Para Onde Vão os Sapatos

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bergamo, Benedito Para onde vão os sapatos / Benedito Bergamo. -São Paulo: Ed. do Autor, 2017. ISBN 978-85-913520-2-9 1. Poemas em prosa 2. Poesia brasileira 3. Surrealismo I. Título. 17-10212 CDD-869.1 Índices para catálogo sistemático: 1. Poemas em prosa : Literatura brasileira

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2. Prosa poética : Literatura brasileira

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Editor Benedito Libério Bergamo Capa e Design Gráfico: Vinícius Lourenço Costa vicodesignblog.wordpress.com Revisão Maria do Carmo Rodrigues Todos os direitos da obra e edição reservados à Benedito Libério Bergamo



BENEDITO LIBÉRIO BERGAMO São Paulo 2017




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Sim, pode ser loucura escrever ao sim de todo humano que pode ser Deus Não nego as figuras da realidade do tempo de outras coisas Estou de meias nos pés no inverno no início da noite na cidade com seus morcegos despertando A liberdade é um excesso numa foto descuidada O que pode acontecer dentro dessa prisão? O uivo já foi ouvido Qual é a importância do avião na discussão sobre a necessidade de perigo? Um ponto no céu pode ser só uma coisa deslocada da ideia de que o ponto sempre esteve aqui Um poeta só entende que se perdeu em nuvens se perdeu em cosquinhas no coração se perdeu na discrição de um relógio para um beijo na boca se perdeu na espera de não estar na poesia se perdeu na forma e gosto de uma bolha de sabão se perdeu quando o poema terminou Eh! Pode ser loucura lembrar que foi esquecido algum quase antes um disco voador imprevisível na ponta da caneta no papel mas que muda a realidade é perceber tudo ao mesmo tempo

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Se você estiver sem rumo de escrita na noite, pergunte a direção para o dono do bar Ele dirá que se pode ir para cima e para baixo no querer tudo na profundidade do momento de fechar os olhos na direção da luz, que vem da porta do castelo das musas que ensinam a vida e a morte sobre um lençol de alumínio num rascunho de uma esquina num som de rock numa cerveja barata Ele talvez diga que se pode chegar até o encontro das palavras com os beijos das luzes vermelhas e amarelas piscantes fora de horário combinado para o conhecimento anônimo no banheiro feminino mas via de regra advertirá que é identificando os inimigos que se escolhe os amigos e se sentir em outro lugar é só reflexo do olhar enganado sob a lua Noite tem todo dia E errar é uma paixão que deixa um pé de sapato vazio de nada de tudo na esquina do meio da rua sem revisão na porta do bar que nunca se fecha para palavras perdidas


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Não é fácil se sentir cansado de querer essas coisas do ócio que vêm em saquinhos plásticos Seguir ombros contrários do inverso da dança Soltar as pernas na gangorra Ficar vendo pomba ciscando quando não se sabe o que se sente Talvez viver seja apenas levar seu corpo de lá para cá antes da chuva antes do taxi Talvez seja só uma pintura no coração de horas e minutos de espera que tudo pare depois de um cafezinho e um cigarro Ninguém chega depois da hora de dormir de sapatos Estou indo – diz o sol para a janela - mas a porta não ouve Tudo tem uma dobra do quê do tempo das pessoas nas calçadas indo para o teatro, sem angústia do peso de serem pura mistura de saliva contidas por uma forma de ser no início da noite. Anotei o movimento do sol nas palavras lidas entre as cortinas Desenhei vértices de realidades de um domingo Segui os sentidos que podia ser alegres no ladrilhos em redemoinhos do não pensar Tantas fotografias de são Paulo espalhadas na varanda O céu na noite fria Que chega Para manter a permanência de uma preguiça solitária


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Viagens, viajem Roupas previsíveis que ocupam o espaço do peso que pesa Bagagem que muda de arrumação em cada nova estadia Bagagem que traz as novas vestes, regalos e coisinhas gostosas e estranhas não queremos perder queremos carregar suportamos para consumi-las e esquecê-las sentido nunca investigado lembrança do que ficará no futuro do esquecimento É triste se desfazer da bagagem no cansaço da chegada separar as coisas que foram para voltar para os cabides para as gavetas para as mesinhas Mas tem aquelas coisas que precisam de um lugar novo em cabides, gavetas, mesinhas, armários, paredes, janelas, portas, varanda, jardim e do lado da caixa de correio E tem aquelas que não precisamos mais nenhuma utilidade Por que as carregamos? O que é que precisamos para viajar? Fotografou a mochila vazia? O que será que coube nas fotografias do pôr e nascer do sol no horizonte daquela montanha do mundo feito de pedras e neve?


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Existem brilhos, raios, luzes que não saíram de lá e continuam revelando o nascimento de um segredo um mistério que se movimenta com a fumaça do mapacho pela rua Chiuanpata, virando na Carmem Bajo e seguindo, depois da Plaza San Blas, para descer a Hatun Rumyoc até a Plaza de Armas Tudo revelado enquanto o sol escorre pelas paredes, portas, janelas fechadas, calçadas e sarjetas de Cusco, encobrindo a falta do que não existiu para nossos olhos O sol transmudado em poeira átomos de ouro fixada em nossas roupas sapatos câmera fotografias


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O tempo é uma porta aberta pela novidade do medo e da esperança de querer fazer de querer ser de querer estar de ser verbo Um sentir-se simples pérola solta do colar caindo e rolando sobre as palavras não lidas da página ainda desconhecida no livro de Cortázar Quem é que não é amado neste instante de leitura? O que faz graça no divino? Será doce ou salgado o sabor da pérola em seu trajeto entre palavras não lidas? O tempo Assim parece amor sendo guia em roteiros desconhecidos por palavras conhecidas Tempo que pode ser a liberdade em deter a pérola solta e tentar impedir que as outras do colar se soltem


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O tempo se parece com tudo do tempo porque é feito do inevitável ritmo de uma pérola após outra saltando sobre fecho do sapato É múltiplo Um colar desfeito São as pérolas que ficam nas mãos É o quicar e quicar é rolar e rolar direções e direções reflexos e brilhos brilhos e reflexos sob o olhar da lembrança do para onde foi cada uma no chão da realidade cercada e dividida por cômodos e portas O tempo em nós permite contagem de pérolas do colar do sonho e oferece a descoberta da falta de uma a pequena esfera branco-prateada encontrada atrás da porta de outro tempo agora


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Todo fim tem sua duração e o início é só fuga dos escombros São rascunhos feitos no ponto de ônibus sem cobertura na chuva É a procura de mão no bolso Só isso que tenho diante dos deuses do mundo Um instante relação da verdade pública dos pedaços de feliz cidade que trouxemos para o jantar Será sempre diferente daqui para frente sairemos correndo para encontrar alguém para fazer sexo Pode ser assim que algo mais aconteça, além da marca do beijo vermelho na porta da geladeira Para que a tristeza dos sonhos ou a bondade de um mertiolate? Sempre existirão placas de bares indicando o final que já se foi na lógica do é ou não é uma volta no quarteirão com sapato apertado levando o cachorro para fazer xixi na calçada dos teatros Seremos outros da mesma espécie cheirando conversas sobre o que é legal no tempo de um novo fim desconhecido feito só para hoje


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Uma tragada de tanto faz, enquanto as janelas voavam como folhas no passar do ônibus, para o trabalho de escrever no sábado que não sai na foto Seguro uma mala de tudo bem não curtiram a ideia do motivo da expressão de um sonho alucinado pelo espelho quebrado pirâmides de teatros estavam num outro plano do outro ônibus que passava antes da tempestade do Rei Lear Um outro que te olha querendo ser seu sentir na luz no som do ritmo de outro céu do astronauta da fotografia com aeon escrita no verso Um poema não tem fim, mas não dura muito Isso é quase um princípio irresistível rascunhos que se encontram na sugestão do pensar de um astronauta caminhando descalço Todo mundo é filho da puta


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no bom sentido A felicidade apenas é uma alegria média para os cachorros Os sapatos têm tempos diferentes Ideias que não servem para nada Talvez se o poema pudesse oferecer uma versão marginal para o toque-toque dos sapatos próximos de me encontrar feito cartão de visita sob uma tempestade de verão Talvez algo mais romântico como pedir ajuda para fechar a janela as portas e passar horas assistindo televisão O trânsito está parado E o ônibus não chega


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Aquilo que leva o ser humano pode ser o ventre o vento ou a sorte do destino comum, tão comum quanto os sinais das digitais no interruptor que acende a luz de qualquer passagem que não queremos enfrentar na total falta de paredes, janelas, porta, chão e o enfim de quase tudo que sempre está ali, bem perto do desejo de prisão Procuro letras contidas por tantas palavras dos jornais espalhados entre as notícias do periódico barulho ruído do controle remoto apagado na poesia visual da tela da televisão fora de sintonia Minha alma se alonga no espelho sendo imagem saindo dos sapatos para o descanso Vaso, flor de plástico (parece vidro), portaretratos, telefone, cinzeiro, copo de tequila, alguns rascunhos, tique-taque do relógio despertador, chaves, livro que me emprestaram para ler, um pedaço de bolo, uma xícara de chá de boldo e colherinha, tudo está sobre a mesinha (exceto a colherinha que acabou de cair no chão), diante das paredes que suportam e suportaram pregos, quadros de família, folhinhas de calendário, fotos de santo, alguma arte e os defeitos de quem tentou corrigir suas imperfeições Penso em encontrar o vão da poesia entre riscos de palavras feitas Apago a luz Surgem os desenhos do pensamento Sussurro umas palavras e vou sendo conduzido aos poucos para dentro porta retrato para adormecer em paz na dedicatória curta no verso da fotografia


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É sempre o mesmo café antes de partir para um dia qualquer Toda conspiração de uma rotina é feita de conversas do fogão com a geladeira sobre os ruídos da máquina de lavar conveniências da linguagem frenética do relógio do trabalho as notícias daqueles que nunca souberam que seriam notícia no rádio tudo programado com a intenção oculta de um atentado Queriam desligar tudo Sim Apagar o fogo que ferve a água para o café arrancar o fio de eletricidade da geladeira e apertar o off da máquina de lavar para descanso das roupas sujas da língua O rádio sempre é mais simples para desligar as buzinas continuariam enviando para o espaço seus “bipipis” “fonfons” e seus derivados erros de reprodução da comunicação extraterrestre da vida humana neste planeta Não dá para desligar tudo no esquecimento daquilo que ignoramos em nossa verdade um efeito de diferença de ilusão no tempo que desapareceu depois de ser momento vítimas da felicidade por não engasgarmos desculpas pelas tragédias vazias aceitas como romances de desculpas por evitar o nada do que queremos trepando sem as resistências da ciência sobrenatural


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Tudo bem É sexta-feira num sistema superficial e tolerável do trabalhar sem hora para o incêndio na cabeça virada na direção do fundo do sonho como magia sugerindo palavras flutuantes dos agradáveis pensamentos no interior do aquário de desordens sonhadas por quem ficou preso pelos dedos voltou a dormir depois do café deixando tudo ligado pela caneta tela teclado e óculos caídos diante dos olhos fechados para a ordem da linguagem sonhada em cada palavra do espaço íntimo da impressão de que se perdeu a hora por conta de uma conspiração de palavras

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O olho não quer de volta o que dele se põe à parte


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A dor se dilui na data solvente do calendário que desliza sob a pressão de seu sabor nem doce nem salgado É o meu aniversário Um se da existência percorre a sala estabelece distâncias atrasos de ondas fora do mar ecoando vozes dentro do mais profundo texto abandonado como poesia do desejo que ilumina a poeira sensata das imagens Desfaço a pintura da mágoa seca e cega das pálpebras com o cuidado de mãos ardentes em sedas íntimas Recolho em caixinhas de joias as lágrimas não vistas pelas luzes das pequenas lâmpadas que iluminam o celular numa ligação perdida e confidencial Penso que alguém quis saber de mim Seria alguma surpresa? Procuro não incomodar a solidão em seu sono saio do canto pela única saída possível e óbvia O movimento inflama a poeira A pintura das pálpebras se desfaz do que poderia ser uma tristeza lógica Vejo o que é do tudo o que pode ser claro nas horas e segundos A solidão acorda em seu fogo frio e inicia o harakiri sem dizer adeus sem debater ou comentar as imagens de peixes coloridos do vazio aquário transformado num abajur cheio de pequenas lâmpadas O celular toca Alô!... Sinto um peso insuportável Fico exausto Solto braços Ombros deixo a cabeça pender para frente olho para calos dos pés desligo o celular Era o despertador


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Vida Qualquer coisa de melancolia desculpas por um atraso ou fracasso qualquer Vida Flores colhidas um prato do dia, relógio do meio-dia, sorte e tristeza, loucura e pobreza, toalha de mesa e migalhas de pão Vida Nascida na ladeira a baixo foi crescendo ladeira acima desviando-se de cadeiras de rodas e sapatos flores de bodas dos cadernos de tabuadas das somas perdidas e descontroladas Vida Uma porção de coisas esquecidas nos armários, caixas de calçados, aquários e retratos de documentos de identificação tudo que fica empilhado do lado do sofá de frente para a televisão


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enquanto o tempo flui num fio de eletricidade Vida Um gosto de fome de paz depois da guerra perdida, uma lembrança de poesia não escrita, uma sensação de mãos mais atrevidas na retórica dos dedos em calcinhas e sutiãs Vida No vai E Vem do tecer o esquecimento do último encontro sem qualquer intenção de bilhetes prévios sem celular tocando Vida

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Vida Qualquer coisa de melancolia desculpas por um atraso ou fracasso qualquer Vida Flores colhidas um prato do dia, relógio do meio-dia, sorte e tristeza, loucura e pobreza, toalha de mesa e migalhas de pão Vida Nascida na ladeira a baixo foi crescendo ladeira acima desviando-se de cadeiras de rodas e sapatos flores de bodas dos cadernos de tabuadas das somas perdidas e descontroladas Vida Uma porção de coisas esquecidas nos armários, caixas de calçados, aquários e retratos de documentos de identificação tudo que fica empilhado do lado do sofá de frente para a televisão enquanto o tempo flui num fio de eletricidade Vida Um gosto de fome de paz depois da guerra perdida, uma lembrança de poesia não escrita, uma sensação de mãos mais atrevidas na retórica dos dedos em calcinhas e sutiãs Vida No vai E Vem do tecer o esquecimento do último encontro


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sem qualquer intenção de bilhetes prévios sem celular tocando Vida Indo e vindo sobre o tapete azul da sala, passeando pelo brilho do olhar que espera aquele beijo num grito num ponto agudo numa falta de ar numa palavra pressionando para jorrar ou explodir depois do desespero Vida Compreensão que se derrama na lágrima da beleza daquela lembrança do cantar do falar daquele lugar do dia depois disso O fim E Início Vida Na porta do apartamento Nua pedindo passagem pelo deserto de todas as solidões que ali residem. Vida Conduzida pelos primeiros passos escritos sobre um não para além do meu olhar abrir a cortina colorida das suposições do desejo e alcançar o caminho que encontraremos sem vê-lo Vida Que envia mensageiros no vento para anunciar o passado e o futuro através de seus sons pelas frestas da janela e pedir olhos abertos para o sentir o momento Vida A primeira fala que recita os segredos esquecidos nas entrelinhas dos rascunhos

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Vida Olhando meu inverso num espelho ao redor do umbigo com seus planos de pensamento infinitamente inacabado na composição da música ótica do ritmo do aroma da água caída no descanso da sede dos olhos de uma criança que corre alegre atrás da bola no jardim Vida Feita na segunda dor no segundo piscar de olhos no segundo vício na segunda morte do tempo nas seguintes esquinas vazias da expectativa de ser nas próximas avenidas largas do medo do não ser Vida Em sonhos do ontem do amanhã e do enfim que poderia ser e continuar sendo na pulseira aberta do relógio sobre a mesa à espera de que tudo passe da espera de que tudo mude para nós em nós por nós Vida Mais próxima do que permite a direita a esquerda o de cima o debaixo da cama feita de palavras que dançam sobre os cacos de vidros de um poema pintado de taça de vinho tinto manchado de batom caída da mesa um tapete azul comprido que decora a porta



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Estamos juntos desejo o então do tudo que vivi Sobre as perguntas feitas do agora fico diante do abismo da sua aceitação e nela mergulho vendo no céu azul um zepelim verde Seu errado imaginário é da mais pura beleza revela a luminosidade desse balcão nos servindo um café com leite Você me deixa surdo para minhas palavras com seu olhar curioso Quem era o autor de um ser assim? Sinto a suave felicidade do resgate da infância escolher moedas de tons mais velhos para pagar os cafés diante da vitrine de doces com seus confeitos Nosso agir entre sorrisos certeza perdida a quase confusão mistura de coisas faladas sobre o café com leite de ontem e os sabores do café sem seu leite em pé hoje indo com a existência das coisas deslocadas no pisar dos calçados


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Dois pincéis em movimento a tinta do quadro de cores urbanas matinais do caminho de retiro Continuamos a ação de um sobre o outro misturamos em rabiscos falados aos poucos as cores da liberdade das janelas abertas dos edifícios o tempo da esquina que nos perderia de vista para o nosso destino escrito por detrás de textos da vitrine dos doces infantis desenhos de anjos se olhando desejando beijos do mundo num início de inverno

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Naquela noite frio e muito calor o corredor a porta me sentia mal um bem estranho não experimentado Não queria falar, queria sair para o corredor e, quem sabe, descer a escadaria de vinte e três andares em brasas Uma lanterna acessa Agachei fiquei como alguém baleado cheio de cicatrizes que não sangravam o telefone tocava - Não vai atender? Não importavam os telefonemas estava fora fora de tudo olhando para a luz vermelha da lanterna numa ideia nada no corredor disseram era assim um sonho indo corpo preso entre as linhas dos ladrilhos do corredor um casaco de couro Ouvi uma voz um sino do leste e do oeste Ela para a dança Fiquei de pé uma pessoa qualquer num corredor qualquer


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círculos no ar com o dedo indicador não eram círculos eram corações pequenos corações fixados na respiração do ar nada mais acontecia naquela noite naquele prédio naquele corredor naquela vida diante da porta aberta irradiando luzes de filmes divertidos expelindo flocos de neves pouco a pouco cobrindo o capacho verde Me senti como embalagens de comidas congeladas data de validade vencida porta de geladeira aberta o eco das falas das barbies peladas a caixa de sapatos de salto alto atrás da porta o teto a luz da lanterna se apagando - Hey, baby... era só um passeio... Risos você de calcinha verde paz pintando de cor chiclete as unhas dos pés

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A brasa ainda aquece o repouso da alma desperto bem entre o nada do cosmo quarto de solteiro palpite invisível de estar pronto revoada de amores [ no esquecimento noturno da vigília Chega de sinos! Um jazigo bastaria súbito e desavisado domingo todo o domingo encontro do passado praça onde os anjos brincam na fonte com suas estátuas lembrando dos botões de sua blusa do zíper do seu jeans espantoso raio solar revelando o aquário tudo o que nele tenta se esconder mergulhado cheiro da sua fuga sem qualquer bilhete


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O enigma da solidão inscrições de pensamentos condescendentes estranho íntimo jazigo O mundo natural do cemitério Com o que se importam os mortos? Vejo o livro e os poemas que escaparam Da fuga de seus lábios entre o belo seu reflexo no espelho réplica do Renoir O celular toca. É você, do supermercado, dizendo que vai fazer um almoço para meu domingo O fogo volta a arder na minha alma Adie meu velório Renoir!


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Alguma coisa que se revela na visão Ali na calçada Vindo no calor que retarda a respiração Ali movimentando-se sobre a folhagem do silêncio caído das folhas secas das árvores Há lá alguma coisa É um simples estar indo para ver o que adiante que se mostra como anterior e presente (não precisa entender) Pode ser poesia surrealista das três esquinas do sentido que vai pela Praça Roosevelt com os dois sentidos que vêm e vão para o centro pela rua da Consolação Pode ser o caminhar daquelas bonecas a elegância estranha e admirável dos esqueitistas a flexibilidade do reflexo do meu gosto nu O sol polindo as fachadas dos edifícios? As sombras felizes se aconchegando nos parapeitos das janelas ao som de Satellite of Love? Quem deve estar ouvindo Lou Reed nesta tarde de quartafeira de outono quase sem água?


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Quem é o cuidador das idosas árvores penitentes que ladeiam a igreja da Nossa Senhora? Bem-te-vi sob as majestosas falsas seringueiras devir das luzes do avesso do reverso sol tocando vestes e decotes revelação do não entender rumo futuro das portas das boates apagadas as musas de Di Cavalcanti sobreviventes aos incêndios de teatros vazios demolições de castelos na rua Nestor Pestana


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Foi difícil esperar pelos dias das horas nas letras, pelas pessoas que partem em troca dos “entre e tantos” acenos desperdiçados. A comunicação não era para pessoa alguma, mas pude me perceber nas notícias lembradas, enquanto se manifestava o entendimento sobre as tragadas de um cigarro numa frase ouvida sem saúde. Um átomo de Deus tudo sabe e imaginação não presta para dele se esconder. O absurdo era igual ao mistério, embora fosse óbvio o movimento das identidades pelas vitrines do Bom Retiro. Queria separar o que é de você em mim de tudo aquilo que dos outros nos alcança; pesar a existência numa balança da farmácia e lembrar do meu umbigo como leito da inquieta insônia de teu ventre. Você estava ali e quase aqui e novamente veio, sem véus, prestando atenção na descrição da espera em que te faço mais linda em suas interpretações sobre meu sorriso de desejos e conclusões que não precisam ser escritas. A distância ia desaparecendo e surgindo, enquanto íamos, lado a lado, no desviar de um buraco na calçada de nosso caminho. Seu pensamento ia se tornando visão sobre o engano de tantos que observavam a alegria. Nossas palavras eram pedidos de uma conclusão sobre o número de barras de ferro da cerca que divide esse lado do Jardim da Luz (por onde poderíamos ir?). Sabíamos que todos os sons das buzinas dos carros, dos toques do sino da igreja, do vento em todas as rosas, árvores e nossos passos iriam sucumbir ao som firme do terceiro toque do sino da igreja, que concluiria a nossa tentativa de imaginar a fé.


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Então, você me beija imaginando a importância do cinza da quase noite e da garoa fina que molha os cílios. Falamos sobre perfumes, madeira em pedaços de um caixote de frutas, chaminés e neons refletidos no asfalto difuso e molhado na quase noite sem lua de ar fresco. Carinhos sem figuras, sem descrição, levezas silábicas... O só do sentir no quente completo do inverso dos sinais das mãos em nossas faces iam moldando olhares da poesia do desparecer entre lábios (não nos custava nada dizer adeus felizes numas poucas e belas palavras). Foi naquele fim de tarde e início de noite, que, por falta de coincidência ou de ficção mais romântica, duas pessoas saíram juntas de um café e se beijaram, com sapatos desamarrados, para sempre.


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Completar as palavras de um poema é o momento do inesperado pulo de um gato no olhar perdido de uma pomba As palavras estão aí voltadas para o céu excitado que sinto no inesperado momento do escrever o vento da tarde trazido no som da correria das pessoas cruzando a rua com as expressões de medo e expectativa por aquilo que é diferente no excesso do sentido de viver com medo da chuva Algumas palavras são imprevisíveis na certeza oportuna de apertar o botão do controle remoto da TV para desligá-la do esperar por outra hora e sair para apontar lá no céu o traçado que a chuva irá seguir Outras palavras estão fora das formas das palavras e transbordarão das calhas canos Canais no mundo do encontro de ruas e avenidas guias e sarjetas das ressalvas respostas dúvidas Para as palavras parece existir uma regência no acúmulo de qualquer sentir daquilo que basta para singela alegria de estar tomando sorvete no calçadão da Primitiva Vianco no início da pesada chuva Sem forma as palavras vão ganhando claridade um brilho molhado pingos que plaf! caem na massa da bola do sorvete plaf, plaf! sobre a pele do rosto da emoção forma na imagem pessoas confusas olhando para o semáforo quebrado da cidade com pisca-pisca do verde-vermelho entre as retas faixas de segurança nas palavras sons que são ouvidos na escrita formada com letras


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barulhentas da perdição na fuga do passo seguinte da tempestade que vem última página daquele romance auto ajuda qualquer coisa de alívio lógica de ir ao céu depois do inferno som da panela de pressão os últimos feijões mágicos cômodo de cortiço da Rua da Estação dia de verão sem água luz janela com banheiro privativo sujeito à inundação Palavras são excelentes para pintar pensamentos e recordações, que chegam úmidos aos seus olhos pelo reflexo furta-cor de espelhos d´água das fontes piso da calçada do shopping das vitrines lantejoulas cinza dos olhos da cobiça ao guarda-chuva alheio sapatos novos e secos de outrem Mas são incompletas as palavras na transcrição de quantos desejos de vida observam a ausência da luz amarela no sinal quebrado o fluir das listras brancas da faixa de segurança contornando o leito negro da rua escoando com as águas no bueiro quase entupido enquanto aquela pomba distraída com ruídos do céu no fim da chuva em seu olhar o olhar de um gato preto caminhando sobre a mesma marquise tão perto de completar as palavras deste poema


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Entre os rascunhos, o calendário, os cartões de visitas e as cartas revelam diferença... tempo. Tenho muitos desejos mais desejos do que os já realizados isso é o que resta não dá para contar, dividir, multiplicar ou subtrair é possível dizer que é uma soma de sonhos incompletos na estação dos dias entre o ser e o querer o horário fora da rotina suspenso ou à margem num estado de incompreensão do sentido da chuva de hoje no sentido da pomba ciscando algo para o jantar pela plataforma (pomba janta?) Retiro do bolso notas e notas semeadas entre as gotas de chuva angustia e risos impulso inútil da representação da culpa falta de percepção da sensibilidade da trajetória de calor da gota de chuva que se espatifava no chão seco e sujo da estação de verão A gota de chuva nunca deixará de ser água você só pode ser alguém por detrás da porta que se abrirá para a escada Estive esperando você Trilhos Redes Malhas Tramas


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para te prender pelos restos e restos do meu lembrar do ir e vir da sua bagagem suporto me deixar estar aqui no mesmo hotel com meus pés fora dos sapatos sobre o caminho dos tapetes suburbanos da procura de tudo que posso ter e que já me pertence com outras palavras O que fazer se nem estrelas no céu essa cidade tem? O que restou do dia naquele instante em que percebi que quase entendia a rotina do sentimento de amar? acabou para nossos restos resto do que existiu e virou reza esquecida resultado da soma daqueles dias total de pedidos feitos pela fé de não serem repetidos os mesmos restos do depois de amanhã o amanhã de um novo dia completo dia sem a preocupação se o resto de ontem foi a sobra maior daquilo que penso ser conceito no riscar em cada palavra a ausência do medo de perder o sentimento na busca do sentido da poesia incompleta no pouco espaço da folha além da folha da janela quarto de hotel destino Quem sabe o quê além do calendário dos cartões de visitas e das cartas naquela caixa debaixo da cama você esqueceu? Não vou olhar Não vou ler


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Invocação de sentidos desconhecidos no quase antes do anúncio de neon. Quase antes do anúncio de neon. É só isso... e nada mais, que o passo a passo pela cidade vai revelando... galáxias astrológicas e hostes celestiais. Galáxias astrológicas e hostes celestiais. Na noite... Na noite... É só isso e nada mais. Uma pagã contaminação humana por radiações luminosas na ausência de medo e esperança na passagem através do silêncio da gênese da luz. Silêncio da gênese da luz. Na noite... É só isso. Transformação, prazer, solidão, encontro, separação e perda... Rastros retardados na duração do olhar para o nunca mais. Duração do olhar para o nunca mais. Aquele olhar do nunca mais. É só isso e nada mais. Nada mais


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O sopro do vento, vindo do apenas de nem ser, bate em alguém... um cidadão que um dia disse ter querido ser outra personagem de autor que aguardava sua história. Ele observava o guarda-chuva azul vivo indo embora de suas mãos na batida do sopro do vento, enquanto livros vermelhos caíam secos das árvores, um a cada passo, sobre os seus sapatos novos. Acompanhei-o escondendo minha ficção e permitindo expressões de lugares necessários (como o banco do jardim) para uma vida de malandro ou de poeta. Dava-lhe toda atenção às ideias de ser um não é, deixando sua existência imaginária anônima avivar-se em sua fé. Ele mostrou seu relógio denunciando que a estação que nos rodeava proporcionava uma luz charmosa e delicada do andar nublado do velho dia refletido nos óculos de grau daquela prostituta apaixonada. Garoava uma estética luz úmida que flutuava sobre as horas dos relógios da vida que passavam por ali. Ele me falava verdades da relação do pudor com os sapatos e da semelhança da nobreza com os sonhos e o sorriso. Não sei por quanto tempo caminhamos em seu sonho, porém não parou de falar sobre a paixão que fica inerte na paixão que, aliás, não era uma paixão, mas várias paixões que viviam no céu a se deliciaram com tudo. Quando ele voltou ao seu silêncio, seus olhos andarilhos se abriram falantes e uma brisa trouxe de volta o guarda-chuva azul com uma linda mulher que me pediu uma informação sobre a localização de uma rua. Ele não ouviu palavras, ouviu cores e, de certo modo, ele ria misturando seu olhar


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às cores do movimento dos lábios da moça, mas o embaraço da situação só permitiu parte do seu pensamento. Quem tem coração não cultiva olheiras que pedem à luz da ilusão para que não se pense demais nas dores da mente e nas chamas das feridas. Quando se vai por calçadas contando carros molhados no congestionamento, sempre existirão seus iguais fundidos no vento, como fantasmas que tocam numa alegria diferente. A moça, agradecida, perdeu-se definitivamente lá na esquina olhando para o céu. Não recordo a resposta ou a orientação dada, mas uma tensão nunca experimentada emergiu no meu desejo de saber. Ele apanhou um dos livros vermelhos que estavam sobre seus sapatos e se despediu percebendo o silêncio do sopro do vento. Continuei entre as pessoas que caminhavam olhando para a rua e para céu. Desapareci num tropicar na calçada e o mundo apareceu inteiro e pequeno por trás do céu observado por aquelas pessoas, além da moça do guardachuva... Senti que alguém me viu caminhando com o autor do guarda-chuva azul e do livro vermelho fechado


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Qualquer ponto depois da liberdade pode ser um final de poesia ou um vão de desculpa para a fuga. Lembrei, depois do baile, que o relógio parou antes da volta da chave para a passagem pela porta e mãos apareceram antes do espelho no reflexo numa distração do tempo. Uma vela acendeu-se primeira alucinação Voltei Chovia sobre as medalhadas da minha honra nos degraus, mas as deixei lá para que as estações do ano continuassem a consumi-las e aos degraus Não queria ter ido Só foram ondas daquelas que se sente que arrastam a bagagem dos náufragos até a praia que desfazem os castelos de areia que vêm de um longe possível com a lua ou sob o sol Foi só um movimento do não estar Confesso que não pude deixar de seguir o que os ponteiros dos relógios me falavam: é humano ter um cigarro de tabaco nos lábios e escrever, por algum tempo, poesias do abandono sob uma garoa fria, debaixo do manacá, imaginado aquela pequena praça cercada de sons de sinos de igrejas. Lembro-me Agora


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escrevi poemas de atrasos marcados em sonhos perdidos num quase sempre deixados com uma rosa no branco banco de mármore um movimento livre de me comunicar com você Não deixei de sentir os efeitos da realidade de seu perfume Nem tudo passa Tenho fotos de quase tudo para te mostrar Era tão gratuito Infinito simples no foco da câmara nos olhos de quem ouve ou lê Acendi mais três velas e você me perguntou a razão de tanta emoção na terceira vela Foi difícil não roer a beleza das palavras disfarçando meu olhar na noite de chuva refletida num vaso de vidro Senti na voz tinha invadido as nuvens dos anjos que pairavam no fundo do espelho da mudança de humor em seu rosto você via lágrimas com a compreensão de que a terceira vela era para iluminar a janela e orientar até nós a parte de mim que ficou lá no tempo escuro molhado frio fora das fotografias

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Existe gnomo? Talvez. Se existe gaveta onde não encontramos a caneta. Se existe rascunho de poesia que não sabemos onde foi escrito. Se existe escrita errada que vira licença poética depois da revisão. Se existem palavras em mãos e seios no sofá. Se as meias dela se misturam com as minhas. Se o espelho que se maquia me faz imaginar uma borda de nuvem no centro de São Paulo. Se o colírio acaba de repente. Se me pego pensando que sou um espécime no olhar do meio do mundo do conjunto de coisas que ficam comigo naquele estado num canto da realidade. Se a janela permite entender o minuto de sua iluminação imaginativa antes do silêncio. Se depois de muito tempo, os túmulos ficam vazios da criação do próprio tempo. Se o relógio das complexas paixões marca os efeitos de uma tristeza que pode ser feliz. Se o vento do tempo do destino não se importa com o que vai ou fica nos lábios pelo que foi perdido no Baixo Augusta.


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O que é que não vemos que está aí no vazio de uma cadeira vazia diante de uma mesa empoeirada? Uma outra realidade é só um efeito cósmico que nos permite sentir o vento nas narinas do nada das mudanças diferentes. É uma magia diferente na ordem das coisas mirando o tempo de composição de palavras que brilham como se fossem uma previsão da cor da roupa e dos sapatos de um gnomo. Olha um ali! Viu? Se existe gnomo, ele aparece sumindo.


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Só tenho um copo de vinho para muitas palavras que se amontoam por obra da expressão, da paixão e da confusão que tentam construir castelos de areia num seco deserto que a mesa oferece Por que será que o coração é tão insistente? Existem palavras silenciosas escritas com olhar verdades que flutuam entre o entendimento e loucura uma leitura inconsistente impulso da vontade de dizer verdades para o espelho imagem pagã que copia culpas medos rancores cristãos Existem mais questionamentos num sapato vazio de uso do que na imagem na pupila dos olhos Um poema não precisa ser entendido


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Precisa ser aceito em leitura como momento em que percebemos pássaros que habitam a beira dos telhados Olhe para a cadeira vazia ao lado de outras cadeiras vazias ordenadas em volta da mesa vazia vazo de flores no centro Imagine as flores tentam disfarçar o vazio ao seu redor Por que disfarçar o vazio? Nenhum castelo de areia seca será construído estéril pensar sensação da areia escorrendo pelas mãos com o reluz da imitação do sol da lua no movimento da areia É assim que ocupo o vazio sonhando descalço e sem espelhos sentado ao redor da mesa entre palavras escritas um copo cheio vinho que parece um vaso de flores


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Havia uma circunstância de vazio naquela noite do chegar das estrelas. Diferente da recordação de um lugar. Uma torre de igreja aclamando as janelas e a solidão do piscar dos olhos no abrir e fechar as cortinas da vontade de percorrer o mundo amanhã, que irá como todos os dias. Sentia um afeto alterado de vida e morte de um personagem de uma história de mistérios em anotações e anotações do que está ao redor sem perceber a profundidade.


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Um êxtase que diminui o volume da música para perceber o falso das luzes apagadas e os fantasmas do repertório do horário de dormir. Era diferente do que não sei escrever aqui. E por mais óbvio que sentisse, não estava no mesmo lugar o entorno de cada palavra da aparência dos rascunhos. Não via a Lua. Não tinha um ponto de referência. Estava de óculos no destino das coisas estéticas do engano de usar recordações para afastar a loucura. Olho para outra coisa. Vejo devagar a fotografia descuidada e sinto sede de anotar tudo o que pode acontecer, mas é só um excesso de prisão de coisas feitas de realidade num imenso disco voador que não vi naquela sobra no céu. Apenas sinto as meias nos pés. Uma sensação de bolhas de sabão na folha seguinte das anotações. Bolhas que se desviam do início do contexto do texto errado. Um sentido que se perde antes de terminar como poema para ser escrito de um jeito constante e imprevisível, porque já é outra coisa. Uma infinidade de “nãos-nãos” que, apesar de parados, mudam a realidade da varanda e da caneta sem tinta pressionada entre meus dedos.


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Perceber sentidos do caos pode ser ordenar desordens num sistema de profundidade, onde a desordem superficial é mais tolerável que a desordem mais profunda, já que tudo que é profundo pesa contra a direção da face. agradável visão palavras flutuantes e mergulhantes na respiração de alegres bolhas do aquário formado de cadernetas de anotações rascunhos livro do Cortázar caneta, roteador, tela, teclado, meus dedos, óculos caídos no nariz e minha voz falando cada palavra, tendo como fundo, a música manipulação eletroacústica na água psíquica dos rios lagos e cachoeiras dos mares das poças das geleiras da água mineral, que bebo num gesto de sede no espaço íntimo de sujeito formado com palavras e espírito, buscando tendências para um fenômeno sem qualquer qualidade de consciência que possa ser percebido pelo romântico Tudo é repetição ideia atemática fora do caos da contingência da ordem de uma trajetória do olhar ilusão esquivando-se da inevitável oposição de imagens e linguagem no interior das gotas do colírio que não existem caindo no aquário do olhar borbulhante

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Fora dos sapatos, ouvindo o Codex Las Huelgas, música de freirinha de mosteiro da Idade Média que canta como se fosse flecha guiada pelas luzes que nos seguem até alcançarem os corações. Esse ponto não é necessário, pois seu coração será tocado, inevitavelmente, pela flecha já escrita numa peneira de palavras que lutam em busca de passagem para o outro lado da folha do rascunho da tela do visor do computador Para outra realidade da poesia que se mostra como um acontecimento vivo em cada toque dos dedos no teclado e na ausência de sequência nos intervalos transmudados em abismos de angústia e desespero diante do nada oferecido pela razão como resposta a esta página, que é uma “não-página” do caderninho de anotações poéticas e de qualquer azar na existência caótica dos multieventos perdidos fora dos sistema ordenador das suas observações sentimentais de existir aí como um só quando você é com um de outro ponto

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Encontrava-me a ponto de pedir o fim um ponto vago uniu o espaço onde flutuava a fumaça do cigarro marcando horas sobre o antes e o depois do teclado sob as mãos Um movimento na imagem de folha de papel em branco Não havia tudo O quase já estava feito em cada piscar dos olhos Movimentos de forças incomuns a revelação de cada palavra brotando na folha na tela do monitor Uma após a outra nascendo por elas mesmas desenhando-se no vazio refazendo-se em rasuras deletadas numa constante luta para sobreviverem aos pontos que ameaçam frágil continuação qualquer fluindo nas águas do rio de Heráclito. Ponto Não será o último


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ainda não As palavras escritas querem dizer coisas falar das coisas inanimadas para as animadas, infra-animadas, ultraanimadas, supra-animadas e intra-animadas coisas que estão aí porque passam por aqui coisas ocultas cheias de mistérios e sentidos (palavras parecem sapatos) Não estou escrevendo São as palavras Elas estão tentando mostrar algo surpreendente na realidade da leitura deste rascunho de prosa ou poesia no branco da quarta linha desta escrita nas cores da leitura da palavra por palavra até o ponto final que não precisa ser escrito aqui


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Valeu estar aqui Já troquei ideias com os prédios e as ruas lá do baixo da noite desta cidade Falei com o céu e sua chuva Conversei com o vento a brisa o calor e o frio das varandas Comuniquei-me com a cor formada pelas cores das luzes das janelas das salas dos quartos e banheiros que acendem e apagam em 120 volts nos toques dos interruptores próximos das portas na passagem do olhar E proseei sobre sapatos molhados com as gotas em seus plurais de zup, plaf, drip, pim, ping, plim, plic sobre o portão aberto pelas árvores do Parque Augusta Mas trocar palavras com você é como escrever todas as ideias que troquei tudo que falei e fiz prosa mesmo podendo ser outra pessoa dizendo-se estar aqui


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As palavras se escondem. Deuses também. O que se exibe é o humano diante do silêncio de um ovo. Fui indo com o relento da madrugada, querendo cada passo na calçada sem memória do começo do ir para aquele endereço confuso anotado no caderninho de rascunho. Seguia o céu na noite fria. Sentia uma onda sonora de violino tocando. Já estava lá como possibilidade encontrada pelos astrolábios. Uma espécie de Paris. Era o movimento de outras palavras. A loba má está aqui, disseram-me enquanto sentia o gosto de fora do copo num beijo. A música ia mudando de lugar com as roupas que iam se misturando no espelho. Pensei numa peça de teatro encenada numa gaveta de meios sapatos. As palavras das bordas das nuvens na janela se revelavam, a cada instante do amanhecer, com seus sentidos para a vida e para a previsão do tempo na cidade. Tempo, o grande responsável pelas misturas de energias de marcas de batons e olhares de canto antes do silêncio do entendimento de que não é possível ficar depois do colírio revelador da bela tristeza feliz de personagens abandonados numa paixão de cortina vermelha agitada, com o repertório de impressões ofegantes do desejo, indo e vindo, como palavras ocultas no olhar do querer só um momento por toda a vida das almas insones dos hotéis da cidade, sem quartos para o sempre dos amantes escondidos num coração desenhado com iniciais numa casca do ovo cozido de padaria do café da manhã.


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Estávamos longe de uma intimidade que não deixa de fazer observações, mas havia uma atração para o mais elevado de nossas posições na calçada em frente ao estacionamento, como símbolos divergentes, que não sabem o significado de não saber o que se vai no beber, fumar, nessas horas de resto de qualquer canção nova que tocava vindo não se sabe de onde. O que representava a desistência em meio à nossa procura de projetar tudo para o universo? Algo estava errado na forma completa de ser entre aquilo que há de distante do certo na explosão iluminada do pensamento sobre o que estávamos fazendo, ali, juntando os pedaços do olhar de quem nos observava. Dizíamos que algo iria acontecer. Que qualquer coisa iria acontecer, como uma culpa grande e feliz de uma triste letra de blues. E fugimos. Porque nada fica ter-


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minado para sempre num mundo que desaba todo o instante em escombros diferentes. Mas quem cuidaria de nós daqui para sempre? O que seria de nossas ideias fixas num imã de geladeira? Talvez uma cor azul nos cabelos nos disfarce num tema triste existencial nu e cru de um poema macunaíma e, quem sabe, encontraremos alguém para fazer sexo em vazios de espera pelo outro que já foi e está indo agora para colar ideias em outras geladeiras. Tudo é bondade e mertiolate, baby. Seu batom escorrido é bonito. O caminho do inferno é assim também, borrado e vermelho em tudo que não sei que existe no brilho dos teus brincos entre meus lábios. Tudo que temos é um sentido plano onde as ideias são demais no vice-versa das ações que divertem o cosmo em luzes que rolam pelas sarjetas entre o caminho do céu e a autoestrada da danação. Nosso amor só é uma ligação tecnológica do seu ir e do meu voltar em recados de celular. Um jazz de sonhos motivados por conversas que não aconteceram. Não temos tempo mais para isso. Talvez nossas ligações continuem, mas teremos medo dos outros da mesma espécie. São os deuses que estão dando uma volta no quarteirão e fazendo isso com a gente, baby. Não queríamos nos perder no que não era possível saber sobre um novo gosto de realidade ou sabor feito só para uma noite... esta noite.


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Variação de sopros do vento no caminho do humor universalizado das poucas árvores. Imaginação viva no pulso do relógio fora da hora. A prostituta na porta da estação. Verão. A busca de um lugar no ser do nada sob luz que flutuava nublada perdida da ponta do cigarro lançada alhures na calçada. Sorrisos do não sei mais ir embora da noite esquecida do sonho. Espantos deliciosos na informação do silêncio no bar vazio que engolia o fim da calçada. Uma cerveja. Ligações e mensagens que não leio no celular por falta de óculos. Ladrilhos contados em outras noites no percurso dos degraus para o banheiro. Palavras seguindo outras palavras que nunca ficam paradas sobre os objetos que dão nome à existência para o que é um balcão, o bar, a cerveja, o xixi, o guardanapo de papel e a caneta, até você aparecer fora de seu casaco de dança e dentro do salto alto, com aquele sorriso de que nem tudo era tão bom assim como agora. Tudo bem? Senta-se nua sobre o


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couro do assento redondo do balcão retangular do bar. Engasguei com a demora das letras da navalha que percorriam o desenho do coração exposto sob o guardanapo, que o protegia do toque fatal do encontro dos vértices que compõem o espaço da extremidade da mortal primeira palavra do poema. Ofereci a porta enquanto nos olhávamos no espelho do afeto e você pediu um copo de cerveja para quebrar a ilusão da disciplina da saudade. Uma canção longa de tempo, vida e noite nos lábios da dúvida que rascunhamos em nossas bocas com seu batom. Havia cores perdidas na distração do brilho do esmalte chiclete que arrumava cabelo. Fizemos o pedido de mais um guardanapo de papel. Uma nova palavra, e você diz ser a última. Fica bem. Conheço os caminhos das palavras na Praça, escritas em nomes em balcões. Apanhou e guardou o rascunho do fim do guardanapo, agradeceu a cerveja, o beijo, o poema e foi para rua aberta me deixando no movimento do escarpin como se fosse você tudo que não sei.


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Nas lentes embaçadas dos óculos do querer, você apareceu. Uma presença no vasto sentimento de ausência. Inexplicável perfeito perfume que me arrastou com seus ares para um reflexo espelho vermelho do esmalte das unhas no ajuste do fecho do brinco para expor os gestos secretos da fuga dos lábios. Lembra do futuro invisível nos observando entre o translúcido verde das garrafas? E o som do blues que esbarrava em nós no balcão? Esqueceu aquele poema de transformações místicas do corredor desconhecido até o fundo do bar? Você se fazendo beijo na página do livro. Feliz fato adesivo e colorido sem data e hora das páginas da leitura. Estivemos juntos em sentidos diferentes. Éramos palavras escritas em raios de tempestades. Tentamos viver na translucidez das garrafas, sons, copos e palavras, mas nunca deixaríamos de ser, na área de fumantes, no quintal dos fundos daquele bar, as roupas estendidas no varal sob a meia luz da salvação eterna.


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Olhares são como pedaços de palavras em nosso falar. Penso que isso é uma equação sobre alma ou aquilo que me faz feliz quando caminho indo pela rua do Baixo Augusta, rindo de lembranças que o momento trouxe por onde transpassávamos na noite. Bebemos sem a dor dos corações, mas deixamos longe nosso jeito de sorrir sobre todas as chances e medos passados. Falamos dos aviões, do tempo que atravessaram nossos cabelos desarrumando os sonhos nas vitrines que víamos. Não foi impossível encontrar vencedores nas luzes dos neons das boates, nos faróis de carros e nas montanhas de sacos de sonhos que eram recolhidos pelo catador.


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Outros contavam tijolos de muros e paredes, repetindo o próprio nome para não perder a memória diante de um acabar com tudo por conta de um erro de amor. Nós apenas estávamos abrindo caminho para a oculta porta de onde sairia o carrasco que sacrificaria as lembranças. Era tudo fuga para nenhum lugar. Era preciso fugir. Os vapores se fixaram no intervalo da entrada do bar dos ecléticos. Tomamos tequilas e fumamos um pouco de tudo que os amigos trouxeram. Na saída, vimos nossos calçados lentos andando lado a lado com a morte, mas esse instante ficou escondido por trás do brilho dos espíritos que desciam ligados por algo que estava lá. Tudo fazia pensar que estávamos nos olhando no balcão e nos cartazes que anunciavam um fim para este quadro. Faltava cor, uma palavra que resultasse num final para o poema que se desenhava entre nós e em nós no momento. Nossos olhares ficaram cheios de melancolia na última tequila. Queríamos tanto criar um poema com palavras novas, mas acabamos mentindo em dizer que não ligávamos para o brilho do olhar de um para com o outro.


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Um CD que toca. A segunda capa, o verso da capa, talvez a última capa, a capa que não a da frente, mas a capa segunda de um livro de horas que trata de minutos e segundos com seus ponteiros parados e acordes maiores e menores no fundo de pó que encobre os papéis e papéis que a vida permite acumular. Papéis de representação. Papéis-molduras de uma expressão. Muitas lógicas. A Bíblia. A segunda taça se quebra ainda cheia. Terminou a bebida. Vai! Eu fico em qualquer lugar. Fico em todas as suas despedidas. Fico, como envelopes de cartas que já foram lidas, porque não peço e não perco nada deste poema que não termina de ser escrito, ainda que cada risco não seja uma palavra completa, na dúvida de ser a última ou não. A folha de rascunho não conta. O espaço não conta. Tudo é segredo que vou desenhando além da folha em letras, pelos lençóis brancos sem pauta, pelo chão de paralelas figuras, sobre tapete de desenho macio e contínuo pelas paredes livres e teto. Vou assim, palavra por palavra, escrevendo nas linhas cabíveis e infinitas que a superfície e interior do volume contido nesse quarto permitem e, quando não houver mais linhas sem palavras postas sobre elas, sobre essas palavras diferentes escreverei. Você é isto: um poema sob o outro. O amor primeiro escrito. O mesmo amor que escreveu outro, não para se esquecer do poema já escrito, mas para ser moldura do novo.


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Quem sabe um crítico apenas identifique tudo como rascunhos de rabiscos e riscos de um poeta, na poesia que tentou mostrar, com a ponta da caneta, como e quando ficou eternizada a duração do perfume de alguém amado. O perfume que chegou por todos os lugares dos olhos e que abriu e fechou a porta deixando meu espírito vagando sem esperança lá na rua, enquanto meu coração e corpo, por detrás da luz de neon, disfarçava a imperfeita vaidade do seu vir, sorrir e partir sem ter e nem perceber meu tempo de espera, quando ainda nada havia começado. Fico só e descalço, quando na procura da minha alma na rua, na rotina do relógio hoje e ontem. Por aí. Passos e olhar de uma filmagem sobre as pessoas em sentido contrário do horário da meia-noite, feito água que escorre numa parede repleta de fotografias noturnas. É assim que viajo no reflexo da vitrine na imagem da lantejoula da roupa do manequim. É assim que nos encontramos num universo barato, numa rotina de noite à noite, de quase mesma hora, na incerta mesma rua, nas mesmas imperfeitas palavras escritas e reescritas em toda a superfície de todas as coisas, sem números, sem nomes. É assim que encontro meu espírito para perdê-lo por você enquanto o mundo é zero, com tudo o que habita no espaço entre o “como e o para que” da paixão, diante do sorriso de adeus e o beijo pelo verso deixado no fundo do copo sobre o balcão daquele bar, que ficou meio vazio sem o último gole e sem sua leitura.

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O que ouço, fala por rascunhos que são traçados cansados no caminho de saltos e solados seguindo por rua sem casas. Somos palavras na inconsciente disciplina da vida e a existência é o passeio pelo fio de navalha para encontrar outra pessoa em poesias que são oferecidas em espelhos.


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Um ruído de copo se quebrando, uma canção que falava da demora do sentimento de esperar o encontro que fechou a porta. Isso foi o que pude registrar na lembrança daquela noite pelo esconde-esconde das letras que foram desenhadas na madrugada, sem perceber o afeto, a saudade, a lembrança e a ilusão. Na outra noite, as longas escadarias das folhas brancas que você montou me levaram ao sótão do mais próximo absurdo e, lá, por distração, mais nada foi entendido nas dúvidas sobre nós mesmos. Tudo foi uma crença de mãos que se tocavam na distância perdida entre elas mesmas, entre os pelos e os lábios, entre lábios provocando um milagre de gosto de coquetel de frutas quase salgado. Noutra noite, havia muitas velas pequenas pelo chão mágico que possibilitavam um flutuar de corpos com cabelos molhados no perfume do batom e sobre nomes de cores de esmaltes. Nessa noite, os rascunhos só falam da insônia escondida na memoria das sombras do desejo.

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Vejo a porta fechada como a certeza virada na recriação do mundo e, diante dela, fico no sempre vasto incompreensível momento da existência não passageira, da noite enchendo a mesa com palavras dos rascunhos que não sabem ser poesia. A porta se abre, vejo seus cabelos desfazendo as minhas ideias. Seu simples sorriso por estar aqui permite exercitar o aprendizado de um cachorro molhado da chuva abanando o rabo. É satisfação de bares, boates e das abertas sensações dos sentidos mornos e úmidos das luzes da Rua Augusta, que se revela sem culpa pelo rastro do teu cheiro. Não vejo mais o sentido invertido da porta aberta, da mesa vazia e nem das taças da noite abandonadas pelo consumo da sede na incógnita iluminação do tom de rosa sob véus.


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Fecho, abro os olhos e vejo seu corpo flutuando em dança sobre o tapete, tendo ao fundo as luzes de um celular vibrante e o sopro ofegante da cortina, que parece querer tocá-la com a mesma suavidade das mãos na mistura de saliva com beijos, blues e vozes sussurradas em palavras vagabundas e pagãs ao querer um ao outro. A mesa, os rascunhos, as taças se perdem no movimento. A cortina se agita em línguas múltiplas, que seu quadril finge ignorar. Percebo que não é a cortina e nem o vento que te desejam. É algo maior. É algo que vem da origem dos relâmpagos que antecedem a tempestade que se anuncia. É aquilo que é incompleto sem seu corpo. É a existência que dança e me envolve fundindo os olhos nos sons dos trovões e nos fleches do encontro deles com o seu olhar, na justa medida da velocidade do meu sangue fluindo uníssono das veias ao coração, que bate e rebate em teus seios. Ouço a primeira gota de chuva e a infinidade das que se seguem, uma após a outra, estilhaçando-se em pedaços líquidos, que vão sendo sugados pela fotografia, cada vez mais brilhante e próxima da revelação na emulsão do perfume do prazer ziguezagueante entre livros da estante, enquanto o batom já vermelho em seus lábios, iluminando o dia, prepara-se para fechar a porta e dizer como se escreve: “me liga”.


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O maior grito acontecerá quando sentirmos o crepúsculo (não durará para sempre). Será o fim de um dia. Um dia perdido, sem ser diferente, dia qualquer e, de súbito, ao olharmos as pessoas que estarão passando com os dias delas, desconfiaremos. As nuvens se formarão e passarão rápidas por essa vida com tudo. Estaremos alertando o crepúsculo, vendo o que os outros não veem, dançando a música e extraindo o tudo e o nada dos pulsos dos corações. Como poderemos perdoar Deus se esse crepúsculo for o fim de nossos beijos e abraços? Por que, em tantos momentos do mundo, nosso início seja o conhecimento de nossa desilusão com a eternidade? Hoje temos o universo de meias-luzes, aromas e a poesia procurando nossas palavras nas ruas da cidade, em bares que nos fazem perder a cabeça e não ficarmos calados. A luz, a luz dessa noite, a beleza de seus percursos, as ondas nos lençóis da cama desaparecerão. Como impediremos o desaparecimento dessa noite? Somos felizes um pelo outro numa nova música. Quantas já tocaram? Venha, fique aqui para a composição desta janela.


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Saiamos do anonimato, do silêncio, sejamos livres, um par de estrelas no céu de uma janela! Não me basta estar com você se vivemos aqui como vento nas cortinas. Quem poderá nos identificar entre tantas estrelas e luzes desta cidade? Não sei para onde caminham e olham as pessoas que passam lá embaixo. Talvez, tudo o que vejam ou que desejam ter tenha ficado do lado de dentro de um quarto. Um relampejar. Para onde iremos agora? Não revele para ninguém o que nós não sabíamos até chegarmos aqui. Quantos sentidos tem o segredo? Estamos sob o mesmo tempo em outra música e o relógio é sempre ideal. Ouvimos um estrondo, vejo a porta. Será que despertamos? Durou tanto assim? Será que nos olhamos nos olhos? Para onde foi você?

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O ar da respiração despe sua natureza.


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Nos olhos, o belo da noite e do espírito formam a paisagem que transponho com meus lábios, levados de joelhos pelas horas que brincam com os imprevisíveis sobressaltos do horizonte do umbigo. O roçar de mãos soa em pequenos risos que vasculham teu jardim de pelos e carne dos vampiros. Sinto o calor do perdão dos deuses nos teus seios ébrios pela indiscreta perfeição e insolência da língua. A solidão se escraviza feliz e sustenta, sem repouso, seu quadril que vaga entre o brilho de uma estrela morta e um pássaro que canta o esquecimento de pecados da beleza pura. O olhar infiel vê ao longe seu doce mundo de móveis e lençóis polidos de dormir, mas tudo vai se transformando em ondas de pernas e ventre que batem e batem no cais, como se fosse ele, com sua extensão, culpado pela revolta do mar de seus desejos não navegados. Abandono-me como executor da luxúria de seus ancestrais, que expiam seus modos de Vênus louca fazendo de batom o vermelho mais sensível do meu corpo. Vago, quase perdido, no deserto dos gritos do céu da tua boca em busca de um templo místico para guardar os gemidos e suspiros que lhe escaparam, mas a jornada termina com meu corpo preso sem forças nos seus interstícios mais profundos. Abro os olhos e me vejo solitário no suor do fundo dos teus seios e ouço a canção do litoral banhado por um sol verde que enche as cortinas. O universo inteiro se aconchega como um amável gato preto e, dos pés à cabeça, sinto uma fina e sutil explosão que suas unhas vermelhas, delicadamente, provocam em minhas costas me impedindo de morrer ou nascer numa condenação ao inferno de Dom Juan. Fecho os olhos. Minha mente se perde nas carícias de seus dedos em meus cabelos e o aroma que inunda meus pulmões é o exótico perfume do sexo.

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O tempo de amar em pulsantes versos de travesseiros vinha sendo contado pelas gotas miúdas que caíam no copo vazio da noite no parapeito da outra janela. Faltava sentido à imagem do vento suave na cortina que alegremente cantava seus movimentos. A chuva era música breve num tempo próprio do universo. Você acordou num primeiro olhar que desejava recordações de não querer mais respostas sobre onde estavam os sapatos e me dividiu num beijo e num sorriso, enquanto meus olhos no tempo uniam o céu a você num espelho refletindo a realidade, nossa liberdade de observar o copo na janela que se enchia de calma com a água da chuva. Sempre duvidei de minha existência, mas senti, observando as redondas gotas, que a alma era algo que fluía de uma galáxia desconhecida, pouco a pouco. O copo continuou recebendo o que a calma chuva lhe trazia. Voltamos a adormecer num sonho que inventamos. Um sonho no qual a sede era o afeto.


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O céu não está longe, mas o inferno é bem mais próximo. Os poetas viajam desatentos aos sinais de indicação de retorno ou de parada, só lhes importa a descoberta de novos rumos do eterno prosseguir. Não há céu e nem inferno que possa satisfazer esses seres incontidos e libertários nos destinos desta cidade. Queria desistir de São Paulo e de seus quadris, mas a enganação de me permitir sair, quando você se levanta de mim, repete-se e repete, até que toda a energia para partir vira pensamento vago, uma calma, uma paz passageira que permite a realização espiritual de recriar seu corpo no escorrer da língua úmida sobre a delicada superfície da pele para criar um desenho perfeito de edifícios, seios, praça, umbigo, ruas e virilhas, com perfume do cheiro do calor mormo dos pelos nus que brilham no movimento do reflexo da luz da janela.


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Você se agrada vendo minha pintura sendo desenhada através do espelho. Ouço o ritmo que justifica a força de suas coxas macias e o vermelho de suas unhas passeando em seus lábios umedecidos pela alquimia da língua. Tudo da cidade nos quer em ato, fato e fruto da noite com suas luzes distantes e trêmulas permitindo a revelação da contração de seu ventre, que se contrai, vez ou outra e outra vez, como se a filosofia fosse querer transformar-se em fantasia e te libertar dos gemidos para a linha do horizonte. Fico a olhar, ainda ligado a você, através da leveza de uma linha de um balão de gás iluminado pelo fingimento de ser lua. Só nesse ponto, foi possível ouvir a música que aquele saxofonista tocava. Era a música de uma dor por um amor que caía refletido num abismo de vidros translúcidos. Eu tentei ir embora, mas voltei porque me lembrei do seu zíper aberto que eu, ainda, não tinha fechado.

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