O que é o Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH)? O Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH é uma associação civil de fins não-econômicos, fundada em dezembro de 2007 e tem por missão institucional o desenvolvimento de programas de promoção e defesa dos direitos humanos, econômicos, sociais e culturais, sobretudo através da assessoria jurídica gratuita em casos de violência institucional e privação de liberdade, bem como do desenvolvimento de atividades de formação e capacitação em direitos humanos. Atuando na esfera jurídica e na formação popular, o DDH tem seu foco de ação nas temáticas de Segurança Pública, Sistema Prisional e Liberdade de Expressão.
Conhecendo o Curso Popular de Direitos Humanos...
O objetivo da ação é formar agentes defensores dos Direitos Humanos em seus locais de atuação, instrumentalizando-os teórica e praticamente para agir em situações de violações. Assim como no curso, que busca partir de questões concretas, como estudos de caso, para apresentar aspectos legais a
2
Cultura popular e Direitos Humanos
Ilustração: Maggie Wauklyn
A primeira turma do curso Popular de Direitos Humanos aconteceu no Complexo do Alemão em 2012. Na turma, que contou majoritariamente com moradores da região, foi possível abordar várias temáticas sob a ótica dos Direitos Humanos. Saúde, Educação, Cultura, Sistema Prisional, dentre outros foram os assuntos abordados, articulando exposições teóricas e textos com acalorados debates e oficinas.
serem implementados pelos futuros agentes, nessa cartilha faremos uma discussão mais geral sobre Cultura Popular e Direitos Humanos, para depois analisar o caso do funk carioca.
Novembro 2014
Cartilha “Cultura Popular e Direitos Humanos”: Por quê? Pra quê? Para quem? Infelizmente, o processo de criminalização no capitalismo contemporâneo atinge as classes populares e suas manifestações culturais. Assim, a ideia da cartilha surge da demanda por fornecer subsídios para lutas por direitos culturais. Nosso objetivo é fornecer argumentos que poderão ser usados pelos movimentos criminalizados para a afirmação de seu lugar enquanto cultura a ser respeitada e valorizada. Nesse sentido, optamos por analisar o caso do funk carioca para exemplificar violações de direitos culturais e movimentos de resistência.
Pra começo de conversa: o que é cultura?
Uma coisa é certa: a origem da palavra tem a ver com o cultivo da terra. Do mesmo modo que a terra tem de ser trabalhada para que gere frutos, os seres humanos não nascem cultos. A cultura deve ser apreendida e, desde cedo, somos socializados na cultura em que nascemos. Não existe, portanto, alguém que seja culto de nascença, do mesmo modo que não há ser humano sem cultura. Dois sentidos predominam quando falamos em cultura. O primeiro é aquele que as-
Novembro 2014
Reprodução internet
Responder a pergunta acima é muito difícil. Se perguntarmos a 10 pessoas o que é cultura, provavelmente teremos 10 respostas diferentes. Por isso, muita gente afirma que cultura é um termo polissêmico. Poli é o mesmo que muitos e sêmico vem de semia, sentidos. Resumindo: a palavra cultura tem muitos significados.
socia cultura a um saber erudito, ou às artes, filosofia, enfim, aquilo que alguns consideram ser as obras mais elevadas do espírito humano. É neste sentido que utilizamos expres-
Cultura popular e Direitos Humanos
3
sões como “fulano é culto”, quando estamos descrevendo alguém que sabe muitas coisas intelectualizadas, entende de ópera, música clássica, artes plásticas, história etc. Esse sentido da palavra cultura se desenvolveu, sobretudo, no século XVIII na Europa, quando aquelas sociedades passavam por um processo de grandes transformações que estavam criando o capitalismo. Essas transformações eram recebidas com entusiasmo pela burguesia e por grupos sociais que tiravam seus lucros do comércio, da agricultura mercantil ou da industrialização nascente. Mas vários outros segmentos as viam com grande desconfiança, pois a modernização ameaçava seus modos de vida. Camponeses, nobreza, artesãos, artistas, intelectuais, entre outros, percebiam que elementos significativos estavam se perdendo em nome da padronização, da mercantilização de tudo, do poder do dinheiro, da pressa, do que alguns deles vão chamar alienação, que é o estranhamento dos seres humanos entre si e com a natureza. O surgimento do campo da arte e da cultura no mundo contemporâneo tem a ver com essa crítica às transformações trazidas pelo capitalismo. A arte seria um tipo de atividade humana na qual a criatividade ainda seria possível, na qual o trabalho poderia ser significativo e não apenas sofrimento. Uma finalidade sem fim, no dizer do filósofo Immanuel Kant. Ou seja, uma atividade que tem validade em si mesma, não precisa de objetivos políticos, econômicos, religiosos etc. Assim, a arte e a cultura formariam uma espécie de campo protegido da vida mecânica e sem sentido do mundo capitalista. O problema nesta concepção é que, em geral, ela está associada a um elitismo. Como resistência a uma tendência predominante naquela época, muitos artistas, literatos, intelectuais vão ver esse campo como acessível
4
Cultura popular e Direitos Humanos
apenas a poucos. Os artistas seriam gênios criadores, indivíduos tocados por um talento excepcional e a arte passa a ser vista como fruto dessa individualidade singular. O público fruidor como sendo pessoas “de gosto”, gente vista como possuindo bom gosto e capacidade de discernir o que é ou não belo, sofisticado, refinado, profundo. Desse modo, somente uma elite seria capaz de produzir, fruir e compreender a arte e a cultura, defendendo esse mundo contra a barbárie das massas brutalizadas pelo cotidiano alienado e massacrante sob o capitalismo. O outro sentido é o que entende cultura como um modo de vida. Assim, não somente a chamada “alta cultura”, mas também a cultura popular, os costumes e mesmo aquilo que percebemos como mais natural em nossos cotidianos pode ser percebido como cultural. Um exemplo: todos os seres humanos têm fome e se alimentam, porém o que e como comemos é parcialmente determinado pela cultura em que fomos socializados. Assim, comidas que para nós parecem deliciosas podem parecer no mínimo estranhas para outras populações. Diferentemente da concepção elitista, nesta concepção, que poderíamos chamar de antropológica, não existe ser humano sem cultura, nem povo sem cultura e nem mesmo culturas superiores ou inferiores a outras. Tão culturais quanto uma ópera de Verdi ou uma sinfonia de Beethoven são a capoeira, o candomblé, o jongo, o acarajé. Mas aqui também há um problema. Muitas vezes essa concepção de cultura é utilizada para explicar processos históricos ou políticos de forma simplificada. Assim, tudo seria cultural em última análise, desprezando-se outros fatores econômicos, políticos e sociais que determinam os processos históricos. Por exemplo: quantas vezes não ouvimos dizer que o conflito árabe-israelense na Palestina
Novembro 2014
Ilustração: Thais Linhares
“
Tão culturais quanto uma ópera de Verdi ou uma sinfonia de Beethoven são a capoeira, o candomblé, o jongo, o acarajé.”
tem motivo religioso-cultural? No entanto, se formos examinar com mais cuidado, antes do sionismo estabelecer pela força um Estado religioso naquela localidade, o que se deu nos anos 1940, judeus e árabes conviviam em harmonia. Portanto, os motivos culturais servem muito mais como uma justificativa que busca legitimar aquele conflito e apresentá-lo como eterno, sem solução, alimentando a indústria da guerra e o genocídio do povo palestino. Nesse culturalismo conservador, a ideia de cultura ocupa o mesmo lugar que a ideia de raça ocupava nos discursos racistas e imperialistas de finais do século XIX e início do
Novembro 2014
século XX, que serviram para justificar a dominação da periferia do globo pelos países industrializados e centrais do capitalismo. Um outro debate importante é o que envolve a indústria cultural. Este termo foi cunhado por um filósofo alemão chamado Theodor Adorno em 1947 e buscava explicitar a lógica da produção da cultura como uma mercadoria sob o capitalismo. A cultura, assim como quase tudo sob o capitalismo, é passível de se tornar mercadoria. E a indústria cultural é o ramo da economia que se dedica a produzir bens culturais em larga escala. Bens estes que, segundo Adorno, têm uma função de controle social importante, pois aliena as
Cultura popular e Direitos Humanos
5
Ilustração: Thais Linhares
“
Por mais que a ideologia da indústria cultural possa ser favorável ao conformismo e busque manipular o público, as pessoas não são papéis em branco”
pessoas, as torna conformistas, consumistas, incapazes de desejar e fruir outras coisas senão as que lhes são apresentadas pela indústria cultural. Assim, por exemplo, o telespectador de novelas se tornaria incapaz de gostar de outras formas de narrativas mais densas e profundas, pois ele ficaria anestesiado pela necessidade do entretenimento, de ver sem ter de pensar ou refletir, usando a televisão como mera válvula de escape de um cotidiano massacrante de trabalho e escassez.
6
Cultura popular e Direitos Humanos
Essa crítica aos meios de comunicação e entretenimento é importante, mas ela gera uma visão muito pessimista e que não leva em conta que, por mais que a ideologia da indústria cultural possa ser favorável ao conformismo e busque manipular o público, as pessoas não são papéis em branco. Nós sempre comparamos aquilo que vemos na telinha, lemos nos jornais, ouvimos nas rádios com nossas experiências de vida. Então, sempre há mediações, brechas que contradi-
Novembro 2014
zem os discursos hegemônicos e que abrem espaço para a construção de visões de mundo alternativas. Por isso, o estudo da cultura de massa, dessa cultura tornada mercadoria, é tão precioso para coletivos que têm projetos de transformação social. O que o povo consome como arte e cultura, seus gostos, são importantes caminhos para estabelecermos os diálogos necessários à construção de um mundo justo, democrático e igualitário. Se desprezarmos isso, rotulando como lixo cultural o consumo cultural popular, corremos o risco de cair numa postura elitista e autoritária. Para evitarmos posturas elitistas e conservadoras é preciso, portanto, que vejamos a cultura como parte da produ-
“
ção e reprodução material da vida e não como algo que paira acima dos conflitos sociais, das questões econômicas e políticas. Falemos da arte ou de modos de vida; a cultura é parte de nossa vida material, pois nos expressamos no mundo através dela. A partir dessa breve apresentação, podemos perceber que o debate sobre a cultura é necessariamente um debate político, onde é impossível a neutralidade. Cabe a nós refletirmos criticamente sobre teoria e práticas culturais que informam nossa intervenção no mundo. Como dizia o poeta russo Vladimir Maiakóvski: “A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo”.
A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo para forjá-lo” Vladimir Maiakóvski
Ilustração: Thais Linhares
Novembro 2014
Cultura popular e Direitos Humanos
7
Direitos Humanos: que bicho é esse? Não só a Europa, mas o mundo jamais esqueceria os horrores da 2ª Guerra Mundial. O genocídio em campos de concentração nazista, as máquinas de guerra matando inocentes, a bomba atômica emergindo como símbolo máximo de poder. Sim, é como fruto desse terreno de horrores que surge a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Buscando construir um mecanismo acima dos Estados-Nação (países), logo no pósguerra, em 1945, foi criada a Organizações para as Nações Unidas (ONU) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O objetivo era construir um espaço de negociação e diálogo entre as Nações para que fossem evitados confrontos tão violentos como a 2ª Guerra. Apesar das críticas à hegemonia estadunidense na ONU, destacamos que no ano de 1948, apenas três anos após a fundação dessa organização internacional, foi elaborado e aprovado um documento que tinha como objetivo fazer frente aos horrores praticados contra as vidas humanas pelo mundo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. É com referência neste texto que ativistas e militantes enfrentam cotidianos de
desrespeito e violência em seus países, denunciando internacionalmente as violações cometidas. Como exemplo, podemos citar a denúncia feita à ONU em 2007 por ocasião das prisões arbitrárias e mortes durante a invasão do Complexo do Alemão, favela da Zona Norte carioca. “Direitos Humanos é defender bandidos!” Essa é a principal argumentação do senso comum. No entanto, os direitos humanos baseiam-se na premissa de que todas as vidas precisam ser protegidas. Nessa conjuntura, o Estado, através da lei e de seus agentes, deveria ter o papel de garantir a vida e não de praticar a morte, como vem acontecendo. Na origem das sociedades estruturadas, ainda na região da Mesopotâmia, tivemos o que podemos chamar de “primeira legislação escrita da Humanidade”, era o Código de Hamurábi. Ele definia as penalidades em relação aos delitos cometidos, e tinha como cerne o Princípio de Talião: “Olho por olho, dente por dente”. Entendemos que na sociedade em que vivemos, dezenas de séculos posteriores a Hamurábi, não podemos continuar com legislações e práticas vingativas/ punitivas, que a nosso ver, contribuem cada vez mais para manutenção e aumento da violência na sociedade.
Tirinha da Gazeta do Povo denunciando a ocupação da maré pelo exército
8
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
Cultura como Direito Os Direitos Culturais, além de serem direitos humanos previstos expressamente na Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), no Brasil encontram-se garantidos pela Constituição Federal de 1988 devido à sua relevância como fator de singularização da pessoa humana. Vejam o que diz nossa Carta Magna:
Constituição Federal “Art. 215. O Estado garantirá a totos dos o pleno exercício dos direi ra cultu da s fonte às so aces e rais cultu rá a nacional, e apoiará e incentiva ifesvalorização e a difusão das man tações culturais.
is
ha
:T
ão
aç str
Ilu
i§ 1.º O Estado protegerá as man indífestações das culturas populares, ougenas e afro-brasileiras, e das de esso tros grupos participantes do proc civilizatório nacional.
Lin res
Novembro 2014
ha
§ 2.º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta signi s ento segm s ente difer os ficação para étnicos nacionais.”
Cultura popular e Direitos Humanos
9
Documentos Internacionais e o Direito à Cultura Mais recentemente, vários documentos internacionais procuraram garantir a cultura como direito, principalmente tendo em vista a diversidade cultural como um valor humano a ser preservado e mesmo estimulado. Vejamos alguns exemplos: Com base no Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos Artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, todas as pessoas têm o direito de: expressar-se e criar e disseminar seu trabalho na língua de sua escolha e, particularmente, na sua
língua nativa; usufruir os benefícios do progresso científico e suas aplicações; contar com a proteção de interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual for autor; usufruir a liberdade indispensável para a pesquisa científica e a atividade criativa; receber educação de qualidade e treinamento que respeitem totalmente sua identidade cultural; e participar da vida cultural de sua escolha e executar suas próprias práticas culturais, sujeito ao respeito a outros direitos humanos e liberdades fundamentais.
Ilustração: Thais Linhares
10
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
DECLARAÇÃO UNIVERSAL SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL (UNESCO, 2001)
>>> IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO Artigo 1º:
nio
A diversidade cultural, patrimô comum da humanidade
através A cultura adquire formas diversas sidade diver Essa ço. do tempo e do espa plurana e ade nalid origi na ifesta se man zam cteri cara que lidade de identidades õem comp que s dade socie as e os os grup ios, de a humanidade. Fonte de intercâmb sidadiver a de, ivida criat de e inovação no, tão de cultural é, para o gênero huma biológica necessária como a diversidade constitui o para a natureza. Nesse sentido, e deve patrimônio comum da humanidade benefiser reconhecida e consolidada em as. futur e ntes prese ções gera cio das
Artigo 3º:
, fator de A diversidade cultural nto me lvi desenvo l amplia as possiA diversidade cultura se oferecem a que a olh bilidades de esc envolvimendes do todos; é uma das fontes termos de em e ent som to, entendido não como bém tam s , ma crescimento econômico inteleca nci stê exi a um a meio de acesso iritual satisfatória. tual, afetiva, moral e esp
Novembro 2014
Artigo 2º:
Da diversidade cultural ao pluralismo cultural Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública.
Cultura popular e Direitos Humanos
11
>>> DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS Artigo 4º:
garantias Os direitos humanos, ral cu da diversidade ltu de cultural é um A defesa da diversida ável do respeito par inse imperativo ético, Ela implica o comà dignidade humana. direitos humanos os tar promisso de respei entais, em particue as liberdades fundam s que pertencem soa pes lar os direitos das os autóctones. pov dos os e s oria a min a diversidade car invo Ninguém pode itos humanos dire os lar vio a par l cultura cional, nem rna inte ito garantidos pelo dire e. anc alc seu tar para limi
Artigo 6º:
Rumo a uma diversidade cultural acessível a todos lação Enquanto se garanta a livre circu imaa e vra pala a iante med s das ideia todas as gem, deve-se cuidar para que se fazer culturas possam se expressar e essão, conhecidas. A liberdade de expr ção, nica comu de s meio dos o pluralismo acesso o multilinguismo, a igualdade de ecimenàs expressões artísticas, ao conh sive em to científico e tecnológico – inclu para ade, ibilid poss a e al formato digit ntes nos todas as culturas, de estar prese são gameios de expressão e de difusão, rantias da diversidade cultural.
12
Cultura popular e Direitos Humanos
Artigo 5º:
Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural Os direitos culturais são parte integ rante dos direitos humanos, que são universais, indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidad e criativa exige a plena realização dos direi tos culturais, tal como os define o Artig o 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Inter nacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressarse, criar e difundir suas obras na língua que deseje e, em particular, na sua língua materna; toda pessoa tem direi to a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente sua iden tidade cultural; toda pessoa deve pode r participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dent ro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundame ntais.
Novembro 2014
>>> DIVERSIDADE CULTURAL E CRIATIVIDADE Artigo 7º:
O patrimônio cultural, fonte da criatividade
Artigo 8º:
Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém, se desenvolve plenamente em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas, deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversidade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas.
os culturais, Os bens e serviç as das demais nt sti di mercadorias
s e nças econômica Frente às muda vastas rem ab e qu , ais tecnológicas atu vação, a criação e a ino perspectivas para atenção r ula rtic pa a um deve-se prestar justo oferta criativa, ao à diversidade da es e tor au s do os eit dir dos reconhecimento ico cíf pe es er mo ao carát artistas, assim co mena e, qu s rai ltu cu ços dos bens e servi ntidaportadores de ide dida em que são m ser ve de o nã , do senti de, de valores e bens ou s ria mercado considerados como is. ma de os de consumo como
Novembro 2014
Artigo 9º:
As políticas culturais, catalisadoras da criatividade As políticas culturais, enquanto asse gurem a livre circulação das ideia s e das obras, devem criar condições prop ícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais diversificados, por meio de indústrias culturais que dispo nham de meios para desenvolver-se nos planos local e mundial. Cada Estado deve , respeitando suas obrigações internaci onais, definir sua política cultural e aplicá-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais adequados, seja na form a de apoios concretos ou de marcos regu ladores apropriados.
Cultura popular e Direitos Humanos
13
>>> DIVERSIDADE CULTURAL E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL
Artigo 10º:
des de Reforçar as capacida escala em ão us dif criação e de mundial
atualmente proAnte os desequilíbrios mbio de bens rcâ inte duzidos no fluxo e no é necessário al, ndi mu ala esc em culturais dariedade soli a e o reforçar a cooperaçã permitir que a das tina des s nai internacio ticular os países todos os países, em par países em tranos e nto ime olv em desenv rias culturais úst ind sição, estabeleçam planos nacionos s itiva pet com viáveis e nal e internacional.
Artigo 11º:
Estabelecer parcerias entre o setor público, o setor privado ea sociedade civil As forças do mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um desenvolvimento humano sustentáve l. Desse ponto de vista, convém fortalecer a função primordial das políticas públicas, em parceria com o setor privado e a socie dade civil.
Artigo 12º: A função da UNESCO A UNESCO, por virtude de seu mandato e de suas funções, tem a responsabilidade de: a) promover a incorporação dos princípios enunciados na presente Declaração nas estratégias de desenvolvimento elaboradas no seio das diversas entidades intergovernamentais; b) servir de instância de referência e de articulação entre os Estados, os organismos internacionais governamentais e não-governamentais, a sociedade civil e o setor privado para a elaboração conjunta de conceitos, objetivos e políticas em favor da diversidade cultural; c) dar seguimento a suas atividades normativas, de sensibilização e de desenvolvimento de capacidades nos âmbitos relacionados com a presente Declaração dentro de suas esferas de competência; d) facilitar a aplicação do Plano de Ação, cujas linhas gerais se encontram apensas à presente Declaração.
14
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
Quando falamos que cultura é direito, estamos falando tanto de direitos individuais quanto em direitos coletivos. De todo modo, os direitos culturais devem estar submetidos aos direitos humanos. Assim, eles não se confundem com toda e qualquer prática cultural. Existem práticas culturais que atentam contra a vida humana ou que discriminam grupos sociais e elas não podem ser consideradas como direitosculturais. Uma outra questão importante, enunciada de modo sutil no documento acima, é a da relação entre Estado e mercado. Este não pode agir por conta própria, pois suas leis, baseadas na busca do lucro, frequentemente ameaçam a diversidade cultural. O Estado deve atuar, portanto, colocando limites e mesmo produzindo ações que compensem os desequilíbrios gerados pela massificação do mercado.
Como proceder para afirmar a produção cultural popular como direito cultural?
Ilustração: Thais Linhares
O exemplo da luta pelo reconhecimento do funk como direito A história do funk tem a ver com a história de uma série de violações de direitos, entre eles o direito cultural, bem como de preconceitos fabricados historicamente sobre as culturas produzidas por pretos e pobres no Brasil. O funk é um capítulo dessa longa história de criminalização de culturas. Faremos aqui um breve histórico da construção desse preconceito e relataremos uma história exemplar de luta por direitos culturais. O sociólogo Loic Wacquant argumenta que as últimas décadas do século XX, marcadas pela ascensão do neoliberalismo, assistiram a substituição do Estado de Bem Estar Social pelo Estado Penal. O Estado Penal, ao invés de redistribuir renda e garantir direitos fundamentais ameaçados pelo mercado, se caracteriza, segundo o autor, pelo aumento generalizado das populações carcerárias na Europa e nos EUA. Essa penalização é seletiva e atinge os pobres, criminalizando suas práticas sociais, incluindo aí formas de sociabilidade. A criminalização cotidiana tem sua face mais espetacular na criminalização dos movimentos sociais, demonstrando sua serventia para administrar os efeitos de políticas concentradoras de renda e pouco democráticas. No Brasil, nunca tivemos propriamente um Estado de Bem Estar Social e a violência contra os pobres é histórica. No entanto, a partir da década de 1990, também recrudesce entre nós a política de encarceramento de pobres. Segundo dados do
16
Cultura popular e Direitos Humanos
DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), o número de presos cresceu em ritmo inédito. Entre 1995 e 2005 a população carcerária do Brasil saltou de pouco mais de 148 mil presos para 361.402, o que representou um crescimento de 143,91% em uma década. A taxa anual de crescimento oscilava entre 10 e 12%. A partir de 2005, a taxa de crescimento anual caiu para cerca de 5 a 7% ao ano. Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2009, a população carcerária aumentou de 361.402 para 473.626, o que representou um crescimento, em quatro anos, de 31,05%. Cabe destacar que, no mesmo período, a população brasileira cresceu numa taxa de menos de 2% ao ano, de acordo com o IBGE. Atualmente, a população já é de 563 mil presos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. A outra face do encarceramento massivo é a explosão de um tipo de violência que, dada as possibilidades de espetacularização que apresenta, é por vezes tomada como “A violência”. Trata-se da
Novembro 2014
Ilustração: Thais Linhares
violência urbana, identificada a crimes cometidos com a utilização de armas de fogo e com alta letalidade. Sob a ótica da classe média ou das classes proprietárias, essa violência se traduz principalmente como ataque ao patrimônio privado. Na percepção dos moradores das periferias das grandes cidades ela é sinônimo de assassinatos, com alto grau de participação de forças do Estado. Muitas dessas mortes são resultado de uma política proibicionista que prioriza o combate armado contra o comércio varejista de drogas ilícitas nas favelas, o chamado tráfico. Momento do crescimento dessa guerra às drogas, que nada mais é que uma guerra aos pobres, a década de 1990 foi tristemente inaugurada com as chacinas de Acari, Candelária e Vigário Geral, todas elas com participação de policiais. Apesar do fim da ditadura civil-militar, sacramentado em 1989 com a primeira eleição direta para presidente após mais de duas décadas, da ascensão dos movimentos sociais, da Constituição de 1988, os direitos das populações
Novembro 2014
Cultura popular e Direitos Humanos
17
mais pobres permanecem frágeis e constantemente ameaçados, por meio de novas formas de reprodução de práticas políticas autoritárias. Em 1992, num fim-de-semana de sol, as praias da Zona Sul do Rio de Janeiro se tornaram palco de confrontos entre gangues de adolescentes rivais, que encenaram nas areias o ritual de brigas e provocações que aconteciam nos bailes funk das favelas e periferias da cidade. Denominadas de “arrastão”, essas cenas voltariam a acontecer diversas vezes na cidade e foram noticiadas como exemplo concreto do perigo representado pela juventude popular negra. A trilha sonora dos embates foi o funk, por vezes transformado em grito de guerra como “Bonde do mal, Vigário Geral!”. Foi esse um dos marcos da descoberta do funk pelas camadas médias mais abastadas e pelo poder público. Como resume MC Leonardo em uma frase que ele sempre repete em suas palestras e falas públicas, “o funk sempre foi visto pelo Estado como assunto da Secretaria de Segurança e não como tema das Secretaria de Cultura ou Educação”. É nesse momento, portanto, que o funk passa a simbolizar um novo inimigo, o “traficante”. Acionistas do nada, nos termos de Orlando Zaccone. Esses “traficantes” são jovens pobres, em sua maioria negros, representando a ponta final e mais frágil do comércio de substâncias ilícitas. Uma representação influente na época foi a da “cidade partida”, título de livro bestseller publicado pelo jornalista Zuenir Ventura em 1994 que, além de uma narrativa sobre a vida na favela de Vigário Geral após a chacina ocorrida em 1993, tinha como um dos personagens principais o “traficante” Flavio Negão e tematizava a importância do funk naquele contexto.
18
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
“
O que se segue desde então é um processo contínuo de criminalização, nem tanto do funk, mas, sobretudo, dos funkeiros”
O que se segue desde então é um processo contínuo de criminalização, nem tanto do funk, mas, sobretudo, dos funkeiros. Dizemos nem tanto do funk porque este gênero aparece em programas televisivos de grande audiência, como o Xuxa Park e novelas da TV Globo. Na contramão da relativa aceitação midiática, os bailes funk sofrem restrições cada vez mais severas para sua realização. O fechamento de bailes por força policial, leis restritivas e até mesmo uma CPI do funk, instituída em 1999 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, foram eliminando do cenário da cidade os bailes de clubes e restringindo os mesmos a espaços de lazer situados dentro das favelas, territórios em que a autorização para o seu funcionamento depende de acordos informais, para não dizer ilegais, entre poderes locais e forças policiais. Em 1995, a música Endereço dos Bailes, dos MCs Júnior e Leonardo, inscrevia no mapa da cidade o circuito dos bailes funk, sem distinção entre os que aconteciam dentro e os que eram realizados fora das favelas. Essa integração do funk à cidade e, por extensão, das favelas por ele cantadas, já não era mais possível nos anos 2000. Restavam poucos bailes de asfalto e a linguagem do funk também sofreu grandes modificações. Ilustrações: Thais Linhares
Novembro 2014
Cultura popular e Direitos Humanos
19
Em 2008, foi sancionada a “lei Álvaro Lins”, oficialmente lei 5265. Álvaro Lins foi chefe da polícia civil durante os governos Garotinho e Rosinha Garotinho e era deputado estadual na época em que essa lei foi aprovada. Envolvido em vários casos de corrupção, foi cassado. A lei proposta por ele regulava a realização de “bailes tipo funk” e festas de música eletrônica. Além de exigências impossíveis de serem cumpridas por uma festa popular, com ingressos muito baratos ou mesmo gratuitos, como a existência de um banheiro para cada 50 pessoas ou de detectores de metal, a lei colocava nas mãos da autoridade policial local o poder de liberar os bailes. Para a realização destes, além de uma longa lista de documentos, havia a necessidade de um “nada opor” da delegacia policial e do batalhão de polícia militar da área. No final do mesmo ano houve a fundação da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK). As principais bandeiras dos profissionais do funk ali reunidos eram a descriminalização do gênero e o respeito aos seus direitos como trabalhadores do funk. Com o apoio do mandato do deputado Marcelo Freixo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da ALERJ, e de outros parlamentares, essas bandeiras se traduziram numa batalha legislativa. A demanda passou a ser a suspensão da “lei Álvaro Lins”, que havia sido aprovada pela maioria absoluta dos deputados, e a criação de uma lei que definia o funk como manifestação cultural e musical de caráter popular. Escrita por integrantes da APAFUNK em conjunto com representantes do mandato Marcelo Freixo, a lei foi aprovada por unanimidade em 2009 e tem o seguinte texto:
LEI Nº 5543, DE 22 DE SETEMBRO DE 2009 DEFINE O FUNK COMO MOVIMENTO CULTURAL E MUSICAL DE CARÁTER POPULAR. O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º Fica definido que o funk é um movimento cultural e musical de caráter popular. Parágrafo Único. Não se enquadram na regra prevista neste artigo conteúdos que façam apologia ao crime. Art. 2º Compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes, reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias e nem diferentes das que regem outras manifestações da mesma natureza. Art.3º Os assuntos relativos ao funk deverão, prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura. Art. 4º Fica proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o movimento funk ou seus integrantes. Art.5º Os artistas do funk são agentes da cultura popular, e como tal, devem ter seus direitos respeitados. Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2009. SERGIO CABRAL Governador
20
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
A aprovação dessa lei se deu no mesmo dia em que foi revogada a “lei Álvaro Lins”. Essa vitória no parlamento foi precedida de uma ampla mobilização que teve duas frentes: uma delas fora da ALERJ e a outra dentro, marcada por conversas em gabinetes entre MCs e DJs da APAFUNK e deputados de diferentes tendências políticas. Fora da ALERJ a luta se fazia por meio de rodas de funk, eventos “político-culturais” no dizer do MC Leonardo, presidente da APAFUNK, que misturavam entretenimento e debates de ideias. Os integrantes da APAFUNK circulavam em favelas, universidades, cadeias, veículos midiáticos, escolas e em qualquer espaço onde houvesse chance para divulgar suas reivindicações.
“
Afirmada como direito, a cultura do funk permanecia, na prática, criminalizada”
Ilustração: Thais Linhares
Novembro 2014
Cultura popular e Direitos Humanos
21
Um evento juntou essas duas frentes, a do Parlamento e a da rua: a audiência pública sobre o funk, ocorrida em agosto de 2009. Convidados a debater a questão pelas Comissões de Direitos Humanos e de Cultura, os parlamentares viram a ALERJ ocupada por mais de 600 pessoas reivindicando a suspensão da lei 5265 e a aprovação da lei do “Funk é Cultura”. Nas falas, nas faixas que tomaram o salão e nas músicas entoadas havia a defesa do funk como cultura e como direito. Na voz de um MC integrante da APAFUNK ouviu-se o trecho do Rap do Silva que diz “o funk não é modismo, é uma necessidade”.
No mesmo momento em que a “lei Álvaro Lins” era derrubada e a “lei do Funk é Cultura” era aprovada, uma grande festa acontecia do lado de fora da ALERJ. Centenas de funkeiros comemoravam discursando, cantando e dançando. Saíram todos em passeata em direção ao Circo Voador para um grande baile comemorativo daquele momento histórico. Os representantes da APAFUNK e o deputado Marcelo Freixo foram recebidos como heróis. Todos os estilos e matizes estetico-políticas do funk estavam ali representadas, mesmo aqueles que se confrontavam diretamente. É o caso da Furacão 2000, representada pelo empresário Rômulo Costa, e a própria APAFUNK, já que a associação denunciava a auto intitulada “equipe número 1 do Brasil” por desrespeito aos direitos autorais e trabalhistas de MCs e DJs. Em muitas falas percebia-se ao mesmo tempo a alegria da comemoração e a preocupação em “fazer valer a lei”. Os profissionais do funk percebiam que a vitória no parlamento não significava liber-
22
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
dade para a realização dos bailes funk e para o exercício de sua profissão. No dizer de MC Leonardo naquele dia: “a luta continua”. Afirmada como direito, a cultura do funk permanecia, na prática, criminalizada. Enquanto toda essa movimentação ocorria, uma novidade política aparecia nas favelas: as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Centro da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro desde 2008, as UPPs são a ocupação territorial armada de algumas favelas consideradas estratégicas para a contenção de práticas criminosas associadas ao comércio varejista de drogas ilícitas (“tráfico”)1. Na época da aprovação da “lei do Funk é Cultura” as seguintes UPPs haviam sido instaladas: Santa Marta, Cidade de Deus, Batan. Babilônia e Chapéu Mangueira. Em suma: duas UPPs na Zona Sul e duas na Zona Oeste. Apenas uma delas, a da Cidade de Deus, numa fave-
1
A partir de textos críticos, analíticos, que buscam ir além do senso comum, concluímos não ser possível utilizar o termo “tráfico” para se referir ao comércio varejista de drogas que acontece em favelas sem usar aspas e problematizá-lo. Isso porque das duas uma: ou estamos falando de uma categoria nativa dos moradores, o que deve ser explicitado, ou estamos nos referindo a um termo que torna superlativo tal comércio, obscurecendo uma cadeia lucrativa da qual o varejo é a ponta final e mais frágil. Neste último caso, frequentemente o propósito e o efeito são criminalizantes.
Novembro 2014
Ilustrações: Thais Linhares
Cultura popular e Direitos Humanos
23
la grande em termos populacionais e territoriais, com cerca de 50 mil habitantes segundo dados do Instituto Pereira Passos.2 A questão que toca o funk é que a UPP se coloca não somente como uma forma de policiamento do território para a contenção daquilo que legalmente é classificado como crime, mas também atua como árbitro geral das formas de sociabilidade presentes em favelas. Hoje, em tempos pós-Amarildo, a crítica a essa atuação e as denúncias de abuso de autoridade são fartas e amplamente divulgadas. Mas em 2009 havia um consenso em torno das UPPs que tornava a crítica à sua atuação muito mais difícil.
“
A implementação de UPPs passou a significar a proibição dos bailes funk em seu território de refúgio: as favelas”
Fato é que a implementação de UPPs passou a significar a proibição dos bailes funk em seu território de refúgio: as favelas. O instrumento legal para tal proibição, na ausência da “lei Álvaro Lins” e frente à resistência dos organizadores locais dos bailes que tinham em mãos a “lei do Funk é Cultura”, foi a resolução 013. Esta era a norma de aplicação do decreto 39.355/2006 e foi editada em 2007. Ela determinava a relação dos órgãos de segurança com os eventos “sociais, culturais ou esportivos” no estado. A partir da 013, a polícia cumpria o papel de autorizar eventos em todo o estado, não diferenciando eventos de pequeno, médio e grande porte, nem estabelecendo público mínimo para o evento se submeter à norma. Além disso, dava à autoridade policial total discricionariedade para autorizar ou proibir, ou seja, a autorização dependia de motivos não estabelecidos na própria resolução, possibilitando ao policial criar motivos a partir de subjetividades ou convicções próprias. Foram várias as denúncias de equipes de som impedidas de trabalhar com base 2
Dados capturados em 03 de junho de 2014, disponíveis em www.tinyurl.com/uppcdd
24
Cultura popular e Direitos Humanos
Novembro 2014
Ilustração: Thais Linhares
Novembro 2014
na resolução 013 que foram encaminhadas à APAFUNK e à Comissão de Direitos Humanos da ALERJ. A APAFUNK percebeu a importância de ampliar suas alianças e divulgar a luta contra a resolução 013 para além dos espaços institucionais do parlamento ou do poder executivo. E assim nasceu a “Campanha contra a 013”, reunindo várias organizações da sociedade civil. A partir dessas parcerias foi organizada uma mobilização online e materiais informativos audiovisuais e impressos que foram distribuídos nas agitações da mobilização. Muitos desses materiais contaram com as fotografias de Maria Buzanovsky, cujo trabalho artístico é voltado para as culturas da diáspora negra no Rio de Janeiro, em especial o funk em suas diversas expressões.
Cultura popular e Direitos Humanos
25
Uma de suas fotografias, feita numa roda de funk (na página ao lado) realizada em 2012 na favela do Cantagalo, se tornou símbolo da campanha. Nela, um morador da favela segura um cone como se fosse um megafone, simbolizando a necessidade de expressão livre de ideias que se materializava na luta contra a resolução. A foto captou a performance do morador, um homem negro de cabelo com dreadlocks, comum aos integrantes do movimento rastafari. Maria afirma que ele chegou “quebrando tudo”, significando que sua performance foi muito expressiva, dançando “até o chão”, sacudindo a cabeça sem parar e produzindo a imagem que capturava o sentido daquela mobilização. No material da campanha essa foto se juntava ao verso da música Minha alma, de Marcelo Yuka, também tornada mote do “Fora Zero-Treze”. A participação de Maria e a utilização de suas fotos junto com os versos de Yuka são demonstrações da amplitude da rede que se formou em torno da campanha contra a Resolução 013. Debates em favelas e universidades, além de rodas de funk, recursos já utilizados anteriormente pela APAFUNK, foram instrumentos na divulgação da luta pela revogação desta resolução. As rodas de funk do Cantagalo e do Chapéu Mangueira foram realizadas mesmo com a presença de UPPs naqueles territórios, o que demandou processos longos e difíceis para sua liberação. Com esse esforço de mobilização, a Resolução 013 se tornou conhecida. Como resultado, vários grupos e indivíduos relacionados ao campo da produção cultural no Rio de Janeiro, atuando dentro e fora de favelas, se incorporaram à campanha. No bojo das manifestações de junho de 2013, o então governador
26
Cultura popular e Direitos Humanos
Sergio Cabral anunciou a suspensão da resolução. Apesar da nova resolução simplificar os procedimentos para a liberação dos bailes, ela não diminui o poder das autoridades policiais para proibir os eventos abarcados na norma. Assim sendo, mesmo com a vitória considerada histórica entre os funkeiros e amplamente divulgada na mídia hegemônica, a conquista de uma lei definindo o funk como “cultura” não significou, na prática, um direito efetivo. No cotidiano da cidade o funk permanece sendo tratado como crime pelo Estado. O mesmo Estado que, contraditoriamente, publicou um edital de apoio à “criação artística no funk” em 2011 e em 2013 lançou um edital específico para patrocinar a realização de bailes funk. MC Leonardo traduz esse estado de coisas como um “abismo entre o direito e o dever”. Nos seus termos: “O Estado não tem o DIREITO de criar DEVERES para toda população cumprir sem respeitar o DIREITO do cidadão de ter participação na elaboração dessas regras. Assim fica o cidadão sem saber qual é o seu DEVER, ficando cada vez mais difícil saber por onde começar a lutar por seus DIREITOS.” Se, como afirma Barth, a criatividade é “resultado da luta dos atores para vencer a resistência do mundo”, podemos ver essa luta permanente do movimento funk contra a sua criminalização e pelo seu reconhecimento enquanto cultura como um processo criativo. (BARTH, 2000: 129) A afirmação da criatividade se dá, nesse caso, pela reivindicação do direito de criar e fruir. Cantar e dançar o funk são, desse modo, maneiras de se inventar cidadania.
Novembro 2014
Foto: Maria Buzanovsky
Novembro 2014
Cultura popular e Direitos Humanos
27
curso popular em
DIREITOS HUMANOS >>no IFRJ
>>de 23/08 a 01/11 de 2014
Ficha Técnica - Cartilha: Redação: Pâmella Passos e Adriana Facina Ilustrações: Thais Linhares Diagramação: Caio Amorim Revisão: Thiago Melo, Laíze Gabriela Benevides e Talita Cairrão
REALIZAÇÃO:
APOIO: revista
Creative Commons Atribuição-Uso não-comercialCompartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil License.
www.ddh.org.br