Terra em Transe: 10 anos do 11 de setembro

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ETAPA III Apoio ao professor

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Terra em transe:

ILUSTRAÇÃO: FERNANDO TANGI

a década

À luz de Huntington e sob as imagens do The falling man e do suicídio de Terra em Transe é possível analisar o 11 de setembro sobre a óptica do choque e da oposição ideológica

11 de setembro

C

omecemos com uma imagem. A imagem do momento da queda de um homem. “É possível que a foto seja a mais memorável das imagens em movimento, porque ela constitui uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo”1. Quando comecei a esboçar este texto, uma primeira pesquisa sobre o 11 de setembro de 2001 me levou a diversas imagens. Uma enxurrada de imagens: fotografias e vídeos. Entre as inúmeras possibilidades, revi uma fotografia que instantaneamente me trouxe os sentimentos da miséria humana, sentimentos vividos, sobretudo, naquele setembro de 2001. The falling man 2 é o título da foto. Em um artigo sobre os significados do 11 de setembro3, foi impossível não ser atraído pelas palavras SONTAG, S. On photography. New York: Anchor Books, 1990, p. 17. Foto de Richard Drew. RESENDE, E. S. A. Aporia e trauma na crise de significados do onze de setembro. Rio de Janeiro: Revista Contexto Internacional, vol. 32, nº 1, jan/jun 2010, pp. 205-238. 1 2 3

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Victor Costa (@costa_victor) é bacharel em Filosofia pela PUC-Campinas e é produtor audiovisual do Café Filosófico da CPFL


de Susan Sontag sobre o poder da fotografia como meio de representação: “Cada foto é um momento privilegiado transformado em um fino objeto que pode ser guardado e revisto”4. O momento da queda de um homem de uma das torres do World Trade Center representa, além do terror da tragédia do 11 de setembro, ou da perda de uma vida, a brutalidade do silêncio que a imagem congelada de um instante de horror nos remete a ver e reviver de forma incessante e sufocante este mesmo instante. É o horror paralisado, mas se movimentando na memória coletiva. O trauma revivido a cada instante. Sobre a relação queda e trauma, vale lembrar ideias de Eleanor Kauf­ man. Para ela, a palavra queda é um marcador de qualidade da lógica do trauma. É significante da perda do controle e do equilíbrio. É a queda no abismo, do nada sob os pés. Não vemos nem seu início nem seu fim; somente a queda infinita.5 Como no suicídio de Paulo Martins, o personagem do filme Terra em transe, de Glauber Rocha: queda infinita em um vazio indeterminado. Vejamos um pouco mais de perto a queda de Paulo Martins, através de Tales Ab’ Sáber. A estrutura da narrativa construída em abismo (a cena de

Paulo caindo no abismo inicia e encerra o filme) representa a melancólica visão do ponto de vista da morte, “(...) que não se esgota nunca, que não passa nunca, como a suspensão e a queda infinita do personagem no branco e no vazio final que nunca acaba, marca a história como referida a esse lugar suspenso, lugar de descontinuidade radical, da história e do sujeito, espaço dessa indeterminação onde Paulo Martins se instala, para a morte, mas de fato para a morte em vida”6. Esse é o ponto da complexíssima forma do filme que interessa a Tales, e me pareceu oportuno retomar aqui. De certa forma, The falling man traduz o 11 de setembro: naquele momento, não víamos seu início, causa ou origem, muito menos seu término. Víamos, apenas, como em Terra em transe, o horror impensável e mudo. Víamos pessoas saltando para a morte, “mas de fato para a morte em vida”. Tínhamos a certeza que estávamos caindo. Que a história estava caindo, que a civilização estava caindo. Éramos, para lembrar outra imagem que me parece Idem, p. 18. KAUFMAN, E. Falling from the sky. Diacritics, vol. 28, nº 4, winter 1999, pp. 44-53. 6 TALES, A. S Brasil, a ausência significante política (uma comunicação). In: TELES, E; SAFATLE, V. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 197. 4 5

The falling man é a fotografia tirada por Richard Drew de um homem que, encurralado pelo fogo e a fumaça, se jogou da torre no dia dos ataques de 11 de setembro

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O momento da queda de um homem do World Tr ade Center representa a brutalidade do silêncio que a imagem congelada de um instante de horror nos remete a ver e reviver

apropriada para o 11 de setembro, os portadores do grito mudo e paralisado de Munch, chocados com algo que não conseguíamos entender, processar ou racionalizar com as formas tradicionais de significação. Choque das Civilizações Os acontecimentos do 11 de setembro pareciam validar a tese do “choque das civilizações”, a qual proporcionava uma narrativa que ao mesmo tempo explicava os eventos, apontava os culpados e propunha uma política estadunidense para impedir novos ataques terroristas. A tese do choque das civilizações foi iniciada pelo cientista político Samuel Huntington, em 1993, ano do primeiro ataque terrorista ao World Trade Center. A ideia central da tese é que a política mundial está passando por uma importante mudança: a natureza dos conflitos políticos deixa

de ser baseada em motivações ideológicas e econômicas e passa agora a ser baseada em motivações culturais e religiosas. Segundo Huntington, apesar do desejo por poder e dinheiro, a força motriz dos conflitos contemporâneos é cultural. Então, ainda sob o pensamento de Huntington, o cenário internacional do pós-Guerra Fria passaria a ser marcado não mais pela rivalidade entre dois sistemas político-ideológicos rivais, mas pelo confronto das civilizações excludentes com as civilizações “excluídas”. A tese do choque das nações oferece uma representação das relações internacionais, sobretudo do ponto de vista norte-americano, muito simples e confortável, bastante parecida com aquela dos tempos da Guerra Fria. Definitivamente, depois do 11 de setembro, os Estados Unidos encararam, como outrora encararam a União

Soviética, a “civilização islâmica” como inimiga de Estado. A bipolaridade (ideológica) Leste-Oeste seria substituída pela (religiosa) Ocidente-Oriente. A teoria de Huntington serviu não só para apontar os culpados pelos ataques terroristas (fanáticos mulçumanos), mas para explicar suas motivações (culturais e religiosas) e também para ajudar a formular uma proposta de ação para evitar novos ataques (por se tratar de um conflito de uma civilização excludente, o confronto seria a única solução). Choque Econômico A tese de Huntington é rejeitada por Jürgen Habermas, que insiste que o choque não é cultural, mas econômico. A ideia de Habermas é que o terrorismo é uma patologia comunicativa que se nutre de sua própria energia destruidora.7 “A espiral de violência começa como uma espiral de comunicação distorcida que leva, por meio da incontrolável espiral de desconfiança recíproca à ruptura da comunicação”8. A globalização potencializou essa espécie de cinismo na comunicação entre as civilizações ditas excludentes e excluídas. Portanto, não se trata de choque entre as civilizações. Trata-se de uma ruptura na comunicação das civilizações. “Ao intensificar a comunicação, a globalização coloca em cena a injustiça distributiva, dividindo rigidamente o mundo em vencedores, beneficiários e perdedores”9. À primeira vista parece um paradoxo, a globalização intensifica a comunicação e cria barreiras à própria comunicação. Para Habermas, o que está na raiz desse colapso BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Habermas e Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 76. 8 Id. Ibidem. 9 Id. Ibidem. 7

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(ou paradoxo) é a rígida estratificação do capitalismo sem limites, que paralisa o diálogo entre as nações de diferentes posições econômicas. A responsabilidade de construir os canais de comunicação recai sobre os ombros das nações mais fortes. Por isso, a solução, para Habermas, é que as democracias liberais do Ocidente amenizem as rupturas na comunicação entre as nações. Para tanto, é preciso que as nações, visando à cooperação internacional, trabalhem em duas vias. 1) é importante que os países em desenvolvimento cessem de julgar a política externa das nações ocidentais como frentes imperialistas que buscam expansão financeira; 2) as democracias ocidentais, por outro lado, não podem reduzir sua política externa à mera estratégia de marketing, à explosão consumista. O fluxo das complexas relações internacionais no mundo contemporâneo é ameaçado sistematicamente por forças não políticas: do fundamentalismo religioso a todos os tipos de fanatismo, do mercado à administração do Estado. Ordem Cosmopolita Talvez “o ato terrorista de maior amplitude até hoje tenha ocorrido em 1914, quando um ativista sérvio

assassinou, em Sarajevo, o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria, sendo o estopim da Primeira Guerra Mundial”10. Para Habermas, diferentemente de muitos analistas políticos, os acontecimentos de setembro de 2001 estão mais próximos de agosto de 1914 do que o ataque surpresa a Pearl Harbor, em 1941 (desde Pearl Harbor os Estados Unidos não sofriam um ataque em solo nacional). Para Habermas, setembro de 2001, como agosto de 1941, marca o começo de uma era de instabilidade, não só das relações entre Ocidente e Oriente, mas, o que é mais perturbador, entre Estados Unidos e Europa. “A reação dos Estados Unidos ao terrorismo produziu uma desconfiança fundamental com relação aos estrangeiros e, ao mesmo tempo, criou uma expectativa de apoio incondicional da parte de seus parceiros políticos, com a Comunidade Europeia em primeiro lugar. Essas duas posições – desconfiança com os estrangeiros e expectativa de apoio incondicional – correm contra a própria natureza do enfoque de Habermas dos domínios político e ético, que ele vê governados pelo diálogo e pela argumentação racional”11. 10 WELLAUSE, S. S. Terrorismo e os atentados de 11 de setembro. São Paulo: Revista Tempo Social, 14(2), out 2002, p. 89. 11 Filosofia em tempo de terror, p. 62.

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A teoria de Huntington serviu não só par a apontar os culpados pelos ataques, mas par a explicar suas motivações

O pedido de apoio incondicional feito pelo governo dos Estados Unidos é para Habermas uma das características do pós-11 de setembro. Outra é a ameaça de terrorismo global, que colocou em pauta o tema da ordem cosmopolita. Há mais de 200 anos, Kant propôs uma ordem cosmopolita para os Estados republicanos, ideia que atualmente me parece urgente. “Cada nação, em função de sua própria segurança, pode e deve exigir das outras que elas adotem uma constituição semelhante à civil, dentro da qual os direitos de cada uma pudessem estar assegurados. Isso significa estabelecer uma federação de povos”12. Em Kant, a noção de hospitalidade substitui a inimizade entre as nações:

“Hospitalidade significa o direito que um estrangeiro tem de não ser tratado com hostilidade quando chega ao território de outro povo”13. A ideia aqui passa longe, embora pareça em algum momento pueril, da perspectiva filantrópica. Trata-se de entendê-la nos limites do Direito. O estrangeiro não pode reivindicar o direito de hóspede, justamente por isso deve desenvolver uma relação de amizade com o anfitrião. Mesmo assim, o hóspede pode reivindicar o direito de frequência, isso porque “todos os homens estão habilitados a se apresentar na sociedade dos outros em razão de seu direito de posse comunal da superfície da Terra. Como a Terra é um globo, eles não podem se dispersar por uma área infinita, mas

precisam necessariamente tolerar a companhia um do outro”14. Porque compartilham a superfície da mesma “terra”, as pessoas se tornam membros de uma comunidade planetária, cosmopolita, concebida de acordo com o princípio de que “uma violação dos direitos em uma parcela de mundo é sentida por toda parte”15. Essa ordem cosmopolita dá a todos os humanos o status de “cidadãos do mundo”. A ideia geral é que para sairmos daquele transe em queda livre no abismo do século XXI, em que essencialmente os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 nos jogaram, tería­ mos de, para muito além da teoria, construir urgentemente uma ordem cosmopolita. Da federação de povos de Kant à democracia cosmopolita de Gramsci: “a democracia cosmopolita é uma forma de organização política que complementa as democracias nacionais, estabelecendo, com a participação e o assentimento expresso dos diretamente interessados, formas transnacionais de governo e de cidadania. (...) Os atores que Gramsci mais valorizava — os intelectuais — desempenhariam um papel estratégico na democracia cosmopolita. Eles atuariam na sociedade civil universal, assim como os intelectuais de Gramsci 12 KANT. I. À paz perpétua. In: Filosofia em tempo de terror, p. 66. 13 Idem. 14 Idem. 15 Idem.

Terrorismo contra o legado do Iluminismo A ideologia explícita dos terroristas que atacaram as

século XVIII, mas também a afirmação da democracia

Torres Gêmeas e o Pentágono em 11 de setembro é uma

e a separação entre poder político e crença religiosa, va-

rejeição do tipo de modernidade e secularização que, na

lores que constituíram o centro da Revolução Francesa

tradição filosófica, está associada ao conceito de Ilumi-

e da Guerra da Independência norte-americana.

nismo. Em Filosofia, o Iluminismo descreve não só um período específico, que coincide historicamente com o

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BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Habermas e Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 25.


atuavam nas sociedades civis nacionais. Estariam também a serviço de um ‘Príncipe’, com a diferença de que ele não seria nem um déspota, como no tempo de Maquiavel, nem um partido totalitário, mas sim um sistema democrático global. E teriam um programa, voltado para os interesses mais gerais da humanidade: a luta contra as violações dos direitos humanos, contra as assimetrias internacionais de riqueza e de poder, contra as aberrações do capitalismo globalizado e contra os particularismos selvagens que estão levando à retribalização do mundo”16. Da democracia cosmopolita de Gram­sci ao direto dos povos de Rawls, que parece ser uma solução operacional para a proposta de Habermas em reestruturar um diálogo internacional entre sociedades excludentes e excluídas: “(...) que considera [entre outros] um mecanismo que busca suprir parte das diferenças socioeconômicas em nível global: ‘o dever de assistência’. Esse princípio significa uma assistência material das sociedades ricas (bem ordenadas e liberais) às sociedades oneradas. O ‘dever de assistência’ serve para incentivar as sociedades oneradas a desenvolverem domesticamente instituições liberais e, assim, serem admitidas na sociedade dos povos bem ordenados, o que em si é visto de maneira positiva. Para o autor, o fim político último da sociedade nacional é tornar-se justa (com instituições liberais)”17. Do direito dos povos de Rawls à Terra-Pátria de Morin: “(...) a globalização da nação, que se concluiu ao final do século XX, confere ao planeta uma

16 ROUANET. S. P. A democracia cosmopolita. São Paulo: Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 1999 17 CEPALUNI, G; GUIMARÃES, F. S. Discípulos de Rawls em busca de uma concepção cosmopolita de justiça distributiva internacional. Curitiba: Revista Sociologia Política, v. 18, nº 37, out. 2010, p. 62. 18 MORIN, E. Por uma globalização plural. São Paulo: FolhaMundo, Folha de São Paulo, 2002

característica de civilização e cultura comuns; ao mesmo tempo, porém, o fragmenta ainda mais, e a soberania absoluta das nações cria obstáculos, justamente, ao surgimento da sociedademundo. Emancipadora e opressora, a nação torna extremamente difícil a criação de confederações que responderiam às necessidades vitais dos continentes e ainda mais difícil o nascimento de uma confederação planetária. Assim, se o planeta constitui um território que dispõe de um sistema de comunicação, de uma economia, uma civilização e uma cultura, também é fato que lhe falta certo número de dispositivos essenciais, que são a governança, a

cidadania, o controle dos poderes, sem falar na consciência comum de fazer parte da Terra-Pátria (...) Uma sociedade-mundo precisa de governança. Uma governança democrática mundial é algo fora de alcance neste momento. Apesar disso, as sociedades democráticas se prepararam por meios não democráticos, ou seja, por meio de reformas impostas. Seria desejável que essa governança se efetuasse a partir das Nações Unidas, que, dessa maneira, se tornariam uma confederação, criando instâncias planetárias dotadas de poder sobre os problemas vitais e os perigos extremos (armas nucleares e biológicas, terrorismos, ecologia, economia, cultura)”18.

Terrorismo e capitalismo

Não podemos negar, diz Habermas, que a globalização dividiu a sociedade mundial em vencedores, beneficiários e perdedores. Nesse sentido, “o Ocidente como um todo serve de bode expiatório para as experiências muito efetivas de perda vivenciadas pelo mundo árabe”. Em um nível psicológico, tal experiência cria uma situação favorável a uma visão de mundo altamente polarizada, em que várias fontes espirituais buscam resistir à força secularizadora da influência ocidental. Para afastar essa perigosa polarização entre a amoralidade do Ocidente e a suposta espiritualidade do fundamentalismo religioso, Habermas apela para um rigoroso autoexame por parte da cultura ocidental. Porque, se a mensagem normativa que as democracias liberais do Ocidente exportam for a do consumismo, o fundamentalismo permanecerá incontestado. BORRADORI, G. Filosofia em tempo de terror: diálogos com Habermas e Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, pp. 30-31.

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