Livro de Bobagens _ Ernani Buchmann

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ERNANI BUCHMANN

Curitiba PR 2022

B919 Buchmann, Ernani

Livro de bobagens em que são contadas as incríveis e jamais desmentidas façanhas de um campeão em incontáveis modalidades esportivas, religiosas, sexuais, jurídicas e nas frentes de batalha: narradas pelo notório usurpador e mentiroso contumaz / Ernani Buchmann. – Curitiba, 2022. 148 p. : il.; 23 cm.

1. Literatura Brasileira – crônicas. I. Buchmann, Ernani. II. Título.

CDD – B869.4

Rosilda Rosowski dos Santos – CRB9/1238

Projeto gráfico, capa e ilustração: Vera Andrion

Revisão: Silvia Bocchese de Lima e Sônia Amaral

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AS FAÇANHAS ESPORTIVAS, RELIGIOSAS, SEXUAIS E JURÍDICAS DO AUTOR DE UM LANCE ÚNICO NA HISTÓRIA DO XADREZ MUNDIAL (h6xCg7/Ch8), VÍTIMA DE GRAVES ACIDENTES, TESTEMUNHA E COMPETIDOR DE TERRA, MAR E AR COM INCONTÁVEIS VITÓRIAS E EVENTUAIS DERROTAS EM MODALIDADES COMO ATLETISMO, AUTOMOBILISMO, AUTORAMA, BASQUETE, CUSPE À DISTÂNCIA, ESGRIMA, FUTEBOL DE BOTÃO, DE CAMPO E SOCIETY, NATAÇÃO, PÔQUER, TÊNIS, TRUCO, VÔLEI E XADREZ, DESCRITOS COM EMOÇÃO E PROPRIEDADE NESTA OBRA DE FICÇÃO RECHEADA DE ATOS PREMONITÓRIOS, REFERÊNCIAS ONÍRICAS E HUMILDADE PRÓPRIA DOS HERÓIS QUE NADA PLEITEIAM, NEM MESMO O

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TARDIO RECONHECIMENTO.

SOBRE A OBRA

Desta coletânea de bobagens deverão ser impressos 100 exem plares, numerados, a serem distribuídos a pessoas próximas, que re cebem assim a homenagem do autor em forma de brincadeira. O uso da autoironia, antes tão comum em peças literárias, como as de humor judaico, pode não ser bem visto nos tempos atuais, em que tudo é (mal) entendido ao pé da letra. O livro, por tais motivos, não se presta à distribuição em livrarias.

A maior parte desses 33 textos foi publicada em revistas, jornais, portais, blogs e, poucos, em livros anteriores do autor. Outros são inédi tos. Alguns foram reescritos por exigência do onipresente Hermann Sheffield, incluindo eventuais episódios comentados pelo execrável editor, a exacerbar suas funções. Só a integridade de Silvia Bocchese de Lima po deria salvar esta barafunda, mas até sobre tal façanha pairam dúvidas.

Erra quem pensa que Sheffield é sobrenome de origem ingle sa. Ele foi cunhado após um equívoco do Seu Lauro, porteiro do prédio do escritório, que entrou em contato com o setor de comu nicação para avisar que havia sido entregue um pacote para o Sr. Hermann. Tentei justificar que ali não havia ninguém com aquele nome. Surpreso e estranhando a minha negativa, afirmou categó rico que Hermann era meu chefe. Resolvi não teimar e disse que iria até a portaria para buscar o embrulho. Quando retornei, entre guei a Ernani Buchmann a encomenda que era direcionada a ele, o Hermann, de sobrenome Sheffield, uma composição ou derivação oriunda de Chefe. Hermann Sheffield, portanto, nasceu na portaria de um edifício. (Silvia Bocchese de Lima)

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O jovem ovo

p. 13

Antevisão do Azteca

O zíper

p. 21

p. 17 Acidente na curva parabólica

p. 25

p. 29 Expulsão instantânea

de vôlei com licor

p. 33 Primeiro lugar em terra, mar e ar

p. 37

O púlpito

p. 45

p. 41 Futebol insensato

Dois cavalos no tabuleiro da vida............................................. p. 49 Título olímpico

p. 53 No tempo em que não fui Michael Jordan

p. 57 Eu e a água............................................................................... p. 61 Repórter quase estraga a competição

p. 65 O motel da avozinha

p. 69 Sinuca, por que me puse a jugar

p. 73 Um quase título mundial

p. 77

ÍNDICE
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Campeão
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Atleta quarentão

O dia em que joguei com Kasparov

Um sobrevivente de 1950 em 2014

Morte em Mônaco

Espada no bucho

O rei do cuspe

Digressões sobre a consistência da manteiga em Terras de Serra acima

Coringa

Superação e glória

p. 81

p. 85

p. 89

p. 93

p. 97

p. 101

p. 105

p. 109

p. 113

Um comunista na Fórmula 1

Proezas do Gotham City

Da execução de um van der leij...

Destino perna de pau

A tosse

A enigmática caderneta

p. 123

p. 119 Hermann, mestre da retórica

p. 127

p. 131

p. 137

p. 141

p. 145

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Para Fábio Tomich Buchmann meu permanente sofrer, porque não há nada mais triste que a lápide de um filho.

O JOVEM OVO

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Desde o momento em que foi expulso do útero materno, passou a se destacar. Em 99% das vezes, pelo lado negativo. Ali mesmo, na sala de parto, causou espanto, com os cabelos plantados até na testa, algo semelhante a um exemplar do homem de cro-magnon.

Depois a aparência melhorou ao nível do aceitável. Já o controle motor, este revelou-se inexistente. Passou a derrubar a mamadeira, a tropeçar nos batentes, a dar cabeçadas em mesas, cadeiras e no que surgisse. A coisa piorou quando descobriram que o energúmeno era, por isso mesmo, canhoto.

Enquanto a coexistência se dava com parentes, os problemas eram subestimados. Sempre havia alguém a passar a mão na cabeluda cabeça da criança, tentando consolá-la. Ocorre que, aos cincos anos, viu-se matriculado em um jardim de infância. Lá, o esforço para desenhar uma letra era brutal, a mão esquerda teimando em seguir uma trilha autônoma, divergente dos princípios da boa caligrafia.

Ao fim do ano a professora resolveu montar um espetáculo tea tral para mostrar aos orgulhosos pais a vocação artística de seus rebentos e rebentas. Quem sabe ali não se escondia um futuro Marlon Brando, uma Meryl Streep? A mais bonita das alunas foi escalada para protagonizar a peça. Em torno de um caldeirão, ela pedia os ingredientes para fazer um bolo.

Começou pedindo açúcar, com o que entrou no palco um garoti nho branquelo. Temperou com açúcar mascavo, papel a caráter para um aluno moreno. O mais fornido era o fermento. Então viriam os ovos.

O talento dramático do pobre canhoto revelou-se um fiasco. Foi escolhido para compor o esquadrão dos ovos, o que significa que era um doze ovos. Digo, doze avos. Todos envergando uma fantasia amarela e branca de papel crepom. Ao sinal da professora, os ovos entraram, solenes, no palco.

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Onze deles. O atrapalhado encostou o lombo em uma parede na coxia, de onde saia um traiçoeiro prego, responsável por rasgar a fantasia a ponto de deixá-lo seminu, refém de uma mísera cueca. A família decepcionou-se – e sua avó passou de novo a mão naquela cabeçorra, tão grande quanto vazia.

Poucos anos depois, fez sua segunda aparição pública. A dire tora da escola seria homenageada pelo seu aniversário. Escolheram quatro crianças, uma de cada sala, para lhe entregar um presente. O ex-ovo foi um dos escolhidos. Houve fotos e a promessa de que seria publicada no jornal.

Nosso anti-herói avisou em casa que seria um dos astros do tal evento. Agora sim faria bonito. Era sua estreia no mundo dos espetáculos. Cedo, na manhã seguinte, seu pai correu à banca de jornais. A edição foi aberta na mesa da cozinha e os três trataram de procurar a foto prometida.

Na página 5, lá estava. No centro, a diretora, cercada por duas alunas e um aluno. Em seguida, havia um braço. Sim, o braço direito do aspirante a ator em Hollywood foi a primeira e única parte do seu corpo a estrear nos jornais.

Esta seria a sina de quem começou a vida artística de cueca nos fundos de um palco. Mais tarde sua carreira deslanchou, se assim se pode afirmar, ao verter taças de espumante no vestido de uma aniver sariante de 15 anos, despencar do palco em frente à plateia lotada, espatifar o vidro de um Rolex do passageiro da poltrona ao lado, ao deixar seu celular cair do gavetão acima, quebrar um copo de cristal tcheco que pertencia ao acervo de uma senhora da sociedade carioca e rasgar a manga do paletó ao enganchar em um trinco.

Foram razões mais que mais suficientes para que adotasse outro nome. Desde então, para sempre, tornou-se Hermann Sheffield – o desastre que anda, mas sempre tropeça.

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ANTEVISÃO DO AZTECA

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Em um daqueles dias sem nuvens do mês de maio em Curi tiba, há pouco mais de 60 anos. Das salas do fundo do colégio a plateia vê sair os times que jogariam durante aquele recreio, clássico a ser disputado em 30 minutos. O técnico, professor que seus sacros votos designavam por irmão – em tudo semelhante a padre, inclusive no voto de castidade, com o menoscabo de não rezar missa. Sobre a abstinência sexual, essa não faz parte do presente relato.

A nossa tropa era formada por zagueiros duros, dois jogadores de meio-campo de alto nível (Gama e Chevalier, este sobrinho-neto do chansonnier Maurice) e, no ataque o craque do time, Caiado Ar ruda, espécie de Cristiano Ronaldo de seu tempo. O time adversário, pouco importava, eram os inimigos a serem batidos.

Gente encardida, aqueles inimigos. A partida disputada a boti nadas ia ao fim. Faltavam 30 segundos, se tanto. Eis que da nossa área é batido um tiro de meta. A bola quica nas pedrinhas – sim, houve sério lapso neste relato: o gramado era composto por pedregu lhos misturados à areia, formando uma espécie de grosseiro saibro, à feição dos protagonistas – pois então a bola resvalou na pedrinha e encobriu o grandalhão zagueiro do exército confederado.

Permitam-me concisa explicação teórica. No mundo do futebol, se o atacante de uma das pontas se infiltra pelo meio, para ficar à frente dos zagueiros, a jogada é chamada de “entrar em facão” ou “de facão”. A técnica foi usada com sucesso pelo treinador Elba de Pádua Lima, conhecido por Tim, ex-craque do Fluminense, compo nente da seleção brasileira que chegou em 3º lugar na Copa do Mundo de 1938. Tim usou a jogada no Bangu, com Paulo Borges, saindo da direita e entrando no facão. Depois no Fluminense de 1964, com Amoroso fazendo o papel. Mais tarde no Coritiba, quando Leocádio era o responsável pela falcoaria.

O germânico zagueiro do time adversário subiu o quanto seu preparo físico permitiu. A bola passou a milímetros de sua cabeça e

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se colocou à feição do esperto ponta-esquerda, entrando em facão. Não era muito amestrada, aquela bola. O rápido atacante sabia disso. À frente, estava o goleiro alemão, batendo as mãos, fazendo o corpo dançar como se fosse Chuck Berry ou Elvis Presley. Pela direi ta, Caiado vinha em velocidade, marcado pelo outro zagueiro.

Então o premonitório atacante fez o que Jairzinho, o Furacão da Copa, faria dez anos depois na memorável tarde em que o Brasil con quistou sua terceira Copa do Mundo. Chutou, mas seu pé não encon trou a bola. Malditos pedregulhos. Aquela inanimada circunferência de couro, que ali se mostrava muito animada, subiu para encontrar a canela mortal do atacante. E foi de canela que a bola desviou do goleiro e encontrou o rumo da trave. Bateu nela e foi descansar no fundo da rede. E ali ficou, porque o imortalizado clássico terminou naquele momento.

Milhares de vozes não só gritaram gol como tomaram o implacável atacante como um oráculo. Era um predestinado, a adiantar a história em uma década. Bem, vamos considerar as duas frases an teriores como recursos retóricos do narrador. O certo é que apenas uma pessoa não apreciou o gol heroico. Caiado, o craque, declarou que ele teria feito um gol mais bonito.

Pura inveja. Talvez por isso não tenha sido encarnado no Méxi co, como o artilheiro daquela fria manhã inesquecível teve a honra de ser incorporado por Jair Ventura Filho, o Furacão da Copa.

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ACIDENTE NA CURVA PARABÓLICA

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Atendência à velocidade é inerente ao ser humano. Corrijo: a nem todos. Dorival Caymmi foi o mais lento dos brasileiros conhecidos, o que não o desmerece. O bicho preguiça é um símbolo da fauna nacional, embora não represente o andar do brasi leiro médio.

Estabelecido o pressuposto, grassava no país, décadas passadas, a febre da velocidade. Os do sexo masculino consideravam que sua masculinidade funcionava melhor quanto maiores as rotações por minuto do carro que dirigiam. É como se a virilidade de que dispu nham viesse do acelerador. As garotas esperavam mais do que tama nha indigência hormonal.

Não se fala aqui de vocações automobilísticas, que essas nos foram muito vitoriosas. Falemos dos exibidos, os pouco dotados de talento. Esses contribuíram – e seguem sua sina – para aumentar as taxas de mortalidade de acidentes de trânsito.

No contíguo bairro ao que habitava minha família, localizava -se outro, a congregar a aristocracia local. O Jardim Los Angeles abrigava as famílias dos novos e dos velhos ricos. Suas poucas ruas traziam nomes da política norte-americana, como Abraham Lincoln e John Forster Dulles, que jamais teriam imaginado ver seus nomes nominando ruas de paisagismo inspirado nas bucólicas cidades de seu país, com asfalto perfeito e arborização abundante.

Juntemos, então, os ingredientes para o cozido perfeito. Um ado lescente de muito ímpeto e nenhuma prática implora a seu pai um reles, simples, mero carrinho de rolimã, sem imaginar o que tal simplório pedido iria incendiar na imaginação paterna.

De pronto levantou-se o homem da poltrona. Iniciou ali, na com panhia do filho, uma trajetória por madeira – comprou uma tora, que mandou passar no torno, e uma prancha de madeira de lei –, rolamentos em ferros velhos e parafusos nas lojas do ramo.

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Carpinteiro por hobby, o pai habilidoso construiu um carrinho em que, sob a frente triangular, havia um batente para o eixo não entrar por baixo da prancha. Rolamentos grandes para impulsionar melhor o bólido e eis que, ao fim da tarde de um sábado, o mecâni co-chefe liberou o jovem piloto para encarar a parabólica. Montado em sua Ferrari de rolimã e munido de um boné de jóquei, tratou de descer a John Foster Dulles sentindo na cara o vento dos intrépidos.

Em meio à ladeira, considerou estar a velocidade acima do ima ginado, mesmo momento em que lembrou que sua arataca não pos suía freios. O medo chegou tarde demais. O carrinho entrou esguale pado na curva que em nada lembrava a mítica Parabólica de Monza. Menos ainda as curvas de Indianápolis responsáveis por arrebentar o pé de Nelson Piquet.

Mas a um intimorato piloto, o perigo é que o move. Com a inclina ção da curva ao contrário do que reza a lógica, problema detectado apenas depois que o carrinho já estava derrapando sem controle, o piloto – que seja – foi jogado para o asfalto, enquanto seu bólido se enfiava nas trincheiras de barro que cercavam a pista. (Nota do editor: a confluência das Ruas John Foster Dulles e Abraham Lincoln é formada por uma curva fechada, em descida, não sendo uma pista. Cem metros depois da curva encontra-se a residência da família Boesel, cujo componente de maior popularidade, o ex-piloto, campeão mundial de carros de tu rismo, Raul Boesel, muitas vezes completou a curva em alta velocidade, sem nunca ter sido jogado às trincheiras de barro).

Resgatado o veículo, restou ao ex-futuro Senna de bairro voltar para casa. Um exame solitário no banheiro detectou canelas e coxas com escoriações graves, pretas de asfalto, três dedos da mão direita inu tilizáveis, o que não fazia diferença para um sujeito esquerdofrênico, um joelho do tamanho de três mamões, o outro parecendo dois abacates.

Seguiria desastrado pela vida, descartadas todas as demais opções.

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O ZÍPER

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Deu-se que naquele carnaval Hermann e o amigo Magno, Deus o tenha, também conhecido como Válber, combinaram de viajar a Guarapari com as respectivas namoradas. Acampamento à beira-mar, nada mais telúrico e relaxante do que os pés nas areias monazíticas, banhos de mar e muito, digamos, aconchego acasalante.

O ônibus os deixou em uma praia deserta. Válber era proprietário de antiga barraca do glorioso Exército Nacional, rudimentar a ponto de não ter fundo, com seus ocupantes a dormir sobre a areia. Também não havia estacas necessárias para fixar a lona. Ao manusear a faca para des bastar alguns galhos que fizessem o papel de espeques, Hermann tratou de acertar a própria mão, ficando fora de combate.

O expedito parceiro resolveu a parada com o apoio de alguns aventureiros de plantão. Em minutos, as meninas já esticavam os len çóis no, digamos assim, saguão da barraca, dividido em dois ninhos pelo mastro central – palavra que aqui não deveria ser usada, em vista do ocorrido a seguir.

Magno era também o nome da loja em que a namorada do ferido Hermann havia comprado para ele uma refinada bermuda, última moda da Zona Sul carioca.

– Experimente a bermuda, sugeriu a moça com voz carinhosa.

Hermann, usando sua intrépida mão esquerda, tentou entrar na peça. Impossível, suas dimensões não combinavam com o usuário.

– Tire a cueca, exigiu – já com o tom de voz uns decibéis acima.

Levando ao extremo sua submissão, o namorado fez o que dele se esperava. Envergou a bermuda e tratou de completar a tarefa pu xando o zíper, até urrar em desespero. O mecanismo amaldiçoado, sem respeitar as protuberâncias masculinas, investiu sobre seu instrumento de trabalho. A laceração foi significativa e dolorosa.

Outra vez ferida, a vítima clamou pelo auxílio do amigo, então exercendo seus direitos libidinosos nas plácidas águas de Guarapari.

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Instado a comparecer ao, se me entendem, hospital de campa nha, abriu a aba da barraca e deparou-se com a cena tétrica. Depois de se dobrar de rir, passou a gritar como um general na invasão da Normandia, com deslavada ironia e alto o bastante para que todos os circunstantes pudessem ouvir:

– Dou-me por impedido em ajudar, por se tratar de local inóspito e desagradável. Cabe à jovem prejudicada escolher entre a bermuda que traz meu sacro nome como insígnia ou o inútil ‘‘mastro’’ do seu namorado.

Ela optou por descosturar o zíper e resolveu a questão, ainda que tenham restado cicatrizes indeléveis. Enquanto as escolas de samba desfilaram nas avenidas, Hermann passou aqueles dias com o porta-estandarte recolhido, vivendo a realidade monástica de quem foi supliciado na parte mais sensível da sua anatomia.

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CAMPEÃO DE VÔLEI COM LICOR

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Desencavo a história porque os fatos se deram há mais de 50 anos. Eventuais vergonhas já estão cicatrizadas, o que me credencia à indiscrição.

Estávamos em Itajuba, praia entre Barra Velha e Piçarras, em Santa Catarina, estância em que minha família veraneava. Era um daqueles verões verdadeiros, com sol e pancadas de chuva no fim do dia. Não havia baladas, que naquele tempo era coisa desconhecida. Todo mundo ia à praia pela manhã. À tarde, quem era jovem passe ava pelas areias, aventurava-se subindo nas pedras, cruzava o rio em direção à praia do Grant. Ali só existia, no morro que dá acesso à praia, o velho Hotel Grant, por isso mesmo nome da prainha. Cons truído por um inglês, décadas antes, já estava em decadência naquele janeiro de 1966.

Foi quando descobrimos uma turma do Sesc Paraná que ali pas sava férias. Não lembro quem nos aproximou dos comerciários, acho que minha prima. Eles estavam organizando um campeonato de vôlei e fomos encaixados em um dos times.

Um dos sesquianos, eu conhecia de vista, talvez do Colégio Estadual. Os demais ficaram amigos a partir do primeiro jogo. Em times mistos, o nosso sobressaia-se por alguma razão. Minha memória se letiva considera que o saque de canhota que aprimorei (sacava-se por baixo, o craque Renan ainda não tinha inventado o saque viagem), capaz de fazer a bola sair girando, era arma mortal. Como a veracida de da informação não poderá ser comprovada, fica meu dito pelo não acreditado.

Ao fim daquela semana de jogos, chegamos à final. Era decisão capaz de disparar corações, fazer aquela imensa plateia de Mara canãzinho, composta por uma dezena de esposas, maridos e filhos de comerciários suar de nervosismo.

Eis que vencemos a parada, por algum placar que o tempo já escondeu. Veio então a comemoração do título. Naquela noite, no

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salão de festas do hotel, houve a cerimônia de despedida da caravana do Sesc. Como ponto alto, a entrega de faixas aos campeões.

Com muito orgulho, enverguei minha primeira faixa de campeão de vôlei. Era de papel higiênico, pintado com batom vermelho, com os solenes dizeres: Campeão de Vôlei – Colônia de Férias do Sesc PR 1966.

Foi a última temporada dos comerciários em hotel alugado. No fim daquele ano, o governador Paulo Pimentel desceu serra em dire ção ao litoral do Paraná para inaugurar a Colônia de Férias do Sesc em Caiobá.

Minha carreira terminou no Hotel do Grant. A faixa ficou en rolada no quarto que habitei naquelas férias, até passar de troféu a consolo de emergência.

Ao exagerar no consumo de chocolate com recheio de licor, fui vítima de uma violenta dor de barriga em certa madrugada. O banheiro estava carente de papel higiênico e não me restou outra opção.

Ainda hoje vejo aqueles dizeres heroicos viajando em direção às profundezas. A última palavra desaparecendo – oãepmaC – jamais sairá desta desgastada memória. Nem dos meus intestinos.

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EXPULSÃO INSTANTÂNEA

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Nos tempos acadêmicos, fui inscrito no time de futebol da Faculdade de Direito da UFPR para os Jogos dos Calouros. Iríamos estrear contra Educação Física, no estádio do Palestra Itália, no Tarumã. O árbitro era também professor do Colégio Esta dual, o Pinheiro. Já me conhecia, conversávamos sempre durante as aulas de ginástica.

Fiquei no banco até o início do segundo tempo, quando me man daram entrar. Escanteio para os físicos. O líder do time era Munir Calluf, coxa-branca, empresário, já passado dos 30 anos, que havia sido responsável por revelar diversos craques no extinto Britânia.

Munir era um gentleman, mas dentro de campo, um chato. An tes do escanteio ser cobrado já estava puxando minha camisa, segurando meu braço. Dei um safanão na primeira vez, mas ele continuou a me agarrar. Então fiz aquilo que julguei ser o correto, talvez em tom muito mais alto que o recomendável:

– Vai t**** no c*, Munir!

Priiiiiiiiii, apitou o Pinheiro.

– Expulso, está expulso!

Xinguei também o árbitro, fui expulso mais uma vez. Estava saindo de campo quando olhei para trás. Os jogadores dos dois times estavam cercando o juiz, Munir à frente:

– Não faz isso, Pinheiro. Ele é inexperiente, deixa o rapaz jogar. Pinheiro achou os pedidos razoáveis. Apitou de novo e me man dou voltar.

Não adiantou nada, perdemos de 3 x 0. Mas fiquei amigo do Munir Calluf até ele morrer. Do Pinheiro, só lembro que apitou jogos do Campeonato Paranaense. Nenhum dos dois deve ter vivido outro episódio como aquele.

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PRIMEIRO LUGAR EM TERRA, MAR E AR

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Opersonagem inaudito não mente ao se declarar campeão de terra, mar e ar. Porém, exime-se de cantar as próprias glórias, com o que me obrigo a descrevê-las. O tema é o internacional truco, esporte que atravessou os mares do Atlântico para se firmar na América do Sul. Nosso herói não só venceu todos os desafios que enfrentou na mesa sagrada como fundou uma academia destinada a promovê-lo – em que ocupa a presidência honorária – e, hiperativo como um suricato, como escreveu um livro contando a história deste jogo de profundas exigências da mente. A começar pela mentira.

Sobre a madeira em que se distribuem as cartas, revelou-se exí mio praticante, vencendo dez títulos, sendo vice-campeão em oito torneios, chegando ainda outras 12 vezes em terceiro lugar. Foi campeão da temporada de 1990, atuando ao lado do lendário Francisco Faraj, hoje aposentado das mesas.

Vamos ao mar. Ao fim do distante ano de 1996, tempos de vacas gordas nos pastos do Plano Cruzado, o atleta embarca, com sua família e seus truques, em um transatlântico para viagem a Buenos Aires. A descida do oceano, passando pelos sorrateiros litorais do sul brasileiro exige dos recreadores de bordo toda a inventividade.

Eis que promovem em certo dia de muito sacolejo, dois torneios de truco. Um brasileiro, outro argentino. Apresenta-se um jogador paulista para compor dupla com o notável protagonista de quem sou escrevente, na competição nacional.

Vencidas em sequência quatro partidas de inimagináveis dificul dades, a dupla sagrou-se campeã brasileira, recebendo um cinzeiro de prata como símbolo da conquista naquelas águas em que cavalgavam mais que navegavam. Houve a seguir tentativas de se organizar uma final Brasil x Argentina, considerada impossível ao fim das negociações. Nenhuma das duas duplas campeãs aceitou jogar com as regras e o baralho adversário (NE: na final da Copa do Mundo de 1930, no Uruguai, cujas águas o navio dos truqueiros então enfrentava, uru-

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guaios e argentinos quiseram, cada qual, impor o uso de sua própria bola. Ao árbitro coube decidir, elevado à condição de Salomão. Optou por usar uma a cada tempo, artifício aceito pelas duas equipes. No truco a artimanha revelou-se inviável).

Anos mais tarde, exercendo a presidência do Paraná Clube, fazia-se presente em jogos do seu time em todo o país. Em muitas delas, viajando em um pequeno avião de oito lugares, com as poltronas colocadas frente à frente, duas a duas, tendo uma mesinha a se abrir entre elas.

O próprio personagem, em depoimento exclusivo, assim definiu sua aérea conquista:

“Era viagem ao interior do Paraná, com os oito passageiros divididos em quatro duplas. Tendo como parceiro o atual vice-gover nador do Paraná, Darci Piana, vencemos o primeiro turno ao che garmos a Francisco Beltrão. Na volta, jogamos a segunda fase do torneio. De novo vencemos as duas primeiras partidas. No momento em que o comandante avisou ter sido autorizado pouso no Aeropor to Afonso Pena, Piana trucou. O adversário, o experiente jogador Luiz Carlos Marinoni, presidente do Conselho Deliberativo do clube, pensou alguns minutos, suficientes para o avião pousar e taxiar. Ele blefou ao gritar “seis”. Lembro que as portas estavam sendo abertas quando saímos comemorando pela pista, quase atropelados por um Boeing 737 da TAM que decolava naquele momento”.

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O p ú lpi t o

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Deu-se que para a nova sede da Academia Paranaense de Letras, no Belvedere da Praça João Cândido, havia a necessidade de uma tribuna, a permitir que os nossos palestrantes se coloquem em posição digna para seus pronunciamentos.

Ao procurar na internet encontrei uma empresa de móveis especializada em púlpitos, localizada em algum lugar no interior. O site já trazia os campos a serem preenchidos por quem desejasse o exigido orçamento, com denominação da solicitante e nome e telefone do responsável.

Um dia depois recebo a ligação de um vendedor:

– Pastor Ernani?

– Pois não.

– Estou aqui com seu pedido de orçamento. O senhor escolheu o modelo 532, a ser entregue em Curitiba.

– Perfeito.

– Permita-me a pergunta, pastor: qual o tamanho do seu rebanho?

– Somos em 40, o local não comporta mais.

– Entendi, uma comunidade pequena. Igreja nova, decerto.

– Nem tanto, já temos mais de 80 anos.

– Não importa. Pastor, temos o modelo 685 que me parece mais apropriado para seu tabernáculo. Custa um pouco mais caro, porém é de madeira maciça e permite afixar alguma mensagem incrustada na madeira.

– De que tipo?

– Jesus salva, Deus é meu pastor, Esperança é tudo, Perseverar é preciso. Ou mesmo um dístico, com algum símbolo como coração vermelho, cruz em perspectiva. Fica muito bonito.

Agradeci o interesse do vendedor. Não me dei ao trabalho de explicar que a nossa bíblia são os livros e que as orações nas academias de letras são as que compõem o vernáculo.

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Notei que ele se mostrou muito interessado, até garantiu que quando estiver em Curitiba fará questão de visitar o nosso templo. Estou aguardando. Já preparei uma homilia sobre O Inferno, de Dante, para o que irei convidar Dante Mendonça e apresentá-lo como autor da obra. Ou o simpático vendedor ficará impressionado ou vai me mandar para os quintos dos infernos.

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FUTEBOL INSENSATO

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Acontecia aos sábados, no campo de futebol do Asilo Nossa Senhora da Luz. O asilo, curitibano como um pinheiro, abrigava a maior população de alienados da cidade. A alienação não era de sentido político: de caráter médico era composta. Nem todos os doidos estavam lá, é claro, porque na Rua XV sempre foi possível cruzar, em qualquer dia da semana, com um exército de malucos a fazer inveja ao Simão Bacamarte de Machado de Assis, incluindo en carnações de Jesus, Raul Seixas e outras preciosidades.

Aos sábados, dizia este narrador, o diretor do hospício convida va os amigos, todos estranhos ao ninho (NE: nem todos), e convoca va os internos para um clássico Atletiba. Todos os sábados, a partida era a mesma, pela simples razão (NE: é incrível o narrador considerar haver ali alguma razão) de que o asilo possuía apenas dois jogos de camisa. Um rubro-negro, outro alviverde.

Por afeição do diretor os titulares vestiam o uniforme próprio do time da Baixada, todos guapos rapazes de bom físico, escolhidos com entusiasmo pelo dono do jogo, depois de analisar o aquecimento de cada um, de olho na musculatura das coxas, na consistência das panturrilhas, no peito proeminente. Do outro lado, a maluquice em peso, às vezes reforçada por um convidado sem biótipo atlético, um servidor do hospital ou um curioso da região.

O ditador do jogo escalava então os times, fazia a preleção de praxe e ia cuidar de seus protetores musculares, que era homem precavido. Enfaixava as canelas, acrescentava tornozeleiras, joelheiras, coxeiras em ambos os gambitos. Na cabeça, uma faixa estilo Sócrates. Na mão, enrolava o apito. Claro, apito, visto que era técnico, capitão rubro-negro, atleta e árbitro. Tudo junto e misturado ao mesmo tempo.

Nosso venturoso craque realizou uma única incursão ao alienante palco. O supremo doutor o olhou de canto de olho, como que vislumbrando um interno disfarçado, não a pérola que tinha à dispo sição. Foi escalado na lateral esquerda coxa-branca.

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Ao narrador coube ficar atrás de um dos gols, de onde pôde apreciar as virtudes do goleiro Batatinha, legítimo sucessor de Hamilton, Jairo e Wilson. Embora de corpo semelhante ao tubérculo, sua principal virtude estava em atirar-se, sucessivamente para os dois cantos da meta. Não parava de pular, para lá, para cá, mesmo quando o seu time estava atacando.

O capitão do time, o Sola, sofria do Mal de Tourette, síndrome caracterizada por toques de mão nos interlocutores, tiques nervosos e verbais. O apelido não vinha do hábito de solar os adversários, era abreviação de solavanco, tantos eram os movimentos que seu corpo determinava. (NE: Gilles de La Tourette, descobridor da doença, dá nome ao problema). O capitão Sola, sem estar interessado no nome do médico francês, costumava abordar o árbitro-capitão adversário -dono do campo e do jogo puxando o ombro ou cutucando seu peito. Levava uns repelões e era punido com falta.

O ponta-esquerda do Alto da Glória, a quem cabia tabelar com o lateral, chamava-se Pirrê, suponho que com esta grafia. Não consegui entender a razão pela qual, ao tocar na bola, alguém gritava Pirrê, rê, rê, rê. Então todos riam muito. Batatinha rolava de tanto gargalhar.

O diretor ameaçava. “Cuidado com essas brincadeiras, olha a carga!”

A carga, supus, era a carga elétrica. Ele falava rindo, uma risada estranha, quase um esgar, e não estava ali para permitir riscos ao craque. Lembrava bem do olhar dissimulado na hora de entregar as camisas. Saímos enquanto era tempo.

Não sabemos se o todo poderoso diretor seguiu os passos do per sonagem machadiano, tomando a iniciativa de se internar no próprio manicômio. Se assim fez, Batatinha, Sola e Pirrê devem ter acertado as contas com ele.

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DOIS CAVALOS NO TABULEIRO DA VIDA

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Dia 18 de agosto de 2019, domingo, três dias depois do meu aniversário. A quinta edição do Torneio Internacional de Xadrez no Hotel Sesc Caiobá estava terminando, pouco antes das 18h. Eu vinha monitorando o clima, sabia que teríamos chuva. Pen sei em dormir no hotel, como alguns mestres iriam fazer, mas cedi à tentação de voltar para casa.

Como diretor do torneio, me certifiquei de que tudo estava resol vido. Cerimônia de premiação, pagamentos aos vencedores, checkout dos jogadores. Então o Grande Mestre José Fernando Cubas, do Para guai, me disse estar procurando carona até a Rodoviária de Curitiba: iria para Joaçaba, onde vivia. Pois, se não se importasse, que fosse comigo a bordo do valente peão negro que me transporta, um Fiat Cinquecento.

Viemos conversando sobre a coincidência de sobrenome, porque meu pai era Cubas e só não tenho o sobrenome por implicância da minha mãe, que exigiu o Lopes de sua família.

Escureceu e começou a chover. Movimento intenso na BR-277. Além do excesso de caminhões, muita gente que havia aproveitado o bom tempo do fim de semana estava voltando para casa.

Quase chegando ao trevo de Morretes, vi com o canto do olho um cavalo no acostamento da direita. No mesmo instante, batemos em algo grande. Em seguida acertamos mais alguma coisa. O para -brisa estilhaçou, tudo ficou escuro. Cubas gritou:

– Caballo, caballo!

Não consegui abrir a porta, o carro havia batido no guard-rail da esquerda. Saí pelo lado do acompanhante. Cubas sacudia meus ombros:

– Ernani, estamos revividos! Sobrevivimos, Dios mio!

Só depois disso é que soubemos o que havia acontecido. Uns cavaleiros voltavam de uma cavalgada no litoral. Dois cavalos vi nham amarrados ao líder – aquele que enxerguei com rabo de olho.

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A chuva, a ventania gerada pela passagem dos caminhões, a luz re verberando no asfalto molhado assustaram os cavalos de trás, que invadiram a pista. O maior deles foi o primeiro a ser atingido. Sua cabeça bateu no alto da capota, abrindo um buraco sobre o espelho central. O outro cavalo, menor, subiu pelo capô e caiu sem entrar no interior do carro.

Dois cavalos mortos, um susto enorme, um carro semi-inutili zado, nós com algumas escoriações. Levou algumas horas para que pudéssemos deixar a cena do acidente. No caminhão-guincho que nos trouxe e ao que sobrou do carro, em meio a um infernal nevoeiro na serra, conversamos sobre a ironia daquele acidente:

– Cubas, veja você. O peão preto subia o tabuleiro em h6, quando vê um cavalo em g7. Elimina o adversário e aparece outro cavalo a ser tomado em h8. Isso só poderia acontecer com enxadristas.

O GM pensou um pouco antes de responder:

– Es algo raro, Ernani. Pero, lós dos caballos no sabían jugar ajedrez! En esas posiciones, seguro que no!

Tempos depois, alguém me disse que, por óbvio, os cavalos seriam brancos. Então fui obrigado a confessar: o único problema com esta história tão interessante, quase tragédia para nós e lamentável sentença de morte aos cavalos, é que eles eram pardos. Gateados, como se diz, em referência aos gatos, que à noite são todos pardos.

Na noite de domingo, 18 de agosto de 2019. Três dias depois do meu aniversário. Jamais vou esquecer aquela partida.

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TÍTULO OLÍMPICO

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Eis que somos comunicados: em setembro haverá nossa 1ª Olimpíada. Já mais velho, jogando em categorias quase adultas, fui convidado pelo locutor Willy Castelanetta para comentar o jogo final no Estádio da Capela. Era a dupla Willy&Hermannn galvanizando a audiência, com a nossa arataca instalada sobre o gol da lanchonete.

Lembro que o time dos outros era formado pelos outros. João Saldanha dizia que ao comentarista era necessário prestar atenção no time da sua cidade, do seu país. Os adversários eram passíveis de ser tratados por número 5, beque grandão, atacante mirradinho. Os narradores também tinham, em tempos pré-televisivos, seus truques. Decoravam o nome de sete ou oito adversários, com o goleiro em destaque. E assim corria o jogo.

Ali o nosso time tinha um zagueiro grosso, de dar chutão, Edson; um meio campo diferenciado, com Gama e Chevalier. E um ataque envolvente, com Caiado, Bertoncello e o canhoto camisa 11. Eram os destaques.

Público digno de final olímpica, lotadas as galerias. Jogo difícil, empate em zero, indicando pênaltis. Então César da Gama lançou Caiado na direita. O craque driblou um zagueiro e meteu um chute cruzado, com efeito, quase da linha de fundo. O goleiro esticou-se: escanteio.

Chevalier bate alto por sobre a zaga, o goleiro sai em falso. A bola passa por todo mundo. Não, o ponta-esquerda mete a cabeça na bola e corre para os abraços. Era o gol do título, façanha que nenhum outro jogador brasileiro iria marcar nas 15 Olimpíadas realizadas depois.

Em meus comentários finais, fiz questão de exaltar o time todo. Mas destaquei o ponta-esquerda pelo oportunismo, aproveitando a única chance real de gol durante todo o jogo.

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Tudo festa? Nem tanto. Na reapresentação – mais tarde me con taram – o treinador, exalando o odor almiscarado oriundo de sua sebosa batina, elogiou os de sempre. Ao ponta-esquerda, nem uma palavra. Villa, reserva do time, perguntou:

– E o autor do gol, professor?

– Não fez diferença. Aquela bola iria entrar de qualquer maneira. A perversidade da vida nos obriga a engolir, sem nunca aceitar, certos fatos. Assim como minha carreira de comentarista, e a de au xiliar de escritório, e a de profissional de vendas nunca decolaram, também a carreira do esperto ponta-esquerda caminhou em direção ao ostracismo. Uma lástima. Não tinha grande habilidade com a bola, mas sabia se expressar, em campo e com as palavras. Não faria feio como aquele outro ponta-esquerda, que ao ser premiado com um rádio por ter sido o melhor em campo, agradeceu ao repórter:

– Isso é modéstia à parte do senhor.

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NO TEMPO EM QUE NÃO FUI

JORDAN

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MICHAEL

Muitos anos antes de escrever O Homem com Dois Lados Esquerdos fui, por supuesto, um rapaz com dois lados esquerdos. Apaixonado por esportes, imaginei que pudesse praticar al gum com relativo sucesso. Se as pernas não repetiam os comandos do cérebro, quem sabe os braços, por estarem mais perto da cabeça, pudessem fazê-lo.

Assim é que fui treinar basquete no ginásio do Sesc, hoje Sesc Centro, entre ruas José Loureiro e Pedro Ivo. Tínhamos uns 15 anos, estudantes do Colégio Estadual, Santa Maria, Bom Jesus. A entrada era franqueada mesmo a quem não tinha ligação familiar com o co mércio.

O responsável era Renato Werneck, o Camundongo, professor de Educação Física, ex-jogador, mesmo com a altura imprópria para a atividade. O Camundongo gostou dos meus primeiros treinos, como ala que marcava com alguma eficiência.

Então vieram as férias e fui passar os 30 dias regulamentares em Santa Catarina. A cidade de Joinville recebia os Jogos Abertos do estado, evento que mobilizava toda a população. No Ginásio de Esportes, cada noite era uma emoção diferente, com jogos de vôlei, futebol de salão e basquete.

Foi em uma daquelas decisões memoráveis, entre Joinville e Blu menau ou Florianópolis, que vi um jogador de basquete de Joinville fazer marcação individual sobre um adversário, o craque do time de Blumenau. Eu não tinha sido, até então, apresentado à marcação individual. Aquilo me pareceu o futuro do basquete, algo digno dos Globe Trotters, trupe de ex-jogadores norte-americanos que divertia o mundo fazendo um misto de jogo e circo nos ginásios em que se apresentava. Bem, a gente nem sabia o que era NBA, desculpem aí.

Na volta das férias, apresentei-me ao treinador, trazendo na mente a arma secreta. Começa o treino e comecei a marcar individu almente o ala do time reserva. Camundongo viu e apitou:

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– Pode me explicar o que é isso?

– Marcação individual, assim eu anulo o cara.

Com a pouca paciência que tinha, ele quis saber de onde eu tinha tirado aquilo. Didático como nunca fui, expliquei que tinha sido da quela maneira que Joinville tinha vencido os Jogos Abertos.

– Fique sabendo que sou técnico do Sesc, não de Joinville. Você está fazendo marcação individual sobre o pior jogador do outro time, não sobre o melhor. Quem sai perdendo somos nós. Vá descansar um pouco para ver se consegue enxergar o jogo.

Abandonei o basquete no Sesc uns tempos mais tarde, sem nunca ter jogado uma partida oficial, o que só aconteceu na faculdade, em uma partida no ginásio da Sociedade Thalia, contra Educação Física, pelos Jogos dos Calouros. Perdemos de 65 x 12.

Entrei na metade do primeiro tempo, fiz três faltas seguidas e depois puxei um adversário. Saí desclassificado. O pior é que esqueci no vestiário o par de tênis que me tinha sido emprestado pelo futuro médico Mário Alice. Quando paguei o valor de uns tênis novos ao irredutível dono do par furtado, encerrei minha meteórica passagem pelo basquete.

Minhas estatísticas não mentem: dois pontos, uma marcação individual fajuta, uma desclassificação por falta técnica, um par de tênis perdido. Resultado: zero à esquerda. Com dois braços, ambos esquerdos. Ou, em castelhano, zurdos. Em italiano, sinistros. Faz sentido.

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Eu e a água

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Há pessoas que nascem peixes, movimentam-se pelas águas mais assustadoras, mergulham em mares tenebrosos e voltam à tona como se tivessem guelras e rabos de sereia. Invejo esse tipo, posto que me ponho a salvo de qualquer água que não as de torneira e de copo. As grandes águas causam-me terror.

Entre as primeiras deficiências com que fui agraciado está a pul monar. O futuro Hermann foi criança de peito a chiar, impossibilitado de dormir durante todos os invernos. Cachecóis, xaropes, cobertores e poções de todas as procedências foram tentadas. Nada foi capaz de aplacar a chiadeira, a não ser o clima curitibano. A diferença entre a umidade climático-pantanosa de Joinville e a umidade inverno-tiri tante curitibana fez desaparecer os males pulmonares.

Senti saudade de alguns dos elixires com que fui tratado, entre os quais não posso deixar de citar o vinho Reconstituinte Silva Araújo, o conhaque de São João da Barra, os vinhos com mentruz e o vinho do Porto, este servido em mínimas porções, para não desfalcar nossa esquálida adega. Em contrapartida, sofri com a execrável Emulsão de Scott.

Nenhuma saudade me dá as aulas de natação a que fui obrigado a frequentar. Disponível, apenas a piscina do Tênis Clube, de águas gélidas naqueles invernos pré-históricos, anteriores aos dos trajes de natação com proteção térmica. Entrar na piscina significava nadar em uma câmara frigorífica capaz de conservar mamutes. Câimbras eram a menor das consequências.

Depois veio o mar. Para todo capiau aquela água azul, cintilando ao sol, parecia ser o paraíso. Não para quem sempre foi vítima da intrepidez. Lançou-se às águas traiçoeiras do mar de Itajuba sem aguardar a presença paterna, salvando-se pela habilidade aquática de um transeunte.

As traumáticas experiências fizeram com que este escriba pas sasse a manter distância da superfície aquática. Cataratas como as

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do Iguaçu ou Niagara são belíssimas de longe, avistadas de algum mirante. Os mares só devem ser navegados na segurança das cabines dos navios. Pescarias – delas nada sei.

No início fiz referência a certa simpatia por água de torneiras e de copos. A justificativa sobre a primeira é óbvia. Sem água corrente a humanidade não teria se mantido.

Já sobre os copos, não tenho dúvidas sobre os benefícios dos líquidos que comportam. Ainda que não tenham concorrido para manter azeitadas essas já velhas coronárias, mostraram-se fundamen tais para garantir a assiduidade de Hermann Sheffield aos botecos e às mesas dionisíacas desta vida tão fugidia.

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REPÓRTER QUASE ESTRAGA A COMPETIÇÃO

Publicação do jornal O Paraná Esportivo

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Realizada no sábado a rodada do torneio de Futsal Inter -Torcedores, no Ginásio do Atlético. Os líderes protagonizaram um Atletiba de explodir corações, graças à má atuação do árbitro, o repórter EB. Porém, este jornal não compactua com even tuais sensacionalismos de quem esteja disposto a jogar na lama o nome do radialista. Com o ginásio do Atlético repleto de atleticanos (a torcida coxa-branca era diminuta, comandada pelo diretor Edson Fink), os dois times tiveram a seguinte formação:

Atlético: Evaldo Anta, Beto Beltrami, João Maranhão, Oresti nho e Madureira. Entraram Murilo e Nego Vavá. Coritiba: Carlão Aichinger, Flávio, Beto Ribas, Dudu Fortuna e Nico. Entraram Jarbas e Jefferson.

Com gols de Madureira e Nico, o primeiro tempo terminou em 1 x 1. A partida se encaminhava para o fim quando, faltando 30 se gundos no cronômetro, o árbitro-repórter apitou falta do fixo Beto Beltrami no pivô Nico. A infração foi duvidosa.

As reclamações puderam ser ouvidas até na residência do jornalista Luiz Alfredo Malucelli, do outro lado da Rua Buenos Aires, conforme relato do seu filho Aldo, que engrossava a torcida coxa-branca principal mente por conta da exaltação do diretor de futebol do Atlético, Mingo Beltrami, pai do zagueiro atleticano. O árbitro confirmou a marcação, que resultou em gol marcado pelo ala Dudu Fortuna.

Já com o cronômetro na casa dos 10 segundos, o repórter-asso prador assinala falta sobre o pivô Orestinho, também filho do diretor de futebol do Atlético. Falta inexistente, diga-se.

Houve revolta coxa-branca, com xingamentos que este jornal não se permite reproduzir como forma de evitar a censura que por certo viria de parte das autoridades da Delegacia da Moral e Bons Costumes.

Na cobrança da falta, Orestinho mandou um balaço para o gol, dando cifras finais ao clássico. Cabe reconhecer que, se não fosse o im provisado árbitro o Atletiba teria tido um enfadonho segundo tempo”.

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O MOTEL DA AVOZINHA

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No tempo em que Foz do Iguaçu era uma pequena cida de de pouco mais de 30 mil habitantes, na antevéspera da construção da Usina de Itaipu, todos aguardavam os milhares de operários que iriam chegar, embora ninguém pudesse prever a cidade aprazível que ela iria se tornar décadas depois.

À exceção do Hotel das Cataratas, desde sempre inatingível para as pessoas comuns, os hotéis ficavam na Avenida Brasil e em seu en torno. Eram construções em madeira, a abrigar tanto turistas como caixeiros viajantes e profissionais transferidos para a fronteira, como juízes, promotores, militares ou funcionários do Banco do Brasil e da Caixa Econômica.

O comércio no Paraguai já era a maior atração da região. Enquanto para chegar até Puerto Iguazu era necessária a travessia do Rio Iguaçu por balsa, a Ponte da Amizade unia com facilidade Foz do Iguaçu a Puerto Stroessner, como era então chamada a atual Ciudad del Este.

Certa noite atravessamos a fronteira para um bife de chorizo e uma morcilla capazes de despertar nos comensais incríveis sensações organolépticas – como asseguraram alguns habituês da casa.

Era uma casa simples, nas quebradas da cidade, nada sugerindo ser possível sair dali o tal deleite das papilas gustativas. Mais im pressionado fiquei com o anúncio luminoso da casa ao lado, naquele pisca-piscar do neon a clamar pela chegada dos clientes, desde logo apregoando quem era a responsável pelo negócio: Motel de mi Abuela.

Fiquei a imaginar uma de minhas avós, Anita ou Chiquinha, com os vestidos cinza-escuro que costumavam usar para cobrir braços, colo e as pernas até as canelas, recebendo casais interessados em ou tros prazeres da carne que não os oferecidos pelo vizinho restaurante: “Don Raúl, tengo para usted una chica muy linda que llegó ayer de Buenos Aires”, diria uma das minhas avós a um fazendeiro paraguaio adepto das artes mercenárias da noite.

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Concluo que não seria possível, o que não me impede de con jecturar sobre as feições daquela abuela tão ousada. Não pode ser muito jovem, visto que o nome do estabelecimento deve ser sido su gerido por um neto – ou neta. A mulher deve ter cruzado a linha dos 60 anos, o que não elimina sua capacidade de sedução a eventuais clientes.

Minha parceira pergunta a razão do hipotético fazendeiro rece bido pela vovó chamar-se Don Raúl – o que me levou a contar que, anos antes, em uma tarde de sábado de verão, estávamos eu e a en tão namorada em um motel perto do Aeroporto Afonso Pena. Cada apartamento tinha uma janela basculante que dava para um pequeno jardim de inverno, permitindo o trânsito dos sons caso a janelinha estivesse aberta. Por ali começaram a vazar os gritos de uma mulher, cada vez mais intensos:

– Vai, Raul. Dá-lhe, Raul. Ai, ai, Raul.

A narração dominou de tal forma o ambiente que resolvemos engrossar o caldo.

– Estou torcendo por você, Raul – berrou a minha namorada pela basculante.

– Vai firme, Raulzão – completei, já exibindo alguma intimidade. Raul seguiu em sua vigorosa função por mais alguns minutos, até cumprir a tarefa, conforme a locução nos deu a entender. Não pu demos deixar de aplaudir a performance. Se bem me lembro, cheguei ao exagero de dizer que ele era meu ídolo.

Então houve alguns segundos de silêncio. Voltamos para a cama, quando escutamos a voz da mulher, anunciando da janela vizinha:

– Raul é f***, sacaram?

Foi sobre isso o que conversamos aquela noite em Puerto Stroessner em que a avó de alguém recebia casais ávidos por um desempenho digno do velho Raul. Talvez ele mesmo, já maduro, transformado em Don Raúl, pero siempre cumplidor.

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SINUCA, POR QUE ME PUSE A JUGAR*

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Durante alguns meses fui hóspede de um hotel, pequeno e simplório, na Rua do Passeio, em Recife. Ali tanto se hospedavam viajantes profissionais como moravam aposentados sem parentes ou futuro. Um deles tinha como sobrenome Werneck, era carioca e primo do Carlos (Frederico Werneck de) Lacerda. Havia morado em Curitiba no tempo do primeiro governo Ney Braga. O velho Werneck havia sido coautor do plano de desenvolvimento do estado montado pela Codepar, brochura que minha mãe teve a paci ência de apanhar na sede da companhia e enviar a meu pedido para o hotelzinho.

Meus dias de férias na faculdade passavam sem muito a fazer, a não ser procurar uns livros aqui e ali, além de perambular pelo centro da cidade. Às vezes ia ao banco sacar o dinheiro que meu avô manda va, suficiente para aquela vida sem compromisso.

Na praça em que a Rua da Imperatriz se transforma em Manoel Borba havia um salão de sinuca. A partir do meio da tarde, come çavam a chegar os bambas. Tinha um magrinho, Jarbas, que fazia frente aos mais velhos. Esperavam até que chegassem os otários.

Um otário se sobressai pela credulidade, como o leitor está far to de saber. Otários caem em golpes de bilhete premiado, enviam dinheiro para malandros que se fazem passar por parentes necessita dos, compram terras inexistentes, acreditam em amores vãos. E gos tam de apostar.

Jarbas perdia uma, ganhava outra. Desafiava os veteranos, sem que os otários desconfiassem que todos eram sócios na mesma empreitada.

A noite nordestina chega cedo, o que permite que os trabalhos etílicos sejam antecipados. Assim, à medida que a cerveja ia sendo consumida, mais fácil se tornava o ato de enfiar a mão no bolso e puxar o dinheiro da aposta.

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O craque do taco passou a alinhar vitórias seguidas. Jarbas já estava dando a bola vermelha de vantagem – desafiado por um gaiato da plateia, deu também a 2 e a 3 de frente e levou fácil.

Então um velhinho encarquilhado, que sentava sobre uma caixa de cerveja, disse que gostaria de tentar. Experimentou alguns tacos, passou giz de um jeito meio desajeitado e se declarou pronto. O pe queno ancião embocou algumas, errou outras, mas não deu vexame. Perdeu e pediu outra chance. Antes foi ao angariador e apostou con tra todas as probabilidades.

O bolo de dinheiro aumentou. O arrecadador gritou que as apostas iriam até a bola 5. Os otários já esfregavam as mãos, quan do o estudante de Direito, eu mesmo, até então virgem na jogatina, resolvi fazer minha fezinha. Não havia como perder. Tirei duas notas novinhas que havia sacado e apostei no magro Jarbas, fenômeno do pano verde.

Segundos depois, o velhinho desencarquilhou-se – um milagre. Agora estava ali um jogador de alto nível, a encaçapar o que aparecia até levar a partida. Pasmo geral, os otários não acreditavam na cena.

O arrecadador berrou:

– Antônio Carpina, campeão do agreste em 1938, venceu o jogo. Tirando a percentagem da banca, ficou com o produto das apostas.

Os patos foram saindo. Encabeçando a fila, tentando saber como iria sobreviver sem aquelas duas notas, ia o estudante de Direito, otá rio de papel passado. Papel-moeda, a propósito.

*Primeiros versos da paródia do tango Garufa, escrita por Sérgio Mercer, pessoa de dimensões planetárias, em parceira de Luiz Antônio Solda e Chico Branco, com pitaco de Ernani Buchmann.

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UM QUASE TÍTULO MUNDIAL

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Considero lamentável a forma atabalhoada com que dispu tei o Campeonato Mundial de Pingue-Pongue de 1992. O canhoto audaz, como me sussurrou o pingue-punguista de sobreno me Sheffield, perdeu-se pela vaidade, em evento a exigir concentra ção total.

Deu-se que o local da competição estava arrumado quase como são produzidas as disputas olímpicas. Bem, talvez haja aqui certo exagero: estávamos na residência de inverno do multiesportista Luiz Fernando Arruda Gonçalves, conhecido no esporte como Zuco.

Depois de jogar a 7ª divisão italiana de futebol, retornou ao Bra sil e dedicou-se ao tênis, vencendo um torneio de duplas entre soltei ros e casados no Círculo Militar do Paraná.

Fumante em tempo integral, o hábito o levou ao truco, ao pô quer e, enfim, ao mico preto, se me faço entender. Zuco, figura ex cepcional, há alguns anos disputa torneios de esportes nefelibatas em outros planos.

Na comemoração de seu aniversário, preparou a garagem da vis tosa residência para o Campeonato Mundial de Pingue-Pongue. A disputa se antecipava como de vida ou morte. Nas paredes, bandei rinhas tremulavam – desculpem, não é bem verdade: as bandeirinhas eram sobreviventes de uma festa anterior de São João e dentro da garagem não soprava vento algum.

Aqueci levando em cada célula a confiança de quem havia sido campeão em um campeonato de tênis na academia em que jogava. Em duplas, jogando no fundo, era capaz de devolver todas as bolas. Fazia a diferença com um venenoso saque de canhota, versão melhorada do criado por John McEnroe. O insuportável Hermann ria muito dessas cenas.

Estabelecida a tabela de jogos, viu-se logo em uma semifinal, contra o afamado Francisco Siqueira Branco, especialista em movi mentar o braço direito em estranhos ângulos, responsáveis por tirar a

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concentração do atleta multicampeão. Mais uma vez foi surpreendi do por braços de origens alienígenas, como os de alguns adversários que lhe aplicavam derrotas humilhantes nas quadras. Tomou outra naquela tarde de primavera, na “arena de inverno” montada nas fral das da Serra do Mar.

Sua frustração não foi aplacada ao ter a sublime epifania de que todos, Branco, Rebelatto e Belmiro, tinham qualidades tenísticas para atuar em torneios paralímpicos.

Ele, nem isso.

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ATLETA QUARENTÃO

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Na faixa dos 40 anos completados havia pouco, Hermann Sheffield estava se sentindo em plena adolescência. Separado da mãe dos seus filhos, jogava tênis três vezes por semana. Nos outros dias, corria. Começou fazendo tiros de 100 metros, aos pou cos aumentou para 200. Um mês mais tarde, já cumpria os 4.800 metros da pista do parque em 35 minutos.

A barriga havia desaparecido, o corpo tinha adquirido um leve bronzeado, os cabelos tendendo ao grisalho fechavam o pacote. Her mann era um sucesso, os próximos anos prometiam.

Suas atividades profissionais o levavam a diversas cidades brasi leiras. Aproveitou para correr na orla em Natal, no parque da cidade, em Brasília; entre Ipanema e o Leblon; na praia de Daniela, em Floripa, durante um carnaval; em Boa Viagem, no Recife.

Depois do pôr do sol, punha-se à disposição da noite. Não se decepcionava, seu território eram as mesas de bar, a desfilar fantasias retóricas como se fosse um mestre-sala na Marquês de Sapucaí.

Deu-se que um dia Hermann amanhece na casa de praia de sua mãe, em Itajuba – pequeno balneário entre Barra Velha e Piçarras, em Santa Catarina, mais conhecido por ser vizinho da Praia do Grant, endereço de gente de muitas posses.

Depois do café matinal, comunica que irá dar “uma corridinha”. Na areia não seria possível, a praia ali é íngreme, a areia, fofa. Prati car esportes em praias de areia mole é coisa para atletas, em atividade ou militares aposentados, do Rio de Janeiro – todos fenômenos da capacidade aeróbica e da força nas pernas: vôlei de praia, futebol de areia, futevôlei são esportes para super-homens.

A mãe mandou ter cuidado, a rua era de paralelepípedos. Que nada: Hermann frequentava aquele lugar há décadas, desde que seu avô comprara casa ali, em tempos de estrada poeirenta, água de poço, luz de lampião.

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Calçou seus tênis de boa procedência, ajeitou o boné, aqueceu o corpo por alguns minutos e lançou-se à empreitada: iria em direção a Barra Velha, enfrentando um pequeno aclive para desfrutar depois o bucolismo daquela rua tão aprazível, cumprimentando no caminho os pescadores de ocasião e os habitantes dedicados a limpar suas calçadas.

Enquanto corria, como cantavam os Novos Baianos em Preta Pretinha, Hermann imaginava o que poderia fazer naquela noite de sábado. Qualquer coisa menos entrar na roda de tranca das amigas da sua mãe.

Chegou ao fim dos três quilômetros a que se havia proposto como percurso e fez a volta. O sol batia forte, a camiseta grudada de suor. Aquele piso não era pista de atletismo, exigia bastante dos músculos das pernas. Na altura dos quatro quilômetros, Hermann começou a sentir a panturrilha. Não haveria de ser nada, logo terminaria a tarefa.

Eis que surge um paralelepípedo mal colocado naquela imensi dão de pedras irregulares. A topada, ela mesma, não foi grande coisa, mas o suficiente para o caro Hermann se estabacar com todas as letras. Bateu a cabeça, ralou os braços, feriu os joelhos, ficou tonto. De corredor autossuficiente viu-se transformado em saco de batatas. Foi socorrido por um casal de pescadores que voltava para casa. A mulher foi buscar um copo d’água, o marido examinou as feridas. “É melhor você procurar um hospital, tem escoriações e o joelho di reito está bem machucado”. Hermann nem comentou sobre a dor do tornozelo, prenúncio de tendão rompido.

Levantou-se apoiado no bom samaritano pescador e, enquanto tentava firmar o pé no chão, passou uma velha senhora, de lenço na cabeça e sacola de supermercado na mão. Foi cirúrgica, a mulher:

– É nisso que dá gente velha metida a correr por aí.

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O dia em que Joguei com kasparov

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Os antigos gostavam de iniciar textos com a frase “Estava eu posto em sossego...” Sérgio Porto usava isso com ironia ao narrar as aventuras de seus personagens. Pois já que citei um lugar comum, acrescento que, em certa tarde de domingo, estava eu no recesso do lar – viram só? – quando Jaime Sunye avisa que serei convidado para ir ao México, naquela mesma semana. O convite viria da Fundação Kasparov de Xadrez para a América Latina, a ser lançada nos dias seguintes. A indicação foi do próprio Jaime, após solicitação de Leontxo García, o mais prestigiado jornalista de xadrez do mundo ocidental, então compondo o staff de Garry Kasparov.

Foram convidados dois jornalistas da América do Sul. Carlos Ilardo, do La Nación, de Buenos Aires, e eu – com o passaporte vencido. Graças à indignação da também jornalista com alma de produtora Silvia Bocchese de Lima – “Hermann, você vai aceitar este convite” –, capaz de agendar uma entrevista minha na Polícia Federal para conseguir um passaporte de emergência, nada teria acontecido.

Desembarquei no México naqueles dias em que Gabriel García Márquez, tomado pela senilidade, estava saudando com o dedo do meio os jornalistas que se acotovelavam na porta da sua casa, vinte dias antes de morrer. O que não tinha nada a ver com o xadrez.

A programação previa jantar e encontro dos convidados, entre eles, grandes mestres e mestres internacionais de xadrez, a solenidade de lançamento da Fundação e visitas do ex-campeão mundial a escolas e universidades para divulgar a iniciativa. Em todos os lugares, ele enfrentaria alunos e enxadristas de baixa extração em partidas simul tâneas – em que o protagonista enfrenta ao mesmo tempo diversos outros jogadores, em tabuleiros dispostos lado a lado.

Em um amplo ginásio na cidade de Toluca, Kasparov precisou de 55 minutos para derrotar 18 enxadristas. Munido de dois celulares,

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de uma caneta e do bloquinho de anotações, o curioso brasileiro foi girando por trás dos tabuleiros para conferir cada jogada do maior jogador da época.

Quando o primeiro desafiante derrubou o rei em sinal de derrota, cumprimentou o campeão e levantou da mesa, Hermann aboletou-se ali. Alguns minutos depois Kasparov estava de volta. Ia passando direto por aquela mesa, mas viu que ali havia alguém sentado, a fazer um movimento. Voltou os olhos para o tabuleiro antes de certificar -se que a partida já estava encerrada. Hermann, rápido como um raio – lugar comum é com ele mesmo –, sacou com o i-Phone uma foto daquele instante precioso, a prova definitiva de que havia jogado contra Garry Kasparov.

A foto ficou boa. O autor imaginou planos de vendê-la para os tabloides internacionais de famosidades, o que iria permitir a in clusão de seu nome no panteão (“oi nóis aí de novo”) enxadrístico mundial.

Qual o que, cantava Nara Leão na bela canção de Chico Buarque, agora enviada pelos novos tempos para as profundezas do inferno. Pois, aconteceu o mesmo na Cidade do México. Durante a locomoção entre duas outras programações, o jornalista canhoto e desajeitado, o torto e imprudente Hermann Sheffield, perdeu entre os bancos da van que conduzia a delegação o telefone com a foto que iria enriquecer sua biografia, e dar um jeito na sempre prejudicada vida bancária.

Sobrou uma foto dos dois astros juntos em um restaurante 5 estrelas, publicada sem pagamento algum. E a experiência inédita de tentar fazer um lance com o rei deitado para chamar a atenção do adversário. Além do fato de que, durante os cinco dias de viagem, a única conta paga pelo jornalista convidado foi uma Coca-Cola pedida em duplicata em um almoço.

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UM SOBREVIVENTE

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DE 1950 EM 2014

Não trago nenhum lembrança da Copa de 1950, limitação tí pica de quem andava em fraldas. A crônica familiar garante que fui o único a seguir com os chutes em uma grande bola de plástico mesmo depois de consumada a tragédia, convocando um amigo do meu pai: “Chuta, Váti”. O pobre Walter já havia demitido o futebol da sua vida quando Ghiggia fez o gol uruguaio, mas aquilo não me foi explicado. Lembro que, dez anos mais tarde, já me atrevia sair da Ângelo Sam paio, onde morávamos, para descer a Buenos Aires até o Estádio Joa quim Américo. A Engenheiros Rebouças, vinda lá do Capanema, quase terminava na esquina da Brigadeiro Franco. Dois quilômetros e meio adiante, no que hoje é a contramão do fluxo, ficava o melhor estádio da cidade, o Durival Britto, palco de dois jogos da Copa do Mundo, aquela tal. Lá eu só tinha permissão para ir acompanhado por meu pai.

Em frente à velha Baixada existia o campo do 5 de Maio, um dos mais apropriados times de várzea da cidade. Isso porque o Rio Água Verde passava ao lado, a exigir de quem jogava pelo canto do grama do que entrasse naquela mistura de água, esgoto e lodo para pescar a bola lá dentro. Depois ela era jogada contra o chão umas cinco vezes, espirrando a gosma cinzenta que a havia impregnado, antes de estar em condições de batermos o lateral.

O Joaquim Américo era estádio acanhado, dava para entrar esguei rando-se pelas frestas da cerca. E também assistir aos jogos do lado de fora, em um poleiro de ferro montado pelo Exército atrás das arquiban cadas, onde havia uma Vila Militar. Ali o Coronel Cleômenes tentou sem sucesso incutir em meu cérebro deficiente os segredos da matemática.

O tempo passou, o estádio foi abandonado. Anos mais tarde voltou a ser reconstruído. Não uma vez, mas três vezes em 20 anos. O 5 de Maio virou Praça Afonso Botelho, prédios residenciais foram levantados, o movimento dos automóveis no entorno se tornou intenso. Então ocorre que, mais de 50 anos passados, volto a descer a pé pela Rua Buenos Aires, em uma tarde de sol, para assistir a um jogo

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na Baixada. Desculpe, agora o estádio é chamado de Arena e a par tida é válida pela Copa do Mundo. Engraçado, em todo o país, só a Engenheiros Rebouças e as ruas que circundam o Maracanã viveram o movimento de duas Copas do Mundo no Brasil.

Depois de reclamar com a fiscal no Raio-X da entrada, que me fez jogar no lixo um simples tubinho de descongestionante nasal, como se aquilo fosse capaz de explodir russos e argelinos, eis que nos abancamos sobre a bandeirinha de escanteio no gol do fundos, à direita. Muitos me tros abaixo, naquele mesmo ângulo, era a visão que se tinha do campo quando Jackson do Nascimento e sua turma assistiam aos jogos do Atlé tico. Ali vi muitos gols de Pedrinho, Walter (o atacante, não o “Váti”) e Nininho, grandes jogadas de Alfredo Gotardi.

Agora o estádio é de Copa do Mundo. Todo cinza, coberto, decora do com as logos da Fifa, em nada lembra o sofrido campo de antanho. O público respeita a localização das respectivas cadeiras, a cerveja está gelada, os vizinhos de arquibancada falam inglês com sotaque russo.

Um show que inclui o jeito engraçado dos argelinos torcerem. Continuo me surpreendendo até depois do jogo: em mais de 50 anos frequentando estádios de futebol no país nunca tinha pisado em ba nheiro limpo.

Subimos a Buenos Aires como nos velhos tempos, sem movimen to de automóveis. Olho para trás, vejo milhares de pessoas andando em paz, felizes por terem testemunhado um jogo de Copa do Mundo. Já sinto falta do ambiente festivo da Arena, assim como senti falta dos vendedores de amendoim e de barquilha.

A Tânia se permite uma exclamação:

– Pena ter acabado.

– Acabou nada, daqui a 64 anos terá outra Copa por aqui, respondo. Então ela recomenda que, nessa próxima vez, eu lembre de re servar os ingressos com mais antecedência. Vou tratar disso já na segunda-feira, sem falta.

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MORTE EM MÔNACO

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Aadolescência, acompanhada das inevitáveis espinhas no rosto, indicava caminhos sedutores ao rapaz. Leitor de todo tipo de leituras, as legais e, em especial, as ilegais, tinha por companhia no banheiro ninguém menos que a princesa Caroline de Mônaco, em comportado maiô, posando em alguma praia da Riviera francesa para as páginas da Revista Manchete.

O rapaz já se via pilotando nas ruas do principado. A primeira medida para chegar lá foi pedir de presente um carrinho de autora ma. Nada semelhante às Lotus dirigidas por Jim Clark, a sua era uma carroça com motor.

De tanto pedir, seu pai aproveitou uma viagem a São Paulo e lhe trouxe a réplica de uma Berlineta. Foi um avanço: o conhecimento paterno lhe ensinou que a transmissão era do tipo coroa e pinhão, muito superior à transmissão tipo rosca sem fim. Aquilo prometia.

A Berlineta em tamanho de gente grande era um carro esportivo fabricado no Brasil sob licença da francesa Alpine. Com motores preparados para as pistas, tinha se tornado o carro-chefe da Equipe Willys de Competição e atração máxima das corridas no país. O time abrigou três pilotos que chegaram à Fórmula 1: os irmãos Emerson e Wilson Fittipaldi e Luiz Pereira Bueno.

Na Curitiba de antanho, quis o destino que houvesse um cam peonato de autorama no clube Santa Mônica. A pista era travada como a de Mônaco. O rapaz espinhento da Berlineta dirigiu como lhe disseram: acelerar nas retas, fazer as curvas com cuidado. Sair da pista era a desclassificação.

Para sua perplexidade, saiu a classificação com ele na pole-posi tion. Havia atingido a glória, sentia-se desde aquele momento rece bendo no dia seguinte o troféu de campeão das mãos do príncipe de Mônaco, já então seu futuro sogro.

Na corrida, em pista para quatro carros, deixou os outros pula rem na frente. Um bateu no muro e saiu. Outro parou de funcionar.

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Restavam dois, ambos classificados. Era o momento de mostrar suas habilidades, exibir seus dotes para a princesa.

E foi assim que o desastre se repetiu: a mão acelerou, o cérebro esqueceu de avisar que a curva estava perto demais. O carro saltou da pista, bateu no muro e espatifou-se.

Tal qual Lorenzo Bandini, da Ferrari, na mesma década de 1960, seus sonhos de glória morreram em uma tarde de domingo, para a satisfação de Grace Kelly, que jamais imaginou sua filha vivendo ao lado de tamanho fracasso.

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ESPADA NO BUCHO

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Bucho, a dobradinha da culinária tradicional brasileira, nada tem a ver com o feito deste capítulo. Serve apenas para descrever o local em que o instrumento cutucou o corpo da, como diriam os sanguíneos jornais daqueles tempos, indigitada vítima. Estabeleça-se desde logo o local do duelo, havido na Curitiba dos anos 1980, em Santa Felicidade. Com justificada fama, estava lá instalado um restaurante chamado Costela do Amantino, em que eram servidas porções generosas da iguaria, a desmanchar na boca dos fregueses como manjares dignos de paxá.

Constava da lenda urbana ter o bíblico Adão, conhecedor pro fundo das virtudes costelares, provado e aprovado com louvor o as sado em epígrafe.

E Amantino, o costeleiro, quem seria? Soube-se depois que se tratava de um sobrevivente da 2ª Guerra, a recordar como o perso nagem de Fernando Brant e Milton Nascimento, em Conversando no Bar, da campanha da Itália e do tiro, que levou. Ou não.

Hermann Sheffield trabalhava à época em uma empresa de pu blicidade, conhecida também por feitos cívicos, entre as quais a autoria da campanha das Diretas Já. Tudo era motivo para que se come morasse, eis que o país estava em vias de reencontrar a democracia.

O cenário era perfeito. Na costelaria todos se lambuzariam, a carne era farta como personagens de Federico Fellini. Os brindes se riam erguidos, os copos tintilariam. A noite prometia a glória.

Os romances de Capa/Espada mostram que em tais horas surge o mocinho, libertador da jovem mantida em algum cativeiro insalubre como pena por seu amor maldito. Eis que ele se materializa no ambiente.

Não na forma de um príncipe encantado, mas na de um office -boy, já dominado por algumas caipirinhas e estimulado pela porção subversiva daquela empresa, o pessoal da área criativa.

O herói sobe na mesa em que eram servidas as porções da Eva e se dá o direito de pronunciar um discurso. Eram poucas palavras,

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ainda que de fundada importância. Do alto daquela pirâmide, ou melhor, da rústica plataforma, entoa seu grito de guerra:

– Está criado o Partido Socialista Operário dos Offices-boys do Brasil.

As batidas das mãos sobre a mesa mambembe fizeram tremer o chão, quase arriando os cavaletes que a sustentavam: eram pequenos aplausos bêbados. Alguns gritaram “apoiado”, outros riram. Uma cena de pastelão, não fosse a reação do nervoso proprietário do pe daço. Aos berros, exigiu a derrubada do rapaz, a dizer, sua saída da napoleônica posição sobre a mesa.

Hermann, homem precavido, nada voltado aos prazeres dioni síacos, tomado pela indignação dos justos, enfrenta de peito aberto aquele suserano das costelas.

O agressor recuou de forma estratégica para se colocar atrás do balcão. Do fundo da churrasqueira, puxou um espeto e desferiu a ameaça nos intestinos do desarmado Hermann Sheffield.

Bem, vamos concordar: na história da literatura jamais alguém usou expressão tão tacanha como “desferiu uma ameaça”. Desferem-se golpes, como se sabe.

O intimorato homem das letras, encurralado entre paredes, nada disse, nem tempo houve para tanto. O filho do espadachim entrou em ação, convenceu o pai a devolver o florete às profundezas do fogo e deu por encerrada a ameaça. Inclusive o festim do office-boy.

Ao pobre Hermann, além de sua parte no repasto, restou a humi lhação de pedir um banheiro. Aqueles do restaurante não serviriam ao propósito, estavam submersos pela incontinência urinária da fre guesia.

Então, no reservado do próprio soldado das forças brasileiras, nosso herói sentou aliviado. Sem precisar fazer força, assistiu à de bandada das suas entranhas, apavoradas pela ponta daquele espeto assassino.

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O REI DO CUSPE

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Ovelho Estádio Joaquim Américo tinha seu charme, apesar de desconfortável e mal-acabado. A única entrada era pela Rua Buenos Aires. Os degraus, de tijolo cru, sem reboco. Era o se gundo estádio do Atlético no mesmo local, depois do campo original do Internacional. As tribunas, de concreto, tinham a frase pintada no alto da cobertura: “Uma vez Atlético, sempre Atlético”.

Ali não havia refletores, limitação que obrigava o Atlético a de sempenhar seu papel em campo nas tardes da quarta-feira, assistido por público fiel, composto por conspícuos senhores de gravata e pas ta executiva, a olhar para os lados com aquela expressão aterroriza da de quem podia encontrar o chefe – coxa-branca, sem dúvida – à procura de funcionários atleticanos gazeteiros.

Pois na Baixada, assisti assim, dia de semana, a um Ferroviário x Rio Branco que nada teve de épico, de inesquecível para a história do futebol mundial. Para mim, estará sempre na memória, pelo prosaico motivo que me apresso a relatar.

A Federação Paranaense de Futebol, movida pelos esdrúxulos critérios que regem as federações, marcou para a Baixada o dito jogo, sob a alegação de se tratar de partida válida pelo 3º Turno do campe onato, portanto, batalha a ser travada em campo neutro. Ora, campo neutro para jogo entre um time de Curitiba e outro de Paranaguá deveria ser o estádio do Cruzeiro de Morretes ou alguma clareira ao pé do Pico do Marumbi. Mas não discordemos do local da partida, visto ter me facilitado a ida ao estádio.

O Rio Branco trouxe o time de sempre, comandado por Calé e Odair, mas ainda sem Mandrake, apelido gerado por sua capacidade de esconder a bola com dotes de ilusionista. Do lado boca-negra, um time que não deixou saudades, com Osires no gol e jogadores de nome estranho, como tivemos o Mililique. Naquela tarde alinhamos um centroavante chamado Demeterco, que deve ter sido mais bem sucedido na rede de supermercados da família.

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E lá estava eu, na doce inocência infantil, a assistir às botinadas de lado a lado, naquele quase pasto castigado por dois times de pernas de pau. O Ferroviário, não satisfeito em jogar mal, ainda perdeu o jogo. Perdeu perdido – e não roubado, ainda que este não tenha sido o entendimento da torcida.

O árbitro era um homem de tez escura, cabelos salpicados de branco – Ataíde Santos, a trazer um bíblico José como prenome. Ter minada a batalha, o cansado árbitro ia descendo as escadas do ves tiário, com a massa pendurada no alambrado a chamá-lo de ladrão. Carimbavam o velho homem de fardamento preto com uma série de cusparadas, a lhe escorrerem pelo rosto.

Quase a ponto de desparecer no túnel que dava acesso aos vestiários, sua senhoria virou-se para cima e disparou uma cuspida, cer teira como tiro de revólver na mão de Clint Eastwood. E lá veio o torpedo. Passou ao lado de um braço, desviou um ombro e acertou em cheio o rosto daquele torcedor mirim, o futuro Hermann, como sempre no lugar errado, na hora errada.

O pobre garoto, agora cuspido e batizado, por algum estranho prurido jamais voltou a se aproximar de alambrados.

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DIGRESSÕES SOBRE

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A CONSISTÊNCIA DA MANTEIGA EM TERRAS DE SERRA ACIMA

Brasileiros dos trópicos, não sabeis das dificuldades enfren tadas por esses pobres habitantes das inóspitas cidades encarapitadas no alto das serras. Durante os invernos, que em algumas regiões duram o ano todo, há o suplício de se trocar de roupa, ou melhor, de ficar pelado durante 10 segundos em um ambiente a zero grau enquanto pedala-se umas ceroulas que resistem a agasalhar suas pernas. Experimentem deitar sobre um lençol congelante, lavar as mãos com água corrente ou outras agruras do mesmo calibre. É de chorar, enquanto as lágrimas congelam no seu rosto.

Mas o processo de endurecimento da manteiga revela nuances não imaginadas pelos patrícios dos territórios tropicalientes. Uma jovem oriunda do nordeste mineiro, ao ver um pequeno tablete de manteiga no couvert de um restaurante, saboreou a porção como se fosse queijo – e achou o sabor bastante curioso, sem atinar para o fato de que manteiga e queijo são irmãos por parte da vaca, mas suas gestações são distintas.

Na hostil geladeira em que vivemos, não se besunta a manteiga no pão. Ela adquire propriedades próprias do concreto, sendo necessário cortá-la, após afiar a faca. Ou esquentá-la.

É claro que a manteiga derreteria se submetida a alguns segun dos no micro-ondas, mas vamos considerar que nem sempre o apa relho está por perto. Se a tarefa for levada a efeito em um rancho campestre, é possível que nem exista energia elétrica. Logo, voltemos às tentativas de cortar a manteiga.

Posiciona-se a faca sobre o tijolinho e tenta-se cortar uma fatia, nem muito fina nem grossa. Bem sucedida a tarefa, equilibra-se a fa tia sobre a faca e deposita-se sobre o pão. E aí começa outra função, que é a de passar o conteúdo de uma superfície à outra.

Caso a força seja excessiva, o pão começa a esfarelar. Pães fa tiados são os mais vulneráreis, passíveis de desmilinguirem-se sob a pressão da faca e de sua hóspede provisória, a endurecida manteiga.

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O resultado é que se consome mais manteiga e mais pão. Neste ponto, surge novo aspecto de fundamental importância na análise da deformação causada pelas gélidas temperaturas na estrutura, diga mos, manteigal: o econômico.

Minha experiência de décadas na função de preparar sanduíches forrados de manteiga no inverno demonstra que o gasto com o pro duto chega a ser superior em uns 20% em relação a outras estações. Com os pães o consumo é de 5 a 10% a mais. Sem contarmos os custos com vassouras para varrer os farelos de pão.

É imperativo que se tomem logo atitudes contra esse estado de coisas. Não se pode ficar indiferente ao problema, que tanto afeta a vida saudável das pessoas. As soluções vão desde mudar o clima das regiões serranas, para o que basta um convênio com São Pedro; acabar com as serras, transformando todos os territórios em planícies litorâneas, o que exige incluir a verba no orçamento da União; ou levar todo mundo para viver no Caribe, o que seria mais em conta.

Vou procurar o Ministério do Turismo hoje mesmo.

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CORINGA

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Eu adorava os sábados em que meu pai não ia pescar. A mãe me vestia, calça curta, camisa azul clara e suspensório, mandava calçar os sapatos pretos e penteava meu cabelo. Então a gente saía, nós dois, o velho me levando pela mão. Primeiro ele passava no sindicato, para discutir uns assuntos. Nunca soube quais eram, mas eu gostava: um sujeito lá pintava car tazes e me deixava ficar olhando. O cheiro de tinta era agradável. Bem na frente tinha uma mangueira, onde eu tentava procurar mor cegos. Meu pai explicava que os morcegos não saem antes do anoi tecer. De dia eles são cegos, perdem o rumo. Estranhos, os morcegos. Depois, íamos até a Associação dos Cronistas Esportivos, onde ele era diretor. Acho que seu trabalho era atender quem passava pela cidade em dia de jogo. Uma noite levou um gordinho de bigode, que carregava uma maleta pesada, para um lanche rápido lá em casa. Aí saíram apressados para o campo. A questão era saber se Gaivota iria jogar – e sem Gaivota as coisas poderiam complicar pra nós, disse meu pai.

Por último ele passava no café, para encontrar a corriola, Coxinha, Cassou, Beno, Mellin. Isso durava até perto do meio-dia, quan do pedia licença. Alguns atravessavam a rua para um aperitivo no bar do Joques, mas meu pai não gostava de ir quando eu estava com ele. O Estevão, dono do Joques vivia na porta do bar, limpando as mãos numa toalha. Joques era como chamavam o boteco, mas o nome do lugar era Joke’s, com a figura de um coringa ao lado.

Meu pai explicou o que era coringa, uma carta que não tem valor, mas pode ter todos.

– Por isso, não esqueça que os únicos jogos de baralho que a gente deve jogar são os que usam coringa. Jogo sem coringa acaba levando embora o seu dinheiro.

Não funcionou. Certa noite solitária de sábado, no Rio de Janei ro, recebi convite de um amigo para jogar pôquer na casa dele, mo-

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dalidade fechada, muito antes da proliferação do Texas Holdem. Os componentes da mesa eram amigos do dono da casa, todos escolados há décadas nas manhas do jogo.

Incorporou seu personagem Hermann, que de pôquer sabia o que tinha visto em Cincinatti Kid, filme que empurrou Steve McQueen para a glória – cuja não lhe bafejaria naquele apartamento de cobertura na Lagoa – e lá se foi, com instintos de matador.

Entusiasmado com o whisky oferecido pelo gentil garçom, o pato vindo do Sul passou a enxergar blefes em todas as apostas ad versárias. No fim da noite, já enxergava também um par de ases onde havia apenas um. Mas aí já era o whisky jogando a favor dos velhos matreiros.

Deixou na mesa o salário do mês seguinte, em forma de um che que. Nem carona lhe ofereceram Na segunda-feira, correu ao banco e pediu um empréstimo ao gerente. Cuidou de pagar o que lhe foi fornecido e jamais voltou a uma mesa de pôquer.

O amargor da ressaca causada pelo whisky traiçoeiro fez desapa recer de sua boca o sabor nostálgico das manhãs de sábado, em que podia aprender lições valiosas quando seu pai não ia pescar.

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SUPERAÇÃO E GLÓRIA

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h. A lua cheia ilumina o caminho até o mirante do verte douro, em meio ao cenário magistral feito de água e concreto da usina de Itaipu. Há poucas nuvens, a brisa noturna aumenta a sensação de frio. O repórter tira seu bloquinho do bolso e anota algumas palavras, os dedos enregelados. Ele também vai correr a maratona, na modalidade “escrever sobre”.

5h20. O primeiro clarão do sol começa a surgir no horizonte. Os fun cionários do Sesc tratam de montar o pórtico de largada, as vozes de coman do cortando o silêncio da madrugada. As faixas são erguidas, alinhadas, as cordas de sustentação amarradas. Nas camionetes das equipes de repor tagem os técnicos montam seus equipamentos. Uma repórter saltita para espantar o frio, que nem a touca que lhe cobre a cabeça é capaz de eliminar.

5h50. Os ônibus com os atletas começam a chegar. Alguns já saltam soltando os braços, outros alongam os músculos da perna apoiando o corpo na murada que nos separa do vale, onde, centenas de metros abaixo, correm as águas.

5h55. O zum-zum é quebrado pela voz do locutor, dando boas-vindas, incentivando os atletas. Mais ônibus chegam. O deslumbramento com a visão da usina se mistura com o alumbramento trazido pela claridade do dia. A voz da dupla sertaneja explode nas caixas de som, nos obrigando a embarcar no Camaro Amarelo. “Agora fiquei doce”, cantam os atletas en quanto lambuzam o corpo com pomada e vaselina. O cheiro da natureza dá lugar ao cheiro da preparação. A lua desapareceu, duas estrelas remanescem no firmamento. Serão planetas, algum E.T. nos espiona?

6h04. Os seis cadeirantes descem do ônibus. Eles serão os primeiros a largar, pouco menos de 30 minutos mais tarde. É preciso trocar as cadeiras de locomoção pelas de competição. Os técnicos do Sesc auxiliam na transição, o aquecimento vai começar.

6h15. Dia claro. Os atletas aquecem, misturando as diversas ca tegorias na mesma faixa de asfalto. Eles vão e vem, desviando das câmeras de TV que registram seu trote atlético. As cores das camise-

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tas diferenciam as equipes, muitas estampam as cidades de origem: do Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina.

6h25. Os cadeirantes estão prontos, a bordo de seus veículos, transformados em pilotos. Vanderlei Cordeiro de Lima, padrinho da prova, abraça cada um, beija as três mulheres que formam o pelotão feminino. Presidente e vice-presidente do Sistema Fecomércio, Dar ci Piana e Ari Faria Bittencourt, seguram a faixa de largada, soa a buzina. Explode uma salva de palmas, a corrente de solidariedade a unir todos os presentes. Lá vão nossos heróis descendo a ladeira, 42 quilômetros os separam do sonho.

6h35. Os atletas com deficiência visual assumem seu lugar no grid. As duplas se abraçam, atletas e guias incentivam-se. Largam, aplaudidos, enquanto seu lugar é tomado pelas atletas da elite feminina.

6h40. Entre as mulheres que partem, uma cena emociona até o velho repórter, calejado de tantas competições: a moça que cruza a linha de largada com a máquina fotográfica em uma das mãos, a ou tra cobrindo o nariz, sem conseguir dominar o choro compulsivo que ajuda a impulsionar seu corpo na direção do objetivo.

7h. Depois dos comerciários, a elite masculina se põe a postos. Os pingos de chuva, antes esparsos, ficam mais fortes. Vanderlei aperta as mãos de todos, brasileiros e estrangeiros. Os votos de boa sorte são dis tribuídos, a competitividade não afasta a convivência fraterna, moldada nas inúmeras provas em que se encontram mundo afora. A estridência da buzina se mantém até que todos os homens tenham cruzado a linha. Eles seguem determinados, pisando o asfalto. O último a cruzar a linha é Juarez Plassmann, irmão do ex-goleiro do Cruzeiro e do Flamengo, Raul Plassmann. Neste mesmo momento, no portão de entrada do Parque Na cional do Iguaçu, largam os inscritos para a corrida dos 11,5 km. São mais de 800 atletas, os primeiros a cruzar a mata preservada do grande parque.

7h10. A camionete permite que atalhemos o percurso. Nos qui lômetros seguintes, se vê a mobilização que toma conta da cidade.

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Foz do Iguaçu respira corrida. Não há mais sinal de chuva, o dia começa a esquentar.

7h40. Em frente ao Hotel Mabu está montada a grande estrutu ra para quem participa da maratona de revezamento. A modalidade é nova, está na primeira edição. Uma cena insólita diverte as centenas de pessoas que se reúnem no local, entre pessoal da organização, jornalistas e curiosos: duas freiras, portando crachás de algum evento próprio a freiras, vêm correndo, os hábitos pretos sacudidos pela velocidade. São aplaudidas, gargalham felizes pela brincadeira engendrada.

8h12. A elite masculina começa a passar pelo local, metade da pro va está concluída. O destino agora está a pouco mais de 20 quilômetros. À frente só os dois primeiros cadeirantes, que ultrapassamos já dentro do parque. Eduardo França, então o segundo colocado, não suporta mais as dores. Ele corre com o corpo apoiado sobre os joelhos, a ponto de explodirem. Eduardo comenta com o batedor da Polícia Militar que o acompanha a intenção de desistir. O batedor o incentiva na linguagem dos batedores: “Se tentar desistir, eu desço da moto e faço você chegar nem que seja à base de berros no ouvido”. A ameaça serviu de incentivo, ele cruzou a linha mantendo a segunda colocação. 8h45. Gusttavo Lima e seu “Tchê-tchê-re-re” mexem com as arqui bancadas na linha de chegada, em frente às Cataratas do Iguaçu. As camise tas verdes dos corredores de 11,5km lotam o espaço. Tudo muito ecológico. O sol bate com força, todo mundo já se livrou dos agasalhos. O locutor anima o público, anunciando a chegada próxima do primeiro cadeirante.

8h52. O Tema da Vitória embala a descida em direção à linha final de Jaciel Paulino, o primeiro a completar os 42,195km da ma ratona. É seu quarto título entre os cadeirantes, em cinco participa ções. Jaciel é cercado pelos repórteres, conta que quase capotou em uma curva dentro do parque, a 60km por hora. “A cadeira ficou em duas rodas, apoiei a mão direita no chão e consegui equilibrar”. Em 2009, ele passou por uma lombada na mesma velocidade e teve um

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acidente feio, que o deixou fora de ação por alguns meses.

9h20. O Tema da Vitória volta a ter tocado, enquanto o locutor se esgoela anunciando a aproximação do queniano David Kiprotich Bowen, o grande vencedor da Maratona. Logo em seguida, o público se levanta para aplaudir o brasileiro João Gari, maratonista que saiu do lixo e tem orgulho da sua origem. William Salgado, também do Brasil, fecha a lista dos três primeiros.

9h23. Ednah Mukhwana, do Quênia, abre a relação das vence doras femininas. Logo depois cruza a paraguaia Carmen Martinez, seguida por Elizabeth Esteves de Souza, do Brasil.

10h. Começa a ser formado o pódio para as primeiras premiações. A solenidade não é contínua, é preciso aguardar a chegada dos primeiros de cada categoria. O vaivém de atletas no paddock é grande, centenas tratando de recuperar os músculos à base de massagens. Muitos cruzaram a linha emocionados, o pórtico de chegada representando a visão do paraíso.

11h. Os ônibus de transporte dos atletas continuam saindo. Seus passageiros são, todos eles, vencedores. Não importa o tempo que o percurso exigiu, importante é festejar o desafio vencido, a sublimação da dor e do cansaço.

12h. O domingo é de muito sol. Sob ele, só a estátua de Santos Dumont permanece impassível, à beira d’água. Na placa que marca o monumento, as palavras proféticas do inventor da aviação a Fre derico Engels, então proprietário daquela área, e que o levou para conhecer as Cataratas: “Este lugar não pode continuar em poder de particulares”. De fato, não continuou. Hoje é patrimônio da humanidade. E todo ano, por poucas horas, empresta sua magnitude para este evento que exalta a natureza e demonstra a capacidade do ser humano em superar seus próprios limites.

O repórter fecha seu bloquinho e vai procurar um local com sombra. Há muito para escrever, a maratona começa agora na moda lidade que ele pratica.

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UM COMUNISTA NA FÓRMULA 1

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Nos tempos do regime fardado, e nas épocas turbulentas antes dele, era hábito hospedar em casa algum líder clandestino de passagem por Curitiba. Bem entendido: hábito para quem tinha algum compromisso com ideias, digamos, progressistas.

Eduardo Rocha Virmond conta que, no início dos anos 1950, seu pai levou para casa um homem muito simpático, de conversa agradável, que se destacou ao ajudar a esposa do anfitrião na cozi nha. Era o jornalista João Saldanha, militante do Partido Comunista, o Partidão.

Cecília Vieira Helm, filha do advogado, professor e político de esquerda Vieira Neto, narra outra história. Certo dia, seu pai co mentou com a mulher e as filhas: “O Marighella dormiu aqui em casa esta noite”. A mãe de Cecília quase morreu de susto, não só por desconhecer a passagem de um hóspede pela sua casa. Tinha razão, porque Carlos Marighella era o clandestino mais famoso entre os procurados pelas forças da repressão.

A propósito, Vieira Neto era vítima habitual da polícia políti ca. Sempre que a situação engrossava, alguns comunistas conhecidos eram levados para uns dias no xadrez: Vieira Neto, o livreiro Aristi des Vinholes e o comerciante Berek Krieger eram três dos hóspedes compulsórios usuais.

Fábio Campana, ele mesmo militante, hospedou dezenas, cente nas em seu apartamento na rua General Carneiro. Pelo que me lem bro, sempre havia alguém dormindo no quarto de empregada e não era nenhuma faxineira.

Pois o Fábio me pediu, certa feita, que hospedássemos João Ama zonas, o líder do PCdoB. O velho Amazonas não gostava de hotéis, sentia-se inseguro depois de décadas de clandestinidade. Meus filhos eram pequenos, mas ainda assim a Adelina, que cuidava deles, pode ria ajeitar as coisas. Ela transformou em cama o sofá da sala. O velho usava o lavabo para sua higiene, tinha acesso ao bar e à biblioteca,

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tudo isolado do restante da casa por uma grande porta de correr. Certa noite, antes de dormir, Amazonas abriu aquela porta e me chamou para ir à janela. Do outro lado da rua, no grande muro que separava a calçada do pátio de máquinas da Construtora F. Greca, ali no Bom Retiro, estava encostado o federal escalado para vigiar o velho. Ele comentou:

– Olha lá o nosso fantasma. Vai passar a noite ao relento, num frio desses!

Demos um tchauzinho e fechamos as cortinas.

Outra vez, marcaram uma reunião sindical para domingo, 8h da manhã. Adelina levantou cedo, fez o café de praxe e chegaram os sin dicalistas. A conversa de sempre, o lúmpen havia chegado à Cidade Industrial, analisavam estratégias de paralisação. Já imaginei a cena: os explorados e os famélicos do mundo marchando na Rua XV de Novembro ao som da Internacional.

Enquanto eles preparavam a revolução proletária, lembrei que estava na hora da largada de uma corrida de Fórmula 1. Abandonei a luta de classes e liguei a TV na outra sala. Dada a largada, notei que alguém tinha sentado ao meu lado. Era João Amazonas, franzi no, agasalhado em um casaco muito simplório (albanês, por certo), com uma xícara de café na mão. Não expliquei a ele minha pouca intimidade com o automobilismo, nem as aventuras malfadadas em diversos circuitos, como enfiar a perna em um esgoto ao lado da cur va da junção, em Interlagos, ou viajar milhares de quilômetros para não ver uma corrida de Fórmula 2 em Fortaleza.

Olhei estranhando ver aquele comunista ali, interessado naquele esporte de ricos enquanto o governo era derrubado na copa ao lado. Ele quebrou o gelo:

– Você é Piquet ou Senna?

– Piquet.

– Eu também.

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HERMANN, MESTRE DA RETÓRICA

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Na Faculdade de Direito, Hermann sempre foi conhecido pela presença constante, noite após noite, após jornadas difíceis de trabalho, sem faltar aulas sob hipótese alguma que não fosse caso amoroso.

Abre-se aqui um parêntese por exigência do editor, já que não é possível comprovar eventuais “jornadas difíceis de trabalho” por parte do citado transgressor.

Seguimos, pois, a narrativa, abjurando a interrupção. Estava a turma no último ano, aula de Direito Civil, capítulo Direito das Obrigações, quando o professor surpreendeu a turma, cansada como Martinho da Vila em busca do diploma.

– Da teoria, vocês já aprenderam o que deveria ser aprendido. Farei uma pergunta enfocando a prática. Vamos ver quem pode re solver a questão. Implacável, decidiu:

– Hermann, você não falta aula, mas não faz perguntas, parece estar sempre distante. Já faz estágio em algum escritório, imagino. Então, trate de montar uma petição inicial, em forma oral, valendo nota, tendo como objeto uma ação de cobrança – faça a introdução, estabeleça os fundamentos e arremate com o pedido ao juiz. Então irei analisar para lhe dar a nota merecida.

Hermann, mestre dos combates retóricos, não titubeou. Levan tou-se e tratou de se contrapor ao descabido exame.

– Professor. Tive uma ideia melhor. O senhor faz a petição e eu analiso.

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PROEZAS DO GOTHAM CITY

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Otime não parecia ser grande coisa, muito longe de ser com posto por craques. Foi batizado como Gotham City, de camisetas vermelhas. Pensei que a cor poderia ser preta, já que o nome fazia referência ao Batman, mas fui aconselhado a desistir da emprei tada. A cor vermelha tinha por motivo o sangue que deitaríamos nas camisetas. Pelo menos não seria homenagem às bermudas para lá de suspeitas usadas pelo Robin, o que já era um avanço.

O primeiro problema a resolver, posto que aceitei a incumbên cia, foi prover o goleiro de uniforme apropriado. Chico Branco, personagem de outros episódios aqui narrados, ofereceu-me a ca miseta adequada, cuja usava como pijama, no inverno. Movidos pela esperança de que aquele ano não fizesse o frio antártico de todos os anos, ou que sua mãe providenciasse outra indumentária invernal para o filho, pusemo-nos a campo. À quadra, digo me lhor. Quadra dura.

Foram embates terríveis, encarniçados e sanguinolentos, os que travamos. No chão inóspito – parece-me que era concreto – do Cen tro Israelita impusemos derrota inesquecível aos hebraicos, única derrota sofrida por Israel no período compreendido entre as guerras dos Seis Dias e do Yon Kippur.

O time deles trazia craques do porte de Marcelo Jugend, Na than Kulish, Mendel Knopfholz, Miguel Krigsner e mais um exército arregimentado em todos os kibutzin existentes ao sul do Equador. A vitória se deu por placar folgado, de forma a não deixar dúvidas. Nosso banco de reservas, deserto como sempre, não precisou entrar em ação, mesmo porque estava desabitado como o Saara.

O jogo, que passou à História como a Batalha dos Desertos, deixou em mim diversas cicatrizes nos joelhos. Os dois times terminaram em piores condições.

Algumas semanas depois, iríamos enfrentar o Lacoste, time de ricos da Sociedade Hípica, donos de automóveis do ano, enquanto

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nós preferíamos o transporte público, às vezes substituído por pro saica carona.

Nossas desvantagens eram todas. O jogo seria realizado na So ciedade Hípica, reduto deles. Em quadra de areia, piso para o qual não estávamos adaptados.

Embaixo das traves, trabalhei como um mouro, no primeiro tempo. No segundo, como dois mouros. Defendi até pensamento dos almofadinhas, exceção feita aos dois gols que não pude evitar.

Assim terminou, depois de umas oito horas de luta – é o que mi nha memória teima em garantir – aquele jogo, tido na História como a Batalha dos Desertos II – Guerra na Areia.

O que ainda me emociona, e confesso chegar às lágrimas ao contar tal epopeia, foi a atitude dos gothanianos. Ao fim do combate, o time, em caravana – sim, estávamos no deserto – veio em minha direção.

Abraçaram-me, agradecidos. O nosso capitão, declarou, então, que eu fazia jus a um motorrádio moral. O motorrádio, prêmio ofe recido durante tantas décadas ao melhor em campo, naquele era meu.

Não pedi nem um vale, mero papel que comprovasse a homena gem. Pouco importava: aquele prêmio imaginário foi o maior troféu que já me permiti receber.

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Da execução de um van der leij eoutras misérias

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Trezentos e sessenta e nove anos depois cumpri meu dever mais uma vez, depois de ter estripado um vanderlei à beira do Capibaribe. Escutei os passos de Felipe Camarão atrás de mim, cortando o pelotão na diagonal, antes de sentir uma cutelada nas costelas:

– Liquide o vanderlei, gritou.

Dei um passo à frente e tratei de desenrolar a espada da corda que também amarrava as calças. Segurei a arma com a mão direita e marchei em direção ao condenado.

O vanderlei não tirou os olhos azuis dos meus. Preso com as mãos para trás, desprezou o cumprimento da sentença e seu executor.

Parei antes de dar o último passo. Levei a perna direita à frente e empurrei a espada na região dos intestinos, cortando tudo até dila cerar o fígado.

O galego rugiu baixo e apoiou-se nos joelhos. Foi desabando devagar, enquanto o sangue jorrava. Limpei a espada na calça e voltei de costas, contando os dez passos até entrar de novo em posição.

Camarão deu ordem de sentido, meia volta volver e marche.

– Acrescente mais detalhes, disse o oficial. De onde veio a espa da, se sabemos que os soldados não tinham esse tipo de arma naquela guerra?

– Os oficiais vanderlei tinham. A espada era de um capitão que encontrei morto, atingido por estilhaços de canhão e deixado para morrer. Roubei a espada porque a peixeira curta me deixava exposto. Aí passei ela para o quadril esquerdo.

– Tenho dúvidas se as formações eram rígidas a ponto de permi tir o Camarão cruzar o pelotão na diagonal.

– Pode ser deformação da minha memória, Major. Tenho certeza de ver o vanderlei acompanhando a marcha do comandante com os olhos.

– Quantas pessoas seguravam o condenado?

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– Nenhuma, havia dois soldados ao lado dele, vigiando seus mo vimentos.

– Em que data em que ocorreu a execução?

– O fato se deu às cinco horas e oito minutos da manhã do dia 28 de setembro de 1648. O corneteiro convocou o pelotão às cinco horas. Marchamos cinco minutos até o local. Camarão chegou em seguida, em dois minutos tinha atravessado a formação. Levei mais um minuto para estripar o vanderlei.

– Anotado, soldado. O inquérito será completado com suas in formações.

O resultado poderia levar meses, talvez um ano. No intervalo, poderia procurar um padre para contar meus pecados com a mulher do francês, 122 anos mais tarde, na praia de São José da Coroa Grande.

Não são os únicos pecados a me torturar. Tenho à frente outros séculos de expiação, começando pelos mais dilacerantes à memória. Toda noite, sem nunca mais sair desta vida, remoo cada um deles.

Sobre a mulher do francês, foi paixão doida, daquelas de fazer estremecer as pernas, encher o corpo de brotoejas, salivar 24 horas por dia, até amortecer os sentidos e dormir desfalecido. Então fui ao padre.

– Como vocês se encontravam?

– O francês me hospedou em sua casa. Ele vivia naquele paraíso em frente ao mar, amancebado com a rapariga Maria de São Thiago, nome de batismo arranjado pelo padre viajante que lhe deu o sacramento, já que a moça Maria, com 12 anos, não tinha pai conheci do. Três anos depois, quando o francês aportou ali agarrado a um tronco, sobrevivente de naufrágio, ela cuidou dele e se tomaram por marido e mulher. Viveram bem por quase dez anos, até o francês se desgarrar da vida por conta da cachaça. Quando cheguei, cansado de andar pelo sertão há mais de século, ele me deu pouso.

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– Então tu e a mulher traíram a confiança do francês.

– Foi aos poucos. Quando a paixão desembestou, padre, não houve Cristo que segurasse a luxúria, a volúpia, o tesão, desculpe o palavreado.

– Quanto tempo durou a sem vergonheira?

– Dois meses, se tanto. É que o francês acordava e bebia. Entor nava pela manhã adentro, a ponto de desabar antes do sol se pôr a pino. Dormia onde estivesse. Mas antes mesmo fechar os olhos, eu e a mulher já estávamos montados um no outro.

– Quantas vezes por dia chegavam ao êxtase?

– Muitas, padre. Às vezes ela derramava mais uns goles na boca do marido, enquanto eu a pegava por trás. Preciso entrar em tantos detalhes?

– Já não é necessário, meu filho. Estou satisfeito.

– Espero sua complacência. Estar condenado a não morrer, castigo maior alguém conhece?

– Que outras ofensas cometeste?

Nem precisei puxar pela memória. Na Revolução Pernambucana de 1817 alinhei com a reação do Império sob o comando do Conde dos Arcos. No açoitamento do Frei Caneca, estive entre os que lhe deitaram o lenho.

– Relate.

– Ele foi preso para Recife. Eu era do pelotão do capitão Tibur ço, vigia da cadeia. O capitão mandou quebrar o orgulho do Frei. Então tiramos o homem da cela e levamos para o pátio, onde o corpo foi colocado sobre um toco de árvore que servia de descanso. Açoi tamos até ele desmaiar. Naquela noite, ainda meio morto, foi jogado dentro do navio que seguia para o sul.

– E o orgulho?

– Quebrou não, o cabra era uma rocha.

– Aonde mais aplicaste teus desatinos?

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– Em Canudos estive também. No exército do Conselheiro em palei alguns esbirros do Coronel César. Ficaram lá, pendurados em poste, descarnando ao sol.

O padre mandou que rezasse. Todas as rezas, todos os dias, quem sabe o Senhor se apiedasse. Depois segurou as pontas da batina e deixou o confessionário sem proferir a sentença de morte.

Isso faz tempo, para mais de cinquenta anos. Já me tinha confor mado: se não posso morrer, aceito o destino de homem desde sempre em guerra.

Não trago mais a peixeira nem a espada. Agora sirvo-me de uma faca, lâmina com dois palmos de comprido, aço damasco forjado, cabo de chifre de cervo argentino – os de cervo brasileiro não prestam, são ocos, podem se soltar da lâmina – estilo sorocabana, pomo de prata fechando a empunhadura.

Ontem, como contei lá atrás, estripei mais um. Na subida do cemitério escutei alvoroço. O pirralho chamou:

– Múmia, a chefia convocou seu serviço. Um x-9 espera pelo destino lá no barraco do comando.

Afiei a faca no granito de um túmulo, pedi licença ao homem do céu, rezei pela alma do bandido e fui cumprir a obrigação.

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DESTINO PERNA DE PAU

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Ao receber sua primeira bola de futebol, tentou dominá-la, rengo que era, com a esquerda. Já de natureza torto, cedo viu que assim seria. Para sempre, canhoto. Zurdo. Sinistro.

À falta de alguém que fizesse uso da perna esquerda no poeirento campo de futebol do colégio, o padre-treinador viu-se na contingência de convocá-lo para exercer a função de ponta-esquerda. Não era o jogador dos sonhos do sujeito ou dos companheiros. Não era o ponta-esquerda dos sonhos divinos.

Ali jogava pela simples falta de outro que soubesse controlar, ainda que da mais tosca maneira, uma prosaica bola. Sem outros atributos, nela enfiava o pé esquerdo com vontade, razão pela qual marcava um ou outro gol.

Nada de receber passes, participar de triangulações. Solitário en trava, solitário saía. Sofria de permanente solidão, levando consigo a impressão de que jogava de costas para o time. Ou pior; contra ele. Certo dia matricula-se no colégio um canhoto de talento, com o que ele foi recuado para a zaga. Em vão, a velocidade não era carac terística sua.

O padre afundava a cabeça nas mãos até mandar que desse lugar a outro. Saiu de campo com a nesga de dignidade que lhe sobrava, trocou de roupa. Depois abriu a janela e pulou para a rua. Nunca soube o resultado daquele jogo.

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A tosse

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Um casal me aborda no elevador. Sei que não são de Curiti ba, curitibano não aborda ninguém no elevador. No máximo dizemos bom dia.

Os dois vêm do Pará, conheceram a Tânia na academia do pré dio. Minha mulher, que é gaúcha, também conversa com pessoas no elevador e durante os exercícios, talvez nas duas situações ao mesmo tempo, o que só ela consegue.

Os jovens – estão no limiar dos 30, por aí – já viram que os curitibanos são fechados. Querem saber como se integrar na cidade e perguntam a mim, por sugestão da mesma Tânia.

Espero até chegarmos ao térreo e lhes conto o segredo.

– Em primeiro lugar, arranjem uma tosse.

Eles fazem cara de tucupi no tacacá, pedem mais detalhes.

Ora, explico, nenhum curitibano que se preze dispensa uma tos se. Aqui é o império da rinite, capaz de fazer o sujeito tossir ou, pelo menos, pigarrear. As tosses mais longas ou profundas fazem mais efeito, é óbvio.

Como se sabe, tossir é democrático. Não tem preconceitos, ataca homens e mulheres, jovens e velhos, ricos e pobres, pessoas de qual quer cor. Porém, o curitibano é seletivo. Quanto maior a hemoptise, mais ele valoriza.

– Cara, isso é tosse de cachorro, vá logo ao médico antes que você vomite o pulmão.

Claro que essa não é a linguagem das mulheres, comentários de tamanha insensibilidade são próprios de mesas de truco, de balcão de boteco. Ambientes próprios da nossa civilização, tida como ‘reserva da’. Mas é importante observar que por aqui cachorro também tosse, como se estivesse tuberculoso.

Um amigo meu aceitou a sugestão ouvida no botequim e foi con sultar o médico. O pneumologista auscultou aqui e ali, mandou dizer 33 e perguntou quando a tosse havia começado.

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– Há mais de 40 anos, Doutor. Na Maternidade Vitor do Amaral. Mas os curitibanos não tossem sempre, existem estações propícias para tanto. Na primavera é o pólen das flores que invade nossos sensíveis narizes até desencadear crises de milhões de espirros. No verão, o ar-condicionado é o inimigo – e dá-lhe dor de garganta.

Nada, porém, se compara ao período de outono/inverno. O maior dos hospitais da área de nariz e garganta recebe mais de dois mil pacientes por dia. Não é coisa para amadores.

Assim, para que alguém se integre em Curitiba recomenda-se re citar o verso-resumo do nosso clima:

– Eu vento, tu frias, ela chuva; nós tossimos, vós fungais, eles batem os queixos, Curitiba que me dói nos ossos.

Sejam bem-vindos ao paraíso dos pulmões torturados, meus ca ros paraenses.

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A ENIGMÁTICA CADERNETA

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Nota do Editor: Recebo da família de Hermann Sheffield, ainda incrédula com o descaso de que é vítima, uma caderneta, que traz o nome do autor em letras infantis sobre os dize res “Sport Club Corinthians Paulista – Fundado em 1960”. (Existem correções à caneta sobre a data, o que deve ter relação com os problemas motores do responsável). Trata-se de um registro de partidas de futebol de botão.

Sua inclusão no presente volume computa-se à lassidão do edi tor, incapaz de resistir à descoberta deste caderno em espiral (Wire -O, dizem os norte-americanos), produzido por uma empresa cha mada “Cabo”, marca registrada nº 43.815, indústria brasileira. Traz ela coisas típicas de uma criança em vias de chegar à adolescência. Pequenas flâmulas de papel coladas nas páginas, jogadores que jo garam no tal time, títulos (um Torneio John Kennedy, é possível?), jogadores que mais marcaram gols.

Este editor consultou pessoas que conviveram com o persona gem, tendo ouvido que foi fundador de uma Federação Paranaense de Futebol de Botão, em que conquistou muitos torneios (a caderneta traz 11 títulos) e era tido como feroz competidor. (Sobre isso pairam dúvidas, tendo em vista a personalidade do defunto).

Depois das estatísticas desimportantes, o caderno traz revelações. Seu proprietário calcula as notas que precisará obter para passar de ano, em matérias como Português, Latim, Francês, Inglês, História, Filosofia, o que denota melhora significativa na sua condição intelec tual, até então pouco desenvolvida. Em Filosofia, por exemplo, precisaria obter nota 3 na prova final. Deve ter estudado, já que nas pá ginas seguintes discrimina os capítulos da Crítica da Razão Pura de Kant: Da Unicidade; da Simplicidade; Da Existência dos Seres Contingentes; Do Grau de Perfeição dos Seres; Da Ordem do Mundo. Também se estende em repetir termos em inglês: conquerors , battalions , gradually , fear , thought . Supõe-se que sejam trechos

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de uma obra a ser estudada ou treinamento para aprender termos fáceis. Depois voltam as infantilidades, até que a última página traga uma espécie de hit parade da época, com o rock Twist and Shout , gravado pelo Beatles em primeiro lugar. Enfim, nada que mereça ser levado a sério. Como tudo neste livro.

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ASSIM FORAM CONTADOS EPISÓDIOS INUSITADOS DAS VIDAS NÃO AUTORIZADAS DE UM MENTIROSO PATOLÓGICO QUE JAMAIS SE AFASTOU DA VERDADE.

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Impresso em junho de 2022.

Este livro foi composto em Sabon LT Paneuropean 12 pt (textos).

Triplex 250g (capa) e pólen 90g (miolo), 145 p.

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