ETAPA III Apoio ao professor
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Revolução, contrarrevolução e violência O golpe militar de 1964, a pretexto de combater o comunismo, instaurou um governo ilegal. A resistência a ele, legítima – ainda que feita com armas –, foi combatida com violência
E foi assim que o operário do edifício em construção que sempre dizia sim começou a dizer não. Vinicius de Moraes, O Operário em Construção “PRA FRENTE, BRASIL”
P
rimeira metade de 1960, o cenário político global é de extrema tensão. Guerra Fria. As relações diplomáticas são instáveis. Brasil, abril de 1961. O presidente Jânio Quadros causa enorme irritação em Washington ao conceder a mais alta condecoração nacional a Ernesto Che Guevara (Jânio não se declarava socialista, mas era nacionalista e populista). Agosto de 1961, Jânio renuncia à presidência do Brasil. Estúpida renúncia calculada para sacanear o então vice João Goulart, que estava em visita à China de
Victor Costa (@costa_victor) é Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). É produtor audiovisual do Café Filosófico CPFL. www.cpflcultura.com.br
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O Br asil pendeu par a o lado da dependência. Associou-se ao capital norte-americano par a sustentar uma ditadur a militar de 21 anos
A tortura foi uma prática comum durante a ditadura militar para combater aqueles que se opunham ao regime
Mao Tsé-Tung? Houve uma vacância no poder. Já aí houve uma leve tentativa de golpe da ala mais conservadora dos militares, afinal, Goulart era herdeiro direto do nacionalista Getúlio Vargas e dirigente máximo do movimento dos trabalhadores – melhor derrubá-lo? Goulart retorna da China. A tentativa de golpe fracassa, pois os militares dividem-se e a população mobiliza-se para defender a legalidade, o respeito à Constituição – que mandava dar posse ao vice na ausência do presidente. Sete de setembro de 1961, João Goulart assume o governo. Permanece dois anos e sete meses. Sai em 1964. Goulart representa a iminência de uma revolução? Propõe sérias reformas agrária e urbana; quer controlar a remessa de lucros para o exterior; promove uma política externa independente; defende o voto dos analfabetos e o direito dos marinheiros ao casa-
mento. No cenário nacional, com o presidente, motivavam-se as caravanas estudantis, a força da UNE, o teatro do estudante, o caminhão do povo, a Bossa Nova, o Cinema Novo, o Teatro de Arena. Enquanto na conjuntura internacional, crises se deflagram. Abril de 1961, derrota americana na invasão da Baía dos Porcos, em Cuba. Outubro de 1962, crises dos mísseis soviéticos introduzidos em Cuba. Novembro de 1963, assassinato de Kennedy. Estes vertiginosos acontecimentos lançam um estado de histeria anticomunista na opinião pública dos Estados Unidos. Nesses idos, por sua população e economia, o Brasil era peça fundamental do jogo da política mundial. Para que lado pendesse, para lá seguiria toda a América Latina, diria o presidente norte-americano Nixon alguns anos depois. O Brasil pendeu para o lado da dependência, do conservadorismo. Associou-se ao capital norte-
MANCHETES DO GOLPE 31/3/64, Correio da Manhã (Do
1/4/64, Estado
São Paulo
2/4/64, O Globo: “Fugiu Gou-
editorial BASTA!): “O Brasil já
(SÃO PAULO REPETE 32) “Mi-
lart e a democracia está sendo res-
sofreu demasiado com o governo
nas desta vez está conosco”... “dentro
taurada”... “atendendo aos anseios
atual. Agora, basta!”;
de poucas horas, essas forças não se-
nacionais de paz, tranquilidade e
de
rão mais do que uma parcela mínima
progresso... as Forças Armadas cha-
1/4/64, Correio da Manhã
da incontável legião de brasileiros
maram a si a tarefa de restaurar a
(Do editorial FORA!): “Só há
que anseiam por demonstrar defini-
Nação na integridade de seus direi-
uma coisa a dizer ao Sr. João
tivamente ao caudilho que a nação ja-
tos, livrando-a do amargo fim que
Goulart: saia!”;
mais se vergará às suas imposições”;
lhe estava reservado pelos verme-
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americano para sustentar uma ditadura militar que durou 21 anos. Trinta e um de março de 1964. Tropas militares saem às ruas de Minas Gerais e de São Paulo e parte delas começa a se deslocar para o Rio de Janeiro. O objetivo é depor o presidente. 1º de abril de 1964, os militares declaram o golpe e se organizam para tomar o poder. João Goulart não resiste, embora fortemente incentivado por Leonel Brizola, o Fidel Castro brasileiro. Goulart prefere o exílio no Uruguai. Declara que não quer ver o derramamento de sangue entre irmãos (embora, depois, nos anos de ditadura, muito sangue tenha sido derramado). 1964 representa um corte no fluxo de nossa história. Um golpe militar travestido de contrarrevolução?1 No Primeiro Caderno da Folha de S. Paulo de 1º de abril de 1964, em matéria intitulada Kruel: II Exército contra o comunismo e a favor da lei, leem-se as boas intenções militares para com a Constituição e o objetivo do golpe. Um trecho do texto cita
a fala do próprio General Amaury Kruel, uma das cabeças do golpe: “O II Exército, ao dar este passo de extrema responsabilidade para a salvação da Pátria, manter-se-á fiel à Constituição e tudo fará no sentido da manutenção dos poderes constituídos, da ordem e da tranquilidade. Sua luta será contra os comunistas e seu objetivo será o de romper o cerco do comunismo, que ora compromete e dissolve a autoridade do governo da República”.
Uma das atualidades do fato é pensar sobre a malícia semântica diante de 64: golpe, revolução ou contrarrevolução de caráter preventivo? ESTADO ILEGAL Quatro de novembro de 2008, Folha de S. Paulo, em matéria intitulada Terrorismo também é crime imprescritível, diz Mendes, o tema da legalidade do golpe – sutilmente – foi retomado na discussão sobre a revisão da Lei de Anistia. Contra a revisão da lei, o então
Uma parte do povo foi às ruas protestar contra a ditadura, mas as manifestações foram reprimidas com violência pelo militares
1. Os dados desta introdução foram colhidos de uma preciosa edição especial da revista Caros Amigos. Caros Amigos Especial, O golpe de 64. São Paulo: Casa Amarela, n. 19, out. 2008.
lhos que haviam envolvido o Executivo Federal”; 5/4/64, Estado de Minas: “Feliz a
6/4/64, Jornal do Brasil: “PON-
2/4/64, Correio da Manhã : “Lacer-
nação que pode contar com corpo-
TES DE MIRANDA diz que For-
da anuncia volta do país à democracia”;
rações militares de tão altos índices
ças Armadas violaram a Constitui-
cívicos”. “Os militares não deverão
ção para poder salvá-la!”.
5/4/64, O Globo: “A Revolução
ensarilhar suas armas antes que
Fonte:
democrática antecedeu em um mês
emudeçam as vozes da corrupção e
http://www.cartamaior.com.br/templates/
a revolução comunista”;
da traição à pátria”;
materiaMostrar.cfm?materia_id=15896
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em casos excepcionais a lei possa ser
rompida par a salvaguardar a própria lei.
O Estado militar de 64 er a ilegal ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, evocou o artigo 5º, inciso 44, da Constituição para justificar que se os militares fossem julgados por crimes de tortura, então os subversivos da luta armada também deveriam ter o mesmo destino: “Constitui crime inafiançável e imprescritível ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático”. Uma das pessoas que notou o “lapso patético” do então ministro e recolocou o assunto no tema da legalidade do golpe foi o professor de Filosofia Vladimir Safatle. Safatle, junto com Edson Telles, organizou o livro O que resta da ditadura 2. Nele, publicou o artigo Do uso da violência contra o Estado ilegal 3. Vou me valer aqui de alguns argumentos de Safatle para refletir sobre a legalidade do Estado ditatorial e sobre o
uso da violência contra este Estado. Segundo o professor de Filosofia “(...) o texto constitucional [supracitado] é de uma clareza cristalina. Sua ideia é: o Estado democrático, este no qual os princípios democráticos fundamentais estariam assegurados e instaurados, compreende como imprescritível a tentativa de grupos armados (ou das próprias Forças Armadas, como sempre foi o caso no Brasil) em destruí-la. Que um ministro do STF compreenda que isto implica também a condenação constitucional de ações armadas contra o Estado militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1984 só pode significar que, para ele, não há diferença estrutural entre Estado democrático e Estado ditatorial, ou que simplesmente não havia ditadura no Brasil naquele período. Ou seja, a lei é muito clara
Os militares assumiram o poder alegando ter como objetivo manter as leis, os poderes constituídos, a ordem e a tranquilidade. A ditadura durou 21 anos
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na sua função de defender o Estado Democrático, esse mesmo Estado cujos rudimentos foram destruídos pelo golpe militar de 1964”4. O que o referido inciso enfim deixa claro é que não é válido o raciocínio de que em casos excepcionais a lei possa ser rompida para salvaguardar a própria lei. Assim, do ponto de vista jurídiconormativo, o Estado militar fundado no golpe de 64 foi um Estado ilegal. Bem, além do problema da ilegalidade do Estado ditatorial, toquei no assunto da violência contra este Estado, quando citei anteriormente a polêmica da revisão da Lei de Anistia. A lei, de 1979, perdoa tanto os crimes contra os governos militares quanto os crimes cometidos pelos próprios governos. Torturas, por exemplo. A lei perdoa a todos, eis outro problema. Em outras palavras, o problema é que a lei equivale violência contra o Estado ditatorial à violência contra o cidadão. Portanto, há uma dupla problemática aqui, o da ilegalidade do Estado ditatorial e o da equivalência da violência do governo à violência contra o governo. A fim de estabelecer a relação necessária entre os problemas, sugiro a seguinte questão: é legítima a violência contra um Estado ilegal? Segundo Safatle, que evoca Locke, “(...) devemos lembrar que a tradição política liberal (note-se bem, a tradição liberal, e não apenas revolucionária de esquerda) admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo cidadão tem de se contrapor ao tirano e às estruturas de poder, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o governo e impõe um Estado de terror, de censura, de suspensão de garantias de integridade 2. Cf. TELES, E; SAFATLE, V (orgs). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010 (Estado de Sítio). 3. Cf. Idem, pp. 239-52. 4. Idem, p. 243.
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Não é válido o r aciocínio de que
Não faltaram protestos pacíficos e armados contra o regime militar. Anos depois, a violência contra o governo ilegítimo foi vista como equivalente à violência do Estado contra os cidadãos
social”5. Corajosamente, Safatle enfatiza que “devemos levar este ponto a sério e perder o medo de dizer em alto e bom som: toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal ”6. A ideia é simples: um Estado ilegal não pode julgar ações contra si por ser ele mesmo uma associação criminosa. Safatle insiste na questão. Ele sugere dois principais princípios – os 5. Idem, p. 245. 6. Id.ibidem. 7. Idem, p. 246.
quais surgiram na modernidade e ainda caracterizam a experiência política contemporânea – que funcionam como bases conceituais para a legalidade de um Estado. Partindo da premissa de que um governo só é legítimo quando se funda sobre a vontade soberana de um povo livre, surge o primeiro princípio: “(...) a legalidade de todo e qualquer Estado está ligada à sua capacidade de criar estruturas institucionais que realizem a experiência social da liberdade”7. E liberdade é entendida por nosso autor como possibilidade
de conflitos sociais, possibilidade de combate em torno de processos e valores coletivos. A ideia de liberdade aqui é o objeto por excelência do embate social. Eliminar este embate é a primeira atitude de um Estado ilegal. O segundo princípio afirma que o direito fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Ou seja, quando um Estado se transforma em Estado ilegal e cerceia a liberdade, o embate social, a resistência por todos os meios é um direito. É legítima. Neste sentido, eliminar o direito à rebelião
imagem: shutterstock
APARENTE LEGALIDADE Levemos em conta uma das carac-
que assinava tratados internacio-
sinar opositores, em um arbítrio ab-
terísticas mais decisivas da ditadura
nais contra a tortura (...) Quando
solutamente traumático. Nesse tipo
brasileira: sua legalidade aparente
era conveniente, as regras eleitorais
de situação, nunca se sabe quando se
ou, para ser mais preciso, sua ca-
eram modificadas, os livros apre-
está fora da lei, já que o próprio po-
pacidade de reduzir a legalidade à
endidos, as músicas censuradas, al-
der faz questão de mostrar que pode
dimensão da aparência. Tínhamos
guém desaparecia. Em suma, a lei
embaralhar, a qualquer momento, o
eleições com direito a partido de
era suspensa. Uma ditadura que ser-
direito e a ausência de direito, den-
oposição, editoras que publicavam
via da legalidade para transformar
tro e fora da lei.
livros de Marx, Lenin, Celso Fur-
seu poder soberano de suspender a
SAFATLE, V. Do uso da violência
tado, músicas de protesto, governo
lei, de designar terroristas, de assas-
contra o Estado ilegal, p. 251.
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e à violência contra um Estado ilegal é eliminar um dos fundamentos da democracia contemporânea. Vale explicar que quando Safatle escreve que “toda ação contra um Estado ilegal é uma ação legal”, significa exatamente o que a afirmação explicita: que se trata de ação contra a estrutura do Estado, jamais contra populações – mas contra os arautos do Estado ilegal. Não se trata apenas de compreen der o direito à resistência simplesmente pelo ponto de vista da defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores, tais como direito à propriedade, afirmação do individualismo, etc. Muito além disso, o ponto de vista de Safatle compreende que o direito à resistência essencialmente permite responder com força ao bloqueio da soberania popular. “Pois podemos dizer, neste sentido, que os jovens que entraram na luta armada [no Brasil] aplicaram o direito mais elementar: o direito de levantar armas contra um Estado ilegal, fundado por meio da usurpação pura e simples do poder graças a um golpe de Estado e ao uso sistemático da violência estatal. Desconhecer este direito é, este sim, o ato autoritário por excelência” 8. Quem luta contra um Estado ilegal deveria ser visto inicialmente como alguém que está exercendo um direito maior, que é o fundamento de toda democracia real: o direito de dizer “não”, nem que seja por meio das armas.
Dado importante e fundamental nesta história: Safatle lembra que “não havia luta armada de esquerda antes do golpe militar de 1964”9. É isso mesmo. Não há casos de grupos guerrilheiros brasileiros anteriores ao golpe. Vale lembrar que o principal grupo de luta armada contra a ditadura, o ALN, foi criado em 1966. O discurso militar sobre os “agentes internos da subversão, dos inimigos internos”, fazia parte da retórica idealizada para deflagrar o golpe, quando a luta então se dava contra tendências virtuais ou tendências irrelevantes se comparadas aos processos políticos que ocorriam à época anterior ao golpe no campo das esquerdas – um dos fatos marcantes da época foi a criação do PCdoB, em 1962; mas, insistentemente, não há registro de ação armada da esquerda anterior ao golpe10. “Isso demonstra como a luta armada esteve vinculada primeiramente à recusa legítima ao regime militar, ao caráter insuportável que ele adquiriu para vários setores da população nacional. Esta recusa não pode ser deslegitimada, mesmo que devamos criticar o projeto de sociedade que vários destes grupos pensavam em instaurar”11. O que unia todos os grupos de luta armada no Brasil não era um projeto comum, mas uma recusa comum. Explica Safatle que o processo político presente na esquerda pré1964 estava muito mais próximo da dinâmica que resultou, anos depois,
John Kennedy, presidente americano assassinado em 1963, em um dos vários eventos que provocaram uma histeria anticomunista nos EUA
na eleição de Salvador Allende, no Chile, do que da lógica revolucionária cubana. No Brasil, como foi no Chile, tratava-se de conquistar gradualmente as maiorias políticas no interior da democracia parlamentar. O projeto comum era o de permitir sustentação institucional para a realização de políticas amplas de reformas e de modernização estrutural das sociedades
8. Idem, p. 248. 9. Id. Ibidem. 10. Cf. idem p.15-16, nota 15. 11. Idem, p. 249.
VIOLÊNCIA ONTEM E HOJE Não nos esquecemos nem por um
sociedade brasileira, desde a tal pseu-
se dará sem enfrentamento, sem con-
dia de nossa violência social, passada e
doanistia, é que somos nós os agentes
flito. A tortura resiste como sintoma
presente. Convivemos com ela o tem-
sociais a quem cabe exterminar a tor-
social de nossa displicência história.
po todo, preocupamo-nos com ela e
tura. Esquecemos de que é possível vi-
KEHL, M. R.
a tememos. O que ficou recalcado na
ver sem ela. Só que esta mudança não
Tortura e sintoma social, p. 132.
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Quem luta contr a um Estado ilegal deveria ser visto como exercendo um direito maior: o de dizer
“não”,
nem que seja com armas latino-americanas. Esse era o perigo para o pensamento conservador, pois ele viabilizaria uma esquerda capaz de assumir processos próprios às democracias parlamentares e modificar seu funcionamento, sua estrutura, “por dentro”12. “[Era uma esquerda] capaz de recuperar o sentido concreto da noção de democracia para além da catástrofe totalitária própria à experiência dos países da órbita soviética. Nesse sentido, a esquerda latinoamericana estava destinada a romper a polaridade entre social-democracia de escopo reformista limitado e comunismo totalitário. Seu lugar no interior da história da esquerda mundial era substantivo”13.
RESTOS DA DITADURA Passou-se o tempo. Completamos, em 2011, 26 anos de redemocratização, de Nova República. Mas pense bem, caro leitor, não há algo de obsceno em chamar nossa atual situação de “normalidade ou estabilidade democrática”? Temos uma polícia cuja força maior ainda é a da violência física contra o cidadão, quando não da tortura institucionalizada; um sistema de participação política que bloqueia a capacidade da participação popular nos processos de gestão do Estado; e uma
imagens: shutterstock
/
library of congress. new york world-telegram
&
sun collection
12. Cf. Idem, p. 250. 13. Id. Ibidem.
Portanto, a violência do Estado militar e a violência contra este Estado não se equivalem, visto que o Estado militar foi ilegal e a violência contra o Estado, como tentei mostrar, legal.
João Goulart era o então presidente do Brasil quando os militares tomaram o poder, em 1964. Ele preferiu não resistir e foi para o exílio, no Uruguai
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O PROBLEMA DA ANISTIA A Lei de Anistia, de 1979, garante
mações sobre torturas. Mas à época,
crime hediondo contra a humanida-
indulto aos que cometeram crimes
o presidente do Supremo Tribunal
de: não prescreve! O Brasil mesmo
políticos contra o regime militar e
Federal (STF), Gilmar Mendes,
assinou a Convenção da ONU de
aos crimes conexos, os praticados
declarou que a revisão poderia gerar
1968 que garantia “imprescritibi-
pelas autoridades. Ou seja, absolve
uma “desestabilização política”. Se-
lidade dos crimes de guerra e dos
torturados e torturadores. O tema
gundo um dos argumentos daqueles
contra a humanidade”. Portanto, à
voltou com força à mídia em julho de
que não querem revisar a lei, crimes
luz das leis internacionais é ilegíti-
2008, quando o ministro da Justiça,
prescrevem em 20 anos e já faz mais
ma a interpretação segundo a qual a
Tarso Genro, e o ministro da Secre-
de 30 de sanção da norma. Ocorre
Lei de Anistia se estende às autori-
taria Especial dos Direitos Huma-
que o problema central é que esta
dades torturadoras.
nos, Paulo Vannuchi, defenderam a
interpretação da lei encara a tortura
revisão da lei e a liberação de infor-
como crime político. Ora, torturar é
16 •
do militar, nos crimes de tortura, na revisão da Lei de Anistia, por exemplo, – provoca uma sinistra escalada de práticas abusivas dos poderes públicos, que deveriam proteger os cidadãos e garantir paz. Não consigo deixar de pensar no que li no artigo de Maria Rita Kehl, Tortura e sintoma social 16: que atualmente a polícia brasileira comete mais assassinatos e crimes de tortura do que no período
da ditadura militar, e, no que li em outro texto, que as práticas de tortura em prisões brasileiras também aumentaram em relação aos casos de tortura na ditadura militar17. Caros Amigos Especial. O golpe de 64. São Paulo: Casa Amarela, n. 19, out. 2008. COSTA, V. Nova República e Lei de Anistia. Campinas: Jornal Correio Popular, 31/3/2010. TELES, E; SAFATLE, V (orgs). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010 (Estado de Sítio).
imagem: marcello casal jr./abr
14. Idem, p. 251. 15. Id. Ibidem. 16. Idem, pp. 123-32. 17. Cf. artigo de Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, The impact of human rights trials in Latin America, Journal of Peace Research, Los Angeles, Sage Publications, v. 44, n. 4, pp. 427-45.
Consideramos viver em uma democracia estável, mas ainda convivemos com policiais que praticam violência física contra muitos cidadãos
referências
Constituição de mais de 20 anos que possui um conjunto de artigos de lei que simplesmente não vigora, além de ter recebido mais de 60 emendas – “como se fosse questão de continuamente flexibilizar as leis a partir das conveniências do momento”14. Não é da incapacidade de lidar com nosso passado que vem o caráter deteriorado de nossa democracia? Concordo com Safatle, que responde que sim: “(...) nada disto deveria nos impressionar, já que, por nunca ter feito um tribunal contra a ditadura, o Brasil nunca disse claramente rechaçar as práticas político-administrativas típicas dos operadores de regimes totalitários como o brasileiro, um regime cínico por fazer questão de mostrar não levar a sério as leis que ele mesmo enunciava”15. Não pensar na atualidade dos problemas em torno de nossa ditadura militar – na ilegalidade do Esta-
COSTA, V. Nova República e Lei de Anistia.