em casa, mas daí minha mãe queimou as quatro que eu tinha”, lamenta. Para ele, não existem roupas femininas e masculinas. “Cada um tem que se expressar da forma que quiser e abrir a cabeça. Se eu quiser beijar um homem na frente de uma criança eu posso. Um casal heterossexual pode, por que um casal lésbico ou gay não pode? Tem que ter direitos iguais.” Guilherme vive na periferia e explica que o deslocamento para participar das mobilizações é cansativo. Ele aponta que o movimento secundarista teve mais força e visibilidade na região central. “No centro os alunos têm mais privilégio, acessibilidade. Nas ocupações na periferia dormiam poucos secundaristas”, relata. Com relação ao racismo, o estudante diz que os
alunos brancos fazem “piadas” e que já foi chamado de macaco. “Me chamavam também de fumaça e pensam que é engraçado. Eu acho super zuado esse apelido. Mesmo assim fico mais na minha, às vezes debato, mas não vale muito a pena. Quando começa discussão em sala de aula, o professor tira nóis e leva pra direção, daí dá mais rolo ainda.“ Para combater as opressões, Guilherme aponta que a escola deveria propor discussões e trabalhos que abordem homofobia, transfobia, machismo e racismo. Além disso, permitir e incentivar que os alunos se organizem. Até o semestre passado, ele estudava na rede estadual. No início de agosto, perdeu muitos dias de aula porque estava nos atos dos secundaristas e foi transferido para uma das poucas escolas da rede municipal com ensino médio. “Eu me sinto bem perseguido por participar dos movimentos. Tentei propor um grêmio livre na minha escola, junto com alguns colegas, mas não rolou”, conta.
Existimos desde o primeiro semestre de 2016. Buscamos expandir o grupo e aumentar o número de minas que participam, todas são bem vindas.
VAIDAMINA SIM. Soma com as minas: ISADORA SOUZA, CLARA LISBOA, PAULA SERRA, PATRICIA IGLECIO, JAY VIEGAS, CAROLINA MARTINS, OLÍVIA STEFANOVITS, LUISA VASCONCELLOS, HELOÍSA ANDRADE.
FREQUÊNCIA COMUNITÁRIA por Thiago Gabriel e Victor Santos
HÁ TRÊS ANOS NO AR, O VAIDAPÉ NA RUA OCUPA A PROGRAMAÇÃO DA CIDADÃ FM COM MUITO DEBATE MÚSICA E INFORMAÇÃO alve, salve! A sexta edição da Revista Vaidapé já está nas ruas. Sempre na divulgação de iniciativas e movimentações da cultura marginal de São Paulo, a Vaidapé #6 será distribuída em todos os cantos da cidade. Da sul à norte, da leste à oeste e passando pelo centro, você pode garantir seu exemplar em centros culturais e comunitários de várias regiões. Como sempre, a revista é GRATUITA. Pode pegar uma para você, para a mãe, para a vizinha e até para aquele amigo que só gosta de ler aquela revistinha que tem banner espalhados por toda a cidade, veja só. A Vaidapé acredita na luta pela democratização de todos os meios de comunicação. Dessa caminhada, surgiu o Vaidapé Na Rua, nosso programa semanal que ocupa as ondas da Cidadã FM, a rádio comunitária do Butantã, desde o dia 13 de dezembro de 2013, em uma parceria que já dura quase três anos. De lá pra cá, não faltaram convidados, debates e lançamentos nos microfones do estúdio. Todas as semanas, o Vaidapé Na Rua entra no ar ao vivo e recebe convidados para debater temas atuais. Em cada edição do programa, abrimos os microfones para ouvir as trajetórias e ideias de pessoas e movimentos que atuam, estudam ou questionam discussões quentes na sociedade. Para os debates e convidados, buscamos 40 VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016
sempre fortalecer e amplificar os temas e as lutas de atores sociais e culturais do bairro do Butantã. Pelos estúdios, já passaram músicos, pesquisadores, antropólogos, economistas, mãe de santo, coletivo negro, ativistas pelo fim da guerra às drogas, cineastas, jornalistas e diversos coletivos que atuam na resistência e nas margens da cidade de São Paulo. O cardápio musical é sempre recheado pela cena independente e clássicos do repertório nacional e internacional. Também já contamos com a presença de várias bandas que tocaram ao vivo nos estúdios. Teve Lei Di Dai, Di Melo, Yzalú, Rap Plus Size, Jah Prayers, Cabaré Três Vinténs, Amanajé Sound System e várias outras pedradas. Além de entrevistar os convidados, o programa abre espaço para o jornalismo e debate no estúdio temas importantes para o cenário local e nacional, a partir do resumo das notícias da semana e das matérias publicadas no site da Vaidapé. A participação dos ouvintes também marca presença no Vaidapé Na Rua e as linhas e redes estão sempre abertas para pedidos de músicas, perguntas aos convidados e comentários sobre os assuntos do programa.
TODAS AS SEGUNDAS FEIRAS, A PARTIR DAS 20H, NA FREQUÊNCIA 87,5FM NA REGIÃO DO BUTANTÃ, OU DE QUALQUER LUGAR DA GALÁXIA E TAMBÉM DE TODO O ESPAÇO SIDERAL, PELA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES NO SITE: WWW.CIDADAFM.COM.BR Participe ao vivo pelo telefone da Cidadã FM (3731-6448) ou pela página da Vaidapé no Facebook (FACEBOOK.COM/REVISTAVAIDAPE)
14/03/2016 YZALÚ, rapper: “Tem muita mulher feminista no morro que nem sabe que é feminista, mas que contribui muito para o amadurecimento desse feminismo. É graças a essas mulheres que a gente está aqui, que eu estou aqui e que o feminismo existe.” 15/02/2016 ANNA CAROLINA MARTINS - enfermeira, autora da tese de mestrado “Mulheres num mundo carcerário”: “O sistema de justiça no Brasil é patriarcal, feito por homens, pensado por homens. Revela bastante do machismo que ainda vivemos na sociedade.”
21/03/2016 DI MELO, o imorrível: “Tem gente que acha que eu parei. Eu nunca parei, quem fica parado é poste. Eu fiquei ao longo dos anos criando, recriando e recriando.”
04/04/2016 SARA DONATO (rap plus size): “A ideia do Rap Plus Size é de se assumir, se colocar. A gente é gorda, a gente faz rap, a gente faz o que a gente quiser e dane-se o que você pensa. Quando perguntam o que é, a gente responde que é rap de gorda.”
IMPORTÂNCIA DAS RÁDIOS COMUNITÁRIAS Acreditamos na importância de ocupar todos os meios de comunicação possíveis, inclusive aqueles que alguns insistem dizer já estar ultrapassado. As rádios não são apenas um meio de comunicação tradicional, como também seguem presentes atualmente no cotidiano da população, seja no carro, no busão, no dentista, no elevador, no taxi, uber, telefone celular e afins. Quando recebemos a proposta de criar um programa de rádio, a Vaidapé ainda era um coletivo com pouco tempo de existência. A atuação dentro do ambiente comunitário e o canal direto de comunicação com os moradores fortaleceu o vínculo do coletivo com o bairro, onde também está localizada nossa redação. A Cidadã FM está em funcionamento desde 1995. São mais de 20 anos de luta no movimento de rádios comunitárias. No início, a rádio atuou de forma clandestina, o que não impediu que sua programação chamasse atenção dos ouvintes do Butantã e ganhasse repercussão para além das fronteiras do bairro. Apenas em 2011, a Associação Cidadã venceu a concorrência para ser aprovada como a rádio comunitária oficial do Butantã, e ocupar a frequência 87,5FM. A legislação que permite o funcionamento legal de rádios comunitárias no Brasil foi aprovada apenas em 1998, a partir da Lei nº 9.612/1998, que enuncia como rádio comunitárias “a radiodifusão sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita”. A cobertura restrita refere-se a uma programação que atenda as necessidades da comunidade em que está inserida, enquanto a baixa potência é estabelecida por no máximo 25 watts e altura da antena não superior a trinta metros. A luta das rádios comunitárias é um dos grandes esforços para descentralização das concessões de rádio, que se encontram nas mãos de poucos e ricos grupos de pessoas no Brasil.
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SLAM RESISTÊNCIA
O Slam Resistência surge como expressão artística para revelar a vida cotidiana dos poetas urbanos de São Paulo. Toda primeira segunda feira do mês, mulheres e homens de todas regiões da cidade colam na praça Roosevelt, no centro, para fazer as chamadas “poesias faladas”. São três minutos a capela para os rimadores, avaliados por jurados escolhidos na hora. Nas palavras dos próprios integrantes, o Slam Resistência surge “na sintonia dos protestos, dos movimentos sociais e contra a truculência do Estado para com os manifestantes”.
Praça Franklin Roosevelt - Consolação, São Paulo - SP Toda primeira segundafeira do mês COMO? Pela página facebook.com/slamresistencia e colando no rolê ONDE?
QUANDO?
FOGO CRUZADO
O “Fogo Cruzado” é um aplicativo de celular capaz de mapear a incidência de tiroteios em bairros do Rio de Janeiro. Funciona assim: toda vez que o usuário presenciar ou ouvir um tiroteio, ele acessa o app e preenche um formulário. A plataforma transforma os dados em uma informação exibida dentro do mapa da região metropolitana do Rio de Janeiro. Com foco nas comunidades do Jacarezinho, Manguinhos, Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Acari, Cidade de Deus e Morro Agudo (Nova Iguaçu), a plataforma colaborativa pode ser útil para fazer comparações e criar políticas públicas efetivas em áreas onde o Estado só chega de farda.
Na internet e no celular Todos os dias COMO? Pelo site fogocruzado.org.br e baixando o aplicativo pelo celular ONDE?
QUANDO?
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INICIATIVA NEGRA POR UMA NOVA POLÍTICA DE DROGAS
O INNPD é uma articulação com propósito de discutir a questão das drogas no Brasil a partir da visão dos movimentos sociais negros, das organizações não-governamentais e coletivos que atuam e discutem a temática racial no Brasil. O grupo parte do princípio de que a chamada “guerra às drogas” é um modelo violento de combate ao tráfico e que traz efeitos perversos à população negra do país, sobretudo aos jovens. Assim, a iniciativa busca promover ações que influenciam e geram reflexão sobre a atual política de drogas.
Na internet Todos os dias COMO? Acompanhe as atividades e discussões na página: facebook.com/innpd e iniciativanegra.org ONDE?
QUANDO?
BAOBÁ CURSINHO LIVRE
Muito mais do que aprovar jovens no ENEM, o Coletivo Baobá surge para criar consciência. A partir de análise, reflexão e sensibilização dos alunos sobre a necessidade de agir, o cursinho toma posição política: está do lado da quebrada e cria empoderamento para que a mudança venha daqueles que são oprimidos todos os dias na cidade. Na luta pela educação pública de qualidade, o coletivo oferece aulas gratuitas de todas as disciplinas escolares, debates políticos, sessões de cinema, saraus e atividades feitas pelos seus alunos.
Rua Edmundo Abreu, 170. Na Associação de Moradores do Jardim Helian QUANDO? Todo sábado, das 10h às 17h COMO? Inscrições pelo e-mail cursinhopopularbaoba@gmail.com ou pela página facebook.com/coletivobaobadecursinhopopular ONDE?
BANCADA ATIVISTA
A Bancada Ativista é uma iniciativa suprapartidária que nasceu em 2016 com intenção de ajudar a eleger ativistas para Câmara de Vereadores de São Paulo nas eleições deste mesmo ano. Fugindo dos “vícios da campanha tradicional”, a Bancada faz a tentativa de promover uma representatividade real da população dentro da política institucional. Com 32 membros atualmente, a Bancada é uma organização da sociedade civil aberta para participação de qualquer pessoa. Os membros selecionaram, neste ano, 8 candidatos de diferentes partidos, que mais se assemelham às ideias do grupo.
Eventos esporádicos QUANDO? Eventos esporádicos COMO? Acompanhe a programação pela página facebook.com/AmigasdoSamba ou enviando um e-mail para: agendadasamigas@gmail.com ONDE?
MOVIMENTO SOCIOCULTURAL AMIGAS DO SAMBA
“Hoje é Dia de Maria!”. Criado em agosto de 2011, o movimento Amigas do Samba tem como objetivo incentivar a participação da mulheres de todas as idades no samba. Cantando músicas que denunciam o machismo e a violência contra a mulher, o repertório também exalta o papel feminino em todas as suas atividades. Homenageia guerreiras como Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus e Elizeth Cardoso. O movimento completa cinco anos em 2016, data que também comemora uma década da criação da Lei Maria da Penha.
Eventos esporádicos Eventos esporádicos COMO? Acompanhe a programação pela página facebook.com/AmigasdoSamba ou enviando um e-mail para: agendadasamigas@ gmail.com ONDE?
QUANDO?
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REDUÇÃO É SOLUÇÃO? A MAIORIDADE PENAL EM DEBATE por Paulo Motoryn fotos William Oliveira
A REPORTAGEM É INSPIRADA NA MONOGRAFIA DA ESTUDANTE NINA GOMES SODRÉ, APRESENTADA NA CONCLUSÃO DA GRADUAÇÃO EM DIREITO DA PUC-SP, EM MAIO DE 2015. O TRABALHO DISCUTE OS ASPECTOS PENAIS E EXTRAPENAIS QUE JUSTIFICAM A MANUTENÇÃO DA MAIORIDADE PENAL AOS 18 ANOS Como anda a redução da maioridade penal no Brasil Faz tempo que você não ouve falar desse assunto? Pois é, apesar de estar longe dos holofotes da mídia e de nossos feeds de notícias, a PEC 171/93 já passou pela Câmara dos Deputados e aguarda votação no Senado. Se aprovada, irá reduzir a maioridade penal dos 18 para os 16 anos de idade. A proposta é de autoria do ex-deputado Benedito Domingos (PP-DF) e altera a redação do artigo 228 da Constituição. No ano passado, um dos principais personagens do debate em torno do tema foi o deputado federal cassado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) que, ao assumir a presidência da Casa, prometeu dar velocidade a uma série de pautas bastante polêmicas. Dentre elas, a Lei da Terceirização, projeto que reduz direitos trabalhistas garantidos pela CLT; um projeto de lei que criminaliza o uso da pílula do dia seguinte; e a redução da maioridade penal.
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APÓS 22 ANOS ENGAVETADA, Eduardo Cunha articulou a aprovação do projeto de redução da maioridade penal na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), responsável por atestar se os projetos ferem a Constituição.
SEM CUMPRIR O NÚMERO devido de audiências e debates públicos previstos nas regras da Câmara, uma Comissão Especial de parlamentares aprovou o relatório do deputado Laerte Bessa (PR-DF) e enviou a pauta ao plenário, onde os projetos são submetidos à votação.
31 MARÇO 2015
17 JUNHO 2015
MILHARES DE MANIFESTANTES viajam à Brasília (DF) e acampam no Congresso Nacional em protesto contra a redução da maioridade penal. A pressão surtiu efeito e, por cinco votos, a proposta foi rejeitada no plenário da Câmara.
1º JULHO 2015
A REJEIÇÃO DAS PROPOSTAS esvaziou o acampamento. Se aproveitando disso, Eduardo Cunha fez uma manobra e conseguiu organizar outra votação com pequenas alterações no projeto. Desta vez, a PEC foi aprovada.
2 JULHO 2015
COMO ALTERA A CONSTITUIÇÃO, como altera a Constituição, a proposta foi votada em segundo turno na Câmara e novamente aprovada. Sendo assim, a PEC foi enviada ao Senado Federal.
O TEMA FOI INCLUÍDO como pauta da reunião da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado para votação. No entanto, a votação foi adiada e, até agora, ainda não voltou à pauta. Se o Senado aprovar na CCJ e no plenário, não caberá veto da Presidência e a medida será implementada.
19 AGOSTO 2015
20 ABRIL 2016
VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 47
O JOVEM NÃO É PUNIDO? O HISTÓRICO DA RESPONSABILIZAÇÃO PENAL NO BRASIL
A PRISÃO RESOLVE? SOBRE ENCARCERAMENTO EM MASSA E REINCIDÊNCIA PENAL
A primeira legislação referente ao tema no Brasil é o Código Penal de 1890. Desde então, diversas leis regularam a maioridade penal, sempre no sentido de criminalizar o jovem infrator. Em 1988, com a nova Constituição Federal e, dois anos depois, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ficaram definidos uma série de direitos especiais para pessoas com até 18 anos. Um dos princípios fundamentais previsto pelo ECA é que a internação do adolescente em conflito com a lei deve ser uma medida de exceção a ser evitada.
Um tema central na discussão da maioridade penal é a situação do sistema carcerário no Brasil. É um fato que os presídios se encontram em situação de superlotação, o que configura um profundo desrespeito aos direitos de quem cumpre pena em regime fechado. O Brasil atingiu, em 2014, o número de 715.592 presos nos sistemas penitenciários e domiciliar, o que faz da sua população carcerária a terceira maior do mundo, além de evidenciar a atual política de encarceramento em massa.
“Antes de mais nada é preciso esclarecer que os jovens infratores absolutamente não ficam impunes. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê até mesmo a internação, no prazo de até três anos, como privação de liberdade. Ocorre que o Estatuto considera o jovem como pessoa em desenvolvimento biopsicossocial, e como tal, aposta no seu potencial, na sua criatividade, na sua capacidade de situar-se como trabalhador e cidadão na sua comunidade.” - MARIA IGNÊS BIERRENBACH
“Um dos argumentos que mais se menciona quando se fala na falência da prisão, é o seu efeito criminógeno. Considera-se que a prisão em vez de frear a delinquência parece estimulá-la, convertendo-se em um instrumento que oportuniza toda espécie de desumanidades. Não traz nenhum benefício ao apenado, ao contrário, possibilita toda a sorte de vícios e degradações.” - CESAR ROBERTO BITTENCOURT, na obra “Falência da Pena de Prisão”.
REDUZIR A MAIORIDADE É ILEGAL? A INCONSTITUCIONALIDADE DA PEC 171/93
Em um país com histórico de mais de 400 anos de escravidão e um duro regime militar, a Constituição Federal de 1988 foi construída para garantir uma série de direitos. Sendo assim, alguns pontos e princípios não poderiam mais ser alterados. A maioridade penal aos 18 anos foi definida com base em diversos desses princípios: o da dignidade da pessoa humana; o da prioridade absoluta; o da proteção integral; e o da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento do adolescente. Sendo assim, qualquer alteração seria inconstitucional.
A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO MUNDO EUA
12/16* anos
FRANÇA
JAPÃO
18 anos
*DEPENDE DO ESTADO
21 anos
BRASIL
18 anos URUGUAI
18 anos
NÚMEROS CONFORME DADOS DA UNICEF:
“Dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida. Na verdade, são eles, os adolescentes, que estão sendo assassinados sistematicamente.” -MAPA DA VIOLÊNCIA DE 2014 DEMONSTRA QUE:
De 1980 à 2012 aumentou-se em 194,2% o número de adolescentes vítimas de homicídios. -AS TAXAS DE REINCIDÊNCIA APRESENTADAS PELO CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:
estão abaixo de 20% no sistema socioeducativo, enquanto que nas penitenciárias comuns chegam a quase 50%, conforme dados do PNUD.
PARA SABER MAIS LIVROS
VÍDEOS
Conselho Federal Psicologia – na internet, livro.
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RIO DA VIDA Ensaio: Julia Mente
OS DESAFIOS PELA PRESERVAÇÃO DA CULTURA E DO MODO DE VIDA NA TERRA INDÍGENA SAWRÉ MUYBU, NO PARÁ, ÀS MARGENS DO RIO TAPAJÓS
a língua Munduruku, Tapajós significa “rio da vida”. A região, território ancestral do povo Munduruku, abriga diversas aldeias e uma inestimável biodiversidade. A terra indígena Sawré Muybu, apesar de ainda não ser oficialmente demarcada pelo governo, é conservada por eles há séculos, tornando possível sua sobrevivência física e cultural. Em dez dias, o olhar recortado pela câmera fotográfica me fez compreender a singularidade daquele local e a necessidade de preservá-lo. Os Munduruku sempre foram conhecidos como um povo guerreiro. Por muitos anos, eles conseguiram proteger suas terras contra as ameaças externas, primeiro trazidas pela extração de borracha, depois pela exploração madeireira e pelo garimpo. Nos últimos 30 anos, somaram-se a estas ameaças, os projetos do governo de construir uma barragem no Rio Tapajós. Em agosto deste ano, o projeto da hidrelétrica São Luis do Tapajós - que ameaçava diretamente alagar parte do território Munduruku - foi arquivado pelo Ibama.
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Com uma vitória, a luta dos Munduruku se fortalece para enfrentar as próximas batalhas: ainda existem outras 42 usinas hidrelétricas planejadas para a bacia. Em poucos dias é possível perceber como todos eles conhecem desde pequenos, cada curva do rio, animais, árvores, igarapés, locais de caça, de pesca, de roça e até mesmo onde buscar as formigas saúvas, que fazem parte de sua alimentação. Seus mitos, contos e toda a cosmologia milenar da cultura Munduruku só fazem sentido pela existência deste local. As crianças crescem com uma liberdade que nós, da cidade, desconhecemos. Sobem em todas as árvores, conhecem todos os pés de frutas, brincam e utilizam da imaginação para divertir-se. A impressão é que cuidam de si naturalmente, sem pais ou adultos por perto. Caem, se machucam e logo estão novamente a correr. Para além de justificativas teóricas, é na fala das mães e dos pais que se pode ter uma ideia da luta diária que eles passam para preservar seu modo de vida, sua terra e o futuro de seus filhos. O convívio com este povo nos ensina aspectos sobre nós mesmos que foram perdidos e negligenciados devido à rotina da modernidade. VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 55
SER CAPUÊRA PARAGUASSU, ANGOLA & LIBERDADE Reportagem e fotos: André Zuccolo
NA PACATA COMUNIDADE DA GAMBOA, MESTRE JAIME DE MAR GRANDE MOSTRA A IMPORTÂNCIA DA CAPUÊRA E APRESENTA SUA FILOSOFIA, QUE DIFERE DAS FORMAS TRADICIONAIS DE ENSINAMENTO
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a estrada. Saindo de São Paulo, passando pelo interior de Minas Gerais e pelo sul da Bahia, o cenário se transforma nitidamente a cada quilômetro rodado. Claro que pra chegar pros lados de Salvador tem muito chão, mas a própria atmosfera dos dois extremos do litoral da Bahia muda claramente. A simplicidade caracteriza o visual, a vegetação se transforma, as fazendas e a Mata Atlântica são tomadas pelos coqueiros. A simpatia das pessoas aumenta e o preço das coisas diminui quanto mais ao norte do estado alcançamos. O destino: Ilha de Itaparica.
A ILHA Bem próximo de Salvador, a uma distância de 45 minutos de lancha ou uma hora de FerryBoat, há uma vista privilegiada e dividida. De um lado da baía, as águas azuis, do outro, a selva de pedra da capital baiana. Os opostos se atraem em Mar Grande, um centro comercial e uma das portas de entrada pelo mar. Localizada na Baía de Todos os Santos e Orixás, a Ilha de Itaparica é dividida em dois municípios: Itaparica e Vera Cruz, onde está localizada, no bairro da Gamboa, a Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassú. Protegida por uma barreira de corais e com águas claras, a praia da Comunidade da Gamboa está colada com a praia da Penha, que é frequentada pelos barões de Salvador com seus terrenos gigantes e casas luxuosas de veraneio. O acesso com carro é impossibilitado, o que restringe o trânsito entre os bairros, com rondas regulares de seguranças particulares. Isso não impede que pedestres, bikes e motos circulem, fazendo da praia, também, uma extensão da comunidade. VAIDAPÉ | EDIÇÃO_06 2016 57
A PARAGUASSÚ A capuêra desempenha um papel muito importante na comunidade. A Associação Cultural de Capuêra Angola Paraguassú promove eventos, trocas de experiência e abre o seu espaço para aulas de karatê, de teatro, samba de roda e diversas outras manifestações populares. Com o intuito de integrar os membros da comunidade, o trabalho da Paraguassú serve como uma forma de resistência, contribuindo e estimulando, através da prática da capuêra angola, a troca franca de saberes. Cheguei um dia antes do Encontro de Culturas Populares, realizado pela Associação. A expectativa e a ansiedade eram grandes. Até então, meu contato com a capuêra era quase nulo e fui de cabeça aberta pra conhecer a cultura. Durante o evento, pessoas de vários estados do Brasil e também de fora do país se encontraram para jogar, viver, sentir e aprender capuêra. O aprendizado era transmitido pelo cabeça da Associação, Mestre Jaime de Mar Grande, que comanda as atividades. Mestre Jaime teve seus primeiros contatos com a capuêra ainda menino. Pesquisador por natureza, sagaz, atento e sereno, tem forte influência no universo da capuêra angola. Viajou para diversos estados brasileiros, chegou a morar na Holanda e, a partir de meados dos anos 2000, iniciou um trabalho em São Paulo. No último ano, voltou para a terra natal, onde está a Paraguassú, para reativar e dar vida ao espaço que parecia estar abandonado devido sua longa permanência em São Paulo. O Mestre também levou alunos da capital paulista para um intercâmbio experimental em terras baianas, a fim de ensinar e mostrar a capoeira angola na sua
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raiz, permitindo também uma troca entre a cidade grande e a pacata comunidade da Gamboa. A respeito desse intercâmbio, o Mestre deixa claro: “O mais importante é essa interação, a pessoa traz coisas do urbano, do acadêmico, e troca com a própria comunidade, pela cultura popular. Isso é o que eu mais desejo, porque é um aprendizado para todo mundo, viver duas coisas ao mesmo tempo. Nenhum é mais que o outro, é tudo conhecimento.” Diferente da capoeira regional, a capuêra angola tende a ser mais livre e preza por diversos outros elementos dentro da roda, como a teatralidade, o improviso, a espontaneidade, a brincadeira e a dança. Mesmo assim, a maioria dos mestres pratica e ensina os movimentos de forma padronizada, limitando a criatividade dos alunos e colocando barreiras e regras. Mestre Jaime traz uma perspectiva diferente. Praticante de uma filosofia particular, que liga os movimentos a valores da vida, ele proporciona uma liberdade fora do comum nas suas aulas e rodas. Com a cabeça aberta, vindo do pacato município de Vera Cruz, superou várias barreiras, pesquisou, aprendeu e transmite sua filosofia adiante. Uma das marcas do trabalho da Paraguassú acontece no final de toda roda, no momento em que o Mestre faz questão de sentar em círculo e abrir uma conversa, dando a palavra para que cada um expresse seu sentimento e discuta sobre o que quiser. Perguntei se isso era comum no mundo da capuêra angola. “Isso é uma coisa da Paraguassú. Outros mestres, por exemplo, não permitem que o aluno fale”, enfatiza. Ele diz que, após a roda de conversa, cada um aprende com o outro, e que muitos sentimentos vêm à tona. O Mestre acredita que desta forma é possível transformar um momento que poderia ser constrangedor para alguns em um ambiente confortável. A postura do Mestre Jaime deixa claro que a tradição está em movimento. Através de uma filosofia de liberdade e renovação constante, ele apresenta uma proposta de transgressão dos valores tradicionais, que vai muito além do universo da capuêra angola.
“A PADRONIZAÇÃO DO MOVIMENTO É A PRISÃO DO PENSAMENTO. SER LIVRE É PENSAR E SE MOVIMENTAR LIVREMENTE”
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MubMaps, o “waze da bike”, indica rotas seguras, planas ou rápidas. Vá de bike e encontre sua melhor rota!
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foto Janine Moraes