ANTONIO BOKEL, VER > TEXTO DE VANDA KLABIN

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V E R



Antônio Bokel

V E R

TO SEE



hoje é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.

hoje é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.

José Saramago, Ensaio sobre a cegueira | Ensaio sobre a cegueira


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Apresentação, 7 Apresentação, 12 A propaganda da alma é o negócio, 25 A propaganda da alma é o negócio, 32 PEDRO SANCHEZ

Uma espécie de descontrução, 41 Uma espécie de descontrução, 50 VANDA KLABIN

Arte como por acaso, 63 Arte como por acaso, 68 OSWALDO CARVALHO

Acidentes hidrográficos sobre Kenzo Tange, 109 Acidentes hidrográficos sobre Kenzo Tange, 114 MARIO GIOIA

Nada além das palavras, 123 Nada além das palavras, 135 DANIELA NAME


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Apresentação VANDA KLABIN

O mais engraçado é que, na real, quando me fazem a famigerada pergunta (“é grafite?”), eu, por meu turno – seja por pressa, sagacidade ou cinismo – normalmente respondo que sim. Depois, aos pouquinhos, vou tentando mostrar – ao policial, ao parente, ao crítico de arte, ao segurança do prédio ao lado ou ao puto do jornalista (esses, acreditem, são os mais difíceis de convencer) – que não. O mais legal é que, esses momentos em que você, então, vai falar sobre os pormenores e especificidades de uma prática, de uma poética, acabam te rendendo reflexões importantíssimas, porque, é claro, elas vêm no passo seguinte ao fazer. A relação que Bokel estabelece com a rua, tema dessa publicação, remete ao começo de sua trajetória, à época de sua formação como designer e de suas primeiras irrupções no meio de moda, quando começou a produzir serigrafia e a imprimir lambe-lambe. Essa relação talvez seja uma constante em sua obra versátil e inquieta. Ela pode, num primeiro plano, ser entendida como processual. Diz respeito a esse acúmulo de ações, a essa sequência de intervenções que o muro, como suporte absorvente de inúmeras incursões anônimas, nos conta:

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A propaganda da alma é o negócio PEDRO SANCHEZ

O mais engraçado é que, na real, quando me fazem a famigerada pergunta (“é grafite?”), eu, por meu turno – seja por pressa, sagacidade ou cinismo – normalmente respondo que sim. Depois, aos pouquinhos, vou tentando mostrar – ao policial, ao parente, ao crítico de arte, ao segurança do prédio ao lado ou ao puto do jornalista (esses, acreditem, são os mais difíceis de convencer) – que não. O mais legal é que, esses momentos em que você, então, vai falar sobre os pormenores e especificidades de uma prática, de uma poética, acabam te rendendo reflexões importantíssimas, porque, é claro, elas vêm no passo seguinte ao fazer. A relação que Bokel estabelece com a rua, tema dessa publicação, remete ao começo de sua trajetória, à época de sua formação como designer e de suas primeiras irrupções no meio de moda, quando começou a produzir serigrafia e a imprimir lambe-lambe. Essa relação talvez seja uma constante em sua obra versátil e inquieta. Ela pode, num primeiro plano, ser entendida como processual. Diz respeito a esse acúmulo de ações, a essa sequência de intervenções que o muro, como suporte absorvente de inúmeras incursões anônimas, nos conta: o lambe-lambe rasgado sobre um grafite rateado

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por uma tag que cobriu um cartaz do qual ainda se lê algumas letras. São essas operações e esses signos que o artista leva consigo, documentando-­os, incorporando-os em sua pintura, tematizando-os. “ACASO”, essa expressão manuseada concreta e conceitualmente evoca o tráfico de mão dupla entre espaço urbano e ateliê e esse entendimento primordial da rua como laboratório de experiências visuais. Desse trânsito, gostaria de destacar os trabalhos intercalados ao longo de tempos que dialogam com o lambe-lambe de propaganda, essa potente manifestação visual do Rio de Janeiro, que muitos artistas de rua da cidade, reproduzindo o discurso oficial da uma administração municipal fascista, recha-

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çam, considerando-a mera “publicidade” e, portanto, ílegitima. Esse diálogo começa com a encomenda de cartazes autoriais (aqueles do homem com guarda-chuva, protegendo-se da mancha de elementos gráficos dentro da qual se destacam as letras, “B, O, K, E, L”, os primeiros trabalhos que vi do artista, antes de conhecê-lo pessoalmente) e culmina em intervenções sobre as rasuras feitas pela prefeitura no intuito de coibir a prática, nas quais se lia frases dúbias (“ante – o mar – antigo”, “uma – coisa – pura”; “colheita – do – acaso”), estranhas pois não anunciavam nada exatamente, ou melhor, divulgavam no máximo uma propaganda da alma. O artista se apropria do sistema de distribuição informal e da força visual desses cartazes impressos em serigrafia, potencializando visualmente o conflito territorial estabelecido. Isso nos leva a perceber que, num segundo plano, a relação com o espaço urbano se mostra tática. Mais do que mero suporte, a rua é compreendida e tomada como um aparato

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visual, ou seja, como dispositivo que sustenta a interação entre um signo visual e o observador. A apropriação desse espaço leva à conquista de um meio de publicidade, no sentido de “tornar público”. Trata-se de uma ação territorial e estratégica. Uma ação de dupla resistência: frente às leis e normas que regem o sistema urbano a aquelas que regem o mundo da arte. O que mais me impressiona no trabalho do Bokel não é a sua produtividade monstruosa e variada. Também não é essa espécie de angústia-zen que ele emana (embora isso me deixe bastante curioso). O que mais me impressiona é a capacidade que o artista tem de veicular, de fazer circular a sua produção quase compulsiva, a independência e autonomia que ele sustenta em relação ao circuito e cânones da arte contemporânea e, acima de tudo, a generosidade com que traz consigo, em suas empreitadas transculturais, uma galera. Bokel é um diplomata talentoso, um articulador, um criador de mundos. As muitas edições do Espaço ATEMPORAL, os crowd funding, as publicações, os encontros, bate-papos, exposições, eventos culturais, shows, as múltiplas parcerias e conexões, traçadas em suas residências e andanças artísticas, e a recente abertura da Galeria Quintal, em parceria com João Sánchez e Marcelo Macedo, são algumas de suas ações no sentido de uma ativação cultural, processo que extrapola a atividade como artista e envolve a relação com diversas outras instâncias e agentes que colaboram, numa ação coletiva, para a existência desse lance que chamamos de arte. Pedro Sánchez é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e editor da revista Cabuloza Wild Life.

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A propaganda da alma é o negócio PEDRO SANCHEZ

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O mais engraçado é que, na real, quando me fazem a famigerada pergunta (“é grafite?”), eu, por meu turno – seja por pressa, sagacidade ou cinismo – normalmente respondo que sim. Depois, aos pouquinhos, vou tentando mostrar – ao policial, ao parente, ao crítico de arte, ao segurança do prédio ao lado ou ao puto do jornalista (esses, acreditem, são os mais difíceis de convencer) – que não. O mais legal é que, esses momentos em que você, então, vai falar sobre os pormenores e especificidades de uma prática, de uma poética, acabam te rendendo reflexões importantíssimas, porque, é claro, elas vêm no passo seguinte ao fazer. A relação que Bokel estabelece com a rua, tema dessa publicação, remete ao começo de sua trajetória, à época de sua formação como designer e de suas primeiras irrupções no meio de moda, quando começou a produzir serigrafia e a imprimir lambe-lambe. Essa relação talvez seja uma constante em sua obra versátil e inquieta. Ela pode, num primeiro plano, ser entendida como processual. Diz respeito a esse acúmulo de ações, a essa sequência de intervenções que o muro, como suporte absorvente de inúmeras incursões anônimas, nos conta: o lambe-lambe rasgado sobre um grafite rateado por uma tag que cobriu um cartaz do qual ainda se lê algumas letras. São essas operações e esses signos que o artista leva consigo, documentando-­os, incorporando-os em sua pintura, tematizando-os. “ACASO”, essa expressão manuseada concreta e conceitualmente evoca o tráfico de mão dupla entre espaço urbano e ateliê e esse entendimento primordial da rua como laboratório de experiências visuais. Desse trânsito, gostaria de destacar os trabalhos intercalados ao longo de tempos que dialogam com o lambe-lambe de propaganda, essa potente manifestação visual do Rio de Janeiro, que muitos artistas de rua da cidade, reproduzindo o discurso oficial da uma administração municipal fascista, rechaçam, considerando-a mera “publicidade” e, portanto, ílegitima. Esse diálogo começa com a encomenda de cartazes autoriais (aqueles do homem com guarda-chuva, protegendo-se da mancha de elementos gráficos dentro da qual se destacam as letras, “B, O, K, E, L”, os primeiros trabalhos que vi do artista, antes de conhecê-lo pessoalmente) e culmina em intervenções sobre as rasuras feitas pela prefeitura no intuito de coibir a prática, nas quais se lia frases dúbias (“ante – o mar – antigo”, “uma – coisa – pura”; “colheita – do – acaso”), estranhas pois não anunciavam nada exatamente, ou melhor, divulgavam no máximo uma propaganda da alma. O artista se apropria do sistema de distribui-


ção informal e da força visual desses cartazes impressos em serigrafia, potencializando visualmente o conflito territorial estabelecido. Isso nos leva a perceber que, num segundo plano, a relação com o espaço urbano se mostra tática. Mais do que mero suporte, a rua é compreendida e tomada como um aparato visual, ou seja, como dispositivo que sustenta a interação entre um signo visual e o observador. A apropriação desse espaço leva à conquista de um meio de publicidade, no sentido de “tornar público”. Trata-se de uma ação territorial e estratégica. Uma ação de dupla resistência: frente às leis e normas que regem o sistema urbano a aquelas que regem o mundo da arte. O que mais me impressiona no trabalho do Bokel não é a sua produtividade monstruosa e variada. Também não é essa espécie de angústia-zen que ele emana (embora isso me deixe bastante curioso). O que mais me impressiona é a capacidade que o artista tem de veicular, de

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fazer circular a sua produção quase compulsiva, a independência e autonomia que ele sustenta em relação ao circuito e cânones da arte contemporânea e, acima de tudo, a generosidade com que traz consigo, em suas empreitadas transculturais, uma galera. Bokel é um diplomata talentoso, um articulador, um criador de mundos. As muitas edições do Espaço ATEMPORAL, os crowd funding, as publicações, os encontros, bate-papos, exposições, eventos culturais, shows, as múltiplas parcerias e conexões, traçadas em suas residências e andanças artísticas, e a recente abertura da Galeria Quintal, em parceria com João Sánchez e Marcelo Macedo, são algumas de suas ações no sentido de uma ativação cultural, processo que extrapola a atividade como artista e envolve a relação com diversas outras instâncias e agentes que colaboram, numa ação coletiva, para a existência desse lance que chamamos de arte. Pedro Sánchez é professor da Escola de Belas Artes da UFRJ e editor da revista Cabuloza Wild Life.

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Uma espécie de desconstrução VANDA KLABIN

Observa-se nas obras de Antonio Bokel um constante cruzamento entre a arte e o tecido da vida urbana, como partes constitutivas do seu universo simbólico. Recorre a essa experiência da cidade como sequências existenciais - ali constrói o seu espaço referencial, ali parece inventar um território, ali pretende constituir uma extensão estética e espacial em uma dimensão mais ampla. Nessa zona de interseção, está presente uma capacidade de improvisação poética a partir da assimilação dos mais variados materiais e suportes, tais como objetos enigmáticos, utensílios urbanos, inserção de letras, jogos de palavras ou fragmentos literários, que transitam nas pinturas murais, nas superfícies das telas, nas fotografias, nas esculturas ou nas instalações espaciais. Mas é na sua pintura que encontramos os acordes do seu campo de ação, indicativos de uma força integradora de suas inquietudes estéticas, ao equilibrar cores, formas e volumes em um mosaico de pinceladas rítmicas que trazem à tona as assimetrias do mundo. Nesse conturbado território, o artista evoca uma reflexão sobre o espaço urbano contemporâneo. A sua produção artística não é um fenômeno isolado no ateliê, mas realiza a

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sua inscrição no mundo, em uma esfera pública, ao corporificar sua emergência nos muros da cidade – ambos acolhem simultaneamente sua prática pictórica e criam uma fusão entre a obra e o mundo. Antonio Bokel reivindica um estar no mundo, aglutinar experiências, deixar traços visíveis no olhar público e não apenas entre quatro paredes. As suas obras são verdadeiros manifestos visuais e apesar de apresentarem uma rica diversidade, se agrupam através de uma linguagem comum, ao reivindicar um sentido plástico vinculado às imagens e dissonâncias da vida urbana.

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A sua estratégia de leitura da figuração se manifesta através de aspectos provenientes da linguagem da arte pop, de uma visível influência de Andy Warhol, Jean Michel Basquiat e Keith Haring; no uso de elementos da cultura popular, como as ilustrações de revistas, jornais e suas expressivas composições são portadores de uma impetuosidade emocional, trazem símbolos e motivos aleatórios com fortes conteúdos críticos, que são confrontadas com a crueza e rudeza dos muros urbanos. O artista converteu a pintura desenhada na sua principal técnica, ao dissolver os sistemas figurativos e redefinir as formas no espaço, produzindo uma nova geração de imagens. O desfazer progressivo passa a ser um exercício constante e a coexistência de formas díspares anuncia um pensamento de descontinuidade e ruídos visuais incorporados à sua cultura visual. Sua pintura gestual, instintiva, espontânea, encontra suas raízes na sua admiração por certos artistas que pontuaram


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a vanguarda da contemporaneidade e passa a observar o vocabulário ligado à tradição construtiva. Entre as sua afinidades eletivas estão Amílcar de Castro e Mira Schendel. As formas, agora dispostas através de um jogo de derivações geométricas, estão associadas a uma natureza controlada, mais ordenada, diversa da urgência da pichação. A construção composicional traz uma matéria opaca, protagonizada pelo acréscimo de uma espiral de sucessivas camadas que criam uma superfície convertida na densidade de um muro, um interminável palimpsesto de cores acrescido pela presença de formas geometrizadas, que se avolumam através de tensões dinâmicas.

Bolas | Bolas fotografia . 2011

Antonio Bokel atua no contexto da fotografia e adota um procedimento que acumula uma espécie de olhar memorialista, ao capturar o instante primeiro da pichação direta nos muros da cidade. Bokel recupera a imagem por ele criada e a reinscreve através da recuperação fotográfica. Uma espécie de desconstrução de imagens que não parecem interessadas em se definir, como se fossem fragmentos em constante desconstrução, sempre no ambíguo limite da efemeridade e da permanência. Na sequência, o artista utiliza experiências gráficas ou a própria serigrafia e finaliza com a intervenção pictórica na conclusão do seu processo artístico. Vanda Klabin é curadora da exposicnao 2014 61


Uma espécie de desconstrução VANDA KLABIN

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Observa-se nas obras de Antonio Bokel um constante cruzamento entre a arte e o tecido da vida urbana, como partes constitutivas do seu universo simbólico. Recorre a essa experiência da cidade como sequências existenciais - ali constrói o seu espaço referencial, ali parece inventar um território, ali pretende constituir uma extensão estética e espacial em uma dimensão mais ampla. Nessa zona de interseção, está presente uma capacidade de improvisação poética a partir da assimilação dos mais variados materiais e suportes, tais como objetos enigmáticos, utensílios urbanos, inserção de letras, jogos de palavras ou fragmentos literários, que transitam nas pinturas murais, nas superfícies das telas, nas fotografias, nas esculturas ou nas instalações espaciais. Mas é na sua pintura que encontramos os acordes do seu campo de ação, indicativos de uma força integradora de suas inquietudes estéticas, ao equilibrar cores, formas e volumes em um mosaico de pinceladas rítmicas que trazem à tona as assimetrias do mundo. Nesse conturbado território, o artista evoca uma reflexão sobre o espaço urbano contemporâneo. A sua produção artística não é um fenômeno isolado no ateliê, mas realiza a sua inscrição no mundo, em uma esfera pública, ao corporificar sua emergência nos muros da cidade – ambos acolhem simultaneamente sua prática pictórica e criam uma fusão entre a obra e o mundo. Antonio Bokel reivindica um estar no mundo, aglutinar experiências, deixar traços visíveis no olhar público e não apenas entre quatro paredes. As suas obras são verdadeiros manifestos visuais e apesar de apresentarem uma rica diversidade, se agrupam através de uma linguagem comum, ao reivindicar um sentido plástico vinculado às imagens e dissonâncias da vida urbana. A sua estratégia de leitura da figuração se manifesta através de aspectos provenientes da linguagem da arte pop, de uma visível influência de Andy Warhol, Jean Michel Basquiat e Keith Haring; no uso de elementos da cultura popular, como as ilustrações de revistas, jornais e suas expressivas composições - são portadores de uma impetuosidade emocional, trazem símbolos e motivos aleatórios com fortes conteúdos críticos, que são confrontadas com a crueza e rudeza dos muros urbanos. O artista converteu a pintura desenhada na sua principal técnica, ao dissolver os sistemas figurativos e redefinir as formas no espaço, produzindo uma nova geração de imagens. O desfazer pro-


gressivo passa a ser um exercício constante e a coexistência de formas díspares anuncia um pensamento de descontinuidade e ruídos visuais incorporados à sua cultura visual. Sua pintura gestual, instintiva, espontânea, encontra suas raízes na sua admiração por certos artistas que pontuaram a vanguarda da contemporaneidade e passa a observar o vocabulário ligado à tradição construtiva. Entre as sua afinidades eletivas estão Amílcar de Castro e Mira Schendel. As formas, agora dispostas através de um jogo de derivações geométricas, estão associadas a uma natureza controlada, mais ordenada, diversa da urgência da pichação. A construção composicional traz uma

exposição Nada Alem das Palavras | exposição Nada Alem das Palavras 2016 Galeria Matias Brotas Vitória, Brasil

matéria opaca, protagonizada pelo acréscimo de uma espiral de sucessivas camadas que criam uma superfície convertida na densidade de um muro, um interminável palimpsesto de cores acrescido pela presença de formas geometrizadas, que se avolumam através de tensões dinâmicas. Antonio Bokel atua no contexto da fotografia e adota um procedimento que acumula uma espécie de olhar memorialista, ao capturar o instante primeiro da pichação direta nos muros da cidade. Bokel recupera a imagem por ele criada e a reinscreve através da recuperação fotográfica. Uma espécie de desconstrução de imagens que não parecem interessadas em se definir, como se fossem fragmentos em constante desconstrução, sempre no ambíguo limite da efemeridade e da permanência. Na sequência, o artista utiliza experiências gráficas ou a própria serigrafia e finaliza com a intervenção pictórica na conclusão do seu processo artístico. Vanda Klabin é curadora da exposicnao 2014

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Arte como por acaso OSVALDO CARVALHO

O sentido de um discurso emerge para além daquilo que significa cada uma das palavras nele contidas passando a se expressar na superfície do seu todo. Mas só depois de feito é que se pode compreendê-lo. Antonio Bokel é objetivamente explícito na concepção de sua ação Como Por Acaso em que sua sintaxe, disposta em um lambe-lambe no fundo da vitrine, é borrada de tinta em um ato único propiciado pelo artista. Mas as consequências desse gesto não ficam naquela crosta do acontecimento em si que constatamos em data e local sabidos. Na proposta de Bokel nos deparamos antes com a dúvida que com a certeza. Será que presenciamos um comparativo, isto é, a performance se deu ao acaso ou, ao contrário, houve a intenção de que se assemelhasse com o casual e assim agiu o artista em conformidade? A grande charada está na relação lógica das palavras na frase que se ergue diante dos olhos em sua simplicidade colossal que parece não deixar dúvidas, e o expectador menos atento aceita sem muitas especulações. Haveríamos de nos preocupar com algo mais? Decerto que sim, porque vivemos um período em que justamente pequenos detalhes possuem grande potência, melhor dizendo, aquilo a que estabelecemos

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insignificâncias são justamente nossos piores deslizes. O que não pode ser maior que a montanha torna-se, paradoxalmente, imperceptível. Façamos então uma breve investigação sobre o estabelecimento da linguagem em Como Por Acaso; há muita coisa que pode ser captada abstratamente quando falamos, mas no momento da produção / recepção de enunciados temos algo único: é a interpretação, interpretando nos comunicamos e dessa maneira somos levados a uma outra dimensão universal da comunicação: a criatividade. Aqui (em seu enunciado) o artista nos leva a refletir sobre a precariedade de nossa fala e sobre a árdua tarefa que é a formação de um discurso consistente. Com um balde de tinta que lança sobre o “acaso planejado” se mostra avesso ao ponto de vista que se satisfaz linguisticamente, aquele que aceita a tradição. Bokel é daqueles artistas atentos que acompanham a formação cultural de seu tempo, a gênese de cada uma de suas dimensões, à feição de um procedimento dialético em que nunca se deixa reduzir a qualquer formalização. É um inquieto. Ao sermos confrontados com as possibilidades múltiplas da palavra é que percebemos a pertinência do processo poético-visual que a reinsere no campo da arte a qual, como dizia Michel Butor, derruba muros de conhecimento erguidos para separar a palavra da imagem. Nesse desenvolvimento o artista altera a referência alterando a verdade. Temos na vitrine o resultado de uma experimentação em que Bokel se submete à possibilidade do erro, não há uma real preocupação de fundamentação, mas concordância de que tudo está em constante movimento, tudo segue o fluxo de transformações da natureza. A arte não é algo a serviço do entendimento, aliás, devemos desconfiar daqueles que prezam antes de tudo pela clareza, ela como recurso lógico não é um bem absoluto, mas um meio. Osvaldo Carvalho 2014

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Arte como por acaso OSVALDO CARVALHO

O sentido de um discurso emerge para além daquilo que significa cada uma das palavras nele contidas passando a se expressar na superfície do seu todo. Mas só depois de feito é que se pode compreendê-lo. Antonio Bokel é objetivamente explícito na concepção de sua ação Como Por Acaso em que sua sintaxe, disposta em um lambe-lambe no fundo da vitrine, é borrada de tinta em um ato único propiciado pelo artista. Mas as consequências desse gesto não ficam naquela crosta do acontecimento em si que constatamos em data e local sabidos. Na proposta de Bokel nos deparamos antes com a dúvida que com a certeza. Será que presenciamos um comparativo, isto é, a performance se deu ao acaso ou, ao contrário, houve a intenção de que se assemelhasse com o casual e assim agiu o artista em conformidade? A grande charada está na relação lógica das palavras na frase que se ergue diante dos olhos em sua simplicidade colossal que parece não deixar dúvidas, e o expectador menos atento aceita sem muitas especulações. Haveríamos de nos preocupar com algo mais? Decerto que sim, porque vivemos um período em que justamente pequenos detalhes possuem grande potência, melhor dizendo, aquilo a que estabelecemos insignificâncias são justamente nossos piores deslizes. O que não pode ser maior que a montanha torna-se, paradoxalmente, imperceptível. Façamos então uma breve investigação sobre o estabelecimento da linguagem em Como Por Acaso; há muita coisa que pode ser captada abstratamente quando falamos, mas no momento da produção / recepção de enunciados temos algo único: é a interpretação, interpretando

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Grafite Lamb | Grafite Lamb Rio de Janeiro. 2012


Grafite Lamb | Grafite Lamb Rio de Janeiro. 2012

nos comunicamos e dessa maneira somos levados a uma outra dimensão universal da comunicação: a criatividade. Aqui (em seu enunciado) o artista nos leva a refletir sobre a precariedade de nossa fala e sobre a árdua tarefa que é a formação de um discurso consistente. Com um balde de tinta que lança sobre o “acaso planejado” se mostra avesso ao ponto de vista que se satisfaz linguisticamente, aquele que aceita a tradição. Bokel é daqueles artistas atentos que acompanham a formação cultural de seu tempo, a gênese de cada uma de suas dimensões, à feição de um procedimento dialético em que nunca se deixa reduzir a qualquer formalização. É um inquieto. Ao sermos confrontados com as possibilidades múltiplas da palavra é que percebemos a pertinência do processo poético-visual que a reinsere no campo da arte a qual, como dizia Michel Butor, derruba muros de conhecimento erguidos para separar a palavra da imagem. Nesse desenvolvimento o artista altera a referência alterando a verdade. Temos na vitrine o resultado de uma experimentação em que Bokel se submete à possibilidade do erro, não há uma real preocupação de fundamentação, mas concordância de que tudo está em constante movimento, tudo segue o fluxo de transformações da natureza. A arte não é algo a serviço do entendimento, aliás, devemos desconfiar daqueles que prezam antes de tudo pela clareza, ela como recurso lógico não é um bem absoluto, mas um meio. Osvaldo Carvalho 2014

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Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem. Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.

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José Saramago, Ensaio sobre a cegueira | Ensaio sobre a cegueira


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Acidentes hidrográficos sobre Kenzo Tange MARIO GIOIA

O mundo gráfico de Antonio Bokel não pode ser desmembrado de sua farta produção em outras linguagens. Agora, os grafismos se relacionam menos à escrita de rua, esta mais direta, multicolorida, às vezes pouco reflexiva e só barulhenta, e hoje se ligam a uma matriz não tão comum para ele, um livro. Mas não o livro de artista, suporte difundido com contundência por variados autores por meio das mais diferentes buscas _ e talvez para contrapor-se à virtualidade onipresente de nossos tempos _, e sim a publicação impressa como uma matriz de experimentações. As páginas em preto e branco de um art book sobre a obra de Kenzo Tange tornaram-se superfícies de ‘acidentes’ hidrográficos da caneta do artista, despedaçando-se, fundindo-se cromaticamente e virando outro chassi, mais instável, gestual e submetido a certa violência. Em outra operação, a posteriori, as anteriores páginas em um couché elegante se transmutaram

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em paisagens cinzentas, nas quais formas urbanas, de concreto maciço, parecem se liquefazer e dar uma tíbia materialidade ao que atualmente pode ser chamado de ‘modernidade líquida’. Cabe fazer uma importante explicação sobre a robusta obra arquitetônica de Kenzo Tange (1913-2005). Ganhador de um Pritzker, a produção do autor japonês tanto provocou delírios maravilhosos e utópicos influenciando decisivamente o agrupamento dos metabolistas como também foi elogiada por associar a tradição construtiva do país oriental a uma modernidade de primeira hora. Uma espécie de legado exposto ao risco, uma união entre contenção e organicidade, capaz de dar à imagética do país asiático algumas de suas chaves visuais recentes, emblemas de uma sociedade que mira distintos polos, abordagens e vivências. Frequentador cotidiano do Rio Comprido, onde fica seu ateliê, Bokel tem contato direto com essa modernidade torta tão típica da ‘brasilidade’. A via principal do bairro carioca, antes um lócus que almejava alguma sofisticação, foi cortada por um ‘minhocão’, essa solução metropolitana brasileira tão usada e de trágicos resultados para a sensível teia urbana. Em meio a esses escombros, o artista vai construindo, pouco a pouco, extratos poéticos do que poderia ser apenas degradado, malfeito, precário. O concreto que surge modularmente em suas pinturas e tridimensionais vai aparecer novamente nas fotogravuras e se tornar matéria formal, um referente visual e de ideias. A superfície aparentemente lisa e sólida será afetada pela mão do artista, em traços informes e não domesticados, lembrando a gestualidade ágil do spray ativo em paredes alheias. Contudo, tal ressonância não linear abdica da reclamação fácil, do lema de panfleto, da gasta palavra de ordem. Tem relações mais com contradições pessoais, paradoxos de existência e dúvidas essenciais, mas que podem ser sim produtos de um silêncio, de uma introversão, de um recolhimento ético. Mario Gioia, data

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Acidentes hidrográficos sobre Kenzo Tange MARIO GIOIA

O mundo gráfico de Antonio Bokel não pode ser desmembrado de sua farta produção em outras linguagens. Agora, os grafismos se relacionam menos à escrita de rua, esta mais direta, multicolorida, às vezes pouco reflexiva e só barulhenta, e hoje se ligam a uma matriz não tão comum para ele, um livro. Mas não o livro de artista, suporte difundido com contundência por variados autores por meio das mais diferentes buscas _ e talvez para contrapor-se à virtualidade onipresente de nossos tempos _, e sim a publicação impressa como uma matriz de experimentações. As páginas em preto e branco de um art book sobre a obra de Kenzo Tange tornaram-se superfícies de ‘acidentes’ hidrográficos da caneta do artista, despedaçando-se, fundindo-se cromaticamente e virando outro chassi, mais instável, gestual e submetido a certa violência. Em outra operação, a posteriori, as anteriores páginas em um couché elegante se transmutaram em paisagens cinzentas, nas quais formas urbanas, de concreto maciço, parecem se liquefazer e dar uma tíbia materialidade ao que atualmente pode ser chamado de ‘modernidade líquida’. Cabe fazer uma importante explicação sobre a robusta obra arquitetônica de Kenzo Tange (1913-2005). Ganhador de um Pritzker, a produção do autor japonês tanto provocou delírios maravilhosos e utópicos influenciando decisivamente o agrupamento dos metabolistas como também foi elogiada por associar a tradição construtiva do país oriental a uma modernidade de primeira hora. Uma espécie de legado exposto ao risco, uma união entre contenção e organicidade, capaz de dar à imagética do

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país asiático algumas de suas chaves visuais recentes, emblemas de uma sociedade que mira distintos polos, abordagens e vivências. Frequentador cotidiano do Rio Comprido, onde fica seu ateliê, Bokel tem contato direto com essa modernidade torta tão típica da ‘brasilidade’. A via principal do bairro carioca, antes um lócus que almejava alguma sofisticação, foi cortada por um ‘minhocão’, essa solução metropolitana brasileira tão usada e de trágicos resultados para a sensível teia urbana. Em meio a esses escombros, o artista vai construindo, pouco a pouco, extratos poéticos do que poderia ser apenas degradado, malfeito, precário.

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O concreto que surge modularmente em suas pinturas e tridimensionais vai aparecer novamente nas fotogravuras e se tornar matéria formal, um referente visual e de ideias. A superfície aparentemente lisa e sólida será afetada pela mão do artista, em traços informes e não domesticados, lembrando a gestualidade ágil do spray ativo em paredes alheias. Contudo, tal ressonância não linear abdica da reclamação fácil, do lema de panfleto, da gasta palavra de ordem. Tem relações mais com contradições pessoais, paradoxos de existência e dúvidas essenciais, mas que podem ser sim produtos de um silêncio, de uma introversão, de um recolhimento ético. Mario Gioia, data 119


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exposição Nada Alem das Palavras | exposição Nada Alem das Palavras 2016 Galeria Matias Brotas Vitória, Brasil


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Hieróglifos contemporâneos DANIELA NAME

“Eu preciso dessas palavras escritas” Arthur Bispo do Rosário

A relação de Antonio Bokel com as palavras e com o grafite ganha destaque e novos significados nessa primeira individual do artista em Vitória. O que se vê, não apenas no interior da galeria Matias Brotas, mas também na obra que vaza para além do espaço expositivo - na intervenção feita na fachada e nos sampler-lambes espalhados pela cidade - é a afirmação do interesse do artista pela escrita. Nas cavernas de Lascaux, as primeiras pinturas foram e são simultaneamente arte e comunicação, conjunto de signos gráficos e figurativos que formam uma linguagem a ser decifrada, um vocabulário visual anterior aos alfabetos. Do Brasil à China, da Rússia ao mundo árabe, passando pelos alfabetos grego e esquimó, cada letra guarda em si a memória de uma imagem, que um dia foi desenho a tentar narrar e guardar o mundo para o tempo. As palavras não deixam de ser uma espécie de arquivo fantasmático, da sobrevivência do casamento entre ícones e letras nos ideogramas japoneses aponta para a 135


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possibilidade de as palavras também serem uma espécie de paisagem. Um horizonte instável, mas sempre possível, onde vamos buscar indícios sobre uma cultura e uma sociedade. Bokel começou a mirar esse horizonte a partir de sua relação com o grafite e as intervenções urbanas. Sua pintura tinha, em seus primeiros passos, forte vínculo com a obra de artistas como Jean-Michel Basquiat e Keith Haring. Nada além das palavras apresenta um amadurecimento do artista carioca para além das referências da arte urbana. A escultura Portugal no mundo, em que um galho de bronze perfura o livro que dá nome à peça, é muito emblemática para compreender esses novos caminhos. O galho, referência de paisagem recriada pelo artista, é também uma lança fálica que golpeia e fecunda a enciclopédia, espelho para nossa realidade como nação. No Brasil, o idioma colonizador estuprou as línguas indígenas donas desse país-continente, assim como os dialetos africanos de reis e rainhas capturados e escravizados. Mas o explorador europeu acabou sendo poluído, corrompido e adulterado por aqueles que oprimiu, já que o português falado no Brasil é um ruído do tripé de raças que marca nossa origem, constantemente recombinado com todas as influências que recebe de um mundo globalizado. Black circuluz, tela tríptico que domina a montagem, fala desses ruídos entre paisagem e grafismos, e de como a luz acobreada dos trópicos pode aquecer e ressignificar o olhar sobre a paisagem e a escrita/discurso que criamos sobre ela. Ecoam nessa pintura todos os trabalhos reunidos em Vitória, um conjunto que, além de destacar a sobreposição entre palavra e imagem - e a leitura do grafite como um hieróglifo contemporâneo - evidencia a capacidade de Bokel de mesclar as várias linguagens artísticas. Nas telas maiores, quase monumentais, as áreas de monocromia, sobretudo na cor branca, como se vê na pintura Acaso, lembram as máscaras de extênsil usadas para pintar e escrever nos muros da cidade e revelam a presença de um vocabulário de gravura se infiltrando no fazer pictórico. É interessante, ainda, ver como tanto nos trabalhos agigantados quanto nas pequenas pinturas há um arranjo aparentemente randômico entre uma paisagem que parece ter sido feita com carimbos ou com monotipia, áreas de cor e o grafismo. Neste último, há a recorrência dos círculos, elemento que faz da escrita de Bokel algo contínuo, fluido, cíclico e feminino. Ao criar um painel que se estrutura a partir das distinções, pintando como quem faz uma espécie de sampler, Bokel transpõe para seu trabalho um pouco da lógica das cidades, onde cartazes e


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letreiros se acumulam e se invadem nos muros e se misturam à vegetação, à identidade visual dos ônibus em movimento, às cores dos carros e dos passantes. Essa noção da cidade como um painel de signos efêmeros, em constante reconfiguração, aparece não apenas nas pinturas, mas também nos trabalhos em outros suportes - escultura, fotografia ou gravura. No conjunto exposto na Matias Brotas, o artista adiciona a alguns desses mosaicos de fragmentos áreas inteiras pintadas de dourado, o que causa estranheza - a melhor das estranhezas - no observador. Cor ancestral para a história da

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pintura (dos ícones bizantinos a Klimt, passando pelas iluminuras medievais) e da arquitetura (das igrejas barrocas brasileiras aos palácios Ming), o dourado é o brilho mais branco que o branco, tom capaz de criar uma superfície ao mesmo tempo opaca e reflexiva, uma imagem que dura e reverbera na retina, no corpo e na memória de quem vê. Além de toda a sua carga histórica e simbólica, o dourado cria um estado de suspensão, algo como uma paisagem entre parênteses. Ao optar pelo uso da cor, ora salpicando ouro sobre o branco, ora misturando-o a um vermelho árabe e oriental, Bokel dá à efemeridade um banho daquilo que se alonga e que dura - como símbolo e como estímulo visual. Algo de nossa constante brevidade que pode, quem sabe, roçar no eterno. Daniela Name, data

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Hieróglifos contemporâneos DANIELA NAME

“Eu preciso dessas palavras escritas” Arthur Bispo do Rosário

A relação de Antonio Bokel com as palavras e com o grafite ganha destaque e novos significados nessa primeira individual do artista em Vitória. O que se vê, não apenas no interior da galeria Matias Brotas, mas também na obra que vaza para além do espaço expositivo - na intervenção feita na fachada e nos sampler-lambes espalhados pela cidade - é a afirmação do interesse do artista pela escrita. Nas cavernas de Lascaux, as primeiras pinturas foram e são simultaneamente arte e comunicação, conjunto de signos gráficos e figurativos que formam uma linguagem a ser decifrada, um vocabulário visual anterior aos alfabetos. Do Brasil à China, da Rússia ao mundo árabe, passando pelos alfabetos grego e esquimó, cada letra guarda em si a memória de uma imagem, que um dia foi desenho a tentar narrar e guardar o mundo para o tempo. As palavras não deixam de ser uma espécie de arquivo fantasmático, da sobrevivência do casamento entre ícones e letras nos ideogramas japoneses aponta para a possibilidade de as palavras também serem uma espécie de paisagem. Um horizonte instável, mas sempre possível, onde vamos buscar indícios sobre uma cultura e uma sociedade. Bokel começou a mirar esse horizonte a partir de sua relação com o grafite e as intervenções urbanas. Sua pintura tinha, em seus primeiros passos, forte vínculo com a obra de artistas como Jean-Michel Basquiat e Keith Haring. Nada além das palavras apresenta um amadurecimento do artista carioca para além das referências da arte urbana. A escultura Portugal no mundo, em que um galho de bronze perfura o livro que dá nome à peça, é muito emblemática para compreender esses novos caminhos. O galho, referência de paisagem recriada pelo artista, é também uma lança fálica que golpeia e fecunda a enciclopédia, espelho para nossa realidade como nação. No Brasil, o idioma colonizador estuprou as línguas indígenas donas desse país-continente, assim como os dialetos africanos de reis e rainhas capturados e escravizados. Mas o explorador europeu acabou sendo poluído, corrompido e adulterado por aqueles que oprimiu, já que o português falado no Brasil é um ruído do tripé de raças que marca nossa origem, constantemente recombinado com todas as influências que recebe de um mundo globalizado. Black circuluz, tela tríptico que domina a montagem, fala desses ruídos entre paisagem e grafismos, e de como a luz acobreada dos 142


trópicos pode aquecer e ressignificar o olhar sobre a paisagem e a escrita/discurso que criamos sobre ela. Ecoam nessa pintura todos os trabalhos reunidos em Vitória, um conjunto que, além de destacar a sobreposição entre palavra e imagem - e a leitura do grafite como um hieróglifo contemporâneo - evidencia a capacidade de Bokel de mesclar as várias linguagens artísticas. Nas telas maiores, quase monumentais, as áreas de monocromia, sobretudo na cor branca, como se vê na pintura Acaso, lembram as máscaras de extênsil usadas para pintar e escrever nos muros da cidade e revelam a presença de um vocabulário de gravura se infiltrando no fazer pictórico. É interessante, ainda, ver como tanto nos trabalhos agigantados quanto nas pequenas pinturas há um arranjo aparentemente randômico entre uma paisagem que parece ter sido feita com carimbos ou com monotipia, áreas de cor e o grafismo. Neste último, há a recorrência dos círculos, elemento que faz da escrita de Bokel algo contínuo, fluido, cíclico e feminino. Ao criar um painel que se estrutura a partir das distinções, pintando como quem faz uma espécie de sampler, Bokel transpõe para seu trabalho um pouco da lógica das cidades, onde cartazes e letreiros se acumulam e se invadem nos muros e se misturam à vegetação, à identidade visual dos ônibus em movimento, às cores dos carros e dos passantes. Essa noção da cidade como um painel de signos efêmeros, em constante reconfiguração, aparece não apenas nas pinturas, mas também nos trabalhos em outros suportes - escultura, fotografia ou gravura. No conjunto exposto na Matias Brotas, o artista adiciona a alguns desses mosaicos de fragmentos áreas inteiras pintadas de dourado, o que causa estranheza - a melhor das estranhezas - no observador. Cor ancestral para a história da pintura (dos ícones bizantinos a Klimt, passando pelas iluminuras medievais) e da arquitetura (das igrejas barrocas brasileiras aos palácios Ming), o dourado é o brilho mais branco que o branco, tom capaz de criar uma superfície ao mesmo tempo opaca e reflexiva, uma imagem que dura e reverbera na retina, no corpo e na memória de quem vê. Além de toda a sua carga histórica e simbólica, o dourado cria um estado de suspensão, algo como uma paisagem entre parênteses. Ao optar pelo uso da cor, ora salpicando ouro sobre o branco, ora misturando-o a um vermelho árabe e oriental, Bokel dá à efemeridade um banho daquilo que se alonga e que dura - como símbolo e como estímulo visual. Algo de nossa constante brevidade que pode, quem sabe, roçar no eterno. Daniela Name, data

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CRÉDITOS

FICHA CATALOGRÁFICA


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