ALAGOAS
POPULAR
Folguedos e Danรงas de Nossa Gente 2013
I 59 a
Instituto Arnon de Mello. Alagoas Popular: Folguedos e Danças da Nossa Gente/ Carmem Lúcia Dantas – Pesquisa e Texto; Douglas Apratto Tenório- Apresentação; Josefina Novaes – Consultoria de Pesquisa de Campo; Ivone Santos – Revisão; Ricardo Ledo – Fotografia. Maceió: IAM,2013. 242p. 25 cm. Ill. ISBN: Conteúdo: ( Fasc.1 – Apresentação; Fasc.2 - Presépio, Pastoril; Fasc.3 - Reisado, Guerreiro; Fasc.4 – Chegança, Fandango; Fasc.5 – Negra da Costa, Quilombo; Fasc.6 – Taieira, Baiana; Fasc.7 – Maracatu, Bumba-Meu-Boi, Boi de Carnaval; Fasc. 8 – Coco, Quadrilha; Fasc. 9 – Mané do Rosário, Dança de São Gonçalo, Bando; Fasc. 10 – Torre, Cambindas, Caboclinho.) 1 – Folguedos Folclóricos – Alagoas. II Alagoas- Cultura Popular. I Instituto Arnon de Mello II Dantas, Carmem Lúcia – Pesquisa e Texto. III Tenório, Douglas Apratto- Apresentação. IV Novaes, Josefina – Consultoria de Pesquisa de Campo. V Santos, Ivone – Revisão. VI Ledo, Ricardo – Fotografia. VII Título CDD 793.3198135
ALAGOAS
POPULAR
Folguedos e Danรงas de Nossa Gente 2013
Os protagonistas A
qui os temos novamente, em “Alagoas Popular – Folguedos e Danças de Nossa Gente”, emergindo das sombras à luz, para serem reconhecidos como protagonistas dessa tessitura feita de
elementos prosaicos, quase despretensiosos, para animar os dias, fugindo às suas asperezas, de movimentos e cantos, singelos, ingênuos, mas que são o mais forte componente dessa rede a que chamamos cultura, mais precisamente cultura popular. Há pouco os tivemos no significante “Mestres Artesãos das Alagoas – Fazer Popular”, aí com formas engendradas por mãos hábeis, de sulcos ásperos. Argila, ferro e algodão, uma variedade de materiais servindo para construções utilitárias, decorativas ou simplesmente elementos de projeção de uma rica e crítica estética, feita pelos que habitam nos desvãos da sociedade. E as igrejas, capelas, conventos e elementos de adorno que vimos em “Alagoas Memorável – Patrimônio Arquitetônico”? - outro tomo dessa tríade que resgata os feitos do passado e do presente que estão na base do fazer e do acontecer de nossa gente, dos que já desapareceram nas brumas do tempo e dos demais, que quase silenciosamente continuam fazendo, sem pretensão ao protagonismo que de fato e de direito merecem. Ecos do passado e vozes do presente que nos encantam. Simplicidade feita forma, gestual convertido em beleza e palavras que adquirem sonoridade. Fazedura, cantos e danças da gente alagoana, edificadores anônimos de uma estética e da memória, da identidade e - por que não dizer? - da alegria, porque é melhor ser alegre do que triste, como disse o poeta.
Stefani B. Lins
Mateus de Guerreiro
ALAGOAS POPULAR
Índice Geral
Folguedos e Danças de Nossa Gente
Presidente do Conselho Estratégico Carlos Alberto Mendonça Diretor Executivo Luis Amorim
Presidente Carlos Alberto Mendonça
Núcleo de Projetos Especiais Coordenação Geral Leonardo Simões Coordenação Editorial Farol Editora & Comunicação Apresentação Douglas Apratto Tenório Pesquisa & Texto Cármen Lúcia Dantas Consultoria de Pesquisa de Campo Josefina Novaes Revisão Ivone Santos Fotografia Ricardo Lêdo Direção de Arte e Diagramação Wellington Charles Tratamento de Fotos Victor Paiva Obra poética - Maurício de Macedo, “das alagoas seguido de guerreiro” e “A Poesia no Cordão - seguido de Pastoril” - Edufal - Maceió - 2002/2003. Impressão - Moura Ramos Gráfica Editora Tiragem - 30.000 Exemplares Instituto Arnon de Mello Endereço - Rua Aristeu de Andrade, 355 - Farol Maceió /AL - Cep 57051-090 Telefone/Fax - (82) 4009.7777 / 4009.7756 E-mails: gazeta@gazetaweb.com comercialga@gazetaweb.com
Os Folguedos em Alagoas
14
Um povo mestiço e único Folclore, concepção do mundo e da vida As antigas festas de Natal Origem do folclore alagoano Uma só história e uma geografia variada O alpendre da casa-grande e os limites da senzala A Escola de Viçosa
18 21 23 24 27 29 30
Folguedos e Danças de Alagoas
35
Presépio Por dentro das Jornadas Ensaiadoras e animadores O auto e a função - A peleja entre o Bem e o Mal Pastoril - A rivalidade dos cordões
Reisado Chegada à Colônia A ancestralidade de Reis Personagens e trajes, o domínio da cor Na cadência da função Entremeios, as prendas da sorte Despedida em marcha
(Palhaço do Guerreiro Mensageiro do Padre Cícero)
As fotos utilizadas no Capítulo I deste trabalho pertencem ao acervo do Museu Théo Brandão, cujos fotógrafos foram citados nos respectivos créditos.
51 53 54 56 58 60
Guerreiro Guerreiros brincantes, preferência caeté 61 Personagens e trajes, um reino de gosto popular 64 O auto e sua função, fragmentos da fé e da guerra 65 Entremeios 67 Despedida 68
Negra da Costa Traços da etnia O folguedo em Alagoas Personagens e trajes O auto e a função
Foto capa: Darci Macena Bispo
38 39 44 45
73 75 76 78
Quilombo Origem discutida Personagens e trajes O auto e sua função
80 82 85
Chegança A chegança dos mouros Os grupos locais - Penedo, Coqueiro Seco, Rio Largo Personagens e trajes O auto e a função
Bumba-Meu-Boi 91 94 97 98
Fandango Outras façanhas no mar Os grupos locais O auto e a sua função
99 102 104
109 111 112 113
Taieira Do cortejo ao folguedo Personagens e trajes O auto e a função
114 118 1210
Baianas Origem discutida Personagens e trajes Mestras em destaque O auto e a função
121 124 125 126
Coco A origem em questão Personagens e trajes Na “puxada” do Coco A dança e a função
131 134 136 137
161
Mané do Rosário A Vila Real O começo do mistério Registro dos pesquisadores Personagens e trajes Tradição de Mestra O caminho do cortejo O auto e a função
167 169 172 176 178 182 186
Bando Arautos de Santa Luzia Personagens e trajes O Bando em evolução
190 192 196
Dança de São Gonçalo A origem remota Personagens e trajes A dança e a evolução
200 204 207
Tradição ancestral O sentido da dança Personagens e trajes O folguedo e a folclorização do rito
211 215 217 218
Caboclinho 138 139 141 142 143 144
Maracatu Perseguição histórica Maracatu Nação e Maracatu Rural Personagens e trajes Alegoria e função
Origem discutida
Toré
Quadrilha O selo da erudição Quadrilha em duas versões Quadrilha regional - personagens e trajes A evolução dos pares Quadrilha Moderna - personagens e trajes Quadrilha Moderna em Evolução
156 158 159 160
Boi-de-Carnaval
Samba de Matuto As faces múltiplas do samba A folgança em Alagoas Personagens e trajes O auto e a função
No rastro da lenda A folgança em Alagoas Personagens e trajes O boi e sua evolução
149 152 154 155
Origem indígena O auto da região norte Personagens e trajes O auto e a função
220 222 224 226
Cambindas Herança boreal A folgança continua Personagens e trajes Cambindas em evolução
228 230 232 233
Glossário
235
Bibliografia
237
E
ste livro, que dá uma amostra do resultado do Folguedos Alagoanos, é apenas uma janela para a imensa importância do
trabalho desenvolvido pelo projeto. É uma árdua tarefa resumir o alcance das atividades e seu impacto na região numa única publicação. Nossos objetivos ao patrocinar cultura, vão além de levar as obras ao público. Valorizamos a formação das plateias como um todo, e este projeto tem o papel de gerar capacidade de reflexão através do senso crítico no que se refere à arte. Valorizar o resgate das tradições faz parte da nossa política de patrocínios. Reconhecer a produção passada, incentivar a pesquisa e a discussão e democratizar o acesso à arte são para nós motivos de inspiração para continuar patrocinando a cultura nacional. Para a Petrobras, a cultura deve chegar a todos, independente das cidades onde nosso negócio atua direta ou indiretamente. Afinal, o desenvolvimento do Brasil faz parte do nosso desenvolvimento. A inspiração que vem de cada envolvido nos motiva a seguir em frente e enfrentar nossos desafios a cada dia. Petrobras
CapĂtulo I
Mestre de Guerreiro Acervo Museu Théo Brandão
Danço com o corpo maneiro, piso pra lá e pra cá. A única paixão que conheço é o prazer de dançar. (Maurício de Macedo)
14 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Os Folguedos em Alagoas Douglas Apratto Tenório
A
preservação dos valores culturais caracteriza-se fortemente como uma peça de re-
sistência atual e uma tendência inquestionável da época contemporânea. A valorização do regional, do universo local, em contraposição à onda avassaladora da globalização que inunda a economia, o comércio, os costumes, a comunicação, é vital para a afirmação de identidades específicas, da sensação de pertencimento que garante às pessoas o orgulho de suas raízes e a referência de seus lugares.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 15
Guerreiro
16 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
No mundo estandardizado, das marcas e
Não é fácil para o Brasil industrial e ur-
gente simples, do povo, que soube assimilar
logomarcas das grandes empresas que estão
bano, construído sobre o asfalto, o plástico e
as várias contribuições étnicas, os diálogos
em todos os pontos, em todos os países, que
as grandes concentrações urbanas, compre-
diversos e a urdidura de muitos atores pro-
não têm origem nem fronteiras, cuja presen-
ender, ainda que parcimoniosamente, a criati-
venientes de universos geográficos e práticas
ça atropela nacionalidades e estados, a cultura
vidade e a beleza do caldeirão extraordinário
dessemelhantes.
constitui elemento fundamental para a valo-
do seu interior, de seus saberes ancestrais,
É significativo assinalar que é cada vez
rização do homem e do seu meio, sejam quais
de sua cultura que foi construída longinqua-
mais expressivo o número de pessoas que
forem as formas escolhidas para traduzir as
mente nas fazendas, casas-grandes e senzalas
vêm dando atenção ao indispensável olhar
visões de mundo e as demandas que se colo-
desde sua época agrário-colonial. As imagens
sobre a nossa história a partir de nossas ra-
cam entre a arte e a cultura dos rincões mais
que nos caracterizam e simplificam são ge-
ízes populares e não só de nossos ancestrais
distantes e a poderosa indústria cultural que
ralmente da seca, da violência, da perversão
ibéricos e europeus, brancos, mas também
irradia e domina as tendências mundiais nas
política, das paisagens naturais sob o crivo do
sob a perspectiva dos antepassados indígenas
metrópoles hegemônicas.
exotismo e do oportunismo midiático.
e africanos que aqui se encontraram na fase
Sob a égide da modernidade não se deve
A cultura nordestina, onde Alagoas está
pioneira de formação e que se plasmaram
esquecer que o processo de industrialização
inserido - assim como a amazônica, a das ge-
definitivamente na concepção de nossa iden-
gerou transformações sociais e urbanas que
rais, a pantaneira e a gaúcha -, é o lugar de
tidade. Na verdade, foi esse fantástico calde-
dificultam e às vezes incompatibilizam a con-
encontro com a história brasileira, é o refle-
amento o fator desencadeador das distinções
vivência entre o passado e o futuro, negando
xo de sua formação original, de convivências
mais notáveis da nossa cultura, a competên-
a unidades periféricas, como Alagoas, o aces-
plurais. Tem ligada a sua integração com a
cia enorme de incorporar, metamorfosear e
so ao tão apregoado progresso com a fruição
sociedade que a gerou, o que estabelece uma
transformar, ou seja, reinventar elementos de
de um autêntico lastro cultural erigido por
conexão entre a regionalidade e a naciona-
outras estirpes que nos conceberam como
séculos em sua trajetória histórica.
lidade, um trabalho feito por gerações, por
povo e sociedade.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 17
Um povo mestiço e único E
sse amálgama se reflete em nosso
do qual as várias contribuições que formam
e sua exposição em diferentes momentos da
modo de ser, em nossos trejeitos, na
a alma brasileira se tocaram e se entrançaram
crônica brasileira. Cada momento da vida de
própria constituição de cada identidade regio-
para nos tornar o que somos hoje, um povo
seus habitantes e cada instante da sua trajetória
nal. Como é semelhante e ao mesmo tempo
mestiço, plural, único, que tem na diversidade
no tempo se ritualizam em ondas de encanto
diferente um alagoano de um paulista, um mi-
a espantosa força que vem da desigualdade
e brilho, desde o exemplo de seus heróis até o
neiro de um pernambucano, um maranhense
que nos forjou.
suor de seus operários, desde o duro trabalho
de um gaúcho, um carioca de um matogros-
Voltemos à unidade político-administrativa
na terra arada até a pesca nos seus rios, lago-
sense. Mesmo com a história comum, forma-
da federação brasileira onde nascemos e que
as e mares de infinito azul, perpassando pela
dos que fomos igualmente na antiga capitania
faz parte, junto com outros estados, da fabu-
sensibilidade de seus artistas, que conservam a
de Pernambuco, até nossa separação em 1817,
losa região nordestina. É a sua presença e o
alma dos antepassados e a fé dos vivos.
como são distintos na linguagem e nos há-
seu rico acervo cultural que nos interessam
Sem exagerar no bairrismo, podemos afir-
bitos um alagoano e um pernambucano. Ca-
agora. Alagoas é um lugar onde a história e
mar que Alagoas é uma região muito especial.
racterísticas bem diversas que não podem ser
a cultura encontraram campo fértil para se-
É um lugar onde a história tem deixado vestí-
confundidas.
meadura. Apesar da pequenez territorial, da
gios que têm sido, a todo o tempo, um ponto
Essa fusão se reflete na própria forma-
insignificância econômica se comparado a
de referência para grandes decisões do país.
ção da identidade nacional. O povo tem
outras unidades da federação, das dificuldades
Desde os começos da nação, mesmo subordi-
seus traços comuns, mas cada região possui
ingentes e das grandes demandas sociais, é
nada ao comando de Pernambuco - “o Leão
distinções próprias. Mais que compreender
um lugar onde a trajetória histórica refulge
do Norte”, então o centro de primazia da pá-
tal processo de fusão, nascido inicialmente
com brilho incomum.
tria brasileira em gestação - a pequena parte
entre índios, portugueses e negros africanos,
Pequeno em território e gigante na contri-
austral da antiga capitania de Duarte Coelho
é importante considerar que o curso desse
buição à história e à política do país, analistas
Pereira construiu solidamente um espírito cul-
processo se transformou no veio ao redor
se surpreendem com a projeção de seus filhos
tural próprio que permanece no tempo.
18 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Repetimos uma afirmação nossa em trabalho anterior: há uma coalescência histórica entre Alagoas e o Brasil. Uma frase de um autor, talvez até elaborada com uma intenção não muito boa, diante de tantos eventos de muita reverberação que tiveram a primitiva terra dos caetés como teatro, é que o estado é uma verdadeira oficina histórica, antropológica e sociológica a ser estudada por pesquisadores do jornalismo e da academia. A realidade que não pode ser contestada, e é cristalina como água da fonte, é que por uma série de razões transpusemos os limites geográficos e geopolíticos, passando a ocupar um lugar de destaque na história e na mídia brasileira. Como avistar a bandeira caeté na ágora globalizada? Como conhecer, estudar, valorizar e amar a identidade alagoana e esquecer que somos portadores de uma missão de cultura, pois neste campo laboramos? Vivendo a era da internet, num tempo em que a celeridade dos acontecimentos gera a impressão de obsolescência material ou de anacronismo espiritual, nada mais elogiável do que a preocupação do Instituto Arnon de Mello, através de seus dirigentes, com este projeto de divulgação de nossos folguedos, nosso folclore, numa viagem pelo mundo cultural alagoano, de arte centenária, um tesouro que está em vias de extinção, pois quase não é conhecido pelas novas gerações. Um mundo onde Chegança, Pastoril, Reisado, Guerreiro, Caboclinhos etc. são termos deletados, anacrônicos, que ninguém sabe o que representam. Um verdadeiro tesouro que reflete o legado cultural das nossas comunidades é reavivado nesta obra singular da Organização Arnon de Mello, que conduz um estandarte e não abdica do direito à autodeterminação do povo de Alagoas e ao dever de projetar nossa identidade cultural no cenário externo.
Figurante de Reisado Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 19
Prisão do Índio Peri - Guerreiro de João Amado - J. Medeiros 20 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Folclore, concepção do mundo e da vida A
vida do universo alagoano decor-
sido uma imensurável casa-grande em redor
gerado na comunidade energiza o fluxo de
re dos valores de sua gente, de suas
da qual o povo fantasia, dança, festeja e con-
criação, gera o conjunto da obra, o repertó-
emoções, humores, fatalismo, crenças, sabe-
ta estórias, partes de uma história ainda não
rio. Cada microcosmo social, cada sociedade
res, esperanças, padecimentos do seu imagi-
totalmente conhecida. Seu povo simples, hu-
concebe sua própria cultura e através dela
nário. Pode ser redundante, mas é bom dizer:
milde, trabalhador, bravo, é guardião de patri-
interage com outras comunidades, de forma
Alagoas é o mundo dos alagoanos. Embora
mônios que se mostram às vezes encobertos,
eclética e universal pelas suas características e
aceite muitas de suas formulações, não con-
às vezes revelados, numa ofuscante visão nos
símbolos. O folclore tem o condão de reunir
cordo totalmente com Antonio Gramsci, que
espaços das ruas e das praças do interior e
as diversas produções comunitárias dando-
traduziu tão bem a realidade cultural do Ve-
da periferia das cidades maiores, nos merca-
-lhes harmonia geral, formando uma coleção
lho Mundo, seu continente, ao afirmar que
dos e nas feiras, no Carnaval, na Quaresma,
que sai das profundezas da sua matriz históri-
o folclore é uma concepção do mundo e do
nas festas juninas e de padroeiros, no Natal,
ca. Até a chegada da globalização, da adoção
povo, assim entendido como complexo de
quando a população se engalana com roupas
integral dos modelos transacionais, respirava-
classes subalternas e instrumentais que se
singelas, exibe a sua arte e desfila gestos, can-
-se folclore em todos os pontos de Alagoas
contrapõem objetivamente às classes oficiais
tos, danças, evoluções, cordéis, exibindo o
o ano inteiro. Assistiam-se manifestações
e dominantes.
legado dos ancestrais.
populares variadas, de estética apurada, com
Alagoas é, sem dúvida, um grande polo
Ao inventar o mundo e a vida o povo pro-
cadência e coreografia que encantavam e da-
cultural brasileiro. Sem esquecer a senzala,
duz uma cultura, e na vivência cultural firma
vam orgulho aos habitantes da chamada “ter-
parte importante da nossa formação, que tem
a sua identidade social. Tal comportamento
ra dos marechais”.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 21
Reisado de Viรงosa Robert Stuckert - 1951
22 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
As antigas festas de Natal Q
uem se esquece das festas de Natal
do já desaparecido Fandango, de origem
destacado, Maracanã ou Wembley, nas pra-
de antigamente, quando o rodopio
espanhola/portuguesa, com cantigas do-
ças centrais e em frente à igreja-matriz de
das Baianas causava verdadeiro frisson nos
lentes acompanhadas por violão e cava-
qualquer cidade que se prezasse. Gilberto
espectadores? Dos desfiles dos Cabocli-
quinho, ou do Guerreiro, autenticamente
Freyre dizia que para conhecer o nosso
nhos, vertente do Maracatu pernambucano
caeté, mistura do Caboclinho com Reisado,
povo interessa muito mais o seu caráter, o
que foi criado também do Reisado alagoa-
bailado exótico com personagens ricamen-
estilo das danças, as associações, os trajes,
no, com seus índios pulando, tocando apito
te coloridos que eletrizava e emudecia de
seus folguedos e manifestações populares
e arrastando multidões ao som da Banda
enlevo as plateias? Mas envolvente mesmo,
do que os feitos excepcionais de seus he-
de Pífanos, a conhecida “Esquenta Muié”?
o mais participativo de grupos, multidões,
róis.
Ou ainda, nas praças principais do interior
comunidades, vilas e bairros era, sem dúvi-
cos quisesse dizer nesta comparação que,
ou em Bebedouro, Tabuleiro do Martins,
da, o Pastoril.
gerado nas entranhas da sociedade e com
Talvez o famoso mestre de Apipu-
Fernão Velho e em Maceió, da bela versão
Quem resistia a gritar - aplaudindo as
a fusão de várias contribuições culturais,
nordestina das Mouriscadas portuguesas
pastoras e as cores de sua preferência - ao
o povo participa diretamente da criação e
- a inconfundível Chegança? Como esque-
ver aquele folguedo, numa disputa que gal-
da manutenção dessas manifestações, que
cer os Presépios que originaram os Pastoris
vanizava dias e dias até a votação final da
são, por assim dizer, a história não escri-
dançados nas praças, atraindo os passantes
competição? Eram jornadas arrebatado-
ta, resumindo as tradições e as esperanças
pela beleza de suas figuras; do Quilombo,
ras que colocavam em campos opostos o
das coletividades, baseada no passado, mas
uma reedição da luta entre negros e índios
azul e o encarnado! Encenações inesque-
sempre adaptada à mentalidade e às aspi-
ou entre negros e cristãos, numa fusão ex-
cíveis realizadas em residências, colégios e
rações do presente. Um capítulo, portanto,
traordinária de gostos e culturas distintas;
teatros, mas que tinham seu cenário mais
especial e indispensável.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 23
T
Origens do folclore alagoano
udo que vem do povo tem uma lógica,
na formatação do nosso folclore. E que não
cultura”. Alongando-se ainda sobre o tema,
uma razão, uma função. Ele nada faz
é fácil nem simples demarcar a que grupo
ele assevera que os disfarces de animais, tão
sem motivo, e o que produz está geralmen-
pertence uma de suas variantes ou estabele-
usados em nossas manifestações dramáticas
te ligado ao comportamento do grupo ou
cer com precisão a fronteira de determinada
e danças folclóricas - Bumba-Meu-Boi, Reisa-
a uma norma social ou psico-religiosa, um
manifestação folclórica. Com a humildade
do, Guerreiro e outros -, originam-se do pa-
traço que vem de tempos longínquos, lá do
dos sábios, afirma que há dúvidas em alguns
leolítico superior, como os encontrados nas
fundo de nossas raízes, perdidas na noite dos
casos, e em outros é inteiramente impossível
pré-históricas cavernas da França. Por isso,
tempos, quando estávamos em formação.
chegar-se a uma conclusão única e definiti-
é preciso muita certeza, pesquisa e discussão
Pastoril, Quilombo, Reisado, Coco-de-Roda,
va. Cita como exemplo concreto dessas in-
para defini-los como europeus, africanos ou
literatura de cordel, festas, tradições, crendi-
certezas o caso da dança existente em várias
ameríndios.
ces, superstições, contos, mitos, lendas, os
unidades nordestinas, que aparece ora como
ritos religiosos e a música folclórica não apa-
Coco, ora como Pagode, ora como Samba.
Não se pode esquecer, ainda, além das contribuições dos colonizadores europeus,
recem por acaso. Eles são o retrato vivo da
Uma eminente folclorista do sul, Oneyda
dos nativos indígenas e do africano - aqui
memória popular, que engloba sentimentos e
Alvarenga, diz de forma categórica que “se a
chegado em largas torrentes migratórias for-
reações diante da história e das transforma-
umbigada é africana, a roda em movimento
çadas para a nefanda escravidão nos campos
ções sociais.
constante, se bem que também encontrada
- que Alagoas, núcleo periférico espremido
Quais as origens do folclore alagoano,
entre os índios, parece ser característica por-
entre os dois grandes polos de colonização
como entender os seus folguedos, quais os
tuguesa”. Mestre Théo discorda da afirmação
do Brasil, Pernambuco e Bahia, recebeu des-
componentes culturais que o forjaram? O
peremptória da colega sulista, pois, diz ele, “a
tes gigantes que a circundam uma importante
mestre dos mestres, Théo Brandão, com a
roda foi a primeira forma de dança do homem
influência. Na sua parte boreal, lugares como
autoridade de quem estudou a vida inteira e
e até dos animais e todos os povos e todas
Maragogi, Japaratinga, Porto Calvo, Porto de
deixou uma obra irrepreensível sobre o as-
as culturas antigas da África, Ásia, Europa e
Pedras, Jundiá, Jacuípe, até Matriz e Passo
sunto, diz que são muitas as contribuições
América a possuíram em seu estágio inicial de
de Camaragibe, há uma nítida ligação com o
24 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
poderoso Leão do Norte. Já na parte austral, mesmo com Sergipe d’El Rei aparecendo no meio, a influência da velha Bahia, também com suas tradições bem fortalecidas, municípios como Penedo, Pão de Açúcar, Traipu, Piranhas e suas populações, que constituem o dinâmico ninho de cultura são-franciscano, mantêm seus laços comerciais e também os culturais mais próximos aos da Bahia de Todos os Santos e Orixás. Uma curiosa, fervilhante e variada herança que ao transplantar inúmeras festividades, costumes e contribuições de povos europeus, sobretudo ibéricos, os pôs em contato com a extraordinária riqueza cultural africana e indígena e criou esse verdadeiro caldeirão de saberes que sobrevive até hoje, mas que tem ameaçada a sua continuidade pelo
tsunami da globalização, a
onda capitalista do final do segundo milênio que ameaça levar de roldão todos edifícios construídos há cinco séculos, para dar lugar somente às emissões da modernidade sem rosto e sem história, sob o respaldo do poder midiático do comércio internacional que influiu também na indústria cultural alienante e sem nenhum apreço pela identidade nacional ou regional.
Palhaço Wilton Branca de Atalaia Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 25
Cavalhada Marcel Gautherot
26 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Uma só história e uma geografia variada A
denominação Alagoas é proveniente
lugar de clima seco e chuvas escassas, com
hábitos, sua feição cultural e sua história. Até
da primitiva sede da comarca e pri-
vegetação rala, a caatinga, onde a pecuária,
mesmo as mazelas da escravidão e, consequen-
meira capital, Santa Maria Madalena da Lagoa
junto com a produção de gêneros alimentícios
temente, o imenso quadro de exclusão social
do Sul, que englobava terras que rodeavam as
como o milho e o feijão, é notada. Na zona
que perdura até hoje.
lagunas principais da região, a do Norte, ou
intermediária, entre a mata e o Sertão, está o
O ciclo econômico que se iniciou e se ex-
Mundaú, e a do Sul, ou Manguaba. Um ter-
Agreste, que também se dedica a culturas de
pandiu na faixa da mata litorânea da parte sul
ritório pequeno, de 27.793 quilômetros qua-
subsistência. Nessas zonas geográficas, cuja
da então capitania de Pernambuco, que teve
drados, que só ganha em extensão do vizinho
história está interligada aos momentos prin-
sua colonização inaugurada com os engenhos
Sergipe, tem a zona costeira com tabuleiros
cipais de sua existência, nasceu e floresceu o
Escurial e Buenos Aires, do fidalgo Cristovão
cortada várias vezes pelos vales dos rios que
nosso folclore.
Lins, no século XVI, formou uma sociedade
deságuam no oceano. A segunda área é uma
O estado, plantado no verde dos canaviais
hierarquizada, senhorial, de traços feudais, que
região montanhosa, de solo fértil, outrora re-
mais viçosos do Nordeste, teve nessa cultura
herdou muito dos hábitos e dos costumes por-
vestida por matas, onde se instalou a cultura
o embasamento principal desde os primeiros
tugueses e espanhóis.
da cana-de-açúcar que deu o substrato de sua
lampejos de povoação, com todas as particu-
A cana-de-açúcar tomou conta da paisagem
sociedade - um sistema de vida familiar, eco-
laridades do desenvolvimento e da formação
alagoana desde os primórdios da colonização.
nômico e cultural que ao longo dos séculos
social. É dela, desde que surgiram os primei-
Ao pretender fixar o homem à terra e conso-
condicionou o ethos do povo alagoano. A ter-
ros caminhos do ciclo dos engenhos, que se
lidar o domínio português no Novo Mundo,
ceira zona é o Sertão, no interior do território,
abriram os vieses da sociedade alagoana, seus
Duarte Coelho, primeiro donatário da capita-
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 27
nia onde Alagoas estava inserida, iniciou um
negros, o que constitui um exemplo de como a
ciclo que perdura até nossos dias, afetando
interação humana, frente à sobrevivência, não
profundamente nossa formação social e histó-
tem limitações em sua criatividade, em sua di-
rica, com implicações que transcendam a eco-
versidade ou quando responde aos chamados
nomia e deixou marcas profundas em nosso
das necessidades básicas.
ethos. As identidades são realmente um processo de acumulação de experiências que afloram frente as mais diversas conjunturas. No caso particular alagoano, nossa cultura, nossa religiosidade, nosso lazer, nossos folguedos e nosso folclore abarcam uma gama de temas capazes de proporcionar suficiente material para uma análise da vida tradicional em muitas das nossas comunidades. Permitem, igualmente, devido à riqueza de temas que marcam nossas manifestações populares, um passeio por formas culturais que pertencem a espaços muito especializados, quase fragmentários, da vida alagoana. A presença de formas exógenas que terminam se incorporando a setores populares da vida rural, ou da plantação canavieira, ou da fazenda, ou da criação são-franciscana, ou sertaneja, mostra muitas variantes que, estudadas em suas origens, confirmam influências culturais mútuas de valores ibéricos, indígenas e Chegança Rio Largo - 1958 28 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O alpendre da casa-grande e os limites da senzala É
no cenário desse território senhorial,
geavam os santos de devoção ou estavam
deixando um legado, uma maneira de ser,
principalmente naquele que ia dos
no roteiro natalino, da Semana Santa ou das
que hoje assumimos todos, como se fosse
festividades juninas.
uma propriedade social diferenciada das de-
alpendres da casa-grande aos limites da senzala, que as famílias dos proprietários dos
Padres, parentes, amigos, a teia imensa de
mais sociedades, de outras unidades políti-
engenhos banguês promoviam o lazer da
compadrio e agregados, se divertiam com a
cas e culturais da federação que a República
comunidade. As fazendas rurais sertanejas
peleja dos repentistas, com as disputas e de-
iria estabelecer ao ser proclamada em 15 de
e da região do Velho Chico não estão ex-
safios de viola, das apresentações ritmadas
novembro de 1889.
cluídas dessas atividades que se confundiam
das emboladas, dos volteios e improvisos
Nosso modo de ser, tão presente nas ma-
com o calendário religioso. Ansiosamente
dos brincantes dos folguedos variados que
nifestações populares, em nosso folclore, é
aguardadas por todos que faziam parte da-
enchiam de deleite os espectadores. Eram
precisamente o conjunto de valores sociais
quele mundo de escravos, agregados, parcei-
dias especiais que passaram a fazer parte das
e culturais que se foram forjando através
ros, meeiros e membros da elite fundiária,
recordações das herdades e seriam rememo-
dos tempos, sobretudo no período colonial,
que adorava promover e dirigir o espetá-
rados de geração em geração. Manifestações
constituindo-se um suporte na memória so-
culo lúdico, traziam alegria aos integrantes
populares que foram se consolidando com
cial dos alagoanos, formando não só uma
daquele universo medieval isolado e sem
o passar do tempo, forjando coisas comuns
unidade política, mas uma coletividade, um
muitas novidades no seu dia a dia. Normal-
compartilhadas pelo conglomerado de ho-
sentido de pertencimento.
mente, eram realizadas quando se homena-
mens e mulheres que, sem querer, foram
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 29
A Escola de Viçosa
Foto: Celso Brandão
U
ma identidade alagoana em estado puro não existe. Os povos, como a
gente alagoana, são resultado de relações in-
Théo Brandão
Ranilson França
terétnicas. Em seu esforço para sobreviver, se impõem, se adaptam, construindo um sincretismo, amalgamando-se em suas porções culturais e se assimilam, forjando uma identidade. O ser alagoano é precisamente o conjunto desses valores vários, recorrendo às suas manifestações culturais e folclóricas que vão se edificando na memória social das pessoas que fazem a coletividade. Estudá-lo na sua inteire-
José Aloísio Vilela 1935
za e complexidade não é tarefa para amadores José Maria Tenório Rocha
ou simples curiosos. Há que ter conhecimento amplo da questão, vocação acadêmica, dedicação, capacidade de pesquisa, amor, paixão. Temos vários autores que se esforçaram para estudar essa coesão que formou a alma alagoana, gente como Thomaz Espíndola, Moreno Brandão, Craveiro Costa, Jayme de Altavila pai, e Edilberto Trigueiros, mas, sem
Pedro Teixeira
Josefina Novaes
30 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
dúvida, nomes dos mais expressivos que se dedicaram à causa estiveram reunidos naquele
grupo que convencionou-se chamar “Escola de
discutível valor intelectual, o que hoje podemos
dente -, Severino Teixeira Florêncio, mais co-
Viçosa”, tendo a regê-los como um maestro a
chamar nas universidades de núcleo de pesqui-
nhecido como teatrólogo, mas que nunca dei-
figura do médico Théo Brandão – os não me-
sa. Havia certa divisão de tarefas e estudos. José
xou os estudos folclóricos, ao lado de seu primo
nos destacados José Aloísio Vilela, José Pimen-
Aloísio Vilela dedicou-se à poesia popular; José
Pedro de Vasconcelos Teixeira, o mais notável
tel de Amorim e José Maria de Melo.
Maria de Melo à literatura oral, contos, adivi-
animador dos folguedos que o estado já conhe-
Não devemos esquecer ainda outros pre-
nhas, sentinelas; José Pimentel de Amorim era
ceu. Pedro Teixeira, enquanto bem viveu seus
cursores das nossas manifestações populares,
mais voltado a pesquisas sobre a medicina po-
84 anos, foi incansável na luta pela preservação
dos nossos estudos folclóricos, como Joaquim
pular, e o líder, Théo Brandão, vivia mergulhado
do nosso folclore e deixou algumas obras sobre
Diégues, Alfredo Brandão, Luiz Lavenére, Abe-
até a alma no estudo dos folguedos populares.
o assunto.
lardo Duarte, Paulino Santiago; no entanto,
Tanto Théo como José Aloísio seguiram a tra-
É justo ressaltar que Théo Brandão, fora do
inquestionavelmente, a Escola de Viçosa foi o
dição da família Brandão Vilela de apreciar e es-
âmbito da Escola de Viçosa, ainda teve extra-
núcleo mais eloquente de estudos dos fatos da
tudar o folclore, estimulados que foram por seu
ordinária atuação na Universidade Federal de
vida social alagoana que caem no âmbito do fol-
tio Olegário Vilela, outro grande apreciador do
Alagoas, onde exerceu o cargo de professor.
clore. Eruditos de largo prestígio na sociedade
tema, que os encorajou a analisar cientificamen-
Formou em seu redor, na academia federal
por seu sucesso profissional, todos de origem
te a sabedoria popular, tão presente no cotidia-
alagoana, um círculo de discípulos que conti-
rural, provenientes da pequena, mas influente,
no da pequena cidade há gerações.
nuaram o trabalho após seu desaparecimento
cidade interiorana que era cognominada “Ate-
Embora sem ligação direta com o folclore,
- figuras de proa como Cármen Lúcia Dantas,
nas alagoana”, famosa por sua vida cultural, eles
nem pertencendo ao grupo de elite da Escola
Vera Lúcia Calheiros, Fernando Lobo, Teresa
perceberam em suas reuniões que a ausência
de Viçosa, Arnon de Mello, um dos líderes do
Wucherer Braga e Josefina Novaes. Seus dois
do folclórico, tão característico da vida popular
Grêmio Guimarães Passos, citava ainda os no-
discípulos mais atuantes, porém, foram José
no meio agrário em que viviam, empobrece a
mes de Evilásio Torres, Valdemar Graça Leite,
Maria Tenório Rocha e Ranilson França que,
produção literária e artística, roubando-lhe os
Ademar Vasconcelos, Arnóbio Graça, José Re-
com trabalho hercúleo e diário, conseguiram
aspectos regionais, nacionais e humanos que lhe
belo e José Aragão como figuras que também
reunir em torno de si os mestres e mestras dos
dão universalidade.
deram sua contribuição ao estudo das manifes-
folguedos, fundando a Associação dos Folgue-
Manuel Diégues Júnior disse que mesmo
tações populares. Podemos ainda acrescentar
dos Populares de Alagoas-Asfopal e travando
inexistindo um corpo de métodos e doutrinas,
à lista um oriundo de Chã Preta - que durante
uma batalha constante pela valorização desses
o grupo era inequivocamente um formidável
muitos anos foi distrito de Viçosa e depois se
mestres e das manifestações populares de Ala-
eixo de cultura, onde se juntam membros de in-
emancipou, tornando-se município indepen-
goas.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 31
Boi de Guerreiro 34 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Folguedos e Danças de Alagoas Cármen Lúcia Dantas
Presépio e Pastoril Reisado e Guerreiro Chegança e Fandango Negra da Costa e Quilombo Samba-de-Matuto, Taieira e Baiana Maracatu, Bumba-Meu-Boi e Boi de Carnaval Coco e Quadrilha Mané do Rosário, Dança de São Gonçalo e Bando Toré, Cambindas e Caboclinho
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 35
CapĂtulo II
Presépio Oferenda
Dizei-nos, porém, oh anjo, como faremos para chegar àquela gruta tão longe onde o menino tão belo está. (Maurício de Macedo)
36 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Presépio
E
ntre os folguedos populares, o Presépio e o Pastoril são os que materializam de forma
mais direta a representação do nascimento de Cristo. Embora não se saiba ao certo de que forma chegaram ao Brasil, o fato é que os frades jesuítas e os franciscanos, no trabalho da catequese dos nativos, promoveram sua difusão e aprimoramento cenográfico. Inspirados nas canções natalinas ibéricas e tradições pastoris da Europa, ambos descrevem a viagem das pastorinhas a Belém, na Judeia, para adorar o Menino Jesus. O que os diferencia é o foco da dramatização. Enquanto um, além das jornadas, narra o nascimento de Cristo com personagens caracterizadas, o outro é formado apenas por jornadas soltas.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 37
Por dentro das jornadas
P
artes que compõem cada episódio,
ção da brincadeira.
mados pelos moradores, descendentes de escravos, caboclos do eito, seus filhos e
as jornadas representam o percurso
De origem notadamente rural, os fol-
seguido pelas brincantes, que se mantêm
guedos, que só foram transportados para
enfileiradas em dois cordões: o encarna-
o meio urbano tempos depois, marcavam
A urbanização de ambos acabou com
do e o azul, cores votivas que simbolizam,
presença nas festas das casas-grandes do
o refinamento, pois os grupos se espalha-
respectivamente, o sangue do coração de
ciclo dos engenhos. Tanto o Presépio
ram por toda a parte, chegando aos bair-
Cristo e a pureza da Virgem Maria. Na pa-
quanto o Pastoril eram encenados, exclu-
ros periféricos de Maceió. Nessas locali-
leta de cores há também a alusão ao en-
sivamente, pelas jovens da camada social
dades - Ponta Grossa, Bebedouro, Chã da
carnado como a cor dos mouros e o azul a
mais alta - filhas, netas e sobrinhas dos
Jaqueira, Tabuleiro do Martins - já havia
dos cristãos, oponentes históricos nas ma-
donos da casa.
uma forte motivação para as manifesta-
filhas.
Elitistas, as apresentações acompanha-
ções populares, o que se acentuou com
vam o mesmo princípio de distanciamen-
a chegada às escolas públicas, garantindo
Por uma ou outra razão, o certo é que
to entre as diferentes classes, nominadas
aos folguedos maior popularidade.
a rivalidade se renova a cada apresentação,
de acordo com as condições econômicas
No que diz respeito às evoluções e à
polarizada pelos dois cordões. No centro
e a origem do sobrenome das brincantes.
musicalidade, os dois se caracterizam pela
das atenções estão as Pastorinhas, meni-
De modo geral, não havia mistura entre
delicadeza de gestos e singeleza da melo-
nas que compõem os grupos. Ornamenta-
pobres e ricos nos folguedos. E enquan-
dia, compatíveis com os temas bucólicos
das com flores e fitas, elas se apresentam
to o Pastoril e o Presépio se restringiam
e com a alegria esperançosa dos cristãos
de maneira graciosa, mantendo a forma-
à aristocracia rural, os demais eram for-
diante do nascimento do Menino Jesus.
nifestações populares que procedem dos feitos da Idade Média.
38 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Ensaiadoras e animadores
O
contato com os grupos revela que
dos. E, tradicionalmente, Presépios e Pastoris
saiadoras notáveis de seu tempo: dona Maria
o amor pela brincadeira faz parte da
são organizados e ensaiados por uma mulher.
Souto e dona Maria Emília. A primeira era de
memória afetiva não apenas das antigas Pas-
Trata-se de uma figura importante que, embora
Marechal Deodoro, onde mantinha o grupo
torinhas, das ensaiadoras e dos torcedores dos
não participe da brincadeira, conhece do traje,
que dançava ao som dos acordes da Sociedade
cordões, mas de toda a comunidade, que enxer-
das regras, das peças, da marcação cadenciada
Musical Santa Cecília. Em Maceió, dona Ma-
ga ali a possibilidade de manter seu arquivo de
e comanda as Pastorinhas nas jornadas soltas e
ria Emília inovava com o acréscimo de novas
lembranças.
na encenação dramática.
partes, aumentando assim o interesse pelas
O envolvimento do grupo comunitário é
Em Alagoas, entre as décadas de 1940 e
apresentações. Ambas são citadas por Théo
fundamental para a montagem desses folgue-
1950, dois nomes se destacavam entre as en-
Brandão como seguidoras de dona Ritinha
Adoração ao Menino Jesus - Presépio Nossa Senhora de Fátima - Maceió Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 39
(Rita Cristina da Costa), que manteve os famo- Miranda, em 1949 preparou grupos de Pastoril sos Presépios e Pastoris da catedral. Sua conti- para apresentações em Recife, nas rádios Jornal nuadora, dona Eudora Vasconcelos, recuperou o do Comércio e Tamandaré. Depois, estendeu a auto depois de anos desativado. Ficou conhecida missão à Rádio Iracema, em Fortaleza. também por vestir suas Pastorinhas com lindos
Nos anos 1950, na animação dos programas
trajes que ela mesma confeccionava com muita de auditório da recém-criada Rádio Difusora de habilidade e capricho.
Peleja na Praça do Pirulito
Alagoas, suas Pastorinhas arrancavam aplausos
Hoje, em Maceió, dona Áurea está entre fervorosos de plateias animadas pelos radialis-
Foi no final da década de 1960 que o pro-
as que entendem da brincadeira e mantém tas Haroldo Miranda, do encarnado, e Aldemar
fessor Pedro Teixeira de Vasconcelos ini-
a tradição entre as jovens, sempre exigente Paiva, do azul. Em 1976 Carrascosa assumiu o
ciou a formação de grupos de Pastoras nos
com a perfeição do grupo. Membro da As- comando do Grupo Folclórico da Universida-
colégios estaduais onde ensinava. Sua inicia-
sociação dos Folguedos Populares de Ala- de Federal de Alagoas. Mesmo tendo perdido a
tiva muito contribuiu para a permanência da
goas-Asfopal, conviveu com os folcloristas visão, continuava ensaiando e, com apurada au-
tradição, vindo em seguida outros autos a
Ranilson França e Josefina Novaes desde o dição, percebia de pronto quando uma Pastora
serem formados, garantindo a continuidade
início, quando a agremiação foi estruturada, errava a marcação.
dessas manifestações.
Em Penedo, na década de 1960, o Pastoril
O professor Pedro era um excelente ani-
de Toinha Peixoto (Antônia Peixoto) levava
mador! Com um microfone, voz firme e
multidão ao Montepio dos Artistas e ao Tea-
convincente, exaltava as Pastorinhas do cor-
tro 7 de Setembro. Gente da redondeza, de
dão encarnado, pedindo aplausos e votos à
Piaçabuçu, Neópolis e Igreja Nova vinha para
plateia, enquanto Luiz de Barros, radialista
A professora Maria José Carrascosa, na dé- engrossar os aplausos e depois da brincadeira
experiente, animava as Pastorinhas do azul.
cada de 1940, começou a orientar os primeiros voltava nos antigos ônibus, conhecidos por
A peleja era acirrada na Praça do Pirulito,
grupos. Seu nome logo ficou conhecido e respei- “sopas” ou “marinetes”. Em quase toda cidade
nas décadas de 1960/70 e os aficionados se
tado pela fidelidade à representação dos folgue- havia um ou mais Pastoril se apresentando nas
acumulavam em torno do palanque, em rui-
dos autênticos. Convidada pelo locutor Haroldo festas natalinas.
dosa aclamação.
em 1985.
Linhagem autêntica nas ondas do rádio
40 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Reis Magos - Presépio Menino Jesus Victor Anderson Andrade Moura, Carlos Alberto da Silva e Amistron Barros Pessoa Júnior
Natal interpretado
A
partir da concepção dos presépios, montados
sempre à meia-noite de 24 para 25 de dezem-
nas casas e igrejas pelas famílias e devotos.
bro. Devido à aceitação e ampliação do públi-
representação dramática segue os mol-
Os países católicos da Europa foram os
co, o Presépio passou a ser apresentado vários
des dos Noéis, Autos Natalinos euro-
pioneiros a adotar essa prática, seguidos das
dias e em palcos e praças, na frente das igrejas,
peus que surgiram a partir da instalação das
colônias por eles conquistadas. Nesse rol de
fazendo parte da grande festa popular que se
primeiras lapinhas, nos idos da Idade Média,
colonizados está o Brasil, possessão portugue-
organiza em torno da data. Até meados do sé-
cuja origem é atribuída a São Francisco de As-
sa que logo se apropriou dessa tradição, vindo
culo passado, a aceitação era tão grande que
sis. Não existe informação precisa sobre o sur-
a formar o seu repertório cultural a partir dela.
cada bairro tinha a sua representação dramáti-
gimento e se realmente a primeira montagem
A princípio, a apresentação desse folguedo
foi idealizada pelo santo, mas o certo é que a
era diante da lapinha da igreja principal, en-
Se no passado havia grande número de
interpretação teatral do folguedo aconteceu a
quanto os fiéis aguardavam a Missa do Galo,
Presépios - não apenas na capital, mas tam-
ca com público garantido.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 41
Nascimento de Jesus. Acervo - Museu Théo Brandão
bém nas cidades do interior -, hoje eles estão perdendo espaço para os Pastoris, mais leves, soltos e despojados da carga dramática. Da
Personagens e trajes: Pastoras, Anjos e Demônios
chapéus de palhinha ou diademas com flores e fitas. As meias são brancas e os sapatos pretos. Cada uma tem nas mãos o seu pandeiro, que toca acompanhando o ritmo da música. A
mesma forma, as lapinhas estão sendo preteridas pelas árvores de Natal, de grande apelo
Tanto no Presépio quanto no Pastoril, as
Diana posiciona-se no centro, entre a Mestra e a
comercial. Nos grandes centros, a figura lendá-
Pastorinhas vestem blusa branca com cole-
Contramestra, vestida com as duas cores, e pede
ria do Papai Noel está polarizando as atenções,
te e saia nas cores de seus cordões, decorados
palmas e prendas para os dois cordões.
em detrimento do sentido original do Natal.
com lantejoulas, e ligas douradas. Na cabeça,
42 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O Demônio Lusbel, vestido a caráter, traja
macacão preto e vermelho e traz os atributos do Satanás: chifres e tridente. O Anjo Gabriel, que anuncia a vinda do Menino Jesus, traja manto branco, asas de penas e auréola na cabeça. Na evolução do auto, com a projeção da viagem a Belém, novas personagens aparecem e com elas as Pastoras interagem, como no caso da Cigana, da Borboleta e da Camponesa, que não estão inseridas nos cordões e apresentam uma coreografia própria, vestidas de trajes típicos. Na encenação do Presépio, ou Pastoril Dramático, desenrolam-se as cenas da adoração a Jesus na manjedoura com os personagens caracterizados. O próprio enredo é mais elaborado, representando as figuras que normalmente aparecem nas lapinhas; isto é: Nossa Senhora, São José, os Reis Magos, os Pastores, o Anjo e outros personagens que a imaginação popular se encarrega de acrescentar.
O Bem e o Mal Presépio Menino Jesus Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 43
O auto e a função, a peleja entre o Bem e o Mal L ogo no início acontece a peleja entre o
Boa noite, senhoras também!
nova: Jesus nasceu! E o cenário do fundo do
Bem, representado pelo Anjo Gabriel, e o
Viemos para adorar!
palco se ilumina, retratando o menino na man-
Mal, pelo Demônio Lusbel. O anjo anunciando
Jesus nasceu para nos salvar!
jedoura com Maria, José, os Pastores e os Reis.
o nascimento de Jesus, e o demônio com todas
Outros cânticos se repetem até serem recep-
As Pastorinhas chegam com flores e todos em
as tentações e artimanhas para conquistar as in-
cionadas pelo Velho Simão, com quem mantêm
defesas Pastorinhas, impedindo-as de prosseguir
diálogo até a chegada do Pastor Benjamim, que
Ofertai, ó Pastoras,
a viagem até Belém. Anjo e demônio desenvol-
reforça a nova alvíssara:
As flores do nosso afeto,
vem um diálogo de insultos e argumentos. Por
Não sei, belas Pastoras,
Ao Deus Santo, ao Deus Menino,
fim, a fala vitoriosa do anjo:
O que tem meu coração,
Nosso santo, nosso dileto!
Que adivinha alguma festa,
A plateia acompanha tudo com atenção e, no
“Glória a Deus nas alturas! Glória ao nosso Salvador! Glória ao Filho de Maria, que há de ser Redentor!” Dito isto, o demônio reclama e esperneia. De nada adianta, e ele sai de cena vencido e raivoso. Passado este prólogo, chegam em fileiras as
regozijo cantam louvores ao Deus menino.
Ou nunca vista função!
final, gritam os partidários do azul um viva para
E a brincadeira continua, com a chegada da
seu cordão, enquanto os do encarnado fazem o
Cigana:
mesmo para o seu e todos se unem para saudar
Sou a Cigana do Egito,
o Salvador. Em clima de alegria, a encenação é
Pastorinhas: o encarnado, do lado esquerdo, li-
Que também venho a Belém,
encerrada.
derado pela Mestra, e o azul, do lado direito, pela
Adorar o Deus menino,
Contramestra. No centro, a Diana faz as vezes
Adorar o sumo bem!
mum nas apresentações do passado, quando o
de mediadora da disputa. Atrás, os Pastores,
Pastoras, Pastores e os demais figurantes can-
público vibrava e chorava a cada ato, mas man-
acompanhados do Velho Simão, figura cômica e
tam os louvores ao Deus que vai nascer. Persis-
tém a mesma ingênua concepção dramática que
sábia, entoam a louvação de entrada:
tente, o Demônio Lusbel ainda aparece tentando
caracteriza suas cenas.
Boa noite, meus senhores todos!
as Pastorinhas, exaltando seus poderes, sua força das profundezas do inferno, mas novamente é afastado pelo Anjo Gabriel, que anuncia a boa
44 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Hoje o auto já não inspira a comoção co-
Pastoril A rivalidade dos cordões A
origem do Pastoril é desconhecida.
O que permanece como determinante em
Sabe-se, no entanto, que, assim como
todas as apresentações são o tema e a forma
o Presépio, era encenado na Itália, na França,
como o auto começa e termina. No início, as
na Espanha e em Portugal a partir do século
Pastoras cantam as jornadas de abertura, de
XVI.
entrega das oferendas, e no final as de des-
Enquanto o Presépio é um auto de sequência lógica, de partes concatenadas e enredo próprio, o Pastoril, com o mesmo foco no drama litúrgico da Natividade, consiste em cantos
pedida, com promessas de voltar no próximo ano.
O auto e a função
e louvores soltos, com partes vindas de antigas canções do ciclo do pastoreio e outras inser-
O Pastoril é formado por garotas de ida-
ções que com o tempo foram se incorporando
des variadas que se dividem entre as Pasto-
à brincadeira de forma espontânea. Muitas ve-
ras do azul e as do encarnado. Enfileiradas,
zes as próprias ensaiadoras criam novas jorna-
têm no centro a Diana, com traje e adereços
das ou reavivam suas lembranças e as incluem
dos dois. Atrás dela o Pastor, com seu caja-
na função, fazendo a diferença de grupo para
do, que bate no chão a cadência da marca-
grupo.
ção da ensaiadora.
Diana de Pastoril Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 45
A Mestra (encarnado) e a Contramestra
Os passos são glamorosos e as evoluções
E as jornadas, como são chamadas as partes,
(azul) conduzem suas doze Pastorinhas, de-
graciosas, arrancando aplausos do público. En-
polarizam a brincadeira da peleja entre as duas
fendendo as cores de seus cordões, dançando
tram cantando a uma só voz:
cores. Canta a Mestra a apologia ao seu cordão:
e tocando graciosos pandeiros com fitas pen-
Boa noite meus senhores todos,
dentes que acompanham o grupo de tocado-
Boa noite senhoras também,
Eu sou a Mestra do cordão encarnado,
res. Trajam blusas brancas com coletes e saias
Somos Pastoras, Pastorinhas belas, (bis)
O meu partido eu sei dominar,
na cor dos seus cordões e avental branco com
Que alegremente vamos a Belém! (bis)
Eu peço palmas, peço fita e flores, (bis)
babados e rendas, da mesma forma que as Pas-
E continuam nos cânticos de entrada:
Aos meus senhores peço proteção! (bis)
torinhas do Presépio. Dependendo das condi-
Meu São José,
As evoluções prosseguem entre os estribi-
ções, as roupas são ricamente decoradas com
Dai-nos licença,
lhos, com a fila das Pastorinhas mostrando suas
lantejoulas, linhas douradas e coletes de veludo.
Para o Pastoril dançar!
habilidades na dança, no toque dos pandeiros e
A regra é que os trajes sejam exatamente iguais,
Viemos para adorar, (bis)
variando apenas a cor, conforme o cordão.
Jesus nasceu para nos salvar! (bis)
46 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Pastoril em formação completa
no canto. Em seguida, é a vez do cordão azul e
Sou a Diana, não tenho partido,
sentando no período natalino, mas adaptado
a Contramestra, da mesma forma, lidera a sua
O meu partido são os dois cordões,
a um novo público que já não vibra com a
fileira.
Eu peço palmas, (bis)
disputa dos cordões, mas frequenta as festas
Peço fita e flores, (bis)
tradicionais pelo que representam no resgate
Ó meu senhores sua proteção! (bis)
do passado e pela beleza da brincadeira. As
Em seguida, vêm os chamados entremeios,
apresentações, muitas vezes, são pontuais, uma
Azul é o mar,
que são as jornadas da Borboleta, da Florista,
noite em um lugar, outra noutro ponto, sem o
Azul é a rainha
da Cigana, personagens que podem variar de-
compromisso com a coroação.
Que nós vamos coroar!
pendendo da ensaiadora que, por vezes, acres-
E os partidários do encarnado fazem o
centa algumas figuras regionais.
As torcidas vibram de um lado e do outro, repetindo os refrãos dos animadores: Azul é o céu,
Tem sido cada vez mais frequente a apresentação de vários folguedos em uma espécie
A brincadeira se repete por três semanas até
de pot-pourri natalino. Ao público habitual se
Estrela do Norte,
o dia 6 de janeiro, consagrado a Reis, quando
juntam os turistas, ávidos pelas novidades das
Cruzeiro sagrado,
acontece a coroação. O cordão vencedor é
cidades que visitam, e os pesquisadores, repre-
Vamos dar um viva,
aclamado e a Mestra ou a Contramestra sobe
sentantes de instituições, que procuram docu-
Ao cordão encarnado!
ao trono, vestida de Rainha, para ser coroada
mentar os autos com recursos da tecnologia
A plateia chama uma Pastora de cada vez,
entre vivas e palmas.
audiovisual.
coro:
que, sozinha, faz a evolução e recebe aplausos e votos em notas de dinheiro que o votante
As escolas, a Universidade, a Associação
Despedida
de Folguedos e grupos espontâneos mantêm
prende em sua roupa. E mais senhoras de si
Ao final, as Pastoras cantam juntas:
vivo o Auto das Pastorinhas, que permanece
ficam as meninas quando as notas se multipli-
Adeus minha gente,
não apenas em Alagoas, mas em todo o Nor-
cam em fileiras esvoaçantes e os aplausos eco-
Queiram desculpar,
deste.
am por toda a praça. Todos os dias a votação
Que a nossa jornada,
se repete e os pontos são computados pelo
Já vai terminar!
pároco ou por quem ele determine. A soma
Adeus, é tarde,
desses votos vai definir a eleição de um dos
Já vamos partir.
cordões no último dia de apresentação.
O dia amanhece,
Contendo a torcida, entra a Diana enaltecendo os dois cordões:
Preciso dormir! Atualmente, o Pastoril continua se apreAlagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 47
Capítulo III
Rainha de Guerreiro
De que vale a coroa tão rica se o reino perdi do coração. Traspasse-me agora o peito a espada que trago na mão. (Maurício de Macedo)
50 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Reisado
Chegada à Colônia D
os chamados autos natalinos, o Reisado - celebração do nascimento do Menino
Jesus na manjedoura, em Belém - é dos mais antigos de que se tem notícias. Presume-se que sua origem remonta à Idade Média, quando o ciclo natalino passou a ser comemorado festivamente na Europa. Nesse período, muitas manifestações alusivas à data começaram a se espalhar pelos mais diversos lugares, com danças, cantos e referências a temas religiosos milenares. Eram tidos como um meio de perpetuar fragmentos da fé, em novas interpretações que ao longo dos séculos passam de geração a geração, cristalizando a sua prática, embora não seja possível precisar, exatamente, quando tudo começou.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 51
O Reisado chegou ao Brasil logo depois do descobrimento, com os primeiros colonizadores que conservavam os costumes das antigas aldeias portuguesas e implantaram na Colônia essas manifestações como forma de extravasar suas lembranças em lugar tão distante. O reforço à tradição trazida das terras d´além mar vinha dos frades evangelizadores, que promoviam a difusão e o aprimoramento cenográfico dessas representações como forma de tornar as festas católicas mais atraentes e, com isso, angariar maior participação popular. A expansão e a adequação ao novo ambiente logo aconteceram, espalhando-se por toda a parte. No Nordeste a brincadeira ganhou ares de símbolo regional e, nesse contexto, Alagoas é o estado que possui o maior número de grupos de Reisado organizados e atuantes. São apresentações que articulam diferentes níveis e dimensões da cultura local, acompanhando, no tempo, o movimento da sociedade que as promove. Originalmente, as encenações ocorriam entre o Natal e o Dia de Reis, 6 de janeiro, mas logo foram antecipadas para o início de dezembro, enquanto a reorganização do grupo, o preparo das roupas e o contrato das apresentações começam a partir de setembro. Atualmente, as exibições ocorrem durante todo o ano, em acontecimentos religiosos como festas de santos padroeiros, encerramentos de procissões e em eventos diversos como congressos, feiras culturais, posses de políticos, atrações turísticas. Mestre Expedito Reisado Virgem dos Pobres Bananal – Viçosa 52 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
A ancestralidade de Reis A
Mestre Dedeca José Pereira de Lima Reisado de Água Branca
estrutura original do Reisado é seme-
e a Rainha como personagens centrais. Tam-
lhante à da Folia de Reis, auto comum
bém episódios da Mouriscada portuguesa se
nas regiões Sul e Sudeste. Isso porque ambos
misturaram às conquistas do Congado, dando
são originários das Reisadas, ou Reiseiras, pe-
ao Reisado uma dimensão da própria etnia da
ças ancestrais da Península Ibérica, formadas
Colônia.
somente por homens que saíam anunciando a
Dessa diversidade veio o enriquecimento
boa nova do nascimento de Jesus, dançando e
do auto com novos episódios, cantos, dan-
cantando pelas ruas e recebendo acolhida das
ças, declamações e improvisos. Não existe
famílias que lhes ofereciam comidas, bebidas
um assunto sequenciado, mas uma variedade
e espórtulas.
temática que vai da história lusa ao imaginá-
Aqui no Brasil as inovações foram se in-
rio criativo dos participantes, das louvações
corporando ao folguedo de tal forma que só
ao Divino aos elogios aos donos da casa ou
se reconhece essa origem indo às referências
aos espaços públicos onde a festa acontece.
históricas. Sua composição é uma mistura de
Dentre os requisitos que garantem o sucesso
temas sacros e profanos advindos de outras
da apresentação estão o carisma do Mestre, o
brincadeiras e autos, ganhando força com a
colorido do traje, o entusiasmo e a harmonia
mistura das práticas culturais, dos cortejos e
do grupo.
danças das corporações e de características peculiares da região. A presença do Boi passou a ser um entremeio obrigatório, devido à importância do ciclo do gado, assim como a inclusão dos autos do Congo e dos Caboclinhos, trazendo o Rei Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 53
Personagens e trajes, o domínio da cor O
Mestre é quem detém o conhecimento e rege as partes, conduzindo tudo ao som do apito. Cada
silvo representa um mando. É ele quem puxa as peças tradicionais e o coro responde em duas vozes. O bom Mestre é também um repentista. Improvisa peças laudatórias ou referentes a algum fato novo que porventura ocorra. Tudo depende do momento. Na maioria das vezes, exalta a cidade onde o folguedo se apresenta, o santo padroeiro e as moças bonitas do lugar, o pároco e o prefeito. Alguns usam óculos escuros, como símbolo de poder, costume trazido de seus antepassados. Os demais figurantes obedecem ao seu comando, cumprindo cada um a sua função no espetáculo. Ensaios, confecção dos trajes, conserto dos chapéus e diademas, ingressos e dispensa de figurantes, contratos de apresentações, enfim, tudo que diz respeito ao grupo é decidido pelo Mestre. O Contramestre está ao lado, acompanhando suas funções e reforçando a batida do tropel. É ele quem representa o Mestre nos impedimentos. Em seguida
Mateus de Reisado
54 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
vêm o Rei e a Rainha vestidos a caráter, dois Embaixadores, dois Mateus, Palhaço e demais figurantes, trajando saiotes e coletes de cetim adornados com ligas e cordões dourados, meias brancas e sapatos pretos. Os chapéus de palha de ouricuri, abas largas dobradas de um lado, são cobertos de cetim e guarnecidos de espelhos, flores de plástico ou de papel e areia brilhante. As coroas e os diademas coloridos também recebem as mesmas aplicações e obedecem aos princípios hierárquicos do grupo. Antigamente, os trajes se limitavam às cores da bandeira de Portugal: vermelho, verde e amarelo. Aos poucos foram ganhando novos adereços e aumentando a paleta, dando ao folguedo a particularidade da sua representação no Brasil. Os Mateus pintam o rosto de preto e trazem na cabeça o cafuringa, chapéu afunilado de abas largas e cores vibrantes. O Palhaço forma com eles o trio cômico, fazendo piruetas e tocando pandeiros. São eles os responsáveis por proteger o Menino Jesus. Com dissimulações e improvisações, distraem os soldados de Herodes na dramatização. Vestem roupa folgada de chita estampada ou quadriculada. O grupo dança ao som de um conjunto musical formado basicamente por sanfona, tambor, zabumba, recorreco e pandeiros.
Figurante Reisado Talento Ramos Distrito de Piau Piranhas Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 55
Na cadência da função O
foco gira em torno da apresentação
Vilela e Pedro Teixeira, que as ouviam desde
que os participantes denominam
crianças nos Reisados da Viçosa, no início do
“função”. A brincadeira compreende peças
século passado, e algumas delas permanecem
cantadas, trechos recitados, louvações e pas-
até hoje com a mesma fidelidade à letra e à
sos de dança que variam da marcha ritmada
música.
até o tropel simples, ou duplo, dependendo
Deus te salve, Casa Santa,
da destreza do Mestre, que é também o en-
Onde Deus fez a morada.
saiador.
Onde mora o Cálice Santo
O auto começa pelo pedido de “abrição
Mestres de Reisado Distrito de Piau Piranhas
E a hóstia consagrada.
de porta”, seguido pela “louvação ao Divino”
Já deu meia-noite,
e, por extensão, aos donos da casa, com o
Já ouço tocar o sino,
Mestre na frente empunhando sua espada e o
Vamos todos adorar,
Mateus aboiando. Todos os participantes can-
Ao Bom Jesus Deus Menino.
tam e sapateiam, balançam os maracás, tinem
As representações dramáticas compre-
as espadas, atentos ao comando do apito do
endem cenas de guerra, anunciada de forma
Mestre para não perder o ritmo e segurar a ca-
declamada, conhecidas por “embaixadas”,
dência dos passos que se sucedem, enquanto
enquanto as áreas cantadas são as peças. O
ele próprio sola o canto, repetido por todos os
combate se trava. É o momento mais acirra-
brincantes, ou “figurás”, como os participan-
do da brincadeira, quando os Embaixadores
tes se autodenominam.
anunciam a desavença, começando o embate
Muitas marchas de domínio público e ou-
pelo Mestre e pelo Rei, seguidos pelos demais
tras de mestres conhecidos foram colhidas
figurantes. O soar das espadas ecoa no ar e,
pelos folcloristas Théo Brandão, José Aloísio
com destreza, tanto dançam quanto cantam e
56 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
dialogam sobre o inimigo que chega pelo mar.
representação. E todos parecem contagiados
As lutas náuticas são recorrentes devido à
pela responsabilidade da defesa do Rei. Findo
frequência dessas batalhas na Península Ibé-
o episódio da guerra, com a coroação do Rei
rica durante a Idade Média, sendo a de maior
ou da Rainha, peças soltas preenchem a brin-
apelo popular a tomada da Espanha e de
cadeira pelo tempo que o Mestre determina.
Portugal pelos mouros, no ano 711. Com o
Das mais conhecidas, e um verdadeiro clás-
passar do tempo, as questões políticas, e so-
sico da poesia popular, é a atribuída ao Mes-
bretudo as religiosas, que se entrecruzaram na
tre Luis Góis, que a evocou em 1954, no IV
história desses dois países, foram levadas para
Centenário da Cidade de São Paulo, quando
os folguedos, ganhando interpretação e repre-
foi ovacionado por uma multidão, segundo
sentação populares.
relato de José Aloísio Vilela, que acompanhou
Uma das falas mais tradicionais do Reisado
o grupo:
é a do Primeiro Embaixador, quando anuncia
Ó, minha gente,
o inimigo:
Reisado só da Viçosa,
Sou o primeiro Embaixador,
Fazenda só cor-de-rosa,
Que embaixada venho dar,
Baiana só do Farol.
Estamos com o porto tomado,
Ó, minha gente,
Estamos com guerra no mar,
Dinheiro só de papel,
Puxemos pelas espadas,
Carinho só de mulher,
Cuidemos em guerrear!
Capital só Maceió.
E as embaixadas se repetem e os apelos de combate se reportam a fatos da história portuguesa misturados com a defesa do rei do Congo e outras loas que povoam o inconsciente coletivo e encontram rima na imaginação do Mestre. Por isso, não existe uma sequência lógica, mas uma variedade de alegorias e de frases de significância apologética que animam a Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 57
Entremeios, as prendas da sorte
D
epois das peças, ou entre elas, alguns
noite, os entremeios foram reduzidos, fican-
das pelo Mestre, que representa o fazendeiro
figurantes descem do palco para dis-
do apenas alguns da preferência do Mestre.
e se propõe a comprar o animal aos Mateus,
trair o público, enquanto outros trocam de
A presença da farsa do Boi, porém, é indis-
que fazem todos rir com as idas e vindas à
roupa e se preparam para o entremeio. É o
pensável. Todos aguardam sua chegada com
procura do animal e tentativas de enganar o
momento de oferecer prendas, que podem
expectativa. É o momento mais alegre da
fazendeiro, até que este pega o bicho pelos
ser a espada, o maracá, o chapéu ou o diade-
brincadeira. Ele vem fazendo barulho com o
chifres e o domina. O drama se desenvolve
ma às pessoas da plateia para depois recolhê-
chocalho no pescoço, dando marradas, dan-
com a compra do boi, sua morte e a retaliação
-las com uma espórtula. Esta parte é conhe-
çando, sendo insultado pelos Mateus, que fa-
simbólica das partes, seguida da ressurreição,
cida como “sorte”, pelo fato de ser costume
zem piruetas à sua frente, e pelo público que
graças ao milagreiro Doutor, ou Curandeiro,
os brincantes escolherem pessoas de maiores
participa da farsa. Sua presença é muito forte,
personagem cômico que reintegra o animal
posses para entregar a distinção, na esperança
apoiada na lenda do Boi Gracioso, que, em
e o faz levantar de um salto e sair correndo,
de receber uma recompensa maior.
variadas versões, se disseminou por todas as
dando marradas e coices, ainda mais disposto
Enquanto acontece essa interação entre os
regiões brasileiras dando grande popularidade
do que antes, arrancando aplausos e risadas
brincadores e o público, os entremeios come-
à figura do boi no folclore nacional. Vigorosa
dos presentes.
çam a ocupar o palco com figuras fantasiadas
e ao mesmo tempo ágil e graciosa, a repre-
Terminado o entremeio o grupo se prepa-
para uma rápida dramatização. No passado es-
sentação do Boi desenvolve um jogo de cenas
ra para o episódio final, concluindo a brinca-
tas partes eram longas e muito variadas. Não
coreográficas de muita movimentação e bele-
deira com a peça da despedida.
faltavam os entremeios do Boi, da Burrinha
za plástica.
ou Cavalo-Marinho, do La Ursa, do Jaraguá,
Chegou, chegou,
do Morto-Vivo, do Zabelê, do Capitão-do-
Lá chegou meu boi agora.
-Mato e outros, inspirados nas personagens
Se quiser que eu dance, eu danço,
das lendas e do folclore regional.
Se não quiser, vou-me embora.
Como as apresentações já não são tão lon-
Após as alegorias iniciais começa a drama-
gas quanto as de antigamente, que varavam a
tização com as partes declamadas encabeça-
58 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Mestre Dedeca, ao centro, e figurantes do Reisado de Ă gua Branca
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 59
Despedida em marcha
O
Mestre anuncia a retirada e ovaciona a todos com peças de agradecimento, de louvações ao
Deus Menino e a Nossa Senhora, e na esperança de voltarem no próximo ano, renovando votos, tocando e dançando alegremente, sempre com ele à frente, seguido pelos graduados e demais figurantes. As marchas de despedida são dolentes e reforçam o ritual da partida de quem precisa ir, mas quer ficar. Adeus, minha gente, Adeus, que eu me vou. Até para o ano, Se nós vivo for. Embora o Reisado seja um marco na história do folclore alagoano, hoje os grupos estão se extinguindo. Um dos que permanecem em atividade, com apresentações regulares, é o do Mestre Expedito, no Bananal, povoado da Viçosa, que mantém a tradição que herdou do pai, o Mestre Osório Terto. Até meados do século passado, a dimensão imaterial do patrimônio cultural do estado era medida pela quantidade de Reisados em atuação e pelo entusiasmo de que se cercavam suas apresentações. Com o tempo, o auto deu margem ao surgimento de outro folguedo, o Guerreiro, que logo veio a suplantá-lo em termo de aceitação dos brincantes e do público.
Figurantes de Guerreiro 60 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Guerreiro Guerreiros brincantes, preferência caeté
D
e todos os folguedos, o Guerreiro é o que está em primeiro lugar na preferência do alagoano. Nos lo-
cais onde os grupos se apresentam, há sempre um como a atração principal. A energia da música, os passos ritmados, o apito estridente, a performance dos brincantes e o movimento colorido das fitas dão ao auto uma vigorosa encenação, que contagia e entusiasma a todos. A semelhança com o Reisado não nega a sua origem, que remonta ao século passado, pelos idos dos anos de 1930, quando foram feitas inclusões criadas pelos Mestres e incentivadas pelo público que, na época, vibrava e interagia com o grupo, fazendo das apresentações o grande acontecimento que mobilizava todas as classes sociais. Com isso, o entusiasmo do Mestre levava à criação de novas peças, novos passos e personagens. E, aos poucos, a brincadeira foi se distanciando do modelo inicial, a tal ponto que passou a formar outro folguedo com “função” própria.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 61
O folclorista Pedro Teixeira de Vasconcelos considera a festa do centenário da cidade
de outras brincadeiras -, que começou a ter
Mestre Jaime Guerreiro Leão Devorador
mais adeptos e a ganhar formatação própria.
de Viçosa, em 1931, o marco da transição
Na Zona da Mata, os poetas, juntamente
do Reisado para o Guerreiro. Embora ainda
com os Mestres, contribuíram com criações
permanecesse o nome original, a formação já
para o novo folguedo. Olegário Vilela, bardo
mudara com a absorção de partes de outros
de rima fácil e lírica, senhor do Engenho Boa
folguedos, como os Caboclinhos, o Pastoril,
Sorte, na Viçosa, versejava suas peças para
o Fandango, o Bumba-Meu-Boi e outras can-
Reisado e Guerreiro.
ções e repentes que os Mestres conseguiram
A cigarra está cantando,
juntar. Aos poucos se foi criando uma es-
No salgueiro da estrada,
trutura independente - com a fragmentação
Coitadinha da cigarra, rá rá, (bis)
62 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Está cumprindo o seu fardo. (bis) Você diz que estou chorando, Estou chorando é por você. Você diz que é mentira, rá rá, (bis) Vou chorar pra você ver. (bis) O primeiro pesquisador a citar o auto do Guerreiro foi Arthur Ramos, em 1935, no livro O Folk-loro Negro do Brasil. Aos poucos, o reconhecimento foi legitimando o novo auto.
Diz Pedro Teixeira que quando o Reisado do
auto, juntamente com o público.
Engenho Boa Sorte foi convidado a se apre-
Alagoas teve grandes Mestres já elencados
sentar em São Paulo, no ano de 1945, outras
por Théo Brandão e José Aloísio Vilela. Em
novidades foram incorporadas às peças e o
2010 a folclorista Josefina Novaes publicou
sucesso foi total. A partir dessa experiência e
o catálogo Asfopal – 25 Anos Brincando Sério,
com o frenesi do episódio da guerra, com os
com resumos biográficos dos Mestres filia-
personagens digladiando-se com todo o furor
dos à Associação dos Folguedos Populares de
rítmico, a brincadeira ganhou personalidade e
Alagoas. Entre eles, Benon, Venâncio, Juvenal
passou a ser reconhecida e classificada - ini-
Leonardo, Artur Moraes, Djalma de Oliveira
cialmente, fora do estado - com o nome Auto
(apelidado Jaime), Juvenal Domingos, Nival-
do Guerreiro.
do Abdias e o mais novo deles, André Joa-
Théo Brandão reitera o testemunho de
quim, que começou a brincar no Guerreiro da
Pedro Teixeira, dizendo, com a mesma pro-
Mestra Zefa Bispo, de Palmeira dos Índios, na
priedade de quem presenciou a transição, que
década de 1960. Vindo para Maceió, ele logo
“o Guerreiro surgiu na Zona da Mata, em Vi-
se filiou ao Guerreiro do Mestre Jorge Ferrei-
çosa, sob o viço dos importantes Reisados do
ra, da Chã da Jaqueira, e nunca mais deixou a
município”. José Aloísio Vilela também diz o
brincadeira.
Contramestre Anísio Guerreiro Mensageiro Padre Cícero Maceió
mesmo e Câmara Cascudo escreve textual-
A história dos mestres é permeada por ex-
mente em seu dicionário: “Guerreiro - auto
periências semelhantes. A maioria participava
Foi eu que mandei chamar (bis)
popular no estado de Alagoas”. Ele o assistiu
dos folguedos desde criança. Alguns são fi-
Eles vieram de longe (bis)
pela primeira vez em Maceió, no ano de 1952,
lhos de Mestre, de Rainha, de figurante, e tra-
Do canto do Juremá (bis)
e reafirma sua origem no Reisado.
zem na memória afetiva o respeito à tradição
Quem lá nasce assim conhece (bis)
Natural em qualquer processo de transição,
e a fidelidade à forma original. É justamente
Caboclo Tupinambá (bis)
a assimilação das mudanças e diferenças entre
essa transmissão que garante a perpetuação da
os folguedos ocorreu com o passar do tem-
brincadeira.
po. A partir daí a popularidade do Guerreiro
É do Mestre Benon esta peça de entrada:
cresceu, e tanto os Mestres quanto os figuran-
Boa-noite meus senhores e senhoras (bis)
tes foram migrando aos poucos para o novo
Boa-noite eu venho dar (bis)
Chegou estes Caboclinhos (bis)
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 63
Personagens e trajes, um reino de gosto popular A
lém do Mestre e do Contramestre, das duas Rainhas, Embaixadores, Mateus,
Palhaços e dos demais brincantes do Reisado, outros foram acrescidos ao Guerreiro, sendo Figurantes do Guerreiro Barreira Pesada
hoje cerca de 30 os participantes. Ao auto foram agregados o General, a Lira, a Estrela de Ouro, a Borboleta, o Índio Peri e seus Vassalos, a Rainha dos Guerreiros, a Rainha dos Caboclos e a Banda da Lua. Estes novos personagens reforçaram a identidade do folguedo e enriqueceram sua encenação. Os trajes, semelhantes aos do Reisado, destacam-se por ser mais variados, coloridos e imponentes nos ornatos. As principais figuras
Guerreiro das Artes Mestre Juvenal Leonardo
se vestem com réplicas, de gosto popular, dos trajes da nobreza imperial, em cores vibrantes,
zem na cabeça o distintivo do cocar com penas,
em cetim com aplicações de galões dourados,
ou estilizado com lantejoulas, e outros apliques.
lantejoulas e muitos espelhos para afugentar os
Os chapéus são vistosos, altos, com brilho e muitas cores. Os do Mestre e do Con-
cantes. Quanto maior e mais pesado, mais
O Índio e seus Vassalos tanto brincam a ca-
tramestre têm a forma de fachada de igreja
orgulho para quem o porta, pois o status do
ráter, com penachos e tangas de penas, como
com duas torres, frontão e a cruz latina no
grupo é medido pelo garbo e pela importân-
usam o traje normal de fitas coloridas, mas tra-
centro, como insígnia norteadora dos brin-
cia do Mestre.
maus espíritos, conforme a sabedoria popular.
64 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O auto e sua função, fragmentos da fé e da guerra D
a mesma forma que no Reisado, a
auto é mantido com o episódio da guerra,
brincadeira começa com o pedido de
vindo do Reisado, do Auto do Congo e dos
“abrição de porta”, com peças semelhantes, e
Caboclinhos, recheado de novas incorpora-
outras advindas do Pastoril, seguidas das habi-
ções a critério do Mestre.
tuais louvações ao Divino e aos patrocinado-
Nenhum folguedo se iguala ao Guerreiro
res. Entre as composições que o grupo entoa,
em matéria de animação nos passos de batida
os Mateus divertem o público, respondendo
forte, nos gestos e no embate. A ação dramá-
com cantos de conteúdo hilário.
tica se desenrola no combate entre guerreiros
Puxa o Mestre e o grupo responde:
e caboclos, chegando ao ápice com a morte
Guerreiro, cheguei agora, (bis)
e ressurreição do Índio Peri, capturado pelos
Nossa Senhora é nossa defesa. (bis)
donos da aldeia, no caso os colonizadores, e
E os Mateus interrompem:
da Lira, pivô do conflito passional entre o Rei
Se eu casar com uma mulher feia demais,
e a Rainha.
O diabo é que não faz, todo dia ela apanhar! Em seguida, cantam uma sucessão desconexa de atos, fragmentos de outros folguedos e de temas aleatórios que tratam da saudade, do amor, da terra e do mar, que enriquecem a
Mestre Manoel Venâncio Maceió
diversidade e a maleabilidade do enredo, abordando diferentes contextos socioculturais. Apesar da falta de unidade temática, o universo simbólico que sustenta a identidade do Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 65
Guerreiro Mensageiro Padre Cícero
A inclusão da figura do General é, com
improvisos, quebrando uma possível sequên-
certeza, uma decorrência do fascínio que
cia, sem contudo perder a coerência rítmica.
a farda exerce no sentido de poder, so-
Uma característica própria do auto são as
bretudo por conta da conquista do regime
peças de exaltação ao próprio Guerreiro ou
Eu vou vencer minha batalha
republicano por dois militares alagoanos,
ao Mestre. Com isso o ufanismo toma con-
À vista de Santa Bárbara
recente ainda na época do surgimento do
ta do grupo e o sapateado se torna cada vez
Com o seu cálice na mão.
folguedo. O curioso é que o seu traje não
mais forte no palco de madeira, exigência do
é verde, conforme o do Exército brasileiro,
Mestre para conseguir fazê-lo ecoar. Existem
Boa-noite meus senhores,
mas branco, com patentes nos ombros e
nomes emblemáticos de mestras de Guerrei-
Boa-noite eu venho dar,
chapéu de dois bicos, semelhante ao usado
ro. Entre elas Maria Odilon, Joana Gajuru,
Que a Gajuru falada,
pelos almirantes do Fandango e da Che-
Zefa Bispo e Mestra Virgínia, que nos deixou
Chegou hoje no lugar.
gança.
esta peça primorosa de exaltação pessoal:
Pega a peça figurá
E do corisco e do trovão. Todos me prestem atenção
Da Mestra Gajuru temos também outro primor:
Eu sou a Mestra Virgínia
Verde, encarnado e azul,
do pela cadência do apito do Mestre, que
Eu sou a rainha do fogo
Guerreiro da Gajuru,
não larga o comando e cria uma série de
Eu sou a dona dos raios
Tá em primeiro lugar.
O tropel duplo é vigorosamente marca-
66 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Entremeios
O
s entremeios amplificam a graça e a
ção do Boi é de ripas e tecido, com uma aber-
vivacidade da brincadeira, dando mo-
tura logo abaixo da cabeça do animal, onde o
vimentação à apresentação cênica, trazendo o
condutor coloca o rosto. Dos chifres, verda-
tom jocoso que diverte o público. Geralmente
deiros, pendem fitas de cores berrantes que se
são os Mateus e os Palhaços que incorporam
misturam com flores e brilhos, dando à figura
os personagens, mas qualquer participante
uma monumentalidade plástica que lhe garan-
pode fazer o papel. Até mesmo o Mestre,
te o sucesso, principalmente entre a garotada,
como é o caso do Mestre André Joaquim, do
que pula e grita no seu entorno.
Guerreiro Padre Cícero, que se traveste de La
O Jaraguá é outra figura muito presente.
Ursa e assume a personagem com intimidade
Elemento fantástico do folclore brasileiro, ele
e talento.
é encontrado em várias regiões como parte
Na época do Carnaval, ele novamente
integrante do ciclo natalino e do Carnaval.
veste o disfarce e sai pelas ruas do seu bairro,
Trata-se de uma figura alongada, vestida de
o Tabuleiro do Martins, festejado por todos
chita estampada e com focinho pronunciado,
e correndo atrás da garotada. O Mestre traz
cuja mandíbula se movimenta, acompanhan-
no sangue a tradição familiar, brincando no
do o ritmo da música com o entrechoque dos
Guerreiro desde criança até chegar à condi-
dentes. Seu passo é miúdo, mas de quando em
ção atual, substituindo o Mestre Venâncio,
vez investe sobre o público causando corre-
que faleceu em 2008.
rias e risadas.
O entremeio do Boi é sempre muito esperado e o enredo se identifica com o do Reisado, culminando com a ressurreição do animal e o molejo dos movimentos que fazem dessa evolução o ponto alto do folguedo. A arma-
Índio Peri Mestra Vitória Guerreiro Leão Devorador Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 67
Despedida
O
grupo se perfila para a retirada de cena, com a empáfia do dever cum-
prido e a certeza de que deixa saudades. Dai-me licença, senhora, Que eu quero me alevantar. A Virgem da Conceição, Ela nos queira ajudar. Finda a brincadeira, como dizia o Mestre Jorge Ferreira, era “hora de forrar o estômago”. A mesa farta das casas-grandes estava posta. Diferentemente do que acontecia no meio rural, quando havia o envolvimento emocional de todos da comunidade, hoje a relação do grupo com o patrocinador é contratual e, na maioria das vezes, sujeita à burocracia do serviço público.
68 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Maria Flor - Rainha do Guerreiro
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 69
CapĂtulo IV
Personagem Negra da Costa
Dizem que a inconstância tem o nome de mulher. (Não sabem da solidão que a vida da gente é.) (Maurício de Macedo)
72 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Negra da Costa
Traços da etnia O
s folguedos, as danças e tantas outras manifestações culturais são alguns nichos de
resistência da ancestralidade africana no Brasil. O sentido de pertencimento é transmitido, na maioria das vezes, através da religiosidade que permeia essas práticas e fortalece sua sobrevivência, apesar das inúmeras interferências, proibições e descaracterizações sofridas ao longo dos anos. Essa assimilação justifica a frequência, em terras brasileiras, de folguedos - a exemplo do Negra da Costa - que representam, por meio de diferentes metáforas, o universo quilombola, permanecendo na memória de seus descendentes.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 73
Na dinâmica da diáspora, que se estendeu
africano como seitas. Confundem-se ao ponto
Os negros tiveram no Ciclo do Natal e do
oficialmente do século XVI ao XIX, várias rotas
de desvincular a Negra da Costa e outras fol-
Carnaval ocasiões propícias às práticas sin-
do comércio de humanos foram traçadas para
ganças de origem afro das tradições de fé. É
créticas e os folguedos se prestaram a essa
dar vazão às demandas de trabalho no país. Um
notório que o sagrado e o profano caminham
equivalência, num tempo em que os brancos
grande contingente de povos bantus, trazidos
lado a lado nas civilizações e culturas. Vem exa-
opressores condenavam tanto a prática religiosa
da costa de Angola para o Nordeste, ocupou
tamente dessa aproximação a possibilidade de
quanto o culto à pátria distante. Essas implica-
o território e imprimiu sua marca na formação
que os ritos e as celebrações se ordenem em
ções permeiam o enredo dos folguedos que ,
social, demográfica e cultural da região.
festividades. No caso específico das religiões de
em determinados momentos, chegam a fundir
Os rituais de fé e as celebrações festivas
matriz africana, cuja prática era condenada no
a História de países de culturas e continentes
acentuaram a unidade entre os negros, que es-
Brasil, seus adeptos precisavam lançar mão do
diferentes.
palharam por toda parte suas insígnias sagradas
tênue limite entre o espiritual e o material para
e suas danças tradicionais, como meio de man-
louvar as suas entidades.
Hoje é difícil perceber os elementos fundadores dessas manifestações devido às mudanças
ter parte do ethos do continente de origem. Des-
e folclorização dos rituais. A própria distância da
sa maneira, as folganças, assim como as roupas
época da escravidão se encarrega de distorcer os
típicas, constituem elementos de revelação do
propósitos iniciais, confundindo ou mascaran-
respeito à tradição e à identidade arrancada e
do a sua trajetória.
reinventada em todo o território nacional.
Atualmente, seus participantes podem pro-
O folguedo Negra da Costa enquadra-se
fessar qualquer credo religioso e pessoas de
nesse movimento de reinvenção, constituindo
pele clara participam do auto transmutando-se
uma adaptação das danças afro, abrasileiradas
em negras. E o tom do folguedo passou a ser
e incluídas no ciclo de autos carnavalescos. O
jocoso, diferentemente do seu começo. Essas
próprio nome indica a procedência, que pode
mudanças foram implantadas, mas não apagam
ter sido da costa de Angola, da Guiné, mas,
os dogmas que deram origem ao auto. Elas ape-
sem dúvida, da costa da África, denominação
nas sinalizam os movimentos aos quais estão
genérica para definir os que chegaram com a
sujeitas as manifestações populares enquanto
dispersão.
parte de um contexto social em constante mo-
Alguns folcloristas enquadram, equivocadamente, as religiões procedentes do continente 74 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
dificação. Pai Velho Negra da Costa
O folguedo em Alagoas
P
rovavelmente pela escassez de grupos de
As informações dão conta de que em 1920 o
Negra da Costa no estado, os registros
grupo local já se apresentava nos carnavais. A
históricos sobre o tema são poucos. Na clas-
aceitação por parte da comunidade é grande ao
sificação de Théo Brandão ele é citado como
ponto de haver incentivo à sua prática e à cria-
Maracatu. Dos folcloristas locais, apenas José
ção de novos grupos nas escolas. Essa valoriza-
Maria Tenório Rocha e Pedro Teixeira de Vas-
ção possibilitou que o folguedo fosse incluído
concelos documentaram o folguedo, buscan-
como patrimônio cultural local. Enquanto na
do referências em poemas, crônicas e entrevis-
literatura o município carrega o trunfo de ter
tas da época. As poucas anotações dão conta
dado ao país um dos seus maiores escritores,
de que pelos idos de 1910 existiam grupos de
Graciliano Ramos, na cultura popular o orgu-
Negra da Costa em Santana do Ipanema e
lho fica por conta do seu rico folclore e nessa
Mata Grande, no Sertão alagoano, e que, na
área o Negra da Costa é o maior destaque.
década seguinte, a Negra da Costa de Palmei-
Com uma economia baseada na plantação
ra dos Índios puxava os blocos no reinado de
da cana-de-açúcar e na criação de gado, sua
Momo, trazendo animação para os foliões
toponímia procede do termo africano ocubongo-
com apresentações cheia de trejeitos e brinca-
lola, que significa coisa ajuntada, confederação,
volvimento mesmo depois de seu assassinato,
deiras. O grupo se extinguiu em 1931 com a
grupo de pessoas. No passado, foi palco da
em 1954. A outra figura é o mestre Zome -
morte de seu organizador e desde então não foi
formação de vários quilombos e de tiranos ca-
Manuel Soares de Melo -, babalorixá que, por
mais reativado. O grupo de Chã Preta também
pitães do mato.
ter sido proibido de frequentar a igreja pela sua
Negra da Costa Quebrangulo
No aspecto religioso duas figuras se desta-
condição de umbandista, construiu uma igreja
Localizada na Zona da Mata, Quebrangulo
cam. A primeira é o Beato Franciscano - Antô-
particular em louvor a São Sebastião, o santo
é a única cidade que mantém a folgança Ne-
nio Fernandes de Amorim -, que criou uma vila
de sua devoção, em frente ao seu Palácio Rei
gra da Costa em atividade até os dias atuais.
de orações que permaneceu em franco desen-
Balauê, e ele mesmo oficiava o culto.
foi registrado por Pedro Teixeira, em 1998.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 75
Personagens e trajes
O
s brincantes, homens travestidos de
Xangô, o azul para Iemanjá, o amarelo para
mulheres, são chamados de negras.
Oxum e assim por diante. Não existe regis-
Como o auto abriu espaço para os brancos,
tro deste folguedo entre os grupos do estado,
estes pintam o rosto, o colo e os braços com
mas as legítimas negras vindas da costa africa-
tinta preta, carvão vegetal ou pancake e trajam
na não dispensavam seus panos, muitas vezes
roupas como as baianas, com saias longas e
tecidos por elas próprias em teares manuais.
largas e blusas de babados fartos, tudo muito
Além das Negras, existe a figura do diri-
alvo e engomado. Turbante, colares, pulseiras
gente, que traja terno preto e quase sempre
e anéis completam os adereços. Nos lábios o
traz uma bolsa de mulher a tiracolo, e o ca-
batom vermelho em excesso reforça a carac-
sal de pretos velhos, chamados de Pai Velho
terização dos personagens.
e Mãe Velha, que simbolizam a sabedoria e
É evidente que no passado o Negra da
a ancestralidade. A Mãe veste-se de forma
Costa tratava-se de uma dança de mulheres
igual às demais negras, mas traz como distin-
negras que usavam o Pano da Costa como
tivo uma cesta de flores no braço. O Pai veste
complemento da indumentária. O Pano é
terno preto e camisa branca, barba e cabelos
uma espécie de xale de algodão, que a negra
brancos ou embranquecidos artificialmente.
usa sobre um ombro, cruzado na frente, como
Traz no canto da boca um cachimbo com que
fazem as baianas tradicionais. No aspecto re-
se delicia a cada baforada. Cabe a ele trazer
ligioso, representa a insígnia do orixá e varia
a Calunga, boneca de pano preto, vestida da
de cor conforme a entidade. O vermelho para
mesma forma que as Negras.
76 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Negra da Costa Quebrangulo
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 77
O auto e a função A
Mandou me chamar! As Negras brincam sob o comando do dirigen-
informação sobre a forma como a folgan-
- Apanhar macaíba
te, que arrecada as espórtulas. No centro fica o ca-
ça se apresenta nos dias de hoje vem de
Pra vender!
sal de pretos velhos com a Calunga. Acalentam-na
Quebrangulo, uma vez que não se tem notícias da
Ô Negra da Costa
nos braços, sacodem para cima, dançam com ela e
existência deste folguedo fora do estado. Em janei-
Que andas fazendo?
divertem a plateia. Mas o tratamento jocoso dado
ro começam os ensaios e a preparação das roupas.
- Ando na rua
à boneca é fruto da folclorização por que passou
Durante o Carnaval o grupo puxa a orquestra e os
Comendo e bebendo!
o auto.
blocos, percorrendo o Centro e as principais ruas,
Ô Negra da Costa
Originalmente, a Calunga tinha a função re-
sendo ovacionado pelos moradores. Apesar de
Com balaio de flor!
ligiosa de fetiche de Iansã, orixá dos trovões, das
haver outros folguedos no município, a Negra da
- Ando na rua
tempestades e dos fenômenos da natureza. Com
Costa é sempre o mais esperado e aplaudido com
Dançando Xangô!
o tempo, perdeu a força da simbologia, manten-
o calor do pertencimento. A brincadeira é iniciada
Costumam incluir na brincadeira alguma mar-
com tradicional canto:
cha ou frevo de antigos carnavais, repetem cantos
Abra a roda, Yoyô
de outros folguedos, como no caso das peças do
Abra a roda, Yayá
Quilombo, ou aproveitam rimas de circos mam-
A Negra da Costa
bembes e cantos regionais. As peças de hoje são
Chegou pra brincar!
as mesmas que foram documentadas na década de
Trata-se de uma dança-cortejo em duas alas, que adquiriu sua tipicidade no Carnaval, mas que
1970 por José Maria Tenório Rocha, quebangulense que escreveu a história do município.
também se apresenta nas praças e nos palcos das
Ô raia o sol,
festas católicas, culturais e turísticas. Não tem en-
Suspende a lua,
redo, os brincantes dançam e cantam peças soltas
Negra da Costa
que têm como foco a vida da Negra, seu trabalho,
Que anda na rua!
sua alegria e ousadia.
Ô tuê, ô tuê,
Negra da Costa
Ô tuê, ô tuá,
Que vem ver?
Negra da Costa
78 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
do apenas resquícios longínquos dessa prática. O grupo faz referência a Santa Bárbara, que no sincretismo corresponde a Iansã. Durante as evoluções, as Negras se deitam no chão, em plena rua, formando um círculo com a boneca no meio. Essa formação reminiscente pode se reportar ao culto ancestral da fertilidade, mas os brincantes não têm convicção do que representam e, simplesmente, evocam Santa Bárbara. Ô lelê, minha Santa Bárbara, Ô lelê, minha Santa Bárbara, Ô lelê, minha Bárbara Santa, Ô lelê, minha Bárbara Santa. Negra da Costa Quebrangulo
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 79
Quilombo
Origem discutida E
xistem discordâncias quanto à origem do folguedo e à sua denominação. Enquanto uns defendem a genuinida-
de alagoana, outros consideram o Auto do Quilombo idêntico ao Lambe-Sujo, de Sergipe, e ao Cacumbi, da região do Rio São Francisco. Os que apregoam a descendência alagoana referem-se a particularidades associadas a fatos históricos da República dos Palmares (1597-1694), mas a falta de registros efetivos polariza as opiniões. Um dos pontos de consenso é a certeza de que o folguedo começou nas senzalas, com ritmo e batuque africanos e cantos de repúdio ao branco, indo de encontro aos interesses do regime escravocrata vigente. Não resta dúvida de que, em sua forma primitiva, o Quilombo desagradou à ala conservadora da sociedade.
Quilombo Limoeiro de Anadia 80 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
As exibições públicas eram enquadradas nos
nos aglomerados escravos, não resta dúvida de
folguedo que leva esse nome.
códigos de postura municipal, que proibiam o
Se no rastro europeu as influências mais
que em algum momento seu final foi adulte-
ajuntamento de escravos para fins não religio-
fortes vieram das Mouriscadas e Danças de
rado. Mantida a formatação original, a vitória
sos. Entendendo-se que, àquela época, apenas
Pastoreio, na tradição africana os Congos e
seria incontestadamente do rei negro, contra-
o catolicismo era tido como religião. Fontes
Congadas definiram o timbre negro dessas
riando a história e idealizando uma “verdade”
indicam a proibição do folguedo em Marechal
manifestações que, no âmbito geral, todas elas
lendária.
Deodoro na primeira metade do século XIX,
procedentes de um continente ou do outro,
O que aconteceu foi uma reviravolta no en-
com prisão dos brincantes e multas para os se-
giram em torno do louvor a entidades sobre-
redo e os episódios reconceituados conforme
nhores proprietários que permitissem a repre-
naturais e feitos históricos cravados no incons-
a ótica da classe dominante. Exatamente por
sentação por parte de seus escravos.
ciente coletivo. Embora sejam culturas tão dís-
isso, alguns folcloristas resistem em incluí-lo na
Arthur Ramos foi dos primeiros a se pro-
pares, no universo popular elas se encontram e
classificação de folgança de descendência qui-
nunciar sobre a questão, no Folk-lore Negro do
se cruzam de tal forma que às vezes fica difícil
lombola, preferindo deixá-lo como um caso à
Brasil, reafirmando as convicções de Alfredo
separar uma da outra.
parte, considerando que a mudança de cunho
Brandão quanto à origem alagoana e diz tex-
No caso do Quilombo, tem-se como certo
conceitual afetou a linhagem do auto na sua
tualmente: “um auto de sobrevivência históri-
se tratar de um folguedo de raiz africana, cujas
essência. Por todos esses vieses, tem sido difí-
ca, não da África, mas da própria história dos
incursões portuguesas foram chegando à me-
cil registrar o folguedo oficialmente como uma
negros no Brasil”. Abelardo Duarte engrossa
dida que os grupos abriram espaços (ou foram
dramaturgia histórica da República dos Palma-
esta fileira, lembrando a questão negra que a
obrigados a abrir) para brancos e caboclos e
res.
História oficial documenta, tanto em relação
saíram das senzalas para as exibições públicas
aos brancos quanto aos índios por eles coman-
como parte dos folguedos natalinos.
Em Alagoas, o Quilombo de Limoeiro de Anadia vem de uma tradição secular, manten-
dados, que exterminavam os acampamentos
Presume-se ser dessa época a intervenção
do a formação do grupo conforme a orienta-
quilombolas e puniam os escravos fugitivos.
erudita de que falaram Théo Brandão e Dirceu
ção do Mestre e de seus figurantes mais antigos.
Lembra também o universo lendário que se
Lindoso, considerando que o enredo do fol-
É considerado pelos locais como uma porção
formou em torno do Quilombo dos Palmares,
guedo tenha sido subvertido no seu episódio
importante da cultura do município, devido à
envolvendo raptos de moças brancas, filhas de
final em favor do interesse dos brancos, senho-
fidelidade com que a folgança se apresenta nas
senhores poderosos e outras façanhas imaginá-
res de escravos.
festas, fazendo parte da memória afetiva da co-
rias, facilmente identificadas nos episódios do
Em se tratando de um folguedo originado
munidade.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 81
Personagens e trajes O
s Quilombos mais antigos tinham uma formação muito simples e os
trajes acompanhavam essa simplicidade. Com o reconhecimento oficial do folguedo como Auto Natalino, atraindo a aceitação pública da classe social mais abastada, os trajes passaram a ser mais elaborados, inspirados no figurino do Reisado. Os negros trocaram a mescla azul pela seda brilhosa e adotaram chapéus ornamentados com fitas multicoloridas. Os brancos passaram a pintar o corpo de preto para melhor caracterizar os personagens e armaram-se de foices de madeira. O grupo de índios caprichou nos cocares emplumados, nos braceletes e perneiras. Começaram a usar a tinta de tonalidade ocre na pintura corporal e chegaram armados de arco e flechas. Assim se mantêm nos grupos atuais.
Rei de Quilombo Limoeiro de Anadia 82 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O Rei dos negros e o dos caboclos-índios trajam indumentária semelhante às figuras reais do Reisado, trazendo um parapeito de espelhos que lhes acentua a importância. Os espelhinhos, com aproximadamente 4 centímetros de diâmetro, encontrados nas feiras públicas, ainda hoje são muito usados. Os Reis empunham garbosamente espadas da antiga Guarda Nacional. Na falta destas, fazem outras de madeira e pintam a parte da lâmina de prateado ou de dourado. Uma mulher de pele clara que personaliza a Rainha veste túnica branca, com o parapeito semelhante ao dos Reis, manto decorado e diadema ou coroa na cabeça. Em muitos Quilombos esta é a única figura feminina. Existe a Catirina, do lado dos escravos, que é um homem travestido de mulher, que aparece com frequência em outros folguedos de predominância negra. Cada ala tem o seu vigia, que no caso dos caboclos-índios é chamado de Espia. Ainda tem o Pai Velho, negro ou com o corpo pintado, barba branca, chapéu de palha. Encarna a experiência, a sabedoria e detém o respeito de todos. Rei de Quilombo Limoeiro de Anadia
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 83
84 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
O auto e sua função O
Quilombo dramatiza a luta dos ne-
No início, os negros simulam roubar obje-
gros fugitivos na defesa dos seus
tos de pessoas do lugar, como símbolo de con-
acampamentos do ataque dos algozes bran-
quista da liberdade, e ficam com essas peças
cos e caboclos-índios comandados pelos se-
sob sua guarda enquanto dançam em ritmo de
nhores de engenho e seus capitães do mato.
samba. O ato é combinado entre os brincan-
Desde que o folguedo passou a ser aceito
tes e os donos dos objetos, uma vez que no
pela classe dominante, as apresentações ga-
passado houve muitos problemas porque as
nharam uma cenografia elaborada, incluindo
peças eram surrupiadas sem que os proprietá-
a instalação de um barracão, ou mocambo,
rios soubessem, causando desavenças que, por
para os negros e, a certa distância, uma palho-
vezes, eram decididas na delegacia.
ça para os caboclos-índios, ambas camufladas
No desenrolar do auto, os negros roubam
com folhagem para dar a impressão de esta-
a Rainha branca para casar com o Rei negro,
rem escondidas dos adversários.
em meio a muito batuque e festejo. Mas os
Tudo começava na véspera, quando os
caboclos, espertamente, montam uma arma-
brincantes se instalavam e faziam o reconhe-
dilha. Sabendo do quanto os negros gostam
cimento dos seus domínios. O batuque varava
de cachaça, deixam algumas garrafas perto do
a noite, com direito a paneladas de carne gui-
mocambo ao alcance de suas vistas. Logo eles
sada e cachaça divididas entre os participantes
as encontram e, embriagados e tomados pela
dos dois acampamentos. No dia seguinte a
orgia, se tornam presas fáceis. Os caboclos-
brincadeira ganhava plateia.
-índios invadem o mocambo, aprisionam os negros, retomam os objetos e os devolvem aos
Evolução de Quilombo Limoeiro de Anadia
seus donos, que os recompensam com gorjetas.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 85
O sentido simbólico das prendas se concretiza entre a conquista e a perda da liberdade por parte dos escravos. Exatamente o que acontecia com os históricos quilombolas, quando eram dominados e aprisionados, voltando acorrentados e violentamente surrados para as senzalas. Das mais tradicionais peças deste episódio destaca-se o canto de afugentar os brancos: Folga negro, Branco não vem cá. Se vier, Pau há de levar. Folga negro, Branco não vem cá. Se vier, O diabo há de levar. No contraponto, os índios dançam o Toré em círculo e cantam ritmadamente: Dá-lhe Toré, Dá-lhe Toré, Faca de ponta, Não mata mulher. Outros cantos endossam a brincadeira, que culmina com o rapto da Rainha dos negros pelos caboclos, fato que motiva a simulação Figuras de Quilombo Limoeiro de Anadia 86 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
de mais luta pela sua captura. Depois da parte dos vigias de ambos os lados, anunciando a
aproximação do inimigo, a luta é travada e os negros são aprisionados e vendidos à plateia, que os recompensa com espórtulas. Todo o enredo é uma mistura da história da escravidão enxertada com episódios lendários, como o amor entre o Rei negro e a Rainha branca. Exatamente por se tratar de uma manifestação popular, é legítima a reinterpretação dos fatos históricos, mesclados de oralidade e romantização. No final, como aconteceu no Quilombo dos Palmares, os negros são subjugados pela força dos dominadores e o mocambo é destruído. O Rei é dominado e morto em combate, contrariando a expectativa de um folguedo de origem e resistência negra. Com os vieses criativos e, por vezes, impostos, de que se revestem as manifestações populares, é de se crer que a tragédia do reduto palmarino fosse recolocada de tal forma que favorecesse os negros. A fidelidade à História oficial, com a derrota dos escravos, é um indício de que houve uma intervenção do elemento branco na concepção do auto. Além da morte do Rei, os negros são humilhados e vendidos, terminando a apresentação com a consagração da vitória cabocla que, simbolicamente, é a vitória do branco dominador. O desfecho, em regra, não agrada à plateia, que se sente agredida em seus brios. Além disso, os fatos, da forma como são enredados, normalmente causam um certo estranhamento entre as duas alas, cuja competição é levada para a vida na comunidade.
Figura de Quilombo Limoeiro de Anadia Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 87
CapĂtulo V
Mestre Rosevaldo Chegança de Penedo
Canoeiro, canoeiro, a memória já definha vencida pelo cansaço. Existem mais léguas no tempo do que existem no espaço. (Maurício de Macedo)
90 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Chegança
A Chegança dos Mouros O
s folguedos mais antigos, a exemplo do Auto da Chegança, não
dispõem de informações precisas sobre quando e onde foram formados os primeiros grupos. Os registros existentes são vagos. Sabe-se apenas que surgiam e se modificavam de acordo com características específicas de cada região. Nesse processo de assimilação e mudança, contabilizamos versões tão variadas entre si que muitas chegam a parecer folguedos diferentes. Apenas um estudo comparativo, aprofundado entre os elementos essenciais, poderia identificar as semelhanças entre as versões.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 91
No caso da Chegança, o que se tem como
O Auto da Chegança, ou Chegança dos
ginação dos intelectuais espanhóis e portu-
certo é a sua origem ibérica, conhecida tanto
Mouros, é um deles. Derivado da Mouriscada
gueses. Em se tratando de países católicos,
na Espanha quanto em Portugal. Também é
e de danças europeias que tratam do mesmo
suas memórias estão ainda mais impregna-
voz corrente que chegou ao Brasil entre as le-
tema, o folguedo é uma versão brasileira das
das dessas disputas com povos pagãos e das
vas de influências, costumes e culto à história
lutas religiosas entre cristãos e mouros.
relações entre os poderes constituídos.
lusa. Faz parte do repertório de manifestações
A justificativa para o fascínio em torno
Nesse aspecto, o Auto da Chegança está
procedentes do domínio mouro na Península
desse episódio pode ser compreendida pelo
entre as manifestações que estimulam o
Ibérica, que de lá se expandiu para as colônias
fato de que a influência árabe na Europa,
sentimento de amor à terra, de reconheci-
dominadas pelos dois países. É provável, ain-
e
particularmente na Península Ibérica,
mento pelos feitos históricos, e a defesa da
da, que tenha chegado ao Brasil no início do
estendeu-se além da economia e das ques-
fé. Foi com essas características que a mani-
século XIX com a corte de dom João VI, mas
tões religiosas. Chegou à filosofia, às artes e
festação chegou e se estabeleceu no Brasil.
foi, com certeza, depois da mudança do regi-
ao pensamento estético. Na própria arqui-
O enredo foi preservado e os acréscimos
me político, do Império para a República, em
tetura, enquanto narrativa de um tempo, a
só vieram reforçar o tema, com a particula-
1889, que o auto atingiu a maioridade.
marca está registrada nas cúpulas bulbosas,
ridade de fundir os feitos portugueses com
É comum nos folguedos uma recorrência
nas colunas retorcidas, nos arcos em forma
símbolos e fatos nacionais.
a fatos remotos que entraram no universo dos
de ferradura, nos animais fantásticos, nos
Nas Cheganças mais recentes, o “adeus
artistas populares e se misturaram a outros
rendilhados de pedra e nas barras de azu-
Portugal”, do primeiro verso, é substituído
temas, compondo uma nova história, repleta
lejos que permanecem nas construções das
por “adeus Alagoas”, embora o tema seja
de múltiplas interferências. Nessa dinâmica
cidades antigas.
a luta contra os mouros. A Chegança Sil-
construtiva, um tema que caiu no agrado e ad-
Nas artes decorativas também é grande a
va Jardim, do município de Coqueiro Seco,
quiriu diferentes versões na interpretação po-
relação dos motivos que permanecem vivos
promove essa curiosa mistura que deixa a
pular é exatamente a invasão moura na Penín-
na cultura desses povos. Tapetes, louças, ce-
brincadeira ainda mais interessante. No
sula. Fato ocorrido nos idos da Idade Média,
râmicas, variados esmaltes, sedas, brocados
desenrolar das jornadas de luta contra os
trouxe para o imaginário local uma riqueza de
e lavores de couro comprovam a vitalidade
mouros, os marujos cantam a peça Nossa
motivos e de personagens que ainda povoam
da influência muçulmana, sem falar nos vo-
Esquadra Brasileira como se fosse a Mari-
as manifestações tradicionais portuguesas e
cábulos, nos contos e em todos os gêneros
nha do Brasil entrando em ação.
espanholas.
de literatura que ainda hoje habitam a ima-
92 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Os fatos do passado, distantes da reali-
dade dos brincantes, terminam recebendo novas interpretações, associadas ao mundo conhecido por eles. Ainda assim, a sequência é mantida sem perder a força temática. É exatamente neste ponto que a Chegança difere do Fandango. Nós devemos dar o Viva!, Nossa Esquadra Brasileira, (bis) Sai afora, artilharia, Faça fogo, artilheiro. (bis) No Nordeste o folguedo foi amplamente assimilado, com formação de grupos em praticamente todos os estados, nas cidades ou povoados que se desenvolvem à margem das águas, doces ou salgadas, devido à identificação com a temática da conquista.
Chagança Silva Jardim Coqueiro Seco Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 93
Os grupos locais
Penedo, Coqueiro Seco, Rio Largo
P
enedo, principal cidade do Baixo São
Rua da Santa Cruz em direção à praça da
talino, voltam às ruas nas comemorações
Francisco, sempre teve a Chegança
igreja, entoando a marcha do Alerta. Não
alusivas ao Bom Jesus dos Navegantes,
organizada por distritos. Antônio Osmar
faltava a saudação a Nossa Senhora do Ro-
que acontece nas cidades ribeirinhas nos
Gomes, em seu livro A Chegança, cita o
sário, padroeira da cidade, que aguardava
domingos de janeiro. Muitos eventos são
grupo do Barro Vermelho e o do Outeiro,
em um andor iluminado, na porta princi-
programados com manifestações popula-
ambos bairros de pescadores e lavadeiras
pal da catedral, para abençoar o grupo. O
res que culminam com a procissão pelo rio,
que têm o rio como ícone da comunida-
Menino Jesus na lapinha da mesma igreja
seguida do cortejo pelas ruas, conduzindo
de. Conta o escritor, no livro de 1941, que
era ovacionado. Todos se entusiasmavam
a imagem em meio à grande festa de fé e
a Chegança sofreu prescrições religiosas e
cantando as peças laudatórias. Em seguida
tradições culturais.
policiais devido à presença do Piloto-Cape-
a imagem voltava a ser entronada no altar e
No repertório das odisseias em louvor
lão, cuja representação cômica gerou insa-
a Chegança seguia para o local da apresen-
ao Bom Jesus, que se estendem aos outros
tisfação entre os católicos. Alguns achavam
tação, acompanhada por muita gente.
estados banhados pelo Velho Chico, uma
desrespeitosa a presença do figurante ves-
Os fiéis levavam a imagem para o lado
tido de padre, por isso o grupo só brincava
de fora porque era, na concepção da épo-
com a autorização da polícia.
ca, desrespeitoso os brincantes adentrarem
Vamos, maninha vamos,
Outra Chegança que marcou presença
a igreja com a indumentária típica dos fol-
À praia passear,
na região ribeirinha foi a comandada pela
guedos. Até certo ponto o hábito perma-
Vamos ver a barca nova,
tradicional família penedense Fausto, em
nece. A diferença é que nos dias atuais os
Que do céu, caiu no mar.
atividade até meados do século passado. A
figurantes masculinos apenas retiram os
Nossa Senhora dentro,
função do Almirante era hereditária, pas-
chapéus em sinal de respeito.
Os anjinhos a remar,
sando para as gerações mais novas a espada
As Cheganças do Baixo São Francisco,
de comando. O grupo saía de sua sede na
além de se apresentarem no período na-
94 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
das quadras mais típicas da Chegança é esta:
São José por piloto, Bom Jesus a navegar!
Cheganรงa de Penedo
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 95
Entre as peças do Mestre Rosivaldo Jor-
dos Santos, sempre no posto de Capitão-de-
dão, que comanda a Chegança de Penedo
-Mar-e-Guerra, que figura entre as personali-
desde o final do século passado, destaque para
dades mais festejadas do município e, embora
o pedido de licença que é cantado pelos com-
não tenha mais forças para dançar, está sem-
ponentes perfilados, prestando continência ao
pre disponível para orientar os jovens que dão
Almirante.
continuidade à tradição da Chegança Cruza-
Licença, meu Almirante (bis)
dor São Paulo. Mestre Juvêncio foi o primeiro
Licença eu venho pedir (bis)
vice-presidente da Asfopal (Associação dos
Para saltarmos em terra (bis)
Folguedos Populares de Alagoas), criada por
Para conhecer o Brasil (bis)
Ranilson França e Josefina Novaes, em 1985.
O Almirante responde:
Ai! Adeus que eu já me vou.
Eu vou lhes dar a licença (bis)
Belas meninas,
Desta embarcação para a terra (bis)
O São Paulo já largou.
Se me chegar algumas queixas (bis)
Elas choravam, se maldiziam
Mando-lhes jogar nos ferros! (bis)
Silenciosas.
Em outros pontos do estado também en-
Adeus, até um dia!
contramos Cheganças emblemáticas, como a Silva Jardim, da cidade de Coqueiro Seco, da Mestra-Almirante Maria Luzia Simões, que, com idade avançada, prepara os mais jovens para dar continuidade à brincadeira. Na esquadra do Silva Jardim, Tem mais de mil marinheiros, Tem toda munição de guerra, Tanto no mar como em terra, Somos heróis e guerreiros.
Rio Largo tem o decano Juvêncio Joaquim 96 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Mestre Rosivaldo Chegança de Penedo
Personagens e trajes O
s brincantes trajam uniformes da
rio e os Gajeiros subiam realmente no mas-
Marinha Brasileira de acordo com as
tro e muitos de lá se jogavam em espetacular
funções que exercem, portando as patentes
mergulho que arrancava aplausos efusivos da
referentes aos postos. O Almirante é quem
assistência. Esses saltos foram suspensos de-
comanda a frota. A ele todos prestam conti-
vido ao risco de acidentes. Ainda no elenco, o
nência em respeito à sua posição hierárquica.
Embaixador e o Rei Mouro, que só aparecem
Em seguida, por ordem de importância na
nas últimas jornadas em trajes caricaturados
frota, vêm o Capitão-de-Mar-e-Guerra, Mes-
da nobreza real.
tre-Piloto e Mestre-Patrão. O Padre-Capelão e
Todos portam espadas, com exceção dos
o Doutor-Cirurgião vestem-se de acordo com
Marujos, que são os mais novos e aprendizes
seus papéis. Depois, a fileira de oficiais, com
na brincadeira. Com as armas empunhadas e
farda azul-marinho, quepe branco e muito
porte empavonado fazem alegorias, represen-
garbo. Os Marujos são os últimos, com traje
tam combates e buscam demonstrar habilida-
branco de marinheiros. Entre eles, o Ração, ou
de no manejo com a arma, que na representa-
Despenseiro, que cumpre o importante papel
ção do folguedo é o símbolo maior de poder.
de guardar os alimentos. Há ainda dois Gajei-
Chegança Silva Jardim Coqueiro Seco
ros, que sobem no mastro para dar sinal de terra à vista. Eles olham ao longe, para a linha do horizonte, na ponta do barco ou palanque, simulando que estão no alto do mastro. Antigamente, nas Cheganças do São Francisco, o barco era montado na beira do Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 97
O auto e a função
P
ara melhor entendimento, o auto foi dividi-
Natal e a Virgem do Rosário. A maioria dos gru-
do em Chegança dos Mouros e Chegança
pos de Alagoas começa com a tradicional peça:
com o batismo oficializado pelo Padre-Capelão: Eu vós batizo, mouros,
dos Marujos, ou Fandango. Isso porque existe
Alerta, alerta quem dorme,
Mouros infiéis pagãos,
uma pequena diferença entre uma Chegança e
Olha a moça na janela,
E depois de batizados,
a outra no que diz respeito à lógica do enredo,
Venha ver a nau Tirana,
De mouros sereis cristãos!
mas os personagens, o ritmo e as evoluções são
Quando vai largando a vela!
praticamente iguais.
Ó, meu Deus, que terra é aquela,
No caso da Chegança dos Mouros, ou sim-
Despedida
Terra de tanta alegria!
plesmente Chegança, existe um enredo sequen-
- É o campo do Rosário,
ciado e longo que fala da luta entre cristãos e
Onde festejam Maria!
são comemoradas com a cruz de Cristo, levan-
mouros travada em alto-mar. Os pagãos querem
Os episódios se sucedem ao ritmo dolente da
tada pelo Padre-Capelão. E com a alegria da es-
conquistar novas terras, expandir seus domínios
música. As ordens do Almirante, as louvações à
quadra os brincantes garbosamente se despedem
pelo Ocidente e os cristãos impedem o desem-
Nossa Senhora, ao Bom Jesus dos Navegantes
com as marchas da partida. Uma das mais tradi-
barque do inimigo.
e ao Menino Jesus, ao mesmo tempo em que
cionais, registrada por Théo Brandão, é esta:
A rendição do Rei e a vitória da esquadra lusa
Começa o auto com a chegada do grupo ao
preparam a nau para a partida. As peripécias
Adeus, adeus Alagoas,
palanque, que na maioria das vezes tem a forma
em alto-mar: bebedeira do Piloto, brigas entre
Saudades eu vou levar,
de um barco. Quando isso não acontece, eles le-
a tripulação, confusões do Padre-Capelão e do
Da nossa pátria querida,
vam nas mãos uma miniatura conduzida por um
Doutor-Cirurgião. Por fim, a presença do inimi-
De nossa terra natal.
dos Marujos que segue na frente.
go, representado por três mouros que chegam
Vamos marchar para a guerra,
Ao longe já vêm cantando, perfilados em duas
ao barco, tentando convencer o Almirante a se
E ver o mar de Lisboa,
alas, com o Almirante à frente empunhando a es-
render ao Rei dos mouros. Como não há acordo,
Adeus, adeus Alagoas,
pada, seguido de seus auxiliares diretos e da ma-
acontece a guerra e depois de muitas embaixadas
Até quando eu voltar!
rujada. Na marcha entoam cantos, anunciando a
e lutas com espadas, os cristãos saem vitoriosos e
passagem e convidando a todos para louvarem o
os pagãos, vencidos e convertidos ao catolicismo
98 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Fandango Outras façanhas no mar
I
nspirado nas lutas náuticas medievais, o Fandango também é conhe-
cido por Marujada, Nau Catarineta ou Chegança de Marujos. Pode ser considerado uma versão da Chegança propriamente dita, devido à semelhança que existe entre eles, mas como não desenvolve o enredo da batalha entre cristão e mouros com os episódios historiados, os estudiosos classificaram-no como mais um Auto Natalino, embora todos reconheçam a sua filiação da Chegança.
Mestre Isaldino Fandango do Pontal da Barra Maceió
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 99
No Sul do país existe uma dança de origem flamenga chamada Fandango, que no passado foi proibida por ser considerada de hereges. Hoje faz parte do folclore riograndense. Explora o sapateado e pertence a outra classificação, não tendo similaridade com o Auto do Fandango dançado nas áreas costeiras do Norte e Nordeste. Alagoas é um estado que traz na própria toponímia a riqueza de sua hidrografia. Cercado de mar, rios e lagoas, tem sua cultura atrelada à geografia. O modo de vida, a alimentação, a atividade pesqueira, a arte das rendas, tudo se reporta à vida nas margens, convivendo com lendas, crenças e todo o vocabulário impregnado da sabedoria popular de quem aprendeu, desde cedo, a viver das benesses das águas. Com tais condições, os folguedos que contemplam enredos náuticos são muito bem aceitos e acrescidos de características locais, devido à naturalidade com que os partícipes lidam com o tema. Os grupos são organizados nos bairros ribeirinhos e, somados, o entusiasmo e o sentimento de pertencimento dos brincantes resultam da convivência diária com os movimentos de chegada e de saída das embarcações no porto e do hábito com a paisagem. Essas características fazem da Chegança e do Fandango folguedos muito apreciados e sempre presentes nas festas religiosas.
100 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Fandango do Pontal da Barra Laguna Mundaú Maceió
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 101
Os grupos locais A
lguns grupos já se incorporaram às tradições do bairro, e por esse motivo são mantidos pelos mais
velhos que brincam desde jovens. O Fandango do Pontal da Barra, em Maceió, é um desses. Vem de um tempo que a própria comunidade não sabe precisar. As informações prestadas pelos mais antigos dão conta de um provável início na década de 1930. O almirantado é posto hereditário que passa de pai para filho na família Costa. Dos ancestrais para o Mestre Abinadab, depois para seu filho Isaltino e, agora, para Fernando. São 36 componentes, entre homens e mulheres. Quase todos estão ligados por laços afetivos, de parentesco ou de vizinhança, o que fortalece a legitimidade do auto. Os ensaios acontecem na sede da Colônia de Pescadores do Pontal, ponto central, cujo grande salão atende a vários eventos. No bairro, os homens pescam e as mulheres fazem rendas, principalmente o filé, tradicional da comunidade. O próprio ambiente do lugar, à margem da Laguna Manguaba, é propício à prática do auto, pois detém os resquícios da influência lusa na atividade artesanal, na culinária, nas devoções, nas danças e nas músicas.
102 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Fandango do Pontal da Barra Museu Théo Brandão Maceió
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 103
O auto e sua função M
antendo a mesma formação da Chegan-
Almirante - O navio vai embora (bis)
com a insistência do Contramestre em mandar
ça, o grupo entoa peças do cancioneiro
Coro - Vou embarcar (bis)
o Gajeiro subir ao topo do mastro, mesmo este
popular que fazem parte dos antigos folguedos
Almirante - Eu já vou para o mar (bis)
prenunciando o risco que está correndo em alta
portugueses, das xácaras, das ladainhas, das lendas.
Coro - Vou embarcar (bis)
tempestade. No desespero em ferrar as velas, o
Essas canções anônimas, que passam oralmente
superior não o escuta e, cumprindo ordens, o Ga-
para os mais jovens, são levadas para o Auto do
A banda musical é formada principalmente por
jeiro se arrisca. Sobe no mastro e simula cair no
Fandango juntamente com os cânticos de marinha.
instrumentos de corda e a dança tem passos curtos
mar entre gracejos e desespero. Confirmada a sua
São peças soltas que falam da vida no mar, do amor
e lentos com movimentos de corpo que lembram o
morte, o Piloto-Capelão faz a encomendação da
de marujo, dos grandes descobrimentos marítimos,
embalo das águas. A cadência dolente configura a
alma em um latim truncado que provoca risos a
da saudade da terra natal, da partida. Enfatizam
representação de um folguedo de identidade aquáti-
quem assiste.
também contrabandos, intrigas entre os seus tripu-
ca. Tudo converge para o tema.
lantes. Não faltam louvações ao Deus Menino e aos
Assume o posto o Segundo Gajeiro, que, com
No desenrolar da função o ponto dramático é a
mais sorte, sobe no mastro e logo anuncia “terras
falta de alimento anunciada pelo Marinheiro Ração.
de Espanha e areias de Portugal!”. É a redenção
Brada o Almirante em alto e bom som, repre-
A representação do desespero da tripulação é ex-
dos tripulantes. E nesse clima, cantam a volta à
sentando a hora do embarque, para dar início à
pressa com a sugestão do Contramestre de sortear
terra natal e a alegria de pisar em solo firme.
brincadeira:
um Marujo para ser sacrificado e servir de alimento
O episódio é uma versão da Nau Catarineta,
para os demais. A barbárie só não ocorre porque
poetizada por Almeida Garret no século XIX e
Arretirar é preciso
o Almirante intervém, categórico, condenando a
reproduzida nas mais diversas versões, em corren-
Se houve alguma falta
sugestão, ao mesmo tempo em que insiste com os
tes eruditas e populares. Na tradição portuguesa
Pedimos perdão por isso.
Gajeiros para que subam alto no mastro e tentem
a nau conduziu Jorge de Albuquerque Coelho,
Almirante - Ai! Meu Deus, vou-me embora! (bis)
ver “terras de Espanha e areias de Portugal.”. De-
em 1565, de Olinda a Portugal e grandes foram
Coro - Vou embarcar (bis)
pois de algumas tentativas, finalmente o grito de
os percalços na travessia do Atlântico. O drama,
Almirante - Deixa logo a ração (bis)
terra à vista e a alegria geral.
partido e recortado pela sabedoria popular, ainda
santos da devoção local.
Todos - Adeus santos que nos amam
Coro - Vou embarcar (bis)
Em alguns Fandangos o drama se desenrola
104 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
hoje é entoado nos Fandangos alagoanos.
Em primeiro plano: Mestra Eronildes Soares dos Santos Cheganรงa Silva Jardim Coqueiro Seco
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 105
CapĂtulo VI
Mestra Ana Samba-de-Matuto Renascer Ilha de Santa Rita Marechal Deodoro
Diversa ĂŠ a cor da pele - terra de tanta mistura. A todos faz camaradas a risada mais pura. (MaurĂcio de Macedo)
108 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Samba-de-Matuto
As faces múltiplas do samba D
esde o seu surgimento o Samba fascina e desafia gerações de estudiosos,
que se debruçam sobre a diversidade de suas características rítmicas e as múltiplas ramificações surgidas até se transformar no que vemos hoje: um gênero musical fortemente marcado por elementos afro-brasileiros. De origem angolana, começou como dança. Os registros dão conta de que chegou ao Brasil trazido pelos negros escravizados. Em dias e noites de festas, religiosas ou profanas, eles exaltavam sua crença e reafirmavam seus costumes ao som do lundu - ritmo marcado pela fusão entre o batuque e a dança. O aspecto sensual dos movimentos, com requebros de quadris e umbigadas, era considerado lascivo e imoral.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 109
Apesar da repressão, promovida notada-
as festas católicas, como meio de afirmação e
mente pela Igreja Católica, tinha início ali uma
sobrevivência cultural, da mesma forma que
cadência sem volta: o samba caiu no gosto po-
os escravos estabeleceram a equivalência en-
pular e firmou-se como um gênero predomi-
tre os seus orixás e os santos de seus senho-
nante no país: saiu da senzala para os terreiros
res. Era a maneira possível de professar a fé
e de lá para as ruas. Integrado ao sincretismo
sem proibições.
afro e às variantes regionais, o termo, derivado
O fato é que o Samba, nas suas variadas
do vocábulo angolano semba (umbigada), so-
formas, é uma das manifestações populares
freu incorporações distintas.
que mais contribuíram com a formação “do
Entre as inúmeras variantes, além do Sam-
mito das três raças” de que fala o antropó-
ba-de-Matuto, temos Samba de Umbigada,
logo Roberto da Matta, sintetizando a sólida
Samba de Roda, Samba de Gafieira, Samba
imagem compartilhada entre brancos, negros
de Enredo, Samba de Terreiro, Samba de Ba-
e índios que deu origem à cultura brasileira.
tuque, Samba de Breque, Samba de Partido-Alto, Samba de Morro e tantos outros que se multiplicam em ritmo sincopado no batuque dos tambores, atabaques e cuícas. Nessa diversidade há algumas confluências que remetem a uma origem comum, herança das tradições musicais africanas transportadas para a América. A grande aceitação da dança e da música no país atesta sua força como elemento simbólico, capaz de adaptar-se a contextos diversos. No processo de sincretismo, o Samba-de-Matuto está entre as variantes dos festejos das senzalas que, posteriormente, migraram para
110 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Samba-de-Matuto Ilha de Santa Rita Marechal Deodoro
A folgança em Alagoas
N
a região dos engenhos o Samba-de-
O Samba Leão da Primavera, do Mestre Se-
Um dos fatores que concorrem para que haja
-Matuto ganhou forma e, sobretudo
bastião Amaro, de Maragogi, continua em plena
essa permanência é a liderança da Mestra e a
em Viçosa, Capela, União dos Palmares e vi-
atividade, com a tradicional formação das figu-
amizade fraternal entre as componentes do gru-
zinhança, teve grande aceitação, sendo levado
rantes em duas alas e o Mestre no centro, puxan-
po, formado por nativas ou integrantes com la-
para os salões das casas-grandes como dança de
do o canto e marcando as evoluções. Na Massa-
ços de parentesco na Ilha de Santa Rita, comple-
casais.
gueira, distrito de Marechal Deodoro, a Mestra
xo lagunar onde está inserida a comunidade de
No Litoral Norte o folguedo seguia o mode-
Ana Souza da Silva comanda o grupo Renascer.
Massagueira. Juntas, batendo papo na margem
lo pernambucano, valorizando a raiz afro com
O nome revela a inconstância da brincadeira,
da lagoa, bordam seus vestidos e chapéus, fazem
a participação ativa dos terreiros de candomblé,
que fora desativada algumas vezes ao longo do
os colares, brincos e adereços que acompanham
local onde o Mestre, ou a Mestra, acendia velas
tempo, embora ninguém saiba calcular exata-
a indumentária. Enquanto conversam, tecem
aos orixás, fazendo da folgança uma oferenda.
mente quando começou. O que se sabe é que a
lembranças e planejam novas apresentações.
Nas primeiras décadas do século passado, os
função foi reatada há uns dez anos pela Mestra
carnavais de São Miguel dos Milagres, Passo de
Ana e que o grupo se mantém articulado sem
Camaragibe e Porto de Pedras eram animados
sofrer interrupção.
Samba-de-Matuto Ilha de Santa Rita Marechal Deodoro
pelos grupos de Samba-de-Matuto com figurantes de ambos os sexos. Na década de 1970 a concentração continuava nos municípios do Norte e do Litoral. São Luiz do Quitunde, Porto Calvo, Murici, Japaratinga, Maragogi, Maceió e Marechal Deodoro completavam o circuito do Samba. São localidades onde a tradição ainda se mantém viva com intervalos de arrefecimento e reativação, permanecendo latente na lembrança dos moradores como parte importante dos festejos locais. Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 111
Personagens e Trajes
O
s trajes dos brincantes apresentam
Entre os atributos, o Mestre precisa ter
ras femininas, sendo uma de verde no meio,
algumas variações de grupo para
uma boa voz para levar o ritmo com a tona-
fazendo as vezes de Diana, ladeada por uma
grupo, mas o básico é uma saia larga, de cós
lidade adequada, fôlego para cantar durante
figurante de azul claro e outra de rosa, tendo
franzido, que realça o movimento das evolu-
horas e rapidez de improvisador. Posiciona-
nas extremidades a Mestra e a Contramestra,
ções. Não há regra rígida. Alguns optam pelas
do no centro, veste camisa de chita ou roupa
seguidas das demais figurantes.
cores azul e encarnado e outros pelas saias de
comum, totalmente descompromissado com
Não existe no Samba-de-Matuto uma va-
chita estampada, fartas em babados, blusas
a indumentária do grupo. Quando o samba é
riedade de personagens, porque não se trata
brancas com frisos e detalhes do mesmo te-
puxado por uma Mestra, ela também vem a
de uma folgança dramática que exija um figu-
cido das saias. Na cabeça, chapéus, diademas,
caráter, com roupa semelhante à das sambis-
rino elaborado para compor um determinado
torços ou flores.
tas. Alguns Sambas têm no centro três figu-
enredo.
112 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O Auto e a Função E
ntre dança e folgança, o Samba-de-Matuto mantém uma estrutura sim-
ples, que denota fidelidade às circunstância originais, época em que o batuque ressoava nas senzalas e nos terreiros. Sua formação básica preserva as duas alas de figurantes, que dançam e evoluem conforme a música e os cantos entoados pelo Mestre, e repetidos em coro por todos eles. As peças são soltas e muitas vezes improvisadas, mas o ritmo é sempre o do Samba bem marcado. Cada Mestre tem as suas preferidas. No repertório do Mestre Samba-de-Matuto Ilha de Santa Rita Marechal Deodoro
Amaro, patrimônio vivo de Alagoas, não faltam peças sobre o amor, o mar, as mulheres. A sua predileta é: Eu ontem fui à maré Fazer uma pescaria
Acredite quem quiser
folguedos que se apresentam em todas as fes-
Quando amanheceu o dia
Tire o meu cartaz de bamba
tas, do Natal ao Carnaval, adequando os cantos
Ia arribando até.
O meu fracasso é samba
a cada ocasião. Seu batuque originou diversos
Na cabeça da galé
E carinho de mulher.
folguedos e contribuiu para o enriquecimento
Aboiou um cação
Na simplicidade de sua formação o Samba-
de outros, como a Baiana e a Taieira, que con-
Ouvi o nome de Tião
-de-Matuto, a princípio um cortejo, hoje se exi-
tinuam entre as manifestações populares mais
Namorador de Zezé.
be nos palcos e ingressou na classificação de
presentes no estado.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 113
Taieira Do cortejo ao folguedo N
o conjunto da herança africana, a Taieira aparece como uma das manifestações mais frequentes em vá-
rios estados brasileiros. No Nordeste, a ocorrência é ainda mais marcante devido ao forte contingente de negros e mulatos mantendo as tradições de seus antepassados. O registro mais antigo de que se tem notícia data de 1760, na então Vila de Santo Amaro da Purificação, na Bahia, quando um grupo de Taieira se apresentou por ocasião de uma festa de casamento de nobres. O auto tem identificação com diferentes folguedos - Maracatu, Baiana, Congo - surgidos nos terreiros de candomblés, espaço onde as práticas e os costumes africanos são cultuados pelos descendentes que buscam a manutenção e a reconstrução de seu processo identitário. Originalmente, a Taieira é uma dança-cortejo que se estendeu dos terreiros às procissões, integrando-se mais tarde aos folguedos natalinos, adaptando-se aos palanques nas praças públicas. Hoje a manifestação pode ser vista nas mais variadas ocasiões festivas e culturais das localidades onde é preservada. Rainha Taieira São Miguel dos Campos
114 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Nesse ciclo de transformação constante
Tradicionalmente a Taieira, como os de-
em que o folguedo está inserido, o sagrado
mais folguedos, homenageia os santos de
e o profano se confundem de tal forma que
maior devoção entre os escravos e seus des-
não se pode mais separar um do outro, num
cendentes diretos, irradiando o espaço do sin-
verdadeiro ritual de fusão entre a dança, o
cretismo religioso. Nossa Senhora do Rosário
canto e a performance dos personagens. Des-
e São Benedito sempre foram festejados pelas
se amálgama resultou um auto evidenciado
Taieiras com direito a desfiles e apresentações.
pela pluralidade estética.
Ao contrário do Maracatu e da Baiana,
Arthur Ramos foi um dos primeiros estu-
que chegaram a Alagoas pelos municípios do
diosos a estabelecer uma confluência de ele-
Norte, a Taieira migrou de Sergipe e da Bahia,
mentos entre a Taieira e os demais folguedos
ganhando força no município de São Miguel
filiados aos autos dos Congos-Cucumbis, que
dos Campos, que a mantém preservada. Em
exaltam os reis e rainhas do Congo. Nesse
Maceió, o Grupo Folclórico Professor Pedro
processo, fragmentos históricos são agrega-
Teixeira, criado em 1985, tem uma Taieira em
dos na formação de um enredo que serve de
plena atividade.
base à estrutura do folguedo. A representação
Apesar do grande contingente de escravos
é sempre o resultado da mistura entre elemen-
nas suas lavouras e da proximidade com os
tos históricos, memória afetiva e o gosto pelo
estados de Sergipe e Bahia, Penedo não con-
divertimento.
seguiu conservar a tradição das Taieiras, que
Inicialmente, a prática da Taieira estava
desapareceram com o tempo. Outros regis-
restrita à população negra. Com o tempo, o
tros dão conta de que desde o século XIX a
avanço da miscigenação, associado à influên-
brincadeira era praticada em localidades como
cia portuguesa, flexibilizou a regra. E a partir
Anadia, Marechal Deodoro e Viçosa, oscilan-
de um processo de sincretismo, tipicamente
do entre períodos de efervescência e de ina-
brasileiro, houve também a incorporação ao
tividade.
auto de elementos do catolicismo, numa via de mão dupla entre europeus e africanos, e por vezes tripla, com a participação do nativo.
Rei Taieira São Miguel dos Campos Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 115
116 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Taieira completa Sรฃo Miguel dos Campos Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 117
Personagens e trajes M
ulheres e homens participam da folgança. Os diversos personagens empunham espadas e querequexés. Por ordem
de importância, Rei e Rainha têm direito a manto, cetro e coroa. Em alguns grupos essas figuras são protegidas por grandes sombrinhas, bordadas com lantejoulas e franjas de seda, conduzidas por rapazes fortes com trajes de cortesãos. Em seguida, vêm as Puxadoras dos cordões, ou Guias, que iniciam o canto, enquanto as Contraguias logo respondem em coro com as demais figurantes. O Ministro do Rei, com calção balofo de nobre, cumpre a sua função na corte. As africanas, geralmente homens, podendo também ser mulheres, com rostos pintados de preto e traje de baiana, quase sempre branco, com saias rodadas, rendas e torço na cabeça, seguem dançando. As figurantes, denominadas Taieiras, com saias nas cores azul ou encarnado, igualmente rodadas, fazem as evoluções, trazendo nas mãos uma urupemba com flores e fitas coloridas. Na cabeça usam chapéus de palha forrados de tecido ou diademas vistosos. Por iniciativa da Mestra, que comanda o grupo com seu apito, pode ser acrescido à brincadeira um ou outro personagem. Os brincantes se vestem com tecidos de seda brilhosa, em cores fortes e estampados variados. Alguns trazem um xale no ombro esquerdo e todos, indiscriminadamente, capricham nos adereços e detalhes.
118 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Taieira Sรฃo Miguel dos Campos
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 119
O auto e a função
O
riginalmente, a formação do grupo
mais movimentadas, ricas nas evoluções, am-
com tamanho de aproximadamente um me-
implicava no cortejo em direção à
plificando seu caráter profano. Os cortejos
tro, reverenciada por todos de forma jocosa.
igreja para as homenagens aos santos. Depois
ritualísticos das antigas procissões estão dimi-
Os cantos e as embaixadas passaram a
continuava acompanhando a procissão, inter-
nuindo ano a ano e as mudanças são intro-
fazer referência aos eventos nos quais se
calando cantos com embaixadas em louvor
duzidas conforme os interesses do público.
apresentam, ajustando o folguedo às novas
aos santos, seguindo o séquito com as irman-
Nesse processo, sua configuração está se vol-
feições. Há uma mudança no repertório dos
dades, as congregações e o povo. Em certo
tando cada vez mais para o entretenimento,
grupos, embora alguns cantos tenham letras
ponto, a comitiva parava e os personagens
com uma releitura do significado de origem.
fixas e sejam mantidos, a exemplo dos louvo-
digladiavam-se em luta cenográfica, disputan-
Com ênfase no palanque, foram mantidas
res a Nossa Senhora do Rosário e a São Be-
do a Rainha. Enquanto isso, as figurantes ves-
duas alas com figurantes taieiras e africanas
nedito. Outros novos são criados para atender
tidas de taieiras, em alas laterais, protegiam o
em número variado de grupo para grupo. As
ao padroado do lugar ou ao santo predileto da
andor de Nossa Senhora ou de São Benedito.
figuras principais, a quem os demais brincan-
Mestra. A identidade mantida com os santos
Com o tempo, a formação do grupo foi se
tes se dirigem, permanecem no centro, em
da devoção dos negros garante a fidelidade do
adaptando às novas circunstâncias das apre-
posição de destaque. Em meio ao grupo, um
folguedo às suas origens sincréticas.
sentações. Os palanques exigiam coreografias
integrante leva a “crioula” - boneca de pano,
Dançam ao som de uma banda com instrumentos de percussão como tambor, ganzás e querequexés, recorreco e pandeiros. As espadas, que na hora do simulado combate se cruzam no ar provocando um som estridente, comandam o ritmo e a dança fica mais calorosa. Os cantos profanos se multiplicam e a despedida continua com os habituais agradecimentos.
Taieira São Miguel dos Campos 120 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Baianas
Origem discutida O
utro folguedo tradicional das festas alagoanas é a Baiana, ou Auto das Baianas, também conhecido
por Baianal, como os grupos se autodefinem. Apesar do nome, é voz corrente que chegou ao estado pelos municípios do Norte, vizinhos de Pernambuco, e desceu pela região serrana dos antigos quilombos e pelo litoral até Maceió, radicando-se pela redondeza. Sua origem procede das primeiras décadas do século XX, com grupos em União dos Palmares, Capela, Viçosa e na capital. Dessa época não se tem notícias de sua presença nos municípios do Sul, banhados pelo São Francisco, que recebiam influência direta da cultura e dos hábitos da Bahia, através da comunicação, facilitada pelo rio, entre a cidade de Penedo e a capital baiana. Devido a não existir esses registros, o folclorista Théo Brandão defende a ideia de que o folguedo é de procedência pernambucana. Para ele, o nome Baiana decorreria do traje das brincantes.
Mestra de Baianas Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 121
Reforçando essa tese, o livro A Língua e o Folclore da Bacia do São Francisco, de Edilberto Trigueiros, também não faz alusão à existência da brincadeira na região. Mas ainda que existam dúvidas quanto à origem, o fato é que o divertimento ganhou aceitação nas terras alagoanas e até hoje se mantém em plena atividade. Como normalmente acontece, partes de outras folganças lhe foram incorporadas e, com o tempo, sua identidade como folguedo se sedimentou em novas roupagens e influências atualizadas. O ponto de partida, na opinião dos folcloristas, foi o Samba-de-Matuto, frequente no Nordeste. Dele o Auto das Baianas herdou, entre outros elementos, o ritmo cadenciado e o molejo dos quadris; do Maracatu, o gosto pelo traje de tecido farto e torço na cabeça; do Reisado, as personagens que, a princípio compunham seu elenco; do Congo e da Taieira, o timbre afro que lhe define. À medida em que alguns grupos de Samba-de-Matuto iam sendo desativados por razões diversas, até pela concorrência com o novo auto, a Baiana ganhava adeptas animando as noites nas praças e nos terreiros, até se caracterizar como mais um folguedo natalino, apresentando-se nas noites de dezembro em louvor ao Menino Jesus.
122 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Baianas Conjunto Coqueiro Seco
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 123
Personagens e trajes A
princípio, sob a influência do Reisado,
e o amarelo de Oxum. Pulseiras, anéis, balan-
as Baianas mantinham na sua forma-
gandãs, colares e muito brilho completam a
ção personagens como Embaixadores, Ma-
indumentária. A Mestra e a Contramestra tra-
teus, Mestres e Contramestres com trajes co-
zem coroa na cabeça e faixa no peito com as
loridos e cheios de fitas de seda. Muitas vezes
cores da bandeira do Brasil.
o mesmo Mestre atendia aos dois autos. Com o tempo, algumas personagens típicas do Reisado foram perdendo espaço na Baiana, que se alinhava como folguedo de mulheres. A indumentária tem como padrão as saias longas e rodadas até os tornozelos, de chita estampada ou nas cores dos cordões, azul ou encarnado, como as pastorinhas do Presépio. A largura favorece uma cenografia que as brincantes fazem questão de destacar levantando um pouco os gomos do tecido para facilitar e dar mais graça à dança. A blusa é lisa, de seda branca ou de cor, com babados e rendas. Na cintura, uma faixa e, na cabeça, um torço ou tira do mesmo tecido da saia. Algumas optam pela cor de sua entidade protetora, como o azul de Iansã, o vermelho de Xangô Baianas Acessórios 124 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Mestras em destaque E
m Alagoas algumas Mestras marcaram
Outra que deixou nome e seguidoras foi a
presença no folclore local, como a
Mestra Maria do Carmo Barbosa, que compu-
Mestra Terezinha da Baiana, destaque pela ele-
nha peças e brincava no grupo Baianas Mensa-
gância e pela voz esganiçada, ideal para o can-
geiras de Santa Luzia, ao lado da Contramestra
to folk, que brilhou em Maceió na década de
Augusta Maria da Conceição, que fez de sua
1980, tendo seu grupo gravado um compacto
casa a sede do Baianal.
pela Campanha Nacional do Folclore. Até 2010 brilhava a Mestra Hilda Maria da Silva, que comandava o grupo Baianas Vencedoras de Alagoas acompanhada pelas filhas e netas. Sócia fundadora da Asfopal, homenageada em Alagoas e fora do estado com o prêmio de Cultura Popular Humberto Maracanã, do Ministério da Cultura, recebeu reconhecimento como uma das maiores autoridades do
Mestra Maria do Carmo Santa Luzia do Norte
folclore nacional. Hoje, sua nora Zeza, conhecida também por Duarte, herdou o comando do grupo.
Mestra Augusta Santa Luzia do Norte
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 125
O auto e a função A
pesar das peças mais antigas terem
a formação de conjuntos e centralizando no
Nossa tia Marieta,
como inspiração a zona rural cana-
engenho as grandes apresentações. Entre os
A dona deste lugar,
vieira, com o tempo os motivos passaram a
que assistiam estavam os jovens viçosenses
E a maior deste planeta.
ser mais variados e não existe uma sequência
que mais tarde se dedicaram ao estudo dessas
A nossa estima por ela,
com enredo próprio. São peças soltas, lauda-
manifestações e formaram a conhecida Esco-
É grande, tem mais valor,
tórias, sobre pessoas e lugares.
la de Folcloristas de Viçosa.
E a alegria nossa é dela,
Nos anos de 1950 dançava no Engenho
Baiana vamos saudar,
Boa Sorte, em Viçosa, um grupo de Baianas formado pelas moças da casa-grande que se juntavam às primas que chegavam da capital para as férias de final do ano. Era liderado pela Mestra Valderez Vasconcelos Vilela, que entoava as peças criadas por seu pai, Olegário Brandão Vilela. O grupo, que já dançava o Pastoril, estendeu a brincadeira à Baiana pelo gosto de ver no engenho a formação do novo folguedo entre as brincantes do antigo Samba-de-Matuto. O Boa Sorte era o celeiro das manifestações populares, graças ao conhecimento e entusiasmo de seu proprietário, promovendo
Baianas Coqueiro Seco
126 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
E todo nosso imenso amor.
Como o auto não desenvolve um enredo, o que vale é a capacidade de improvisação das Mestras e Embaixadoras, que cantam e criam as letras conforme os contornos locais, iniciando pelas marchas de “abrição de porta” e terminando com as tradicionais despedidas e promessas de voltar em breve, sem deixar de louvar o Deus Menino e a Virgem Maria. Isso porque de Samba-de-Matuto, com gin-
tir de 1920. As apresentações se multiplicaram
gado e raiz na África, a brincadeira foi pas-
e migraram não só para o Ciclo Natalino, mas
sando por várias modificações, até se vincular
também para as festas de santos padroeiros, de
aos folguedos do Ciclo Natalino, conforme a
Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito.
no canto melódico das brincantes que aten-
Apesar da sua relação com o culto de ma-
dem ao mote das “puxadoras” e respondem
tradição portuguesa.
Baianas Coqueiro Seco
Uma das peças mais conhecidas e entoada
triz africana e posterior ajuste ao catolicismo, o
pela Mestra Bida, do Pilar, depõe sobre a sim-
repertório de peças com temas diversificados
A participação masculina se resume aos
plicidade do auto:
e os gracejos e requebros da dança denotam a
músicos da banda, composta por instrumen-
Boa-noite meus senhores, senhoras,
natureza profana de que se revestiu a folgança
tos de percussão como ganzá, recorreco, pan-
Que as Baianas chegou. (bis)
com o correr do tempo. Hoje as apresentações
deiro, triângulo, atabaque. Algumas Mestras
E ao beija-flor, dar a flor pra beijar. (bis)
se estendem a outros tipos de festas, de públi-
tocam ganzá, outras apenas sopram o apito
Boa-noite meus senhores, senhoras,
co, de interesses, abrindo novas perspectivas
com silvos diferentes para cada mando e to-
Que as Baianas chegou. (bis)
de exibições e perdendo cada vez mais as suas
dos obedecem de pronto, fazendo o coro e
Eu falo sem medo de errar, (bis)
referências de origem.
marcando o passo.
em coro.
O grupo segue a mesma formação de ou-
Embora o folguedo não tenha uma elabo-
Chegou as Baianas
tros folguedos, com figurantes em duas filas,
ração temática que lhe sirva de sustentação, a
Hoje aqui pra dançar. (bis)
fazendo evoluções para um lado e para o ou-
alegria da música, a coreografia e o entusias-
A afirmação do folguedo veio com o ritmo
tro e continuando enfileiradas no gingado das
mo das brincantes têm mantido o auto em
acelerado, logo chamado “pancada-motor”,
manobras, por todo o espaço do tablado. A
evidência, com participantes de todas as ida-
que tomou conta dos terreiros e palcos a par-
cadência forte ecoa no sapateado da dança e
des e em vários municípios do estado.
Porque minha mestra é bacana,
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 127
Capítulo VII
Mestra Hilda Maria da Silva MaceiĂł
Fez-se arte o meu corpo como as ondas serenas do mar, como o vento nas palmas do coqueiral a brincar. (MaurĂcio de Macedo)
130 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Coco A origem em questão Q
uando se fala em Coco, logo se liga o fruto ao estado de Alagoas. A associação se dá
tanto pela extensão dos nossos coqueirais, quanto pelas produções artesanal e industrial de seus derivados. E quando o tema é a dança homônima, Alagoas também aparece como referência. A maioria dos folcloristas defende que a prática do Coco começou por aqui, mais precisamente no Quilombo dos Palmares. Os diversos estudos dão conta de que a dança surgiu a partir da coleta dos frutos das palmáceas, todos eles semelhantes, espalhados pela Zona da Mata, Litoral, Agreste e Sertão. Por isso mesmo, em todas as regiões do estado o Coco aparece como uma forma de dança, a princípio simples, mas que ganhou variantes conforme as circunstâncias locais.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 131
Coco do Mestre Nelson Rosa Arapiraca
132 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Tudo começou com o natural toque provo-
lho, concluindo o tema.
sequência de 10 versos, fechando com a repeti-
cado pelo atrito da pedra quebrando a casca dura
Exemplo de Coco Solto sem amarração.
do fruto para se extrair a água e a polpa comes-
Puxador :
tível. A musicalidade dos negros se encarregou
O Colégio pegou fogo
de aprimorar a batida e gerar o espetacular ritmo
E a Matriz se levantou.
Mote :
que se espalhou por todo o Nordeste e ganhou
Os dançarinos respondem:
Viva o mestre Catuaba,
novas modalidades.
Só não quero que me pegue
Viva os Campos de Anadia.
No botão do paletó.
Glosas:
ências indígenas, como defendem alguns estu-
A outra modalidade é o Coco Atual, ou
Viva a rua de Viçosa,
diosos mais afinados com a percepção musical
Evolutivo, compreendendo dois tipos: Iniciais
Viva o homem que é valente,
das manifestações. Essa absorção confirma os
e Individuais. Os primeiros seguem as formas
Viva o pagode da gente,
dados históricos que dizem que sempre existiu
tradicionais, que variam entre os de Balamento,
Viva a moça que é formosa,
um contingente de índios entre os negros qui-
Entrega, Fundamento e Coco Amarrado de 10
Viva meus 10 pés de glosa,
lombolas. Os folcloristas que mais se dedicaram
pés de glosa, enquanto os Individuais são deriva-
Viva a serra da Maraba,
à pesquisa sobre o Coco, no estado, foram José
dos das cantorias de viola, seguindo o estilo de
Viva o “duro” que se gaba,
Aloísio Vilela e Abelardo Duarte, ambos defen-
cada cantador.
Viva a minha cantoria,
Nos passos iniciais, a dança assimilou influ-
sores da procedência negra da dança.
ção do mote. Manoel Catuaba, de Anadia, deixou este “Coco de 10 pés”, coletado por Aloísio Vilela:
Aloísio Velela explica que o Coco de Ba-
Viva o mestre Catuaba,
Devido à sua grande difusão, o Coco alagoa-
lamento recebeu esta denominação porque o
Viva os Campos de Anadia.
no recebeu uma classificação de Abelardo Duar-
Puxador, também conhecido como Cantador,
Mote:
te que facilita o entendimento da dança em seus
conta um causo em canto-narrado, ligeiro feito
Viva o mestre Catuaba,
moldes mais antigos, registrados até meados do
uma bala. Por sua vez, o Coco de Entrega exi-
Viva os Campos de Anadia.
século passado. A partir daí ocorreu nova expan-
gia boa memória de quem o puxava, que iniciava
Essas formas de Coco elaboradas, que exi-
são, e diferentes características se multiplicaram.
com um mote e, a exemplo da cantoria de viola,
gem destreza mental do puxador, praticamente
Conforme Duarte, existe o Coco Antigo, co-
repetia o lema e em seguida fazia a “entrega” a
não existem mais. Mas a história do Coco não
nhecido por Coco Solto, a princípio apenas com
outro puxador. O Coco de Fundamento consis-
parou no tempo. Outras modalidades surgiram
solo e estribilho, depois com amarração em qua-
te na permanência do tema, que se prolonga pela
e dão continuidade à dança que permanece em
dras ou emboladas. A amarração é outra parte
noite a fora, enquanto o Coco Amarrado em 10
plena efervescência, fazendo parte dos festejos
puxada pelo solista, que vem depois do estribi-
pés de glosa, em seguida ao mote inicial, tem a
juninos.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 133
Personagens e trajes P
or se tratar de uma dança e não de um folguedo, o Coco não tem variedade de personagens nem enredo próprio. Na origem,
também não tinha traje específico. As pessoas dançavam conforme se vestiam em dias de festa. Isso porque se tratava de uma dança e não de uma apresentação, como hoje acontece. O puxador cantava e improvisava acompanhando os tocadores, e os pares dançavam juntos ou em evoluções, separados. A partir do momento em que a dança passou a ser exibida publicamente, os grupos estabeleceram um traje com características do período junino. O chapéu e uma camisa estampada ou em cor de tom forte são indispensáveis nos homens, e nas mulheres, as saias longas e rodadas com estampas coloridas e um lenço ou uma flor na cabeça.
134 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Coco Pau-de-Arara Pitanguinha Macei贸
Alagoas Popular - Folguedos e Dan莽as de Nossa Gente | 135
Na “puxada” do Coco N
o passado, sobretudo na zona dos engenhos, se não faltavam grandes
puxadores, como os famosos Jacu, do Barro Branco; José Rubina, da Chã Preta, e Aprígio, de União, também não faltavam exímios dançarinos, que andavam léguas atrás do batuque de um Coco e eram famosos por toda
Mestra Hilda Maria da Silva
a redondeza. E a dança não se resumia a uma forma única, ia ganhando o calor da animação
folguedos. Pelo nome do Pagode dá para se
O Coco, ou Pagode Comigo-Ninguém-
à medida que os cantadores improvisavam
sentir a personalidade competitiva e tinhosa
-Pode, tem canções que vêm passando de
tanto nos cantos como na música, desafiando
da Mestra Hilda, que só chegava para brilhar,
geração em geração, como a colhida pela fol-
a destreza dos melhores dançadores, como
tocando seu ganzá com muito talento e luz
clorista Josefina Novaes:
José Clarindo dos Santos, de Viçosa, que na
própria. Começou a brincar desde criança, le-
década de 1970 gravou um Coco para a sé-
vada pelos pais, grandes dançadores de Coco,
Vou ao Rio de Janeiro
rie de compactos da Campanha Nacional do
no município de Rio Largo, onde nasceu. A
Ver a Igreja da Penha
Folclore.
Mestra, da mesma maneira como fez com a
Embora ela não tenha
A Mestra Hilda Maria da Silva criou nos
sua Baiana, trouxe para o grupo filhas, netas
Gente da minha família
anos 1980 o Pagode Comigo Ninguém Pode,
e nora, enquanto os homens da família as-
Você disse que também ia
na Chã de Bebedouro, bairro de Maceió que
sumiam os instrumentos. Transferiu o saber
Peça licença primeiro
tem uma tradição de festas populares e onde
para sua nora Zeza, que lhe seguiu os passos e
Quem for ao Rio de Janeiro
sempre houve uma concentração de sedes de
mantém o grupo em franca atividade.
Tem que passar na Bahia.
136 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
A dança e a função O
Coco tem outras denominações, mas
cachaça e comida. Ao raiar do dia, o piso esta-
da cabeça, enquanto os pares rodopiam em
atualmente, em Alagoas, é mais co-
va pronto. A casa já podia ser usada porque o
volta, e volta e meia na cadência do tropel.
nhecido por Coco-de-Roda, Coco-da-Praia,
barro sedimentara de tão socado pelos dança-
Coco-de-Visita, Coco-de-Fileira, Coco-de-
dores. Era só varrer para tirar a poeira.
Das cantigas de outrora que permanecem no repertório como verdadeiros clássicos populares, resta, entre outras, a bela criação do
-Parelha-Trocada e Pagode. Embora cada um
Da mesma forma que o Coco varia as deno-
tenha em sua evolução características particu-
minações, muda também nas nuanças rítmicas,
lares, muitas vezes elas se misturam na mesma
no modo de dançar, nos passos, nos improvi-
Com quem é que eu danço hoje?
apresentação, dependendo da versatilidade do
sos do tropel, mas a troca de umbigadas está
Danço mais você menina.
puxador. Em outros estados aparece com de-
sempre presente e cada vez mais exagerada
Mas quem não gosta
nominações distintas:
como forma de atrair a atenção pública.
De dançar de madrugada,
Coco-de-Umbigada,
Coco-de-Embolada, Coco-de-Ganzá, Zambé
O som vem de um conjunto musical mui-
Mestre José Rubina:
Uma roda bem tirada,
to simples, formado basicamente por ganzá,
Pelo mestre Zé Rubina?
Atualmente, as apresentações não se limi-
surdo, pandeiro e triângulo. O diferencial, que
Pisa no chão
tam às festas de São João. A dança é praticada
lembra as origens, resulta da batida forte do sa-
Muito bonito e bem feito,
em todas as épocas, conforme o calendário
pateado e das palmas ritmadas dos dançarinos.
Com um cravo branco no peito,
turístico e as comemorações populares para
A memória coletiva retorna ao atrito da pedra
No chiado da botina.
as quais os grupos são contratados; diferente-
no coco, cujo som fez nascer o gênero musical
Com quem é que eu danço hoje?
mente de outrora, quando dançavam a noite
mais representativo do estado de Alagoas.
Danço mais você menina.
etc.
toda, de forma espontânea e solidária. Não
Hoje a formação se resume a dança de ca-
Entre os grupos mais atuantes no momen-
havia cobrança de cachê, tudo era organizado
sais soltos, ou em círculo, com cantigas tradi-
to, destacam-se o GangaZumba, o Santana, o
com participação comunitária festiva, marcan-
cionais e repetidas, dispensando as improvisa-
Axé Zumbi, o Lua de Prata, sem nos esquecer-
do forte a batida no chão para socar o piso
ções e o inusitado das criações e dos volteios.
mos do Coco-de-Roda do Mestre Nelson Rosa
de barro das casas dos amigos e compadres,
O puxador entoa as canções acompanhando
e do Pagode Comigo-Ningém-Pode, exemplo
cabendo ao dono da casa receber com muita
os músicos com um ganzá levantado à altura
de hereditariedade no comando da brincadeira.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 137
Quadrilha
O selo da erudição D
ança típica das festas juninas, a Quadrilha está presente em todo o Nordeste como atração principal das noites
de São João e de São Pedro. Ao lado das comidas regionais, das fogueiras e dos fogos de artifício, ela garante ao ambiente festivo movimento e colorido surpreendentes. Originária dos salões europeus, chegou ao Brasil com a corte portuguesa, no século XIX, tornou-se apreciada pela sociedade e abria as festas palacianas com coreografias aristocráticas. No Rio de Janeiro era a dança preferida do paço imperial, marcada por músicos e dançarinos franceses que tocavam Phillippe Musard (1793-1859), considerado o pai da dança, e outros compositores do gênero, como o brasileiro Henrique Alves de Mesquita, autor de Soirée Brésilienne com versão para piano e flauta.
Quadrilha Movimento 138 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
os dias de hoje como a função mais espera-
O requinte estendia-se aos saraus e bai-
Dos salões imperiais aos arraiais nordes-
les residenciais. Muitas dessas danças eram
tinos, a Quadrilha tem trajetória associada
alusivas a fatos históricos, encomendadas
a diferentes regiões e segmentos sociais. A
A história da Quadrilha mostra de que
especialmente para a ocasião. Foi assim
Proclamação da República, em 1889, foi um
maneira as danças podem, no decorrer dos
com a coroação de dom Pedro II, em 1850,
marco em sua difusão, chegando às ruas e
tempos, se modificar, perder e ganhar ele-
que contou com Quadrilha comemorativa
clubes com grande acolhida popular. Nesse
mentos, dependendo da época e do grupo
para o baile, seguindo o modelo das festas
percurso, manteve-se enquadrada nos pa-
social que a pratica. Uma demonstração
francesas, que representavam o que havia de
drões europeus, mesmo quando a indumen-
dessa resistência pode ser comprovada na
mais elegante na Europa.
tária caipira substituiu o fraque e as rendas
observação das mudanças pelas quais ela
Sua natureza social, como tudo que vinha
francesas foram preteridas pelos babados
passou até se transformar no que vemos
da corte, exercia um fascínio em todo o Rio
de chita. Ainda assim, permanecia a delica-
hoje: um gênero musical e coreográfico to-
de Janeiro, espalhando-se pelo país como
deza de gestos e a marcação em língua fran-
talmente distante do magnetismo inicial e
símbolo de status e de nobreza. Nessa épo-
cesa, abrasileirada pelo sotaque regional.
do regionalismo posterior. A Quadrilha de
da, devido ao seu aspecto cômico.
ca não faltavam compositores, intérpretes,
Por essa época passou a ser moda dançar
hoje voltou-se para uma nova forma de ex-
mediadores e dançarinos que se destacavam
a Quadrilha nos casamentos rurais, o que
pressão e de vivência do mundo, plasmada
pela habilidade nos passos e nos acenos às
motivou a encenação do enlace como parte
na visibilidade que a cultura de massa super-
damas.
teatral da sua formação, permanecendo até
dimensiona.
Quadrilha em duas versões Os dois principais formatos de Quadrilha que
do interior nordestino. O segundo, em franca
Tradicional, ou Regional, e Pulada, devido à
vemos hoje, embora distintos entre si, des-
aceitação, tem ritmo acelerado e caracterização
mudança do ritmo para algo parecido com a
cendem da antiga, originada nos salões fran-
exuberante e estilizada.
lambada, em que os brincantes pulam e sacole-
ceses. Em via de extinção, o primeiro mode-
Há autores que propõem uma divisão sis-
jam. Outros preferem tratá-las como a Antiga
lo é focado na vida rural, nos hábitos simples
temática entre uma e outra, denominando-as
e a Moderna, ou simplesmente Rural e Urbana.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 139
Quadrilha Moderna
140 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Quadrilha Regional - personagens e trajes
O
s casais trajam-se conforme a es-
do e outros que se queiram acrescentar. Os
tética rural, conhecida como cai-
casais dançam comandados pelo Marcador,
pira, ou matuta. Os homens usam chapéu
integrante que detém o saber e conduz a se-
de palha, calça de brim, ou mescla, e cami-
quência das partes, dando voz de comando.
sa quadriculada com um lenço de cor viva
Pode estar caracterizado ou apenas “marcan-
amarrado no pescoço, enquanto as mulheres
do”, fora do grupo. Sendo bom, ele garante
vestem chita de estampa colorida, saia larga
a animação da dança a noite inteira.
e cheia de babados. Na cabeça, uma flor ou
O folclorista Pedro Teixeira, também pro-
um diadema. Algumas usam chapéu, acessó-
fessor de francês, foi um grande Marcador
rio descabido para elas, uma vez que nas fes-
de Quadrilha, brincando nos municípios do
tas rurais só os homens o usam. Costumam
interior e em Maceió, sempre muito procu-
aplicar remendos nas vestes, exageradamen-
rado, uma vez que reunia grandes qualidades
te visíveis, com o intento de melhor carac-
para o mister. Além de bom animador, co-
terizar a indumentária. Isso foi incorporado
nhecia bem a dança em sua evolução e fazia
ao traje pelo tom jocoso que provoca, mas
a marcação com boa pronúncia do idioma
denota desconhecimento quanto à vivência
original.
rural, pois os camponeses nordestinos sem-
A movimentação começa nos ensaios,
pre foram para as festas com suas melhores
que geralmente acontecem nos finais de se-
roupas, nunca as remendadas.
mana que antecedem a festa. Os grupos se
A encenação do casamento matuto - parte
formam e a camaradagem garante o sucesso
do folclore da Quadrilha - integra vários per-
da brincadeira, com a decoração dos arraiais
sonagens à dança: além do casal de noivos,
e o gosto na preparação dos trajes e das ca-
Padre, Sacristão, os pais da noiva, o Delega-
racterizações.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 141
A evolução dos pares O
s pares enfileirados entram no ar-
ximo do acréscimo brasileiro é a dramatiza-
raial ao som de uma música junina e
ção do casamento na roça, sempre aguardado
logo se posicionam aguardando o comando
pelos dançarinos e pela plateia.
do Marcador, que promove um passeio pelo
A “cerimônia” tem um caráter jocoso e
salão com Balancê. Em seguida vêm as diver-
toma como tema o casamento imposto pelo
sas partes, algumas permanentes em todos os
pai da noiva e pelo Delegado. O noivo tenta
grupos e chamadas em francês:
se livrar da situação, mas é obrigado a casar
Alavantú (en avant tous)- os casais vão para frente
porque a noiva se encontra em adiantado es-
Anarriê (en arrière) - casais vão para trás
tado de gravidez. O Padre e o Juiz oficializam
Balancê (balancer) - dançar com mais balançado.
o matrimônio. A interpretação e a fala dos
Changê (changer ) - trocar de casais
personagens, carregadas no sotaque nordes-
Cumprimento ‘vis-à-vis’ - cumprimento frente a
tino, arrancam risadas e aplausos de todos, re-
frente
afirmando o caráter espontâneo da Quadrilha
Otrefoá (autre fois) - repetir o passo anterior
Regional. Os figurantes estão ali para brincar,
Outras partes completam a coreografia re-
sem o objetivo de concorrer a prêmios.
gional como “Olha a chuva!”, “É mentira!”,
Normalmente, esses grupos brincam em
“A ponte quebrou”, “Nova ponte”, “Cami-
clubes ou em arraiais de bairros e dançam ao
nho da roça”, “Túnel”, “Grande passeio”.
som de uma banda formada por instrumen-
Cada Quadrilha com novos passos e volteios
tos populares como sanfona, zabumba e tri-
inesperados que dependem da agilidade dos
ângulo, entre outros.
dançantes. Quando algum casal se confunde e erra seu lugar, o Marcador grita o Balancê e todos novamente se perfilam. O ponto má-
142 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Quadrilha Exibição
Quadrilha Moderna, personagens e trajes A
partir do final do século XX as Qua-
senvolvendo acrobacias arrojadas por entre
drilhas começaram a passar por uma
tramas reconstruídas.
grande transformação, em todos os aspectos,
O casal de noivos continua presente, mas
incorporando temas que exigem novos per-
a noiva não representa mais a vítima das apre-
sonagens, como o Cangaço, a República dos
sentações tradicionais. Hoje, ela exagera na
Palmares, a Independência de Alagoas e tan-
dança de trejeitos sensuais e provocantes com
tos outros. Dependendo do tema, cada grupo
a graça de exímia dançarina. Personagens que
cria e caracteriza seus personagens, que cum-
compunham a encenação não existem mais. O
prem os papéis no enredo com indumentárias
Padre, o Juiz e o Delegado deixaram de exer-
que se distanciam do figurino rural e exage-
cer as suas funções. O que se vê são figuran-
ram na roda das saias, no brilho e na profusão
tes em grande número, que dançam em alas e
de adereços.
apelam para a exuberância estilizada em todos
As inovações são implantadas e configura-
os sentidos: são passos, gestos e exibicionismo
-se um novo universo simbólico para cada
pautados por gostos e padrões estéticos atuais,
ano. O projeto é elaborado com meses de
sem apego às tradições.
antecedência e se mantém em segredo para o
Quadrilha Movimento
grupo surpreender quando adentrar a quadra. Lampião e Maria Bonita chegam com munição para a noite toda e Zumbi dos Palmares traz seus guerreiros com lanças coloridas, de-
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 143
Quadrilha Moderna em evolução A
tualmente, com base na estilização,
que inicia e termina com passos da Qua-
a dança tem uma coreografia pró-
drilha, mas é recheada com forró, lamba-
pria, preparada de acordo com o enredo e
da, axé, jazz e outros gêneros que o coreó-
a trilha musical que se renovam a cada ano.
grafo queira acrescentar.
O conceito regionalista foi substituído por
Essas modificações foram implantadas
uma espécie de dança-espetáculo que lem-
a partir da criação de prêmios, que estimu-
bra o cancã norteamericano ou manifesta-
lam a competição entre os quadrilheiros,
ções do folclore gaúcho.
incorporando à dança aspectos próprios do
A apresentação da Quadrilha passou a
teatro musical ou da opereta popular. Re-
ser uma atração teatral com plateia e comis-
novar-se, absorver influências, modificar-
são julgadora. Os brincantes perderam a es-
-se e até se extinguir são partes da história
pontaneidade e o sentido de improvisação,
das manifestações populares que mudam as
assumindo a responsabilidade pelos papéis
configurações, dependendo da época e dos
que desempenham, pois um erro na evo-
movimentos sociais.
lução pode levar o grupo a perder pontos
Representando exatamente o caráter atu-
ou até mesmo a ser desclassificado. Cada
al das festividades, as Quadrilhas Modernas
Quadrilha tem a sua diretoria, que funciona
têm alcançado aceitação cada vez maior,
como uma agremiação recreativa.
com alto índice de popularidade, garantin-
No rol de inovações outros gêneros de
do às noites de São João e de São Pedro,
música foram incluídos, fragmentando as
em Maceió, a apoteose popular em estilo
partes tradicionais. Desconstruíram a se-
Escola de Samba carioca. O público gosta
quência da dança e montaram uma suíte
e aplaude as mudanças.
144 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O entusiasmo domina as apresentações
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 145
Capítulo VIII
Figura de Maracatu
Na palma estendida eu leio as quimeras do viver, a mesma ilusĂŁo de sempre - amor, dinheiro e poder. (MaurĂcio de Macedo)
148 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Maracatu
Perseguição histórica A
trajetória do Maracatu em Alagoas está fortemente ligada à história das perseguições à prá-
tica dos cultos afro-brasileiros no estado. O desfecho desse imbricamento culminou com a desativação do folguedo a partir do episódio ocorrido em Maceió, no ano de 1912, que entrou para a história com a denominação Quebra de Xangô. Promovida pela Liga dos Republicanos Combatentes, a ação arbitrária e obscura contou com o apoio de parte da sociedade, que, desprovida de conhecimento e senso democrático, via nas manifestações religiosas e culturais praticada pelos negros um acinte aos chamados “costumes civilizadores”. À época, os Maracatus eram formados pelos frequentadores dos Terreiros, saindo nos dias de Carnaval, com a natural pompa de um séquito que rende homenagens ao Rei e à Rainha do Congo. Com a destruição dos templos e a perseguição aos Pais e Mães-de-Santos, os grupos desaparecerem dos Carnavais alagoanos.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 149
Abelardo Duarte, em seu Folclore Negro das
ma do preconceito só veio a ser amenizado a
Em 2011, no dia 18 de novembro, na Praça
Alagoas, registra a existência de Maracatus an-
partir do movimento de valorização da cultura
Dois Leões, na porta da Igreja de Nossa Senho-
tes da repressão pública, quando ainda eram
africana, na década de 1980, e o recente pedido
ra Mãe do Povo, em Jaraguá, Maceió, ocorreu
denominados Cambindas. Dentre os mais co-
de perdão por parte do atual governador Teo-
um momento histórico com a retomada do
nhecidos desse período estão o Cambinda Ve-
tônio Vilela Filho, durante a solenidade alusiva
préstito festivo: o Maracatu Nação Corte de
lha, com base no Terreiro do Pai-de-Santo João
ao centenário da Quebra de 1912. Os Terreiros
Airá, com a participação do Maracatu de Batu-
Catarina, no bairro da Levada; o Cambinda
reafirmaram seus direitos, sintetizados no slo-
que Alagoano, realizou a cerimônia de coroação
do Porto, do Pai Dão, e o Cambinda de Ouro
gan “Xangô rezado alto”, e alguns passaram a
do Rei Elias de Airá (Pai Elias do Terreiro de
completando a trilogia dos mais importantes da
incluir o Maracatu como parte lúdico-festiva
Airá) e da Rainha Lucineide, em ritual celebrado
capital. Referências ao Maracatu do Pai Leocá-
da Casa.
pelo decano Pai Maciel, que marcou oficialmente a reintegração do Maracatu em Alagoas.
dio, de Viçosa, podem ser encontradas no livro
Os grupos que se formaram a partir deste
Folguedos Natalinos escrito pelo folclorista Théo
século são derivações dos antigos, adaptados ao
A solenidade foi revestida de todas as pom-
Brandão.
contexto atual, mas com propósito de resgatar
pas, com o cortejo de nobres e seus dignitários,
O antropólogo Bruno César Cavalcante, na
a identidade original. O conjunto musical conta
todos simbolicamente restituídos às funções de-
publicação Kulé Kulé – Visibilidades Negras, co-
com a presença de instrumentistas e dançarinos,
pois de um século do terrível atentado político-
menta que enquanto o Samba carioca, o Afoxé
jovens estudantes que não necessariamente fre-
-religioso que vitimou Mãe Marcelina e provo-
baiano e o Maracatu pernambucano ampliavam
quentam os Terreiros de culto, mas abraçam a
cou a deposição do governador Euclides Malta.
seus espaços de aceitação pública, em Alagoas a
diversidade religiosa e a expressão cultural da
O rufo dos tambores ecoava alto pela praça,
proibição nas primeiras décadas do século XX
folgança.
na potência rítmica de seus percussionistas. Re-
e o trauma da violência policial enfraqueceram
Com beleza plástica e ritmo contagiante, o
presentantes dos diversos Terreiros estiveram
essas manifestações, que só foram voltando em
Maracatu reverencia em suas apresentações os
presentes, legitimando o acontecimento que
meados do mesmo século, na versão de folgue-
santos que participam do elenco de devoção das
tem para o alagoano o sentido de reconquista
dos natalinos. Enquanto isso, nos estados vizi-
religiões de matriz africana, a exemplo de Nos-
e de retomada do direito à diversidade religiosa
nhos a apoteose carnavalesca se caracterizava
sa Senhora do Rosário, Santa Bárbara, São Jorge
e cultural. Renasce a folgança, a fagulha mística
a partir das alegorias afro com uma pegada de
e São Benedito. Essa circularidade afro-católica,
foi recuperada, trazendo atrás de si uma história
orgulho da raça nas manifestações.
que evoca orixás e santos pareados pelo sincre-
de superação e pertencimento.
O processo de retaliação foi tão grande, em Alagoas, durante e pós-Quebra, que o estig-
tismo, está presente nos filhos de Xangô como uma marca cingida pela história.
150 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Maracatu do Mestre Geraldo
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 151
Maracatu Nação e Maracatu Rural
O
folguedo em sua versão atual man-
Caboclos de Pena, os primeiros com guias
tém a ramificação em Maracatu Na-
(fitas) amarradas na lança, e os outros com
ção e Maracatu Rural. O primeiro é o mais
adornos de cabeça que lembram a ritualística
antigo e recebeu esta denominação devido à
indígena. Esta característica os aproxima dos
palavra nação significar ajuntamento de pes-
Caboclinhos e de outros folguedos inspira-
soas que se identificam por laços históricos e
dos na cultura nativa.
culturais. No caso, refere-se aos agrupamen-
Outra diferença está na sustentação rítmi-
tos negros por nações: nagô, jêje e outras,
ca do grupo, com os tradicionais instrumen-
tornando o termo muito familiar para desig-
tos de percussão (tambores, caixas, taról, sur-
nar os filiados a determinada etnia africana.
dos, cuícas, zabumba) que aparecem nos dois,
O grupo dança ao som de instrumentos de
sendo que no caso do Rural há o acréscimo
percussão, em ritmo que vai num crescente,
de cornetas, trombones, saxofones e outros
iniciando compassadamente e acelerando
instrumentos de sopro. Em razão disso, o
aos poucos até a vibração calorosa do baque
maestro Guerra Peixe, em estudo sobre o as-
virado, toque característico do Nação.
sunto, classificou-os conforme a organização
A outra versão do Maracatu é a Rural,
orquestral de cada modalidade, em Maracatu
mais recente, formada pelo êxodo do campo
de Baque Virado (o Nação), mais conhecido
para a cidade do Recife, em meados do sécu-
em Alagoas, e Maracatu de Orquestra (o Ru-
lo passado. Desde o início, com sua forma-
ral), pelo fato deste apresentar, além da per-
ção miscigenada, valoriza o caboclo, como
cussão, instrumentos de sopro.
personagem de destaque, trazido das tribos indígenas como os Caboclos de Lança e os 152 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Maracatu Nação Maceió
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 153
Personagens e Trajes
O
Maracatu Nação é rico em persona-
cerimônia. Príncipes e Princesas, Embaixado-
gens trajando indumentárias repre-
res, Lanceiros, Damas do Paço, Porta-Estan-
sentativas do séquito real, tendo como prin-
darte, todos trajam cetim de cores vivas, ador-
cipais figuras o Rei e a Rainha do Congo com
nado com arminho, lantejoulas e muito brilho.
suas insígnias, cetro, coroas e mantos cauda-
Os homens vestem camisas de mangas lar-
tórios. O casal é protegido por uma sombri-
gas e calções balofos amarrados por fitas na
nha franjada de seda e ladeado pelos Guardas,
altura na perna, enquanto as mulheres dispu-
vestidos de soldados romanos, como dizem
tam as saias mais rodadas, armadas com ara-
os brincantes, com elmos de penachos so-
me, que dão à vestimenta uma extraordinária
bre a cabeça. Ao lado, os Vassalos de peito
beleza, sobretudo em conjunto, nos movi-
nu abanam a majestade com ventarolas de
mentos das evoluções. Completam o cortejo
pluma.
as tradicionais Baianas, ou Yabás, vestidas de
Maracatu
O estandarte, da mesma forma que o som-
branco e com as cores de seus orixás, trazendo
breiro, é confeccionado em tecido brocado
o pano da Costa sobre os ombros. Não faltam
brincantes. Os de Alagoas não têm menos de
ou veludo, com aplicações coloridas, vidrilhos
os Caboclos de Lança, guerreiros de Ogum,
50 integrantes e são considerados pequenos
e bordados, trazendo no centro o nome do
que além das armas trazem guizos amarrados
se comparados com os tradicionais grupos do
grupo e o ano de sua criação. O personagem
na cintura.
vizinho estado de Pernambuco.
que o conduz traja indumentária de nobre, al-
Os músicos, homens e mulheres, geral-
Apesar de sua reativação recente, os gru-
guns com cabelos postiços, conforme a moda
mente são chamados de batuqueiros e vestem
pos estão gozando da aceitação pública cada
do século XVIII na Europa, e beca engalana-
branco ou as cores que identificam o grupo.
vez mais crescente e da aquisição de novos
da, de botões dourados e colarinho alto.
Há sempre um grande número de partici-
brincantes, interessados em aperfeiçoar a qua-
Quando acontece a festa da coroação, o
pantes no folguedo devido aos diversos per-
lidade coreográfica e imprimir ao folguedo a
Pai-de-Santo do Terreiro-sede vem no corte-
sonagens que o integram e a quantidade de
dignidade de uma manifestação que tem atrás
jo, cercado de reverências, com seu traje bran-
batuqueiros que compõem o conjunto musi-
de si uma história de lutas e de conquistas a
co e as guias de seus orixás, para oficializar a
cal, garantindo a marcação e a animação dos
preservar.
154 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Alegoria da Função A
formação básica consiste em um
Miçanga, miçanga, Luanda
cortejo que tem à frente o Porta-
Pra toda a nação, êh, êh, Luanda!
dramática, caracterizando a função de seus
Estandarte abrindo ca minho para a chegada
Êh, êh, Calunga, auê,
personagens através da indumentária, dos
do préstito majestoso, que, na esfera da repre-
Êh, êh, Calunga, auê.
gestos, da encenação e dos passos da dança.
sentação, promove uma performance teatral
Vou embarcar pra Luanda,
Mário de Andrade descreve muito bem a pre-
da idealização dos negros africanos, cantando
Seu Rei mandou me chamar,
sença das Yabás: “Embebedadas pela percus-
a saudade da terra natal e entronando um Rei
Vou-me embora pra Luanda,
são, dançam lentas, molengas, bamboleando
patrício, negro como eles, do distante Congo.
Nação de pretinho do mar!
levemente os quartos, num passinho curto,
Não existe um enredo lógico, mas as toadas
Êh, êh, Calunga, auê,
quase inexistente, sem nenhuma figuração dos
se reportam às recordações da pátria, com
Êh, êh, Calunga, auê.
pés. Os braços, as mãos é que se movem mais,
alusões à vivência na América e associações
O cortejo sai pelas ruas em coreografia
A aproximação com o catolicismo é fru-
ao contorcer preguiçoso do torso.”.
to da organização do folguedo pelas Irman-
O Caboclo de Pena também tem um passo
Depois do Porta-Estandarte, a Dama do
dades de Nosso Senhora do Rosário e de São
característico, procedente das danças indíge-
Paço traz a Calunga, boneca de madeira ou de
Benedito, imprimindo um selo cristão à reli-
nas. Os demais figurantes seguem a cadência
pano que representa a entidade. A Dama tra-
giosidade e às atividades festivas dos negros.
da música, todos com os mesmos movimen-
ja, em regra, indumentária igual à do fetiche.
A criação dessas Irmandades fazia parte da
tos e respondendo ao solista, em coro, dando
Alguns Maracatus têm mais de uma Dama,
estratégia de dominação dos brancos, na épo-
vivas à aclamação do Rei do Congo.
cada uma trazendo uma boneca, correspon-
ca em que o sistema escravocrata dava sinais
dentes a entidades femininas.
de fragilidade.
sincréticas com o catolicismo.
O passo da dança lembra o molejo dolente dos rituais de candomblés e os atuais grupos,
Ô lelê, sete de ouro,
com o distanciamento de tempo e o conheci-
Brandão e Abelardo Duarte transcreveram
Nação de pretinho do mar,
mento da sua história no estado, vêm tentan-
algumas toadas de antigos Maracatus:
Deus do céu lá no espaço,
do essa reaproximação, valorizando a dança
Luanda, nação de preto, Luanda
Ajoelhem-se os vassalos,
ancestral, a preservação da memória e o regis-
Traz a Rainha miçanga, Luanda
Salve a Virgem do Rosário!
tro dos percalços de seu trajeto.
Em meados do século passado, Théo
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 155
Bumba-Meu -Boi
No rastro da lenda A
presença do boi na vida do homem se perde no passado. Mais mística do que histórica, essa
proximidade descortina um universo imagético em torno de sua poderosa figura, presente nas lendas, toadas, danças, apresentações cênicas e ritualísticas de diferentes épocas e lugares. Na Península Ibérica não foi diferente. A popularidade do boi se estende igualmente nas festas regionais, no sangue derramado nas touradas, no vasto repertório das tradições seculares e serve de inspiração para artistas como Goya, Gil Vicente, Picasso. Sempre a presença vigorosa do animal como símbolo de força, resistência e porte incomparáveis.
Bumba-Meu-Boi Acervo Museu Théo Brandão
156 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Quando os portugueses trouxeram reba-
sua mulher, Catirina, que estava grávida do
nhos para o Brasil, veio também toda a aura
primeiro filho. Nos entojos da ameaça de
mística que envolve a imagem do boi. Essa
aborto, ela teve o desejo de comer a língua
bagagem cultural e social foi logo ampliada
do boi mais querido do patrão. Corre a cren-
com o conhecimento dos negros escraviza-
ça popular que se o desejo da mulher prenha
dos trazidos igualmente para a lavoura. Do
não for saciado, ela perde a criança. Diante
caldeamento de informações que se instalou
de tamanha ameaça, o marido matou o boi
no Nordeste com a plantação da cana, refor-
e lhe tirou a língua. Sentindo a falta do ani-
çado em seguida pelo ciclo do gado, o boi en-
mal, o fazendeiro acionou todos os vaqueiros
trou definitivamente no folclore regional, da
e caboclos para darem conta do portentoso
mesma forma que se integrou à vida rural do
boi. Confirmada a morte do animal, a mobi-
Norte, tornando-se figura emblemática das
lização passa a ser em torno de sua reanima-
duas regiões.
ção, finalmente conseguida pela intercessão
Nos autos populares o animal apare-
do doutor, curandeiro ou pajé. Quando o boi
ce sempre muito ornamentado e vigoroso,
volta à vida, todos celebram festivamente, in-
atraindo a atenção de todos, mas é no Bum-
clusive o escravo, Pai Francisco, que se livra
ba-Meu-Boi que mais se destaca pela posição
da pena que lhe fora aplicada.
que ocupa frente aos demais integrantes. Não
O Bumba-Meu-Boi é a dramatização desta
se sabe exatamente quando começou, mas
lenda, acrescido de detalhes e de novos perso-
têm-se referências de sua presença em Per-
nagens que enriquecem o enredo e alongam
nambuco, no ano de 1840, através do jornal
as apresentações. Nos estados do Norte, o
Carapuceiro, do Recife, na edição de 11 de ja-
auto faz parte das festas juninas, enquanto
neiro, com críticas ao folguedo por ser consi-
no Nordeste desfilam no Carnaval e no Ci-
-Reis e em Alagoas, no povoado de Porto da
derado uma dança de requebros sensuais, tan-
clo Natalino, mas também aparecem em oca-
Rua, município de São Miguel dos Milagres, é
to que, na década de 1860, suas apresentações
siões esparsas de caráter cultural e turístico.
conhecido por Três Pedaços, alusão ao episó-
públicas foram proibidas.
Recebe várias denominações pelo país, como
dio da repartição do Boi, embora em todos os
A brincadeira se originou de uma lenda
Boi-Bumbá, Cavalo-Marinho, Boi-Surubi,
estados a denominação Bumba-Meu-Boi seja
sobre um casal de escravos, Pai Francisco e
Boi-de-Reis, Rei-de-Bois, Bumba, Bumba-de-
bem conhecida.
Figurante Bumba-Meu-Boi
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 157
A folgança em Alagoas O
estado atualmente está sem Bumba-
e fragilizou as apresentações do Bumba-Meu-
-Meu-Boi nos moldes tradicionais,
-Boi.
devido ao falecimento inesperado do Mestre
Desde o início deste século um fato novo
Eurico, há 12 anos, que comandava o auto
está ocorrendo em Alagoas com relação ao
em Maragogi e não deixou substituto.
Bumba. Vários grupos estão surgindo a cada
Até meados do século XX havia vários
ano no período momesco, não derivados de
grupos na região Norte e na Zona da Mata,
antigos Bumbas, mas como desdobramento
estendendo-se pela área das lagunas até Mare-
dos Bois-de-Carnaval e adotando o nome
chal Deodoro, documentados por Arthur Ra-
Boi-Bumbá, conforme veremos mais adiante,
mos, Jorge de Lima, Alfredo Brandão, Abelar-
no capítulo relativo a Bois.
do Duarte, Théo Brandão e Câmara Cascudo. Cada um deles descreve apresentações que assistiram, quer com o nome de Bumba-Meu-Boi, quer como Três Pedaços, mas todos grupos relativamente simples, sem grande produção de indumentária e cenografia. Théo Brandão, no livro Folguedos Natalinos, afirmou que o auto nunca foi de forte incidência no estado. O personagem principal, o Boi, entrou como entremeio do Reisado e do Guerreiro, folguedos da preferência do público, que arrebatou o seu principal personagem
158 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Bumba-Meu-Boi Jaraguá Maceió
Personagens e trajes O Bumba-Meu-Boi em sua encenação
e sua mulher Catirina com trajes de escravos
mais completa já foi comparado a uma ópera
remediados, calça comprida, camisa, chapéu
de rua. Com enredo longo e personagens ca-
de palha, e ela de vestido de chita e cabelos
racterizados com capricho e fartura de cores,
com laços de fita. Em alguns grupos o es-
possui grande número de figurantes que se
cravo é substituído por um Mateus. Comple-
colocam em torno do Boi, desempenhando
tam o elenco o Mestre-Sala, que comanda a
suas funções nos diversos atos da apresen-
brincadeira e faz as vezes de fazendeiro dono
tação. Esse elenco é composto por persona-
do animal, a Burrinha, o Cavalo Marinho, o
gens humanos, animais e seres fantásticos.
Mané Pequenino, o Morto-Vivo, o Jaraguá,
O Boi, ou Touro, é feito com uma arma-
Caiporas, o Doutor ou Curandeiro, o Folha-
ção de ripas que dá a forma do corpo, co-
ral, Vaqueiros, Índios, Caboclos e tantas ou-
berta por chita, ou por veludo e brocado,
tras figuras criadas pelo Mestre, conforme as
dependendo das condições econômicas do
situações locais.
grupo. A cabeça, de papel, espuma plástica e
Normalmente, cada integrante se respon-
palha, revestida de tecido bordado ou pinta-
sabiliza pelo seu personagem, o que garante
do, recebe chifres de verdade, muito usados
uma variedade de caracterizações que tor-
nas simulações das marradas durante a brin-
nam a folgança ainda mais interessante. Tam-
cadeira. Embaixo dele, escondido, apenas
bém varia muito o número de participantes,
com o nariz e os olhos de fora, o chamado
dependendo do organizador e das condições
Miolo ou Tripa do Boi, homem forte e bom
econômicas do grupo. No Festival Folclórico
dançador que conduz o animal. Quando as
de Parintins-AM, que acontece todos os anos
apresentação são longas, dois homens reve-
desde 1965, cada grupo se apresenta com
zam no papel.
centenas de figurantes, em desfile alegórico
Não falta o casal de negros, Pai Francisco
que mobiliza multidões.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 159
O Boi e sua evolução
O
Os miolo É pra seu Mané Crioulo. A aparação É pra seu Tubarão.
vocábulo Bumba que nomeia o folgue-
e ressurreição do Boi, passando pela doação das
A rabada
do tem o sentido de estimular, atiçar, es-
partes do animal aos presentes, em espécie de
É pra negrada.
bordoar o animal para que ele reaja, salte, dance,
testamento, quando o tragicômico chega ao seu
A tripa gaiteira
ataque e assim provoque no público a emoção
ponto alto. Abelardo Duarte, no século passado,
É pra dona Eleusa.
alegre da perseguição cenográfica. O zabumbeiro
colheu esta primorosa embaixada, em Taperaguá,
A tripa fininha
toca o bumbo e o Boi bumba na marcação do
município de Marechal Deodoro. Nesse momen-
É pra dona Chiquinha.
instrumento em evoluções soltas e ambivalentes.
to, o homem que conduz o Boi deixa a carcaça
O figo do animal
Reverbera em sua figura o mito da força, da quase
no meio do Terreiro e a cerimônia da partilha é
É pro pessoal
sacralidade, ao som das toadas, com forte carga de
feita pelo Doutor, o mesmo personagem que logo
Resta pouco pra repartir
dramaticidade.
adiante vai reanimá-lo.
Tou com pressa pra sair.
O Bumba-Meu-Boi é das folganças mais
A chã de dentro
Com ar de insinuação pelo que faltava ser re-
tradicionais do país, que encena a um só tempo
É pra seu coroné.
partido, saía o figurante correndo e saltando, cheio
um cortejo dramático que mistura dança, mú-
A chã de fora
de trejeitos, ao som das gargalhadas da plateia. O
sica, teatro e circo das três etnias. Em diferentes
É pra dona Aurora.
testamento é sempre improvisado pelo Doutor, ou
localidades tem recebido acréscimos, inovações
A passarinha
curandeiro, e as pessoas que são agraciadas com os
e exibições grandiosas, como acontece em Parin-
É de dona Aninha.
órgãos do animal se sentem prestigiadas em intera-
tins, no Amazonas. De modo geral, esses grupos
O coxão
gir com a folgança.
se situam na região Norte e em estados como Per-
É pra seu João.
nambuco, que mantém o Bumba com o aparato
Mocotó do pé
clusivo, presente em todas as apresentações: a res-
fantasioso de monumental manifestação popular.
É pra seu Zé.
surreição magistral do Boi, ainda mais ágil e fogoso,
Mocotó da mão
acompanhando o toque do zabumba em seus vol-
pedido de licença para a realização da folgança,
É pro seu Lesbão.
teios e marradas de excelente expressão plástica e
vindo à frente o Pai Francisco, ou o Mateus, e a
Os miúdos
carga de teatralidade.
Catirina. O enredo tem por base a vida, a morte
É pra seu Joca.
As apresentações tradicionais iniciam com o
160 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Em seguida vem o momento principal e con-
Boi-de-Carnaval
Origem discutida M
antendo a posição de figura emblemática das manifestações popula-
res mais enraizadas da cultura brasileira, o Boi está presente nas festas carnavalescas sob as mais diversas formas e nas mais diferentes regiões. Nunca deixou de aparecer nos carnavais de rua alagoanos, isoladamente ou participando de algum pequeno grupo de La Ursa ou similares.
Boi-de-Carnaval
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 161
Nos últimos tempos, o gosto pelo Boi-de-Carnaval foi crescendo em Maceió, até que, em fins do século passado, o radialista Luís de Barros, com o apoio dos órgãos públicos, deu início a uma competição entre os Bois, que começou timidamente, mas logo ganhou força, com a concorrência entre grupos de bairros, hoje denominados galeras. A partir de então, as apresentações adquiriram nova formatação, que se aproxima, cada vez mais, do cortejo-espetáculo e, embora tenha surgido do Boi-de-Carnaval, transformou-se em outra manifestação, diferente da brincadeira tradicional. Hoje, a disputa acirrada entre os Bois estimula a ampliação e a riqueza ornamental dos conjuntos, que se inspiram no Boi-Bumbá do Amazonas e nas Escolas de Samba do Rio de Janeiro, com tema próprio, bateria, enredo e alas temáticas. Em Maceió, suas exibições levam muitos turistas e nativos à Praça Multieventos, na Pajuçara, local onde os grupos brincam e concorrem a premiações. Boi de Carnaval Evolução 162 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente | 163
CapĂtulo IX
Mané do Rosário Figurante
Colaram em meu rosto uma máscara pra fazer divertimento. Quem me vê assim brincando não sabe do meu sofrimento. (Maurício de Macedo)
166 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Mané do Rosário
A Vila Real A
Vila do Poxim, no município de Coruripe, não guarda apenas a tradição da realeza de seu antigo nome
– Vila Real de São José do Poxim do Sul – mas também uma história de lutas e glórias. No bojo de suas memórias conserva com apreço as celebrações de fé em torno dos santos católicos, principalmente as do seu padroeiro, São José, cuja imagem está preservada na igreja matriz. É nesse contexto de fé e festividade que surge uma das mais importantes manifestações populares do estado, o Mané do Rosário. A origem do auto está intimamente relacionada ao período de celebração do fervor ao santo, que anualmente é festejado com terços e novenas que antecedem as comemorações ao seu dia, 19 de março, no calendário cristão. Essa é a data em que os fiéis pedem graças, pagam promessas e depositam esperanças no plantio e na colheita farta do milho. A exemplo do que acontece em todo o interior nordestino, o entorno da igreja é o lugar onde se realizam os leilões, as quermesses com barracas de comidas típicas e as apresentações de folguedos que reúnem multidões.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 167
Mané do Rosário Preparativos 168 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O começo do mistério D
izem os mais velhos, que por sua vez repassam a versão reproduzida pelos antepassados, que no ano de 1762 aconteceu a maior
de todas as festas até então realizadas no dia do padroeiro. Havia um mo-
tivo especial para a celebração: a igreja matriz reabria as portas, após longa reforma arquitetônica que consumira muito dinheiro e as expectativas da comunidade. Nessa ocasião, contam que apareceu na porta do templo um sujeito mascarado, com chapéu de palha na cabeça e rosto pintado de preto, como um Bobo de Carnaval, vestindo túnica branca até os pés, descalços. Trazia no pescoço um grande rosário e tocava um chocalho, enquanto arremessava um chicote de folhas de bananeira na garotada que o cercava, em galhofa. De tão inesperado, o fato não provocou outra reação por parte da comunidade senão o questionamento de quem seria o disfarçado. Não existe registro da época que descreva esse fato. O que se sabe vem da tradição oral, do ouvir dizer. Os detalhes mudam, de informante para informante, mas o mote é sempre o mesmo. Alguns dizem que no ano seguinte o mascarado trouxe consigo um parceiro, e assim se repetiu por alguns anos, passando a ser uma atração. Ninguém conseguiu identificá-lo. Conjecturava-se um ou outro nome, naquela comunidade pequena onde todos se conheciam, e ainda hoje se conhecem. Quem não é parente é aderente, vizinho ou compadre. O enigma permaneceu e a figura misteriosa terminou sumindo de forma inesperada, da mesma maneira que surgiu.
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Mané do Rosário Rostos velados 170 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Há quem afirme que o seu aparecimento ocorreu durante cinco anos consecutivos. As pessoas já estavam acostumadas com aquela presença e o personagem passou a ser identificado por Mané do Rosário, porque assim se intitulava ou pelo fato de trazer um rosário ao peito, às vezes mais de um, conforme informações dos moradores mais velhos do lugar. Para muitos, era um pagador de promessas, outros atribuíam a identidade ao organizador dos grupos folclóricos locais, Manoel Félix, homem de temperamento vivo e comunicativo, afeito a brincadeiras; alguns desconfiavam que o mascarado fosse ele, mas o suspeito nunca assumiu. O certo é que o personagem entrou para a cultura do município com essa denominação. De tanto se falar e reclamar da falta que fazia o Mané do Rosário, alguns membros da comunidade, sem esperança no seu retorno, e com espírito lúdico, formaram um pequeno grupo que se apresentava da mesma forma e com os mesmos trejeitos do disfarçado. O grupo se aglomerava de forma espontânea, sem ensaios, acordos prévios de coreografia e sem cantos. Quando o zabumba tocava, todos dançavam e as crianças repetiam os mesmos gracejos de outrora, insultando os dançarinos. Os párocos não se opuseram e a cada ano aumentava o número de participantes na porta da igreja. A brincadeira foi ganhando corpo e função, até se transformar em um folguedo local.
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Registro dos pesquisadores T
héo Brandão, em 1962, na primeira edição do Folguedos Natalinos, já incluíra o Mané do Rosá-
rio na classificação dos folguedos, embora com uma interrogação, denotando saber da existência, mas optando por não descrevê-lo, provavelmente por não ter assistido apresentações. Foi seu discípulo José Maria Tenório Rocha quem registrou o Mané do Rosário nos anos 1980, sendo esta, até o momento, a descrição mais antiga de que se tem notícia. Câmara Cascudo, baseado em suas informações, incluiu no Dicionário do Folclore Brasileiro um verbete sobre a manifestação, selando seu ingresso no rol dos folguedos populares. Por um lapso, o dicionarista cita o livro Folclore Negro das Alagoas também como fonte de informação, mas não consta na obra de Abelardo Duarte referência a essa brincadeira.
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Mané do Rosário Figurantes
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João Lemos, historiador do município de Coruripe, escrevendo sobre a Vila em 2001, fala sobre a tradição do Mané do Rosário e contextualiza a folgança com a experiência de quem convive com a comunidade há mais de duas décadas. A partir daí, alguns registros rápidos aparecem nos jornais e revistas de Alagoas, tornando-o mais conhecido, embora não cheguem a acrescentar dados novos. Em 2012, o trabalho acadêmico de Priscylla Silva, Orgulho ou vergonha? O Mané do Rosário, manifestação do patrimônio cultural intangível de Poxim, veio reforçar a bibliografia sobre o assunto. Como se trata de um folguedo puro, são poucas as referências e as existentes estão limitadas às informações orais dos moradores da Vila. A importância dessa tradição reside justamente na sua genuinidade, o que por si só justifica seu registro como patrimônio imaterial do estado.
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Mané do Rosário Representação
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Personagens e trajes
Mané do Rosário Detalhe
A
o contrário de outras folganças, o Mané do Rosário não tem uma hierarquia de personagens identificadas pelo traje ou pela
posição que ocupam. Também não existe um enredo a ser seguido, compartimentado em jornadas ou peças; muito menos cantos e embaixadas em prosa ou verso. Vale destacar que nele não se nota influência de outros autos nem a adoção de figuras deles provenientes. Todos os participantes vestem-se da mesma forma: saia longa de chita colorida, blusa simples e lisa, imitando o camisão que o mascarado usava, e um chapéu de palha na cabeça, prendendo um pedaço de tecido liso e claro que cobre todo o rosto, exceto os olhos, permitindo visibilidade ao participante. Usam meias cobrindo os braços e as mãos. No ombro, ou no braço, trazem um pano pendente em dobra de estola e alguns completam o traje com um chocalho pendurado no pescoço ou na cintura, como referência ao mascarado que deu origem à manifestação. Atualmente, alguns homens estão usando calças compridas e largas em lugar das saias e os rostos pintados de tinta preta e barbas brancas. Essas figuras trazem as chibatas que simulam afugentar a garotada. Os chapéus são feitos por uma artesã local, que já tem a medida certa para homens, mulheres e crianças e ainda faz o típico chapéu de pescador, com a trança da palha do ouricurizeiro, palmeira comum na região. As abas largas ajudam a dar uma aura mística à indumentária que, em seu conjunto, lembra o ritual muçulmano, apesar de nada ter a ver com esta cultura. 176 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Mané do Rosário Estandarte
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Tradição de Mestra A
líder do grupo é dona Maria Benedita dos Santos, de 57 anos, conhecida por dona Traíra, pelo fato de, na infância, só querer se
alimentar do peixe homônimo. Nascida e criada no Poxim, conta que todos no lugar sabiam que seu paladar estava acostumado ao sabor do peixe: “quem pescava uma traíra ia logo levar lá em casa”. De tão afeiçoada às próprias memórias, ela mesma se apresenta como Traíra. “Aqui na Vila as pessoas não sabem o meu verdadeiro nome, mas se perguntar por dona Traíra todo mundo conhece”, diz Maria Benedita.
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Mestra TraĂra (Maria Benedita dos Santos)
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No Mané do Rosário ela é a Mestra, mas veste traje igual ao dos demais participantes. Ela organiza, promove apresentações, estimula novas adesões e detém o saber. Em 2006 recebeu o título de Patrimônio Vivo do Estado de Alagoas. Além da honraria, a inclusão nessa categoria garante ao agraciado uma contribuição financeira mensal como estímulo à transmissão do saber, visando a manutenção daquela tradição na comunidade. A Mestra lembra ainda que quando criança seus pais e seus avós também brincaram o Mané do Rosário. “Eu acompanhava com encantamento aquele cortejo. Hoje o considero uma herança de família”, diz em referência ao fato de seus filhos e netos participarem do folguedo e do zelo pelos trajes. Devota fervorosa de São José, acredita que o santo derrama graças especiais sobre os “manés” que dançam em seu louvor.
Mané do Rosário Rosto
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O caminho do cortejo T
odos os anos o desfile começa na
estreitas ou na acústica natural do adro das
casa de dona Traíra. Prontos, os par-
igrejas, os acordes ecoam contagiando a to-
ticipantes saem em cortejo dançando e fa-
dos. Exatamente pelo volume do som que
zendo trejeitos, cumprimentando as pesso-
emite, é carinhosamente conhecida também
as por onde passam, polarizando a atenção
por Quebra Resguardo. Sua composição
de toda a Vila e dos visitantes ávidos por
compreende dois pífanos, duas caixas, ou
conhecer o folguedo. Os “manés” não can-
taróis, um zabumba, um triângulo e um pra-
tam. Apenas dançam ao som de uma ban-
to. O Mestre é sempre o primeiro pifeiro.
da de pífano. Percorrem as ruas principais
Ele comanda o grupo, dá o tom, rege e sola.
em um trajeto que não dura menos de duas horas até chegar à igreja, onde o pároco os espera para então começar a cerimônia religiosa. Presença constante nas festas do interior, a banda é conhecida por Terno de Zabumba, ou Esquenta Mulher, pelo fato de sua cadência irresistível levar as mulheres a rebolar e a se alegrar enquanto passa. Na ruas
Mané do Rosário Caminhada
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Como manda a tradição, o folguedo se apresenta nos últimos dias da novena, 16, 17 e 18 de março. No dia 19, ápice da festa, sai a procissão. Por isso, no final da apresentação, quando chegam à igreja, depois de dançarem em evoluções soltas e individuais, todos acompanham dona Traíra, que puxa a saudação: Chegamos na porta da igreja Para louvar o senhor São José Com o nosso Mané do Rosário Até para o ano, se Deus quiser! E dona Traíra completa em alto e bom som: “E ele haverá de querer!”. Dito isso, o padre abençoa a todos e em cortejo os participantes voltam dançando para a casa de dona Traíra - sede da brincadeira -, onde trocam de roupa, confraternizam-se e se dispersam. Como o Mané do Rosário está em franca expansão, ganhando mais visibilidade a cada ano, eventualmente é chamado para apresentações em ocasiões especiais em outros municípios e fora do estado. O grupo, que a princípio se reunia de forma espontânea e sem pretensões de ir além do encontro divertido entre amigos e devotos, abriu espaço para as mulheres, as crianças e pessoas das comunidades próximas. Participantes se misturam vestidos com trajes iguais e ao primeiro chamado da Mestra, todos acorrem.
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Mané do Rosário Figurantes
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O auto e a função O
folguedo é conhecido por todos os moradores da Vila do Poxim. Trata-se de um raro caso de ascensão de grupo genuíno que vem passan-
do sua arte dos mais velhos aos mais novos com pequenas modificações, mas com muito entusiasmo, aumentando o número de participantes e garantindo a permanência da tradição. O fato de se tratar de uma folgança puramente local talvez explique o gosto da comunidade pela sua conservação. Os integrantes mais antigos, que acompanham o Mané do Rosário por muito tempo, reclamam da gradativa perda ritualística da manifestação. O argumento é o de que atualmente não se preserva, como deveria, o mistério da identidade de seus participantes. Esse ponto é visto como cerne da questão lúdica e histórica que justificaria a existência do grupo. Quando a pesquisadora Priscylla Silva entrevistou pessoas da comunidade, detectou a insatisfação de alguns pelo que chamam de descaracterização do grupo e quebra de seu envolvimento religioso, com apresentações em festas profanas, de caráter cultural e turístico. O saudosismo remete aos pequenos grupos que saíam sem programação pré-estabelecida, cuja intenção era apenas homenagear São José, reforçando a tradição local.
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Mané do Rosário Rostos Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 187
Mané do Rosário Mistério 188 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Contudo, há o reconhecimento de que, graças ao Mané do Rosário, a Vila aparece com destaque no âmbito da cultura popular. O folguedo agrega à história secular de Poxim elementos que movimentam a vida local e suas atividades artesanais, principalmente a venda de bolsas, chapéus e outras peças de trançado da palha, atividade predominantemente feminina. As novas apresentações, deslocadas da festa do padroeiro, têm caráter de divertimento. Além de divulgar e projetar o município, elas angariam fundos para o próprio folguedo, como acontece com todas as brincadeiras que alcançam popularidade fora de seu reduto. Esse deslocamento do espaço de origem, de alguma forma, contribui para a autoestima do grupo e, consequentemente, para o grau de pertencimento que garantirá a sua continuidade. Disseminar as apresentações do Mané do Rosário é um meio de garantir o seu fortalecimento no tempo, acompanhando o movimento da sociedade que a promove. É também um caminho para a intersecção entre a história passada e as expectativas atuais. O caráter ritualístico do auto permanecerá diretamente ligado à festa de São José do Poxim, seu padroeiro, e à simbologia da fé dos tipos populares que ficam na história oral dos lugares, como ficou um certo Manoel do Rosário para a gente da Vila.
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Bando
Arautos de Santa Luzia T
apera é um povoado do município de Anadia. Localizada a 100 quilômetros de
Maceió, no ponto mais elevado daquela região, a área era conhecida à época dos holandeses como Campos dos Arrozais dos Inhauns. O que poucos sabem é que o pacato lugarejo, com vista privilegiada para a Serra Morena, é um dos poucos redutos do estado onde a religiosidade popular assume seu ponto alto. É exatamente em nome da fé em Santa Luzia, a padroeira de Tapera, que os moradores se reúnem todos os anos num ritual de devoção e agradecimento à protetora da visão
Máscara
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O curioso é que embora o dia consagrado a Santa Luzia seja 13 de dezembro, o ciclo da festa, com orações, novenas e cânticos, tem início no final de novembro, logo após a apresentação do folguedo denominado Bando. Cabe ao grupo abrir os caminhos para a festa sagrada. À moda dos arautos de antigamente, o Bando desfila pelas ruas prenunciando os festejos em homenagem à santa. Não se sabe ao certo quando essa prática se iniciou. Na falta de registros, os moradores mais antigos especulam que a folgança remonta à Independência do Brasil. Sabe-se, no entanto, que o costume de anunciar as festas religiosas é tão antigo quanto os próprios festejos. Fazia parte das reminiscências do catolicismo rural, quando se hasteava na porta da igreja um mastro, enfeitado de fitas e flores, com a bandeira do santo. Era o anúncio de que a festa estava por acontecer. Dependendo da história e da vivência de cada comunidade, a forma variava, a exemplo da tradição mantida na Vila do Poxim, por ocasião das apresentações do lendário Mané do Rosário. E assim é na Tapera, onde o auto do Bando, em plena efervescência, interage com a comunidade chamando a atenção de visitantes e pesquisadores que se debruçam sobre o tema. Mascarado Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 191
Personagens e trajes
S
implicidade é a palavra de ordem para designar a estética do Bando, ou Bandos da Tapera.
Devido a não existir enredo, o grupo dispensa personagens com funções e trajes específicos, embora tenha o organizador, que assume a função de Mestre. Como o nome bem define, os integrantes saem em bando, com máscaras e trajes improvisados de Bobos do Carnaval, alguns com uma vara na mão fazendo as vezes de cajado. São homens, mulheres e crianças com a mesma caracterização. O disfarce, escondendo o rosto, alimenta a tradição de mistério e estimula a curiosidade em torno do auto.
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Bando Preparativos
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As máscaras são confeccionadas em papel jornal molhado e amassado, com bastante cola para facilitar a moldagem - técnica conhecida como papel machê. Depois de secas ao sol, as máscaras são pintadas com tinta a óleo, nas cores mais variadas. O resultado é surpreendente, com o desfile dos mascarados diferenciados entre si pela originalidade de cada peça. Os participantes dançam em grupo ao som de uma Banda de Pífano. Alguns vão a cavalo, mas a indumentária tem a mesma característica. As máscaras são feitas em sigilo e ficam escondidas até o dia da exibição com o intuito de causar surpresa e dificultar a identificação do figurante. Em uma comunidade tão pequena, é claro que logo os mascarados são identificados, mas eles insistem no disfarce.
Bando Cortejo Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 195
O Bando em evolução O
grupo, com cerca de 20 integrantes, reúne-se na porta da igreja e o ritual tem início quando um dos
mascarados começa a tocar o sino, puxando a corda que o sacristão cuidadosamente deixa exposta, pendente da torre. Em seguida, em nome da fé, cada um toca o sino. Diz a tradição que aquele que deixar de tocar perde a proteção da santa. O povoado se alvoroça. Todos querem ver o cortejo passar. Os vivas à padroeira ecoam por toda parte. Num determinado instante a Banda para de tocar e a praça silencia. O Mestre anuncia a busca pelo mastro. Todos saem perfilados em duas alas, trazendo-o pintado de azul e precedido pela bandeira de Santa Luzia. A população interage aplaudindo e gritando saudações à padroeira.
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Bando Exibição
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Bando Mascarados 198 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
A Banda toca marchas e benditos, enquanto os figurantes deixam a igreja levando a haste no cortejo. Dançam e cantam alegremente, acompanhados pela população, passando pelas ruas e sítios até voltar para a porta da igreja, onde renovam vivas e palmas. Um deles coloca a bandeira na ponta do mastro, que logo em seguida é plantado no meio da praça. Por fim, um mascarado posiciona-se ao lado dele e abre solenemente um canudo de papel, como faziam os antigos arautos, e lê o que chamam “edital”. A leitura se faz em voz alta, clamando pelos mortos ilustres da comunidade, de quem relembram feitos e qualidades morais e, em seguida, convocam os vivos, nominando alguns, para comparecerem à festa da padroeira. Na leitura solene, além da programação, o mascarado agradece ao pároco e aplaude a igreja e a santa, seguido em coro pelos demais integrantes e pela população. A Banda executa o bendito, dando por encerrado o ritual.
Bando Mistério
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Dança de São Gonçalo
A origem remota Á
gua Branca é uma espécie de oásis no sertão alagoano. O clima ameno e serrano favorece a vegetação, cujo
verde desafia as agruras da seca que abate a região. Terra de barões e baronesas, e também de Lampião e Corisco, tem o passado preservado na arquitetura de suas igrejas e de seu casario. Além do acervo histórico, o município desponta como um importante centro de cultura imaterial com diversos folguedos e rituais populares, como a Dança de São Gonçalo do Amarante, marco da cultura local. O santo é conhecido na iconografia popular católica como protetor dos músicos, artistas e moças casamenteiras. Morreu em Amarante, norte de Portugal, local onde foi erguido um convento em sua homenagem. Tido na concepção popular como um santo alegre, tem como atributo uma viola, o que o credencia a ser o protetor dos violeiros nordestinos.
Dança de São Gonçalo A música 200 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Não se sabe quando a Dança de São Gonçalo chegou ao Brasil, muito menos à Água Branca, mas sabe-se que se trata de uma tradição portuguesa, cuja prática está ligada ao pagamento de promessas. Contam os mais antigos que a Dança logo foi integrada ao sincretismo religioso e praticada pelos negros escravizados com total aceitação de seus senhores. Em meio a tantas proibições enfrentadas pelos escravos, a permissão para a prática desse ritual justificava-se no medo que os senhores brancos tinham das punições que o santo poderia lhes infligir. Chegavam a dar dinheiro e garantiam a farta refeição dos negros no final das orações. Embora esteja em processo de extinção, existem registros da prática da Dança de São Gonçalo em alguns pontos do país, como em Sergipe e na Bahia. Considerado um auto rural e votivo, vem resistindo ao processo de folclorização urbana. Em Alagoas, até poucos anos, no sítio Ouricuri, em Água Branca, existia o grupo do Mestre José Luiz dos Santos, desativado após a sua morte.
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Danรงa de Sรฃo Gonรงalo Figurantes
202 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Hoje, no povoado Cal, distante aproximadamente 25 quilômetros da cidade sede do mesmo município, outro grupo existe e continua se apresentando na sua função religiosa. Desde a década de 1960, o Guia Deca (José Ricardo Neto dos Santos) o comanda na Igreja Comunitária de São Gonçalo, que ele mesmo construiu. No lugarejo todos participam ativamente, dançando ou interagindo como devotos, pagadores de promessa. Patrimônio Vivo de Alagoas, Deca aprendeu na infância a dançar a louvação e desde então a pratica como uma espécie de “obrigação” levada a sério enquanto vida tiver, conforme suas próprias palavras. A tradição foi passada pelos beatos Pedro Batista e Maria das Dores, em Santa Brígida, cidade baiana próxima à Água Branca, considerada uma região onde é tênue a fronteira cultural entre os estados de Alagoas e da Bahia. Atualmente, o grupo só aparece em momentos votivos ou para “encomendar” a alma de algum morto, cuja família acredita na intercessão de São Gonçalo junto à Divina Providência. Devido a essa fidelidade à função ritualística, a Dança mantém sua conceituação original e o Guia Deca é o primeiro a defender essa posição. O repasse do saber já está sendo por ele transmitido a integrantes que revelam aptidão para comandar espiritualmente o grupo, quando for necessário.
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Personagens e trajes T
odos vestem branco - cor fundamental da indumentária - da cabeça aos pés e com rou-
pas iguais. Os homens, calças e camisas com mangas curtas e boina na cabeça. As mulheres, saias longas e blusas também com mangas e um lenço amarrado na cabeça, escondendo os cabelos. Além do guia espiritual detentor do conhecimento, alguns homens compõem a bandinha de música e doze mulheres fazem parte do grupo de dança. Uma delas é a Contraguia, que vem à frente trazendo a imagem de São Gonçalo, em torno da qual as jornadas se desenvolvem. Outros personagens aparecem eventualmente - são os pagadores de promessas, que têm funções a desempenhar.
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Danรงa de Sรฃo Gonรงalo Trajeto
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Danรงa de Sรฃo Gonรงalo Cerimonial
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A dança e a evolução A
o som de violas e rabecas, acompanhadas por tambor, recorreco, triângulo e pandeiro, o grupo de mulheres se
organiza em duas alas. Após a Contraguia, vem o Guia Espiritual. Posicionam-se em frente ao altar, dançando em ritmo dolente e constante, a princípio em alas, depois em círculo. Em determinado momento um novo círculo se forma com os devotos que estão ali para pagar promessas. No centro fica quem encomendou a dança, com o santo na mão, passando por entre os que reverenciam a imagem e agradecem as graças alcançadas. O curioso é que os devotos que não podem pagar a oferenda aguardam uma ocasião em que o grupo se apresente publicamente, para só então participar e, consequentemente, ficar quite com o santo. O Guia canta as jornadas, em número de doze, que se estendem da tarde ao começo da noite, enquanto as doze mulheres dançam e acompanham o ritmo com um sapateado que ecoa no salão da igreja comunitária. No caso de “encomendação” da alma, o rito é mais demorado e o Guia leva quatro ou seis mulheres para se revezarem na dança, acontecendo o mesmo com os músicos. No final da “obrigação”, como denominam o ritual, cumprimentam-se respeitosamente.
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CapĂtulo X
José Avelino Caboclinho Barra do Camaragibe
Do homem de alamares não me assusta a voz rouca, a faixa a tiracolo e tanta medalha na roupa. (Maurício de Macedo)
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TORÉ
Tradição ancestral E
ntre as manifestações culturais e religiosas mantidas pelas populações indígenas brasileiras, o Toré se destaca como
referência no processo de demarcação identitária e territorial. Considerado um dos mais importantes rituais praticados por tribos de diferentes etnias e regiões do Nordeste brasileiro, a dança sagrada é também cultuada como um símbolo de encantamento capaz de manter, ao mesmo tempo, o vínculo com os antepassados e a revitalização da tradição no contexto atual.
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Nas comunidades indígenas o Toré é o momento onde espiritualidade, integração à natureza, identidade social e memória se fundem num ritual permeado de sons e movimentos corporais específicos. Cânticos são entoados em meio a deslocamentos em giros. Aos pares, eles seguem a cadência determinada pelo som dos maracás. A marcação é feita com os pés, que tocam firme no chão. Alternam saltos com coreografia de meio círculo para trás. Para muitas tribos a dança representa a ligação da aldeia com a força que domina o mundo, aquela que atende aos anseios dos povos indígenas, reconhece sua história e preserva a vida social e a organização tribal. Outros o traduzem como um espírito protetor da saúde, que transmite a sabedoria de índios e caboclos que “baixam” para indicar chás e banhos com ervas medicinais, como acontece no culto afro-brasileiro. Registros históricos dão conta de que os negros escravizados praticavam o Toré em seus rituais de guerra, invocando o conhecimento da terra nas horas de fuga. Presente no auto folclórico do Quilombo, ainda que em circunstâncias distintas, essa prática reflete o entrelaçamento cultural entre negros, índios e caboclos.
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Ritual Xucurus Palmeira dos ร ndios
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Ritual Kariri Xocó Porto Real do Colégio
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O sentido da dança A
lgumas comunidades remanescentes nos municípios de Palmeira dos Índios, Pariconha, Porto Real do Colégio, São Sebastião e Joaquim Gomes mantêm
a tradição da dança como meio de reafirmação da crença nos ancestrais e da integração entre os membros da aldeia. O Toré é também um momento de purificação e resguardo das maleficências e infortúnios. A cerimônia é restrita ao grupo e, eventualmente, aos poucos convidados, o que representa grande distinção. Não se trata de uma manifestação lúdica, mas de um rito, através do qual os povos indígenas celebram suas divindades e dançam por melhores colheitas, fartura para a terra e para seus descendentes. O caráter coletivo do ritual é marcado pela participação de todos na preparação, cada um desempenhando papel específico. Além da utilização de trajes típicos, o Toré resgata a tradição dos hábitos alimentares indígenas. A bebida, feita à base de sumo de jurema, é misturada a diversas ervas e servida em pote de barro próprio para a ocasião. O cachimbo baforado pelos participantes tem também o sentido simbólico de comunhão. É oferecido pelo Pajé, que conduz a cerimônia ao lado do Cacique. O som vem da taboca com que fazem flautas e um instrumento que lembra uma trombeta rústica e alongada, que emite um som lúgubre. Apitos feitos da cauda do tatu e maracás de cabaças com sementes em seu bojo acompanham o ritmo e a batida forte dos pés levantando a poeira no terreiro batido.
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Indumentรกria cerimonial 216 | Alagoas Popular - Folguedos e Danรงas de Nossa Gente
Personagens e trajes O
autêntico Toré de aldeia não permite a inclusão de mulheres. Apenas os homens estão aptos a partici-
par da dança. Nessas ocasiões, vestem-se com penas de aves de cores variadas e com palha de ouricuri, usada também na confecção das máscaras. A fibra é trançada ou desfiada depois de seca e costurada com seu próprio fio, que faz as vezes de linha. Os adereços são de ossos e dentes de animais colocados sobre os corpos pintados de urucum (vermelho) e jenipapo (preto). Os motivos da pintura expressam padrões de beleza e insígnias de poder hierárquico. O Pajé é quem dita as normas e detém o saber. A ele compete a invocação dos ancestrais e o comando espiritual da dança.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 217
O folguedo e a folclorização do rito A
ssim como ocorreu com outras ma-
mais diversas festividades, incluindo os perío-
nifestações, com o passar do tempo e
dos de Natal e Carnaval.
por ocasião das comemorações alusivas ao Dia
Nessas ocasiões, os integrantes, caracteriza-
do Índio, 19 de abril, o Toré sofreu um proces-
dos de índios, vestem tangas de palha ou de pe-
so de folclorização. Fora das aldeias, passou a
nas, cocares, braceletes e perneiras dos mesmos
ser representado por pessoas que não mantêm
materiais. Contas de miçanga completam os
qualquer tipo de relação com as comunidades
adornos. Os grupos são formados basicamente
indígenas.
por jovens e crianças. Os homens, munidos de
A versão folclorizada foi incluída no rol dos
arco e flecha, completam a coreografia simu-
folguedos populares de inspiração nativa. Nes-
lando o uso da arma. Deixam o peito nu e usam
sas apresentações, a caracterização da dança
colares e faixas de palha trançada, enquanto as
é feita de forma simplificada, estilizada e sem
mulheres vestem um cobre-seios e colares que
vínculo com o aspecto mítico da tradição man-
completam o figurino indígena. Dançam dan-
tida até os dias atuais por tribos de diferentes
do-se as mãos, inclinam a cabeça para a frente,
etnias.
soltam-se e acompanham o ritmo com pouco
O ponto alto das apresentações ocorre no mês de abril, geralmente nas escolas e centros
movimento de corpo. Não há molejo de quadris nem de ombros e os passos não variam.
culturais. Embora as pesquisas realizadas pelo
Os cantos são monossilábicos, quase im-
folclorista Théo Brandão na década de 1950
perceptíveis, improvisados e onomatopaicos,
não incluam o Toré no grupo dos folguedos
emitindo sons que intercalam com a chamada:
natalinos, atualmente ele pode ser visto nas
Toré, Toré, Toré!!!
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Folclorização do Toré
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 219
Caboclinho
Origem indígena O
auto do Caboclinho é outro folguedo inspirado na cultura indígena. Conhecido também por Ca-
boclinhos, tem origem no início da colonização, época em que as manifestações nativas eram exploradas pelos frades portugueses em favor da missão evangelizadora. A transfiguração dos ritos, danças e cantos era, então, um meio eficaz de difusão do catolicismo. Dóceis e suscetíveis, as crianças eram as primeiras a ser submetidas ao insidioso processo de catequese. Devido a esse perfil catequista, muitos pesquisadores atribuem a denominação diminutiva do folguedo ao fato de ter sido, originalmente, direcionado ao público mirim: os caboclinhos. Àquela época, índios e miscigenados eram conhecidos, genericamente, por caboclos - designação ainda hoje usada na região Nordeste.
Mestra Miram Caboclinho Barra do Camaragibe 220 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Tomando por base a manifestação nativa, os portugueses desvirtuavam a natureza original dos saberes religioso e cultural locais, ao mesmo tempo em que incutiam e propagavam hábitos e crenças ibéricos. Espalhavam na Colônia uma nova forma de ver o mundo. Na área dos folguedos não foi diferente. A efetividade do processo de assimilação cultural se dava por meio da introdução de elementos de folganças e memórias do colonizador, criando outra modalidade de auto, com feição lúdica, sob a égide de seus interesses. No vácuo dessas transformações, o Caboclinho se apresenta com coreografia que lembra os rituais indígenas, mas a composição dos cantos e dos trajes, em alguns estados, é nitidamente portuguesa. Não faltam, aqui e acolá, traços da cultura dos negros escravizados que, com o tempo, foram aparecendo na folgança.
Pai Velho José Avelino Barra do Camaragibe Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 221
O auto da região Norte A
referência ao auto, em Alagoas, vem dos grupos do Norte, zona que congregou até início deste
século, o maior número de Caboclinhos, com formação semelhante e funções desempenhadas conforme a mesma orientação. A Mestra Miram, também chamada Guia, mantém a tradição no comando do grupo Caboclinhas do Passo, reproduzindo os cantos e as evoluções com peças antigas, guardadas na memória, e outras que improvisa no fulgor das apresentações. A influência do traje de procedência portuguesa é muito forte no estado em detrimento da caracterização indígena, cujos elementos aparecem de forma discreta nos adornos e nos cantos. Essa predominância na indumentária define a própria vertente do grupo e sua inclinação no desenvolvimento do enredo e da função. Em Pernambuco, ao contrário do que acontece em Alagoas, a ênfase é dada aos elementos indígenas, contudo, eles são trabalhados de forma idealizada, distante da matriz referencial. Os desfiles enfatizam a feição exótica de uma brasilidade estilizada. Os integrantes trazem nos corpos e nas alegorias muitas penas coloridas e dançam
Caboclinho Barra do Camaragibe
exibindo manobras que fazem da folgança uma atração da cultura regional. 222 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Na Paraíba, no Rio Grande do Norte e em outros estados, o auto também aparece com características particulares; ainda assim, conservam traços da origem comum. Atualmente, em Alagoas, o folguedo encontra-se em processo de desativação. O desaparecimento dos Caboclinhos de vários municípios se deu por razões diversas, que vão desde a falta de um Mestre para a condução dos trabalhos, até a preferência dos figurantes por outras modalidades de folguedo. Apesar dessa descontinuidade, as referências à folgança permanecem vivas na região. Em meados do século passado, Penedo, Atalaia, Pilar, Porto Calvo, Porto de Pedras, Passo de Camaragibe e São Miguel dos Milagres mantinham seus grupos em atividade. O ânimo foi arrefecendo e hoje em dia a tradição dos Caboclinhos pode ser vista apenas em Barra de Camaragibe, no Litoral Norte, município de Passo de Camaragibe. Os brincantes apresentam-se no Carnaval como a atração principal, atraindo o interesse da comunidade que aguarda e acompanha o cortejo. As apresentações acontecem também no Natal e em diversos eventos comemorativos, ocasiões em que os cantos são adequados à temática das festividades. O grupo de Passo do Camaragibe, atualmente comandado pela Mestra Miram, que segue a tradição familiar, vem de uma história de várias gerações. Acostumada a brincar desde criança, ela assumiu a liderança com a morte repentina do Mestre Joel. Muito querida na comunidade, Mestra Miram consegue manter carinhosamente articulado o grupo, que, nas apresentações, interage com o público, estimulando o interesse pelo folguedo, transformado em verdadeiro ícone do município. Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 223
Personagens e trajes
D
a mesma forma que acontece com
tas vezes diferem uns dos outros na forma-
o Reisado, o Guerreiro, a Folia de
ção do seu naipe.
Reis e outros autos de influência ibérica es-
Os integrantes são trajados de acordo
palhados pelo país, as figurantes são chama-
com suas funções e trazem os atributos que
das Caboclinhas e se vestem com trajes se-
lhes são peculiares: estandarte, coroas, ce-
melhantes aos dos antigos autos das Janeiras
tros, ventarolas, pandeiros. A Mestra, com
e Reis, do Cciclo Natalino em Portugal.
um bastão e um apito, guia os demais figu-
No caso dos Caboclinhos há uma parti-
rantes, auxiliada pela Contramestra. O Pai
cularidade: a indumentária recebe, entre se-
Velho difere do conjunto com calça e boina
das e fitas coloridas, decoração de penas de
brancas e camisa vermelha, portando o ma-
aves domésticas, alusivas à cultura indígena.
chado de Xangô.
Flores e folhas também exercem o sentido
O estandarte é cuidadosamente restau-
simbólico de identidade com a terra e o
rado todos os anos quando a decoração é
meio ambiente.
refeita, as franjas e penas são substituídas e
Entre os destaque estão o Mestre ou a
a data do ano é atualizada. Ao lado do nome
Mestra, o Contramestre, Rei e Rainha, Por-
do grupo permanece a data de sua criação:
ta-Bandeira, Cacique, Pajé, Embaixadores,
quanto mais antigo o grupo , maior é o or-
Vassalos e Pai Velho. Há uma flexibilidade
gulho dos participantes, que fazem questão
em retirar e incluir personagens, conforme a
de destacar a longevidade da organização
vontade do Mestre. Por isso, os grupos mui-
nas apresentações.
224 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Personagens de Caboclinho em evolução Barra do Camaragibe
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O auto e a função E
E na despedida, a clássica de quase todos
ntre as peças mais conhecidas e que
Não existe um enredo, como acontece
atravessam gerações, merecendo o
com alguns grupos que desenvolvem cenas
registro de pesquisadores, este canto evoca a
de lutas e conquista do cetro real, com os fi-
Boa noite, meus senhores,
paisagem litorânea da própria região.
gurantes munidos de arco e flecha na encena-
Caboclinho vai embora.
Tava na beira da praia,
ção de pelejas bem engendradas. As peças são
Ficará para o ano,
Vendo a maré que fazia.
soltas e falam sobre temas diversos, mistura-
Se nós vivo for,
Quando eu ia, ela voltava,
dos entre si, como a vida do caboclo - a terra,
Meus senhores e senhoras.
Quando eu voltava, ela ia.
os santos e os pajés, os combates e a valentia
O progresso dos passos não ultrapassa a
Dei laço na fita verde,
dos nativos.
Dei outro na verde rama.
os folguedos:
marcha rítmica para frente e para trás. Em
Partes soltas da Lira, do Rei Catulé e entre-
dado momento, começam a dar uns pulinhos
Benzinho você não sabe,
meios de antigos Reisados são incorporados
sem sair do lugar, como nas danças indígenas,
Quem é cativo não ama.
à folgança entre as peças e embaixadas, sem
e sem perder o ritmo. A evolução, contínua,
O grupo sai em cortejo formado em duas
nenhuma preocupação com a sequência lógi-
discreta, mantendo a recorrência dos passos,
alas. A Guia, Miram, que é também a Rainha,
ca de um enredo. Não faltam os pedidos de
ainda comporta uma peça de troca de lados,
no centro, puxa as peças e chama os figuran-
abrição de portas e as saudações, cantadas na
como se os participantes estivessem passean-
tes pelo nome em embaixadas rimadas que
chegada ao local da apresentação:
do na outra ala. Uma banda de pífano segura
estimulam a dança e mantêm a animação.
Boa noite, Caboclinha, Boa noite venho dar, Quero ver tudo animado, Dentro deste arraiá
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a animação.
Mané do Rosário com estandarte Figurantes Caboclinho Barra do Camaragibe Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 227
Cambindas
Herança boreal
A
Alagoas do Norte mantém em sua memória um importante acervo de acontecimentos históricos e
sociais que se perpetuaram no imaginário popular, compondo um vasto repertório de lendas, canções, adágios e folganças. São resquícios amalgamados da presença de índios, portugueses, holandeses e africanos. Juntas, essas culturas resultaram em uma mistura étnica e social que deu origem à criação de núcleos coloniais e à expansão e povoamento da região. Os municípios de Porto de Pedras e São Miguel dos Milagres, encravados na área litorânea, comprovam essa resistência histórica, mantendo tradições folclóricas, reminiscências de antigos folguedos indígenas e os de matriz africana. A existência, nas duas localidades, de grupos de Cambindas representa um alento à manutenção do patrimônio vivo em uma área dominada pelo avanço do turismo exploratório de suas belezas naturais. Personagens de Cambindas 228 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
O folguedo tem origem nas celebrações festivas ao Rei do Congo. O nome Cambindas reporta o auto às reminiscências de uma região homônima de Angola, que funcionava como porto por onde embarcaram os negros com destino ao Brasil. Porto de Pedras, município mais antigo, “uma cidade a seu modo obediente aos caprichos do rio e às razões do mar”, como diz Dirceu Lindoso, une-se a São Miguel dos Milagres por uma rua longa e única, paralela ao mar. Da mesma forma, a comunidade é também uma só em todo aquele litoral. Os grupos de Cambindas não fogem a essa regra geográfica: os participantes chegam de um e de outro município movidos pela força da história e da tradição oral responsável por reproduzir costumes típicos da vida praieira. Além de herdar dos vizinhos do norte o gosto pelo folguedo, eles guardam na memória as referências de antigos Mestres, o que permite a recomposição do auto, especificamente com base nas formações mais recentes, do século passado. Em pesquisa realizada na década de 1970, José Maria Tenório Rocha levantou antecedentes históricos dos grupos, chegando à Cambinda Luanda do Mestre Isauro Osório, que deixou na linhagem de descendentes a Cambinda Nova, do Mestre Valdir Almeida Lins, seu neto, e a Cambinda do Mestre Cocó, Cosme Henrique de Oliveira.
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A folgança continua A
tualmente, os grupos de Cambinda mantidos em Porto de Pedras e em São Miguel dos Milagres
saem, no período de Carnaval, com um cortejo de foliões que acompanham o desfile dançando e cantando junto com os figurantes. No Porto, uma das figuras mais conhecidas é a do Mestre Noa, querido na comunidade pelo temperamento alegre e comunicativo. No comando das Cambindas, destaca-se pela irreverência de suas peças e rapidez de raciocínio, improvisando e repassando antigas cantigas que a memória popular se encarregou de preservar. Os integrantes do grupo, todos do sexo masculino, travestem-se de mulher, à semelhança do que ocorre na Baiana e no Samba-de-Matuto. Em São Miguel dos Milagres as Cambindas saem dançando em cortejo sob a orientação da Mestra Terezinha, também mãe de santo do terreiro local. Nas apresentações, ecoa nos quatro cantos da cidadezinha a voz esganiçada da Mestra, que é prontamente atendida pelas Cambindas, figurantes mulheres que respondem em coro os cantos e as embaixadas.
230 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
Mestra Terezinha Cambindas em formação
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Personagens e trajes O
Porta-Estandarte sai na frente, seguido pelo Mestre, ou Mestra, que alardeia a chegada do
grupo com seu apito estridente. Entre duas alas de Cambindas, que podem ser homens travestidos ou mulheres, com roupas semelhantes às das Baianas, perfilam-se os personagens principais que podem apresentar alguma variação de grupo para grupo. Aparecem Rei, Rainha, Embaixadores, ou Embaixadoras, Vassalo, Índios, Preto Velho, todos caracterizados e com atribuições próprias. Os grupos mais tradicionais mantêm a Dama do Paço, integrante que traz uma boneca representando a figura histórica de dona Leopoldina. O Mestre e a Mestra têm a autoridade de se trajar conforme lhes convém, com roupa comum ou caracterizados, como a Mestra Terezinha de São Miguel dos Milagres, que vem de saia longa e rodada com o colorido do seu baianal e um quepe, modelo militar, com as mesmas cores. Nacionalista convicta, traja o verde e o amarelo que são extensivos ao seu grupo. Valorizados como personagens de destaque, estão os Índios com fartos cocares.
Mestra Terezinha
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Cambindas em evolução
O
s grupos dançam ao som de bandas musicais que tocam ritmos animados, pró-
prios da festa carnavalesca. O cortejo segue em direção à igreja principal onde está a imagem do padroeiro, ou padroeira, para as devidas homenagens na forma de cantos de saudações. Em seguida, encaminham-se para a praça, local da festa, onde enfim interagem com blocos carnavalescos e foliões. Os passos da dança são acrescidos de reque-
brados e trejeitos, enquanto as figuras do centro fazem as evoluções e cantam peças soltas repetidas e sempre presentes nos grupos locais, ou criadas pelo Mestre ou pela Mestra. O Cambindas está entre os autos que perderam o conceito original de reverência aos Reis do Congo e à tradição trazida pelos negros aqui escravizados. O distanciamento do conteúdo inicial da folgança tem enfraquecido os grupos a ponto de alguns pesquisadores preferirem incluí-lo como variante do Maracatu. Personagens de Cambindas Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 233
Glossรกrio & Bibliografia
Glossário Abrição – corruptela de abrir. “Abrição de
dezembro de 1985, pelos folcloristas Ranil-
ou metal representando a forma humana.
porta” é termo usado pelos brincantes para
son França e Josefina Novaes, com o objetivo
Aparece como fetiche de divindade. Nos fol-
designar a saudação inicial, o pedido de licen-
de incentivar os grupos folclóricos tradicio-
guedos também representa vultos históricos.
ça para o folguedo se apresentar.
nais do estado. A Asfopal foi iniciada com 17
Cordão – grupo de brincantes enfileira-
Adivinhas – perguntas, ambíguas ou não,
grupos, entre Guerreiro, Pastoril, Fandango,
dos. O mesmo que ala. No Pastoril, no Fan-
de charadas desafiadoras que fazem parte da
Coco de Roda etc.
dango e em vários folguedos, a formação dos
nossa cultura popular.
Auto – representação popular, com cantos
figurantes é em dois cordões, fiando no cen-
Antônio Gramsci – filósofo, cientista
e danças, tratando de temas religiosos ou pro-
tro os personagens de destaque.
social, ativista político italiano. Defendia que
fanos. O mesmo que folguedo.
Duarte Coelho Pereira – militar e
a escola deve dar acesso à cultura às diferentes
Baianal - vocábulo criado pelas brincantes
administrador colonial português. Primeiro
classes sociais para que todos pudessem ter
de Baiana para denominar o folguedo em que
donatário da capitania de Pernambuco.
cidadania plena
brincam.
Embolada - coco de
Aricuri, ou ouricuri – pal-
Brincante – participante de brincadeiras,
improviso, também cha-
meira nativa cujas folhas são muito
folias tradicionais, folclóricas ou populares.
mado coco de repente.
usadas para fazer utensílios artesa-
Cafuringa
– corruptela de Curinga, fi-
Misto de dança e desafio,
nais e que fornecem cocos, peque-
gurante que pode desempenhar vários papéis
muito popular na região
nos e comestíveis, usados no fabri-
em cena, devido à sua versatilidade. Seu cha-
nordestina e particular-
co de óleo.
péu lembra a forma de um funil.
mente em Alagoas.
Associação de Folguedos Po-
Caldeamento – mistura, fusão.
Entremeio – parte que se inclui no fol-
pulares de Alagoas – criada em 27 de
Calunga – boneca de pano, madeira, osso
guedo, de permeio, entre suas jornadas.
Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente | 235
Ethos – ideias, valores ou crenças caracterís-
Prenda
ticas de uma coletividade, época ou região.
que se oferece a alguém. No Presépio e no
Evolução
– movimentos coreográficos
Pastoril os torcedores de cada cordão ofere-
de passos, de jogo de corpo, de gestos que
cem prendas em dinheiro às pastoras prefe-
acompanham a música e os cantos. Quanto
ridas.
mais desembaraço na evolução, mais a apre-
Oneyda Alvarenga – intelectual bra-
sentação é enriquecida.
sileira ligada ao folclore, à poesia e à música.
– o mesmo que presente, dádiva
Amiga e parceira de Mário de Andrade em pesquisas sobre a cultura popular.
Peleja de repentistas – contenda em versos de poetas populares. Perante o público,
Função – na cultura popular, função de-
Lusbel – corruptela de Lúcifer, o anjo do
a partir de um mote escolhido por um parti-
signa o desenrolar das apresentações dos fol-
mal, o demônio.
cipante, cada um desenvolve a sua arte provo-
guedos. Quando um grupo folclórico entra
Manjedoura
em cena, todos esperam que ele desenvolva
colocam comida para os animais. Entrou para
Sentinelas – igual a Incelenças, Cantigas
bem a função, isto é, a dança, os cantos e a
a história do cristianismo como o local onde
de Grandes ou Bendito de Defuntos. Forma
apresentação.
Jesus Cristo nasceu.
típica de expressão cultural nordestina, e em
Grêmio Guimarães Passos – as-
Manobra – movimento coreográfico ar-
menor escala de outras regiões brasileiras.
sociação literária fundada em Maceió nos
rojado, com idas e vindas que surpreendem
Cânticos executados sobre a cabeceira dos
anos 30 do século passado, que congregou os
o público.
doentes terminais ou dos defuntos.
chamados “Meninos Impossíveis”, jovens ta-
Midiático – o que é difundido pela mídia.
lentosos que depois se tornaram grandes no-
Refere-se a todo e qualquer suporte de difu-
mes da intelectualidade alagoana e brasileira.
são da informação.
Jornada – divisão de peças teatrais, mu-
Pertencimento – crença em uma ori-
sicais e autos pastoris desde o século XV. O
gem comum entre indivíduos distintos que
mesmo que atos e cenas. É a divisão das di-
adotam símbolos que expressam valore e as-
versas partes que compreendem um folgue-
pirações. Considerar a si mesmo como mem-
Tropel
do, podendo ser sequenciada ou solta.
bro de uma coletividade.
pisadas dos brincantes.
236 | Alagoas Popular - Folguedos e Danças de Nossa Gente
– local onde os pastores
cando ou respondendo ao rival.
– ruído ritmado provocado pelas
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