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Cumbica

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74velas

74velas

por Janaina Behling

Enxergar argentinos em portugueses é uma sabedoria brasileira.

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O único aeroporto movimentado do mundo era o de Tervel, no leste da Espanha. Ele oferece serviços de estacionamento e manutenção para aeronaves impedidas de voar. Em março daquele fatídico dois mil e vinte, ele acolheu setenta e oito aeronaves e tinha estimativa de acolher cento e vinte e cinco, a confirmar, até o final do mês. Dentro do seu mais absoluto normal, continuou sendo o mais inóspito de todos os aeroportos, da pandemia do novo coronavírus à baixa aviação e, mesmo assim, precisavam ser mantidas vivas as peças. Tratadas como peças, uma das tarefas dos especialistas é levar os aviões para um hangar e colocar eles em macacos. Enquanto suspensos pelos macacos, são feitos testes de retração. Em vinte e cinco de abril daquele ano, puseram dois A380 da Air France, sete da Lufthansa e nove da Airbus neste hangar. Foram mais ou menos dois milhões, duzentos e trinta e cinco mil e seiscentas pessoas por dia que deixaram de trafegar pelos ares, a considerar o número de aeronaves vazias e paradas no mesmo lugar.

Enquanto isso, Cumbica fazia depois de um certo recesso suas primeiras viagens e estava repleto de colombianos, peruanos, chilenos, uruguaios, paraguaios, bolivianos, equatorianos, venezuelanos e guianos acampados. Crianças, adultos e idosos praticamente estavam morando no terminal do aeroporto. Eram centenas de imigrantes que perderam emprego ou fecharam empresas em São Paulo. Restaurantes, instrumentos musicais, daime. É provável que tenham pedido apoio aos consulados e aos

seus xamãs, mas os vôs’ disponíveis para seus respectivos países continuavam escassos e tudo o que recebiam eram marmitas como donativos comemoradas pela fome. Não havia argentinos.

Na plataforma adiante com destino a Portugal toda segurança era toda. Tecnologias de último tipo não funcionavam muito bem, mas estavam lá, entre totens de check-in, tamancos de borracha, caixas registradoras, lenços umedecidos e bisnaga de álcool em pasta, pasme, para os cabelos. Era um salão de embarque especial, distintivo, representativo, particular, peculiar, essencial, singular, indispensável, típico, próprio, exclusivo, intrínseco, específico, único. Era portanto, uma plataforma alheia como Tervel, mergulhada em si mesma e nos agricultores da Beja, presos em Buenos Aires e recém chegados à capital paulista por não conseguirem também, de seus respectivos xamãs, a mínima atenção para retornarem depois de viajarem para a capital argentina para visitarem a Expoagro, a mais importante exposição agroindustrial em campo aberto do país sul-americano, numa viagem organizada pela Associação de Agricultores do Baixo Alentejo. Patologicamente verborrágicos de uma língua no mínimo forasteira para qualquer um ali, fato é que os agricultores sequer pareciam compreender os acampados como seres humanos no aeroporto de Cumbica.

E foi assim que Regina Schit entrou no avião de São Paulo para Lisboa. Brasileira e automaticamente aliviada por ser ninguém naquela atmosfera nebulosa de pessoas e cores insistentemente categorizadas e distribuídas. Preto e amarelo para as tiras de contenção de pedestres. Placas vermelhas por qualquer motivo. Azul para os banheiros. Esteiras prateadas para os pés. Céus encobertos pela chuva cinza. Revistas desbotadas. Cafés ruins e disponíveis. Pastel de feira e Empanadas. Pretzel. Cerveja quente no free shop. Pastilha soft para o mal hálito. Privilegiada por ter nascido num lugar em que até caiba Tevel mas também o seu

oposto, já que em seu mais absoluto normal Cumbica permanecia caótico, Regina e sua enorme facilidade de ficar expandida estavam a caminho da Universidade de Coimbra para um doutoramento. Pensando em documentação e dispositivos móveis queria desativar a noção de evolução ou de desenvolvimento que está implícita na história das ideias linguísticas ou nas teorias de racionalização da miséria humana, talvez para reconduzir ou resgatar a experiência nua de seu próprio modo de ser enquanto profissional da linguagem, embora soubesse distinguir entre diferença e repetição. Na aeronave então parecida com um cometa raro, fazendeiros alentejanos enchiam de uma certa hostilidade a própria pandemia que voava com eles em direção ao país soberbo e molusco. Ela foi porque via as línguas como vertigem e se constituía estrangeira por falar brasileiro.

Foi esse seu legado. E seu tormento.

Janaina Behling é ex-doutoranda em Linguística do Português pela Universidade de Coimbra. Publicou, pela editora Simplíssimo, o e-book Corpo-Crônicas duma Brasileira numa Pandemic Portugal. Foi esse seu legado. E seu tormento.

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