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74velas

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Oquetesalva

Oquetesalva

por Thiago Noronha

Estar apaixonado em tempos de fascismo me lembra uma performance musical que presenciei, certa vez, pelas ruas da periferia de Fortaleza. Eu não sei quem idealizou e executou. Consistia em um pianista sobre a pampa de um caminhão. Era um concerto móvel. Ele passeava pelas ruas enquanto tocava belas melodias clássicas num piano de cauda belíssimo. Ouso afirmar que foi a primeira e única vez que um piano de cauda esteve no bairro João XXIII. Eu lembro que avisaram antes do trajeto do concerto itinerante. Na minha rua, todos os moradores ficaram esperando em frente às suas casas pelo tal caminhão com o pianista passar. Quando enfim o veículo dobrou na rua, notou-se que ele vinha perseguido por uma multidão de cachorros do bairro que latiam

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enfurecidos para o estranho caminhão musical. A bela melodia do caro instrumento era estragada pelo latir dos muitos cachorros da vizinhança. Os moradores tentavam afugentar os cachorros com gritos e pedras e tudo virou uma algazarra só. O que era pra ser uma bela apresentação artística virou uma algazarra itinerante. O motorista parecia desconfortável, dirigindo até mais rápido do que deveria, mas o pianista, vestindo um terno brilhoso, continuava sua apresentação como quem era assistido pela mais fina das plateias, embora uma ou duas vezes tenha tido que puxar a perna pra cima para evitar uma dentada. É difícil fazer arte em meio ao caos. É difícil se apaixonar em meio ao caos. Mas as intenções eram boas, acredito. Tanto a dos produtores, que talvez pensaram no impacto de levar o primeiro piano de cauda às ruas periféricas de Fortaleza, quanto do pianista, quanto dos cachorros, que talvez estavam apenas alertando a população sobre aquela estranha aparição barulhenta e invasora no bairro. Até os que se apaixonam durante o fim do mundo têm boas intenções. Eu lembrei disso por três motivos: tô apaixonado, estamos no fim do mundo e ontem o meu pai acendeu uma vela de finados pro antigo cachorro de estimação dele, morto atropelado no dia do concerto itinerante do pianista pelas ruas do João XXIII, ao perseguir, junto dos outros cachorros, o caminhão musical. Eu fui passar o feriadão na casa dos meus pais. Tava tentando encontrar um momento para contar para o meu pai que eu estava namorando. Sentamos na área de serviço, no anoitecer do dia 2, envoltos de vários pacotes de velas recém-comprados para a tradicional contagem dos mortos, que sempre fazemos em tal data. Desde muito criança eu gosto de participar desse ritual do meu pai. Ele vai lembrando morto por morto e acendendo uma vela para cada. Ele sabe o número fechado: 74. Mas teima em não

anotar os nomes numa lista, como quem desafia a memória, e ano após ano tem que lembrar. Aí acende a vela, e prega uma fita gomada onde escreve o nome do defunto no chão, ao lado. Às vezes leva um bom tempo pra lembrar quem tá faltando. E não tem coragem de desistir do processo com medo da cobrança do defunto pelo esquecimento. Eu sempre gostei de assisti-lo fazer isso. Primeiro porque criança adora ver gente mexendo com fogo. Depois porque me apeguei aos comentários que ele fazia enquanto acendia as velas: “Para minha tia Luiza... ela fazia uma cocada tão boa” . Já adolescente eu lembrava a ele os mortos que faltavam na contagem. E depois me peguei repetindo as mesmas falas que o ouvia dizer: “esse ano não morreu ninguém” . Ele sempre começa com a vela do cachorro. Talvez por ser o único animal entre as 74 almas, seja o mais lembrável. E ontem ele falou algo enquanto acendia a vela que me arrancou uma gargalhada: “Para o Binho... cachorro tão bom... aquele pianista maldito” . — Pai, tô apaixonado — falei lá pela vigésima vela. — Eu só espero que morem perto. Com a gasolina desse preço... Até as velas esse ano tão caras. Se continuar assim, vão ser dois mortos por vela ano que vem. Até o respeito aos mortos querem nos tirar. — A culpa é do Bozo! — É do PT!... Já teve vela pro primo Antônio? Ele era comunista, igual vocês! Sei nem porque ainda acendo vela pra ele... capaz que era até ateu. Aí eu fiquei horas deitado nos azulejos de uma área de serviços no João XXIII assistindo o dançar das sombras das velas dos 74 mortos, como faço desde muito criança. Nostálgico. Lembrando do pianista, do meu recente namoro, dos mortos que

nem conheci e das tragédias políticas do nosso país e da finitude, que nos reduz a velas, a mercê da boa memória de um parente... ou da afinidade ideológica. Meu gato apareceu, curioso com as muitas velas pelo chão. Ele se roçou em mim e deitou encostado às minhas costas. — Antes eram menos velas — falei para ele. Percebi que um dia acenderia uma vela pra ele. “Nanis, um gato de sinceros afetos” . Sempre soube que herdaria esse costume do meu pai.

Thiago Noronha nasceu em 1990 no bairro João XXII, em Fortaleza/CE. É formado mestre em administração e controladoria pela Universidade Federal do Ceará e trabalha com gestão há mais de uma década. Na literatura, escreve sobre o cotidiano, revisita memórias da infância, conta de suas viagens Brasil afora e relembra paixões. Dizse dono de uma escrita cômico-afetiva cheia de críticas sociais.

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