Entrevista_Tavarez_Artivismo de rua de olho na luta de classes
R$2 edição digital nº 32 abril+maio 2014
Jornalismo pela diferença, contra a desigualdade
história virada em nossa o nã a d in a liz fe Página in
O M S I R A T I L I M O
CONTINUA
lpe militar, 50 anos após o go sa acabar ci o Brasil ainda pre obres e se p com a guerra aos utoritário livrar do entulho a
Boate Kiss Um ano depois do incêndio as famílias lutam por justiça
Hamilton Octávio de Souza O Golpe deu certo, a ditadura venceu ISSN 2236-7969
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MEDIA FAZENDO
nº32
Com conteúdo do
Gestão Mobilização Docente e Trabalho de Base
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Afinal, o que é a Vírus Planetário? Muitos não entendem o que é a Vírus Planetário, principalmente o nome. Então, fazemos essa explicação maçante, mas necessária para os virgens de Vírus Planetário: Jornalismo pela diferença, não pela desigualdade. Esse é nosso lema. Em nosso primeiro editorial, anunciamos nosso estilo; usar primeira pessoa do singular, assumir nossa parcialidade, afinal “Neutro nem sabonete, nem a Suíça.” Somos, sim, parciais, com orgulho de darmos visibilidade a pessoas excluídas, de batalharmos contra as mais diversas formas de opressão. Rimos de nossa própria desgraça e sempre que possível gozamos com a cara de alguns algozes do povo. O bom humor é necessário para enfrentarmos com alegria as mais árduas batalhas do cotidiano.
O homem é o vírus do homem e do planeta. Daí, vem o nome da revista, que faz a provocação de que mesmo a humanidade destruindo a Terra e sua própria espécie, acreditamos que com mobilização social, uma sociedade em que haja felicidade para todos e todas é possível.
Recentemente, unificamos os esforços com o jornal alternativo Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e nos tornamos um único coletivo e uma única publicação impressa. Seguimos, assim, mais fortes na luta pela democratização da comunicação para a construção de um jornalismo pela diferença, contra a desigualdade.
EXPEDIENTE: Rio de Janeiro: Alexandre Kubrusly, Ana Chagas, André Camilo, Artur Romeu, Bruna Barlach, Bruno Costa, Caio Amorim, Camille Perrisé, Catherine Lira, Chico Motta, Débora Nunes, Didi Helene, Diego Novaes, Eduardo Sá, Fernanda Alves, Joyce Abbade, Julia Campos, Livia Valle, Mariana Adão, Mariana Moraes, Raquel Junia, Thales Messentier | São Paulo: Ana Carolina Gomes, Duna Rodríguez, Gustavo Morais, Hamilton Octávio de Souza, Jamille Nunes, Jéssica Ipólito, Luka Franca, Marcelo Araújo e Sueli Feliziani | Brasília: Alina Freitas, Diogo Cardeal, Edemilson Paraná, João Apolinário Passos, Maiara Zaupa e Thiago Vilela | Minas Gerais: Ana Malaco, Laura Ralola e Paulo Dias | Ceará: Caior Erick, Joana Vidal, Livino Neto e Lucas Moreira | Piauí: André Café, Diego Barbosa, Mariana Duarte, Nadja Carvalho e Sarah Fontenelle | Bahia: Mariana Ferreira | Paraíba: Iarlyson Santana e Mariana Sales | Paraná: Elisa Riemer | Mato Grosso do Sul: Eva Cruz, Fernanda Palheta, Jones Mário, Marina Duarte e Tainá Jara | Rio Grande do Sul: João Victor Moura, Maiara Marinho e Rafael Balbueno Diagramação: Caio Amorim e Thales Mesentier | Capa: Ilustração de Elisa Riemer
Conselho Editorial: Adriana Facina, Amanda Gurgel, Ana Enne, André Guimarães, Claudia Santiago, Dênis de Moraes, Eduardo Sá, Gizele Martins, Gustavo Barreto, Henrique Carneiro, João Roberto Pinto, João Tancredo, Larissa Dahmer, Leon Diniz, MC Leonardo, Marcelo Yuka, Marcos Alvito, Mauro Iasi, Michael Löwy, Miguel Baldez, Orlando Zaccone, Oswaldo Munteal, Paulo Passarinho, Repper Fiell, Sandra Quintela, Tarcisio Carvalho, Virginia Fontes, Vito Gianotti e Diretoria de Imprensa do Sindicato Estadual dos Profissionais de Edução do Rio de Janeiro (SEPE-RJ)
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COMUNICAÇÃO E EDITORA A Revista Vírus Planetário - ISSN 2236-7969 é uma publicação da Malungo Comunicação e Editora com sede no Rio de Janeiro. Telefone: 3164-3716
Editorial Sumário
“Regime não-democrático ou antidemocrático, governos onde não há participação popular, ou em que essa participação ocorre de maneira muito restrita.” Esta definição de regime, que parece muito com a realidade que vivemos hoje em dia no Brasil, na verdade é a simples definição de ditadura.
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Quando ouvimos a palavra ditadura, a primeira ideia que vem a mente é a ditadura empresarial-militar que assolou o país a partir do golpe de 1964. Em 1985, com o processo de (re)democratização, parece que conseguimos virar a página, que esta história ficou no passado. No entanto, será que realmente vivemos numa democracia? Para jamais nos esquecermos do golpe, nesta edição da Vírus trazemos uma série de matérias e artigos sobre o golpe e a ditadura militar, mostrando diferentes faces de uma parte triste e sangrenta da história deste país. Com os 50 anos do golpe é preciso, também, levantar uma importante reflexão acerca da realidade em que vivemos hoje em dia. De que serve a história, senão, para aprendermos com ela para que possamos transformar o presente e o futuro. Uma triste faceta da realidade tem ficado cada vez mais escancarada desde junho de 2013: os fantasmas da ditadura estão muito vivos. Seja na postura da polícia militar, que age como se estivesse permanentemente em guerra com a população, seja na postura da mídia grande que esconde, mascara e mente para encobrir uma realidade muito dura. A verdade é que pelo recantos desta vastidão nacional as pessoas continuam a ser mortas pelos militares. E não são quaisquer pessoas, execuções aqui tem cor e classe social. Os movimentos sociais combativos sempre denunciaram, mas apenas com o emergir das massas nas jornadas de junho, os casos de abusos e execuções de PMs romperam a blindagem e manipulação da mídia hegemônica que sempre corroborava a versão de que morador de favela morto pela polícia era traficante. Por exemplo, o desaparecimento do Amarildo no ano passado e as mortes de Cláudia Ferreira (que teve seu corpo baleado e arrastado pela polícia) e do dançarino do programa Esquenta Douglas Sivla, muito por conta da mobilização das redes sociais e fora delas, ganharam repercussão nacional e é possível afirmar que esse ano a verdade está cada vez mais explícita. A polícia está nas favelas e nos bairros pobres para matar e executar suas próprias leis, muito diferente do que deveria acontecer num estado democrático de direito. Para completar o quadro, diversos militantes de esquerda foram processados e presos no último ano. Quem disse que isso só acontecia naquela ditadura militar? A dura ditadura do capital também não tem espaço para quem quer e luta por mudanças. Isso não quer dizer que não devamos seguir lutando para atingir, um dia, a real democracia com o fim da exploração da humanidade pelo capital. Não há democracia enquanto a exploração for a ordem do dia. E não há democracia sem mídia livre de fato e é por isso que aqui estamos, continuando a luta para manter viva esta revista que hoje você tem em mãos. Colabore, assine, leia, divulgue a Revista Vírus Planetário. Construa conosco um jornalismo pela diferença, contra a desigualdade, para emergir uma nova sociedade.
Sórdidos Detalhes
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Fazendo Media_A nova grande mídia está na internet
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Bula Cultural_Vem pra Raiotagë
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Bula Cultural_Música de protesto
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Bula Cultural_Indicações e Contra
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Pâmela Passos_Vozes a favor do
Golpe
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Hamilton Octávio de Souza_O Golpe deu certo, a ditadura venceu
28 CAPA_Memória, verdade e justiça 32 Entrevista INCLUSIVA_Tavarez 36 Sensacional repórter sensacionalista
38 Rafucko_A arte é conduta atípica 40
Rio Grande do Sul_ Boate Kiss, um ano depois
s o d i d r ó s detalhes A verdade varrida pra debaixo do tapete...
A DITADURA CONTINUA PARA AS FAVELAS
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Vírus Planetário - ABRIL+MAIO 2014
Ilustrações por Ñ Coletivo - Design Indignação www.facebook.com/naocoletivo
Assim como a opinião pública sobre as milícias mudou somente após jornalistas do Dia terem sido torturados por essa máfia, a opinião pública sobre as UPPs vêm sofrendo um baque. Com as mobilizações em massa de junho/2013 conseguiu-se finalmente trazer à tona que casos como o de Amarildo, mais um entre tantos torturados, mortos e desaparecidos. O fato é que a polícia nas favelas, seja com ou sem UPP, mata, tortura e some com corpos de moradores que não aceitam ser humilhados e subjugados ao autoritarismo policial que aplica toque de recolher e outras formas de vigilância como se todo morador de favela fosse um potencial criminoso. Agora, com a morte de um dançarino do programa Esquenta de Regina Casé na Globo (que desde que o programa está no ar, veio propagandeando a UPP), com a apresentadora indo ao enterro e chorando ao lado do caixão de DG, é certo que a opinião pública vai ficar ainda mais contra a política de “pacificação” praticada pelo governo Cabral/Pezão. O certo é que as lutas sociais começam a se acirrar, cada vez mais o povo irá lutar contra o autoritarismo, pela desmilitarização das polícias e cada vez mais o Estado irá se armar, se militarizar, reprimir. A UPP ou seja lá o nome que se vá dar a um policiamento comunitário sempre terá como função – no Estado capitalista – fazer a coerção da população, que é, propositadamente, empobrecida, para que se mantenha a ordem vigente, que não se rebele, que continue a aceitar as péssimas condições de vida às quais está submetida. E se um ou mais se levantam, a repressão é pesada, como observamos, com mortes, torturas, ameaças, desaparecimentos etc. Não são poucos os casos de militantes moradores de favela que têm que esconder seus livros de esquerda, algo que era muito comum na ditadura militar. E indubitavelmente, as principais vítimas da repressão policial são aqueles que, não necessariamente são de esquerda ou militantes, mas que não se deixam ser humilhados pelas autoridades policiais, que denunciam abusos etc. Na ilustração ao lado realizada pelo “Ñ Coletivo”, a denúncia da ocupação militar do conjunto de favelas da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, simbolicamente realizada no dia 1º de abril, aniversário de 50 anos do golpe militar.
A BANANIZAÇÃO DO RACISMO* *referência do título – www.tinyurl.com/blognegras
Show de horrores! É isso que todos que lutam contra o racismo tem enfrentado no país no último mês. Depois do episódio fatídico de Daniel Alves comendo a banana atirada a ele no jogo Barcelona contra Villareal, vimos uma campanha pra lá de suspeita surgir da noite pro dia. Estranhamente essa campanha, que usa a hashtag #somostodosmacacos, foi encampada por inúmeros famosos, como Neymar Jr. (aquele mesmo que nem se reconhece como negro). Em poucas horas, havia até camisetas com a estampa “#SomosTodosMacacos” sendo vendidas a 70 reais na loja de Luciano Huck, que, também de forma muito curiosa, era um dos líderes da campanha. Loja, esta que, diga-se de passagem, tem apenas modelos brancas vestindo as camisas. Acontece que esqueceram de perguntar ao movimento negro o que eles achavam da campanha que foi pessimamente recebida por todos os ativistas da luta contra as opressões, e principalmente contra o racismo. Isso porque macaco tem sido um xingamento utilizado historicamente para desumanizar o povo negro. Não somos todos macacos. Não somos todos negros. Somos todos pessoas, sim, brancos, negros, amarelos, vermelhos... e, infelizmente, no Brasil os brancos tem oprimido os negros desde que os arrastaram escravizados para servir de mão de obra pra criação do país até hoje. Basta ver a diferença de salários, no número de presidiários negros, da quantidade de negros entre as classes mais pobres. Pra fechar com chave de bananas essa história... rapidamente foi descoberto que a campanha “somos todos macacos” foi orquestrada pela agência de publicidade Loducca, parceira de Neymar. Não somos todos macacos, mas parece que tem gente que acha que somos todos burros. Vírus Planetário - ABRIL+MAIO 2014
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sórdidos hes detal A verdade varrida pra debaixo do tapete...
A ReVOLTA DOS QUE NUNCA FORAM de revolta
Ilustração: Tavarez - www.tinyurl.com/tavarezpage
os tinh os ga muit o-ajuda t o au noss rçar disfa cismo fas
Eis que uma página começa a aparecer frequentemente na timeline do facebook de todos. Os primeiros posts poderiam até parecer interessantes, mensagens de amor, algumas questionando a realidade brasileira. O nome da página? TV Revolta, um nome, a primeira vista de contestação ao sistema. De um dia pro outro a página ficou tão famosa entre as atualizações de amigos que muita gente começou estranhar. Principalmente porque entre aquelas mensagens bacaninhas (com gatinhos e outras fofurinhas) e uma ou outra tirada “super” esperta, diversos memes reproduzindo velhos opressões (especialmente machismo e homofobia) e de ataque ao governo federal, principalmente à presidenta. Não que atacar o governo seja um problema, fazemos isso em todas as edições da revista Vírus Planetário, mas esse ataque era de outro tipo, pois vinha ao lado de apoios a Rachel Sheherazade e Joaquim Barbosa. Especialistas apontam que foi investida uma grande verba para tornar esta página tão famosa. O facebook vem restringindo cada vez mais a visibilidade de páginas que não pagam anúncio. Logo, pra uma página conseguir visibilidade real na rede social de Marquinho Zuckerberg é preciso pagar. E para conseguir um crescimento absurdo como esse – uma média de 200 mil novas curtidas por dia – é preciso gastar uma quantia considerável de dinheiro em anúncio (não se tem como saber uma quantia exata, mas pelo que analisamos do faceboook, não seria surpresa se fosse mais de um milhão). Estranhamente, essa página surge agora que as eleições começam a se delimitar. Pouco tempo depois da explosão da fama da TV revoltinha (sabe, aquela criança rebelde que é contra tudo e todos mas não sabe de nada e coisa nenhuma? então...) uma agência de publicidade procurou o dono da página Dilma Bolada para fechar um contrato em nome do PSDB para que a página fosse usada para campanha de difamação do PT e da presidenta. Será que dá pra ligar os pontos para saber de onde surgiu o investimento nessa página, que até um mês e meio atrás ninguém dava bola? Façam suas apostas!
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Vírus Planetário - ABRIL+MAIO 2014
PRA NÃO BROCHAR O coletivo vinhetando lançou no facebook o evento Vai Ter Cópula. Confira a descrição do evento: “No dia 12/06, dia dos namorados, a seleção brasileira de futebol fará sua estréia na copa do mundo. sendo assim, o coletivo vinhetando conclama todos os brasileiros a desligarem a televisão na hora do jogo para se dedicarem a um gostoso ato sexual. a escalação é você quem faz. vale tudo! Faça AMOR, não faça FIFA!” Confirme sua presença aqui: www.tinyurl.com/vaitercopula
#VaiTerBrochada A imagem ao lado é montagem, apesar de existir camisinha sabor Caipirinha, o nome do Neymar foi colocado manipulando a foto e a camisinha é verde e amarela e não tem a cor azul na realidade. Entretanto, essa camisinha nacionalsta é de brochar qualquer um.
GENTE BONÍSSIMA! O Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame está lançando seu livro autobriográfico, “Todo dia é segundafeira”. O livro está bombando mais do que sua polícia invadindo favela, ficando entre os mais vendidos da amazon, conforme reportado na coluna “Gente Boa”, do jornal O Globo (gente boníssima o Beltrame!). “Todo dia é segunda-feira”, menos para Claudia Ferreira, DG, Amarildo e inúmeras outras vítimas de sua política de segurança pública que criminaliza a pobreza. José Mariano Beltrame (secretário de segurança pública desde 2006) é idolatrado pela elite carioca que o coloca como “grande revolucionário” da segurança pública no Rio, como se tivesse resolvido o problema da violência com as UPPs.
QUE BEM É ESSE? Capa do livro
Entretanto, o movimento emergido a partir das jornadas de junho/2013 fez com que uma grande parte da sociedade passasse a saber o que os movimentos sociais combativos sempre souberam e denunciaram, que a polícia das UPPs é a mesma polícia de sempre que trata o pobre, negro e favelado como um inimigo interno, tortura, mata e desaparece com pessoas. Não precisamos de UPP, precisamos desmilitarizar as polícias e nos livramos do entulho autoritário da ditadura. Em tempo: Será que Beltrame revela no livro biográfico que era agente infiltrado da ditadura empresarial-militar no movimento estudantil gaúcho, como noticiamos em julho do ano passado (confira aqui - www.tinyurl.com/beltrameditadura). Se alguém descobrir, conta pra gente porque não vamos gastar nem um centavo pra comprar e nem um segundo pra ler o Mein Kampf tupiniquim.
O BRASIL VAI PARAR Desde o ano passado, com as grandes manifestações e greves, o mundo esperava pra ver o que iria acontecer com o Brasil em 2014, o ano da copa. Bem, não podemos dizer sobre o que virá, mas o cenário parece muito favorável. E não é favorável para a Copa e nem para os governos, é favorável para mudanças. Logo nos primeiros meses vimos a onda de greves se alastrando. Depois da vitoriosa greve dos garis do Rio, outras tantas se seguiram. Agora os professores chegam com tudo, fazendo paralisações em diversas cidades do país, inclusive nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. Junto com os professores, os rodoviários do Rio de Janeiro colocaram a cara na rua lutando pelos seus direitos, diante de uma possibilidade de piora das condições de trabalho que já são absolutamente precárias. Não são somente essas categorias que estão em greve, em todo o país temos funcionários de diferentes categorias, desde trabalhadores da construção civil até os servidores do Ministério da Cultura. Até mesmo os trabalhadores da AmBev prometem greve para a época da Copa. Outras greves virão e um espectro ronda o nosso país: o espectro da Greve Geral. Vai ter copa, mas os gritos dos estádios não serão nada perto dos gritos das ruas!
As manchetes da mídia grande nos últimos tempos fazem com que nos perguntemos que tempo é esse que vivemos. As notícias da ação dos chamados “justiceiros” não param de surgir. Se no início eles estavam prendendo pessoas em postes, agora eles estão torturando e assassinando. Mas é claro, tudo isso em nome da justiça.
Que justiça é essa? Bem, é a mesma justiça que eles veem a nossa polícia praticando. Nossos exemplos cotidianos de executores da justiça são os mesmos policiais que matam as pessoas na favela sem nenhum motivo além do fato de serem pobres e morar nas favelas. Obviamente não é da competência da polícia localizar, julgar, sentenciar e executar a sentença, mas, na prática, todos sabemos que é isso o que acontece. E, se a polícia pode sair matando as pessoas sem qualquer julgamento legal, por que não podem os justiceiros? Nesse jogo de “justiças”, não importa se de fato a pessoa é ou não culpada. Algumas das pessoas mortas tinham sido erroneamente apontadas como culpadas, como no caso da moradora da baixada santista, no estado de São Paulo, que foi morta por uma falsa acusação de sequestro. Outra mulher, uma manicure desempregada, foi torturada e morta por furtar um pacote de biscoitos. Indiferentemente da existência ou não da culpa, não só não nos cabe julgar ninguém, já que esta é responsabilidade da justiça, mas, além disso, é preciso que isso tenha um fim! Nem tudo está perdido, é claro. No Rio de Janeiro uma estudante evitou o espancamento e linchamento de um homem, mesmo diante de zombarias e ameaças de violência, inclusive de um policial que disse a ela que se gostava de bandido era bom que ela levasse ele para casa. Enquanto grande parte da sociedade continuar a reproduzir discursos como “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para humanos direitos” e outras pérolas do pensamento conservador de direita, os “justiceiros” (e tome aspas, pois isso está bem longe de justiça) seguirão tendo base para existir. E o pior, as pessoas não questionarão o que causa essa violência estrutural, o que leva alguém a furtar um biscoito ou um celular. Continuarão sem questionar o verdadeiro problema: o sistema que oprime, explora e exclui - o verdadeiro culpado! A justiça que temos que fazer é acabar com este sistema.
Ilustrações por Ñ Coletivo - Design Indignação www.facebook.com/naocoletivo Vírus Planetário - ABRIL+MAIO 2014
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FAZENDO
MEDIA Abril de 2014 | Ano 11 | Número 115 | www.fazendomedia.com | contato@fazendomedia.com
a média que a mídia faz
A nova grande mídia está na internet Midialivristas, através de redes sociais, formam teia de informação capaz de desmascarar mídia tradicional e de pressionar decisões políticas. Por André Camilo Desde a jornada de junho, quando, pela primeira vez em vinte anos, milhões de brasileiros foram às ruas de todo o país em busca de justiça, diversas organizações populares foram criadas. O fenômeno surpreendeu a todos e, quase um ano depois, permanece em constante
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mutação. Uma das vertentes mais curiosas desse processo de politização do brasileiro é o caso dos midialivristas, que formaram uma rede capaz de fazer frente aos meios de comunicação de massa tradicionais e capaz de mudar o rumo de decisões de Estado.
A maioria da informação produzida por essa nova mídia é veiculada pelas redes sociais e depende do interesse do receptor da mensagem para que seja compartilhada, formando novos emissores em escala exponencial. Ou seja, a rede que levou as pessoas para as ruas em junho se desenvolve, se ramifica e se torna cada vez mais complexa, dificultando que a informação seja comprada e moldada pelo interesse de classes dominantes.
Mapeamento de páginas do facebook da Nova Grande Mídia - Crédito: LABIC - UFES
De acordo com pesquisa publicada por Fabio Malini no Laboratório de estudos sobre Imagem e Cibercultura – LABIC, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), quando as diversas páginas e perfis do Facebook compartilham uma mesma mensagem, agindo de forma coordenada, a temperatura política brasileira aquece. Um exemplo citado foi a greve dos garis, ocorrida em março. Para Malini, o fato de os garis conseguirem o que almejavam foi uma vitória importante do midialivrismo. Isso somado ao fato de
grande parte da mídia tradicional se ver desmentida e humilhada pela corrente de verdades apresentadas durante a greve em primeira mão pelos midialivristas. Em sua pesquisa, Malini selecionou 300 canais do Facebook que divulgam informações midialivristas e identificou as fanpages que cada um desses canais curte, chegando a um alcance de cerca de 15 milhões de usuários, cerca de um terço dos espectadores que assistiram ao final de uma das telenovelas da Rede Globo. Levando em consideração o nível de alienação do brasileiro, o tempo de existência dessa rede e seu potencial formador de opinião, o visível engajamento das pessoas em questões sociais e políticas tende a crescer. Outro trabalho de pesquisa vem sendo desenvolvido em relação à mídia independente, que hoje podemos afirmar que está se estruturando e se fortalecendo no país de forma descentralizada e altamente conectada. Marcela Canavarro, doutoranda em Mídias Digitais pela
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FAZENDO
MEDIA “
A mídia corporativa é pautada pelo interesse econômico. Foi constituída de uma forma irregular, antidemocrática, durante o período mais sombrio da história do país.”
Universidade do Porto, em Portugal, está tirando a radiografia da Mídia Independente no Rio de Janeiro. A previsão é de que sua tese seja escrita em 2017, porém ela não precisou se aprofundar muito para constatar a intenção de utilizar a palavra “livre” para deixar claro a oposição para com a mídia corporativa, na maioria das vezes, mergulhada em compromissos com diversos grupos econômicos e políticos.
Rio de Janeiro Na cidade maravilhosa, a mídia independente figura papel de destaque, se comparada às redes de outras cidades. Para o cineasta e fotógrafo André Miguéis, da Mídia Independente Coletiva, fundada no fervor das manifestações de junho de 2013, a busca pela verdade acabou se tornando um sacerdócio. “Hoje trabalhamos quase como médicos. Tem um problema na favela às duas horas da manhã, ligam para a gente cobrir”. Ele afirma que o processo é muito novo, que ainda está em formatação e que só agora que as mídias estão se entendendo como rede. Apesar de o seu pai ter sido preso na época da ditadura, Miguéis declara que passou a vida toda fugindo de qualquer contato com a política. Segundo ele, sua vida foi pautada pela arte e tudo mudou quando presenciou no dia 20 de junho de 2013 um milhão de pesso-
as nas ruas sendo agredidas pelas forças do Estado: “Esse foi o fator fundamental que fez com que as pessoas se juntassem e que o coletivo fosse criado”, conta. Analisando o cenário que está envolvido, Miguéis consegue afirmar que existe, por parte do Estado, a tentativa de desautorizar o trabalho das mídias independentes: “O que nos garante hoje é o povo. Estamos levando uma informação diferenciada em relação ao que está na mídia tradicional, diferente da informação oficial. Isso faz com que tenhamos algum resguardo, mas é certo que, à medida que nós aumentarmos essas redes e cada vez mais elas incomodarem o poder constituído, seremos perseguidos”. Miguéis recorda que os midialivristas conseguiram apresentar a verdade diversas vezes, desmentindo a mídia corporativa. Um dos casos foi a prisão arbitrária de manifestantes na Cinelândia, em frente à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Para o ativista, foi o trabalho das mídias independentes atuando como um bloco que obrigou as mídias corporativas a apresentar conteúdo similar. Outra contri-
Midiativistas enfrentam repressão do Estado para apresentar a verdade | Foto: Celia Lima
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Smartphones com transmissão ao vivo pela internet se transformaram em armas de luta pela democratização da mídia | Foto: Mídia Ninja
buição interessante foi o caso Bruno Telles, em que ativistas filmaram com muita coragem a tentativa da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro de incriminar o rapaz, como se ele tivesse atirado um Coquetel Molotov na multidão durante uma manifestação. Na ocasião, Bruno foi absolvido. O que resume a diferença entre as duas mídias para Miguéis é simples. “A mídia corporativa é pautada pelo interesse econômico. Foi constituída de uma forma irregular, antidemocrática, durante o período mais sombrio da história do país. Apoiou a ditadura e se beneficia dela até hoje. Já a mídia independente surge da necessidade de buscar e levar a informação de uma maneira diferenciada em relação à mídia corporativa. Para expandir, precisamos continuar nas ruas, mantendo contato com a população”, diz. O midialivrista assume que não é necessário viver sempre no ambiente alternativo e underground: “Temos que levar a nossa comunicação para todos os espaços. Lutamos pela democratização da mídia. Hoje atingimos mais a juventude da região Sudeste, pessoas instruídas interessadas em política. A Rede Globo, por exemplo, tem seu canal
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Os midialivristas, que formaram uma rede capaz de fazer frente aos meios de comunicação de massa tradicionais e capaz de mudar o rumo de decisões de Estado.”
aberto e atinge todo mundo. Nós ainda estamos no Facebook, Wordpress, rede social, internet, algo que nem todos tem acesso. A ocupação da rede pública é fundamental”, afirma.
Migração do conteúdo das redes sociais para a TV aberta A principal rede utilizada hoje é o Facebook, que acaba de anunciar a redução do alcance orgânico das páginas para 1%, acumulando 50% de redução em cerca de seis meses. Dessa forma, a rede precisa crescer, se multiplicar e migrar o conteúdo, hoje disponível na internet e no cinema, para a TV aberta, atingindo um público que tem menos contato com a internet. A porta que ainda está aberta para a mídia independente é o Canal da Cidadania, que oferece a possibilidade de os movimentos sociais alcançarem maior parcela da população, ampliando o debate. O canal na TV aberta possi-
bilita que sejam exibidas ao mesmo tempo até quatro faixas de conteúdo local por órgãos públicos e instituições comunitárias. Apesar dos inúmeros benefícios que o canal pode trazer para a sociedade em questão de democratização da informação, educação e cultura, o Governo, em sua esfera municipal, parece estar desmobilizado para a adesão. De acordo com o Ministério das Telecomunicações, o prazo limite para as prefeituras solicitarem acesso ao canal é 18 de junho deste ano. A lista de municípios que já solicitaram a autorização para explorar o canal não representa nem 5% do total, já que apenas 176 fizeram o pedido, incluindo capitais como o Rio de Janeiro e Salvador. Após esse período, será a vez dos governos estaduais solicitarem outorga. Por fim, associações comunitárias poderão ser selecionadas para programar conteúdo em cada localidade.
Vírus Planetário / fazendo media - abril+maio 2014
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Bula cultural
algumas recomendações médico-artísticas
“Vem pra Raiotagë!”
Coletivo cria espaços para manifestações artísticas de mulheres e trans* no underground carioca
Por Fernanda Alves Já na entrada é impossível não se sentir acolhida pelo grupo de meninas que recepcionam as pessoas que chegam à Teimosä, terceiro evento promovido pela Raiotagë Coletivo Femiqueer. Ao lado das garotas, uma caixinha customizada recebe o valor do ingresso: R$5. O valor ao final será revertido para ajuda de custo das bandas. E o evento é uma “festa raioteira”, um festival de bandas e produções artísticas independentes e feministas. Realizada pela primeira vez no Espaço Outro, uma casa de projetos e vivência anarquistas que fica em um sobrado no final de uma rua no bairro de Vila Isabel. 14
Vírus Planetário - ABRIL+MAIO 2014
Na Teimosä há pessoas expondo diversas produções gráficas. Para participar da exposição basta levar o material - que tem de ser obrigatoriamente original e de produção própria. Pode expor, dar e vender. Na banca oficial ficam os trabalhos de membras do coletivo. São camisetas, bottons e uma infinidade de zines diferentes. Produzidas em grande parte por Michelle Oliveira, 30 anos, técnica em Contabilidade, e Hanna Halm, 20 anos, estudante de História. Na mesma mesa, as bandas convidadas da noite (Bloody Mary Una Chica Band e Carangi, ambas de São Paulo) também expõem seus materiais, entre eles os
álbuns e o material de um projeto que elas têm no interior de São Paulo, o Girls Rock Camp. Além de artes, há também comidas da culinária vegana feitas por integrantes do coletivo. Nem todas as pessoas do coletivo são vegetarianas ou veganas, mas a ideia é que ao oferecer esses alimentos, todos e todas que frequentam os eventos da Raiotagë, possam consumir sem se preocupar com a procedência. “É o seguro do seguro”, diz Joy Avelar, 21 anos, estudante de jornalismo, referindo-se à visão que o coletivo tem de transformar todas as suas ações em espaços seguros e livres
Roda de conversas feministas – II Sufrágio Feminino Foto: Silmara Silva
de opressões. Nesta edição da Teimosä rolou coxinha, brigadeiros e hambúrgueres. Importante dizer que acabaram mais rápido que a cerveja. No som que toca enquanto as apresentações não começam: muitas bandas de mulheres. De todos os estilos e de todos os lugares. O importante é a presença feminina. Aliás, essa é a missão do coletivo carioca criado em agosto de 2013 por mulheres e pessoas trans*. “O evento e o coletivo são organizados exclusivamente por mulheres e pessoas trans*. Isso é algo importante e diferente no cenário musical e social em que nos encaixamos” afirma Sofia Paiva, 18 anos, estudante e vocalista de uma das bandas formadas pelo coletivo e que foi a primeira banda da Teimosä, a Belicosa. A banda tem ainda mais três mulheres: Letícia Lopes, 34 anos, analista de Recursos Humanos, Lohanna
“
O festival viabiliza o aumento do protagonismo das mulheres e pessoas trans* ”
Sardoux, 20 anos, estudante de Direito e Rosario Amarante, 30 anos, jornalista. A proposta de Belicosa é uma experimentação sonora que mistura indie, mpb e punk e cujas letras falam sobre questões de gênero, empoderamento e emancipação. “Não toleramos transfobia, racismo, sexismo e nenhuma forma de opressão em nossas produções.” conclui Sofia. Ao lado de Belicosa, a outra banda “da casa” é Vivá. Banda de hardcore power violence vegan e anarquista. Vivá não é exatamente uma banda da Raiotagë, mas entre os cinco integrantes: dois rapazes e três garotas: Joy, Amanda Hawk, 20 anos, designer e Kika Crust, 21 anos, estudante, as meninas são da Raiotagë, e duas delas, Joy e Amanda foram formadoras do coletivo. Vivá – Teimosä – Raiotagë | Foto: Silmara Silva
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Bula cultural
algumas recomendações médico-artísticas
“Meninas para a frente!”
Um piquenique femiqueer A iniciativa ganhou corpo quando Amanda criou um evento chamado “Picnic Femiqueer”, no Facebook, e convidou pessoas que convidaram outras pessoas e no dia marcado, na Quinta da Boa Vista, quase 40 pessoas de origens e ideias diferentes compareceram. Todas deram seus relatos de vida, militância, ideais, mas nem todas ficaram no coletivo. De qualquer forma, os contatos feitos naquela tarde foram imprescindíveis para que a Raiotagë nascesse. A expressão “Raiotagë”, cunhada por Genice Silva, 25 anos e estudante de História, surgiu de um trocadilho com “Riot Grrrl”, expressão que nomeia o movimento feminista de mulheres no underground no início dos anos 90 e cujas representantes incentivavam a produção feminina nas artes e à frente de bandas e projetos, principalmente pela via do Do It Yourself (DIY ou “faça você mesmo”). “Todas as meninas para frente!” era a palavra de ordem, e foi esse o espírito que iniciou a Raiotagë. “A ideia surgiu por causa da falta de espaços para musicistas e, principalmente, a carência de visibilidade das mulheres e pessoas trans* no cenário underground como um todo”, conta Amanda Hawk. No princípio, o coletivo contou com uma parceria com o Escritório, estúdio do selo underground Transfusão Records, graças à Letícia Lopes, musicista feminista e nome importante no cenário musical da Baixada Fluminense. Dessa parceria com Letícia surgiram as duas primeiras bandas formadas totalmente a partir do coletivo, Belicosa e Fetiche Bélico. Esta última, um punk de letras simples e feministas, formada por Rosario, Letícia, Michelle e Amanda Hawk. 16
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Em 2014, o coletivo - que recebeu novas membras que impulsionaram a produção de eventos com bandas feministas, como Amanda Azevedo, 23 anos, estudante de engenharia civil e Ingrid Abreu, 22 anos, estudante de cinema - começou a realizar eventos mais frequentemente. Em janeiro, ainda no Escritório, aconteceu o primeiro Falë que contou com a presença de bandas como Trash no Star, LuvBugs, Belicosa e Ive Seixas. E em fevereiro foi a vez da segunda edição do Sufrágio Feminino (o primeiro foi realizado por iniciativa de Amanda Hawk). O II Sufrágio Feminino aconteceu na Arena Dicró, na Penha, e mesclou projetos feministas e femininos bastante diferentes, como as bandas cariocas Catilinárias e Noras de Newton, além de Pagufunk – projeto de funk feminista de Duque de Caxias, Ive Seixas e seu projeto solo, Trash No Star e a paulista Anti-Corpos, banda de hardcore feminista-lésbico, além das bandas do coletivo. Antes das apresentações, rolou batepapo sobre feminismo e empoderamento e oficina de instrumentos e montagem de palco com as integrantes das bandas e o público.
Anti-Corpos – II Sufrágio Feminino | Foto: Silmara Silva
Banca – Teimosä – Raiotagë | Foto: Silmara Silva
“O festival viabiliza o aumento do protagonismo das mulheres e pessoas trans*, dando empoderamento, visibilidade e descaracterizando a monopolização masculina dentro de uma cena culturalmente machista e homofóbica como a cena underground carioca”, explica Ingrid. Para entender o que Ingrid fala basta visualizar o seguinte episódio ocorrido durante o evento, quando meninas que assistiam aos shows resolveram tirar as camisas, e foram imediatamente reprimidas por um segurança do lugar. Então, a banda que estava no palco, Anti-Corpos, pediu que nenhum dos homens ficasse sem camisa, pois se uma mulher não poderia ter o mesmo direito que os homens presentes, então, ninguém teria privilégios. Com a pressão do coletivo, das bandas e do público, além do verão carioca, o segurança mudou de ideia e quem quis pode tirar a camisa e dançar livremente!
“Let´s fucking Raiotar!” Apesar da música - eventos e bandas - e das artes gráficas serem as principais marcas da Raiotagë, o coletivo prepara-se para ampliar as ações. Estão previstas para os próximos meses oficinas de instrumentos musicais e de artes gráficas fa-
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O coletivo tem de transformar todas as suas ações em espaços seguros e livres de opressões”
cilitadas por membras do coletivo, a fim de incentivar o surgimento de novos projetos empoderados. Outras oficinas, como a de graffiti e estêncil que será dada em junho, pela grafiteira e ativista do Hip Hop feminista de São Paulo, Jéssica Cajuela, a Caju também se soma às rodas de conversa que o coletivo pretende implementar semanalmente. Os debates sobre feminismo interseccional e questões de gênero, relações de poder e opressão, assim como a troca de vivências, fortalecerão a militância das membras do coletivo e também das pessoas que participem eventualmente das reuniões e que se disponham a refletir sobre as questões. Esta iniciativa teve, ainda no ano passado, a presença de Juno Cremonini, mulher trans e feminista muito conhecida pelas suas publicações no site Incandescência.
Há também o retorno dos piqueniques e sarais de recepção de novas membras. Para acompanhar as datas dos próximos eventos, basta curtir a fanpage oficial (www. facebook.com/Raiotage) ou o grupo oficial de divulgação. É importante ficar atenta, pois o coletivo está prestes há completar um ano e, portanto, muitas novidades estão por vir. E apesar do pouco tempo de existência, muitas outras ideias também têm sido amadurecidas no interior do coletivo, como a gravação de coletâneas, a formação de um selo femiqueer, a produção de novos festivais e eventos de exposição de zines e produções artísticas... Enfim, muitos sonhos de mulheres e pessoas que desejam, querem e vão ocupar todos os espaços possíveis e raiotar!
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Bula cultural
algumas recomendações médico-artísticas
ar t n a l p o s i c e “É pr éu c o d o ã h c no da boca,
verbos à flor da pele”
A música precisa insuflar a alma e inspirar revoluções Por Caio Amorim e Bruna Barlach “Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Vice-campeã do Festival Internacional da Canção de 1968, a luta cotidiana fez dessa composição de Geraldo Vandré a palavra de ordem de uma geração contra a ditadura militar, mas poderia muito bem ser a palavra de ordem das jornadas de junho. Alguns jovens de hoje escutam, saudosos do que nunca viveram, as grandes composições da época da ditadura. Afastando de si esse cálice, olhando para o mundo contemporâneo com a tristeza de quem queria ter nascido em outra época e ter participado desta luta.
Não percebem que o cale-se continua reverberando em nossas vidas. Essa ideia de que a luta ficou no passado – já que o capitalismo e sua farsa democrática dão as cartas – não poderia estar mais distante da realidade. Não é preciso ir longe para ver o quanto a mídia grande tenta, por exemplo, silenciar os gritos das vozes que vêm das ruas.
*Verbos à Flor da Pele, música de Marcelo Yuka - www. tinyurl.com/verbosaflordapele
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Mas onde estão os Chicos, onde estão os Geraldos e Caetanos? Será que a música de protesto morreu com a ditadura? Por que
Ilustração:Elisa Riemer
não ouvimos falar deles? Bem, há de se considerar o esforço que a mídia grande – correia de transmissão de uma ofensiva neoliberal que visava impor um “fim da história” - fez e faz para calar as vozes que questionam o sistema, até mesmo porque, quem questiona o sistema questiona a ela também. Investe-se em música de entretenimento, ou com conteúdo ideológico duvidoso, que defenda que as coisas continuem como estão, ou que elas não têm como serem mudadas. A partir de 2000, a internet começa a surgir de fato no Brasil, ainda muito elitizada, chegando nem a 10% da população. Mesmo assim, já atua como uma importante porta de fuga e visibilidade para inúmero(a)s músico(a)s e bandas independentes com a possibilidade de uma troca antes inimaginável de arquivos de mp3 e divulgação gratuita através de blogs e fotologs. Um pouco mais tarde, em 2005 surge o youtube e abre-se uma oportunidade ainda mais fértil para o(a)s músico(a)s independentes. Diferentemente da época da ditadura empresarial-militar, hoje não é possível eleger A banda ou O (A) Cantor(a), nem mesmo O estilo musical de protesto. Entretanto, o relativo barateio dos custos de produção musical (um salve para os softwares livres e mesmo a pirataria!) e sua divulgação facilitada pelas redes sociais fez com que houvesse uma pulverização de diversos “Novos Chicos Buarques, Caetanos Velosos, Geraldos Vandrés”. Outro ponto importante é que, mesmo não sendo um meio democrático de fato, uma vez que é regido pelo grande capital, a internet abre uma possibilidade de disputa ideológica para agentes contra-hegemônicos em condições muito menos desiguais do que qualquer outro suporte de mídia.
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É pela paz que nós não queremos e nem iremos seguir admitindo, consentindo, nos calando”
“Se a gente canta em coro, é mais forte o som da nossa voz” Música nos protestos Esses músicos não só conquistam um público cativo específico pela internet, como também atuam em movimentos sociais. É importante notar, que dessa forma, esses sujeitos acabam derrubando barreiras não só como ativistas culturais, mas também como militantes anticapitalistas que acabam abrindo caminho para que sua própria obra atinja o público. É o caso do Mc Ph Lima, presente em todas as manifestações das jornadas de junho de 2013 – chegando a ser arbitrariamente detido pela polícia duas vezes – o funkeiro cantava suas músicas de protesto (afinado com os gritos das ruas) nos megafones dos atos, se tornando um dos muitos símbolos das jornadas de junho no Rio de Janeiro. Outros artistas já realizavam essa militância na rua antes das jornadas de junho. A banda El Efecto já fez vários shows em parceria com movimentos sociais e afins, fazendo com que o espaço de militância continue a ser um local onde se expressem as sensibilidades e, ao mesmo tempo, fazendo com que haja uma maior divulgação de seu trabalho. Os MCs da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk – APAFUNK realizam desde 2009, em locais públicos de grande circulação de pessoas, as rodas de funk que combinam falas políticas com música ao vivo e de graça com grande participação popular. A música e a arte em geral são fundamentais para que @s revolucionários não se embruteçam, e, mesmo endurecendo na luta contra o capital, mantenham a ternura para com seus pares. Afinal, mesmo que um dia vivamos num mundo em que não haja opressão nem exploração e que se tenha atingido a igualdade social, @s artistas podem até não fazer protesto contra a ordem vigente, mas vão sempre exaltar a beleza da alma humana, a nossa complexidade, nossa diferença, o amor que podemos construir não só uns pelos outros, mas pela nossa origem, nossa cultura, nosso local, nossa história. E é por isso que, neste momento, esses artistas constroem essas obras, temos uma humanidade que massacra muitas formas de amor, que anula e oprime - de tantas formas perversas - bilhões de seres humanos... É pela paz que nós não queremos e nem iremos seguir admitindo, consentindo, nos calando.
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Bula cultural
algumas recomendações médico-artísticas
Indicações
Contraindicações Game of Thrones
Hoje eu quero voltar sozinho
Na página oficial do filme no facebook é possível conferir o data e horários das sessões:
local,
www.facebook.com/hojeeuquerovoltarsozinho
Para onde foi a CUT? Para onde foram ou estão indo as centrais sindicais brasileiras? Para onde foi ou está indo a esquerda mundial? Dá para reverter o curso da história deste neoliberalismo hoje hegemônico? Qual o papel dos trabalhadores, organizados ou não em sindicatos, centrais e partidos de esquerda nesta enorme tarefa histórica? Este livro de Rodrigo Teixeira veio para ajudar a pensar, duvidar e a responder estas importantes indagações. É com muito orgulho que lançamos o primeiro livro da Malungo, nossa editora e cooperativa. Disponível para venda aqui: www.tinyurl.com/livrorodrigo
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Fenômeno na TV internacional, a série tem conseguido reunir adeptos dos mais diferentes gostos ao redor de uma trama intrincada que se passa numa terra reminiscente da época medieval. Baseada nas “Crônicas de gelo e fogo” de George R. R. Martin, a série tem causado inúmeras polêmicas, principalmente em relação a certas posturas do produtor que tem tornado a história muito mais machista.
reprodução da cena
Em uma produção repleta de sensibilidade e identidade, Daniel Ribeiro, roteirista do filme, trabalha com elementos universais como a descoberta do mundo e do primeiro amor dentro de uma perspectiva pouco convencional. O protagonista, Leonardo, é um garoto que vive sob o escudo de proteção da mãe por ser deficiente visual e tenta conquistar sua liberdade e independência. Ao mesmo tempo em que ele atravessa essa luta, pela qual todos passam na adolescência - mas que é intensificada por ser cego novos sentimentos começam a surgir na relação com Gabriel, um colega de escola por quem se apaixona. A trama se segue entre tentativas de revolta e ruptura filme e descoberta da sexualidade. Poderíamos pontuar que o que apresenta uma forma romantizada de ver a realidade, já opção como mas os, extrem s conflito muitos os retratad não são artística, o diretor opta por uma trajetória de otimismo e amor.
Duas cenas de estupro que não existiam nos livros foram adicionadas, além de inúmeras cenas de mulheres desnecessariamente nuas e com seios à mostra. A objetificação da mulher e os abusos parecem ser usados pela produção para conseguir aumentar o número de fãs da série, como se esta fosse uma estratégia de marketing completamente sem consequências. A cultura do estupro é tão normalizada na nossa sociedade que o produtor chegou a afirmar em entrevista que não vê as cenas como estupro. É claro, todo esse debate gera uma publicidade para a série, mas esta publicidade está sendo negativa e a cada dia novos textos críticos à série tem surgido pela internet, engrossando o coro de pessoas que não querem ver as mulheres serem objetificadas e estupradas como forma de gerar grandes lucros para a produção da série. E nós engrossamos esse coro.
POSOLOGIA ingerir em caso de marasmo ingerir em caso de repetição cultural ingerir em caso de alienação manter fora do alcance das crianças nocivo, ingerir apenas com acompanhamento médico extremamente nocivo, não ingerir nem com prescrição médica
PÂMELLA PASSOS Pâmella é professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pósdoutoranda em Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ.
Vozes A FAVOR
do Golpe
O discurso anticomunista do Ipês como materialidade de um projeto de classe
O golpe que derrubou a democracia brasileira em 1º de abril de 1964 foi dado somente pelos militares? A resposta é não. A realidade histórica comprova que setores da burguesia nacional construíram e articularam, conjuntamente com os militares, a derrubada de João Goulart.
Propagandas anti comunismo no período pré-ditadura militar brasileira
Nessa empreitada, o discurso anticomunista serviu como principal arma de legitimação e convencimento da sociedade civil de maneira geral. Tendo como uma das finalidades potencializar esse discurso, foi criado o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - Ipês (Fazendo uma analogia a típica árvore brasileira, Ipê, o Instituto adotou a sigla Ipês como demonstração de seu nacionalismo), fundado em 1961 e que atuou como um dos pilares fundamentais da participação civil no golpe de 1964, agremiando adeptos para a luta contra o comunismo.
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Ilustração: Didi Helene
Militantes da extrema direita continuam na luta contra ideais comunistas e igualitários até os dias de hoje | Foto: Mídia Ninja
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A realidade histórica comprova que setores da burguesia nacional construíram o golpe de 64”
A temática do anticomunismo brasileiro possui importância fundamental para o entendimento da história política do país, que durante o século XX teve sua história marcada por duas ditaduras: uma civil, liderada por Getúlio Vargas na década de 1930, e outra militar, iniciada em 1964 que, em graus e contextos diferentes, tiveram como elemento central de justificativa a luta contra o comunismo. O Ipês apresenta dois pilares como base de sua fundação: a Aliança para o Progresso e a Encíclica Mater et Magistra. A primeira diz respeito a um programa de ajuda econômica e social desenvolvido pelos EUA e voltado para a América Latina, com o objetivo de conter uma possível disseminação do “ar” revolucionário cubano. A segunda referese a um pronunciamento do Papa João XXIII, no qual o sumo pontífice faz um chamado a todos os “homens de boa vontade” para que defendam os direitos humanos. Nesse pronunciamento, ele ressalta o papel que devem desempenhar os dirigentes industriais e empresários, na defesa da família, que, no discurso anticomunista, estava ameaçada pelo comunismo. Na conjuntura da época, lutar contra o comunismo significava defender o Brasil. Não é por acaso que um dos filmes produzidos pelo Ipês chamava-se “O Brasil precisa de Você!”. Esse era um apelo anticomu22
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nista e nacionalista que impunha a todos o dever de defender o país contra a ‘infiltração comunista’. Parafraseando Caio Navarro de Toledo (1998), o Ipês foi uma fábrica de ideologias, desempenhando um papel estratégico para a incipiente burguesia nacional-associada. Agindo como um ‘polvo’ com vários tentáculos, o Ipês publicava livros, confeccionava panfletos, realizava cursos, produzia filmes, tudo ligado a um objetivo central: a luta contra o comunismo e a defesa da propriedade privada, que, segundo o discurso que veiculava, a partir de certo momento, passou a estar ameaçada pelas políticas do então presidente João Goulart. Tendo sua trajetória marcada por um efêmero crescimento, o Ipês expandiu-se para Porto Alegre, Santos, Belo Horizonte, Curitiba, Manaus e outros centros urbanos, mantendo o núcleo dirigente do instituto no eixo Rio – São Paulo. Possuindo uma estrutura organizacional interna bastante
Ilustração: Adriano Kitani www.pirikart.com.br
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complexa, o Ipês compunha uma estrutura de dimensões táticas e estratégicas que se desdobrava em ‘Grupos de Estudo e Ação’. O GLC, Grupo de Levantamento da Conjuntura, tinha como principal tarefa acompanhar todos os acontecimentos políticos nos mais diversos setores, indicando áreas de preocupação para o Grupo de Estudo e Doutrina. Já o Grupo de Assessoria Parlamentar (GAP), ou ainda ‘escritório de Brasília’ como foi alcunhado pelos ipesianos, garantia muitas vezes assessoria técnica, organizando a campanha anti-Goulart no Congresso e administrando o canal de financiamento do instituto para sua rede parlamentar de beneficiários e receptores de ajuda. A estufa ideológica do Ipês era formada pelo Grupo de Estudo e Doutrina (GED), que fornecia a base material para os Grupos de Opinião Pública e Grupo de Publicações/ Editoria, mantendo-se extremamente articulado com o Grupo de Levantamento da Conjuntura. No âmbito financeiro estava o Grupo de Integração, que tinha como
A temática do anticomunismo brasileiro possui importância fundamental para o entendimento da história política do país”
objetivo agremiar pessoas para o ‘espírito democrático do Ipês’, e paralelamente a isso atuava angariando contribuições financeiras para o Instituto. Em sua produção, o Ipês visava dividir a realidade brasileira em dois lados, “o outro lado” e o “lado de cá”, “nós” x “eles”, inserindo-se em um desses lados e colocando o governo de Goulart no lado oposto, como aponta trechos de uma entrevista produzida pelo instituto e veiculada no programa televisivo “Peço a palavra” exibido em 13 de setembro de 1962 na TV Cultura:
“O comunismo internacional é um movimento revolucionário que marcha para o mundo. Já dizia Lenine que o caminho da revolução vinha do Oriente para o Ocidente. (...) Nós que estamos reunidos, que cremos na justiça, na liberdade, temos o dever de nos unirmos contra a ameaça totalitária, contra a ameaça comunista que ronda o Ocidente que se vê cada vez mais ameaçado. Basta dizer que no continente americano, a poucas milhas da costa de nossa Nação, há uma
nação comunista, guiada por Moscou. Eles estão aqui no continente americano e podem ameaçar esta democracia tão frágil na qual vivemos.” O discurso presente nos materiais produzidos pelo Ipês (re)produziam um imaginário sobre o comunismo e seus adeptos, por diversas vezes revisitando medos, mitos, imagens e representações. Com isto, as produções ipesianas travavam no âmbito discursivo, ou ainda no plano simbólico, a luta entre comunistas (sindicalistas, brizolistas, trabalhistas, adeptos de Goulart) e anticomunista (democratas, cristãos, liberais, nacionalistas), construindo um cenário no qual o ‘verdadeiro’ cidadão brasileiro precisava posicionar-se contra ou a favor do comunismo. Desse modo, o Ipês se inseriu não só em uma luta ideológica, mas também como um dos pilares da tomada do poder em 1º de abril de 1964, atuando como um dos principais articuladores daquilo que os militares não conseguiriam sozinhos: a legitimidade do golpe.
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HAMILTON
OCTÁVIO DE SOUZA Hamilton é jornalista e professor na Pontifícia Univerdade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da equipe da Revista Vírus Planetário
O Golpe Deu Certo,
A Ditadura Venceu
Os objetivos dos golpistas que controlaram o País por 21 anos prevalecem até hoje: as reformas estruturais foram congeladas, o capital estrangeiro faz o que bem entende, as oligarquias e as elites preservam seus privilégios, as escolas deixaram de formar cidadãos críticos, as classes trabalhadoras estão conformadas e até partidos de esquerda se renderam ao neoliberalismo. Isso não é – 50 anos depois – uma vitória dos que derrubaram João Goulart em 1964?
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Os analistas mais sérios costumam dizer que o Brasil tem a péssima tradição de fazer transições sem rupturas, nas quais os grupos dominantes de um período histórico conseguem se encaixar no outro período sem perder status, com os mesmos poderes de antes. No caso de 1964, a embrionária elite reformista que se empenhava na modernização do capitalismo com avanços sociais e políticos foi alijada do Estado pela antiga elite conservadora, que se valeu das Forças Armadas para retomar o comando do País. Assim como nas principais transições anteriores – Proclamação da República, Movimento de 1930, Estado Novo de 1937 e na “Democracia de 1946” –, os grupos dominantes do golpe de 64 conseguiram sair da Ditadura Civil Militar – na eleição indireta de 1985, na Constituição de 1988 e na eleição direta de 1989 – preservados e fortalecidos, praticamente intactos para impor nos anos seguintes as políticas de seu interesse, mesmo que sob novos gerenciamentos, nos casos dos governos de FHC, Lula e Dilma. Muito provavelmente o processo de construção democrática simbolicamente datado em 1985, quando o último general deixou o governo, teria registrado uma trajetória diferente se Tancredo Neves não tivesse morrido antes da posse, se José Sarney não fosse o vicepresidente, se a Assembleia Constituinte não tivesse sido acoplada às eleições do Congresso Nacional, se o Lula não tivesse perdido as eleições para Collor de Mello – enfim, todos esses acontecimentos contribuíram para manter o País no mesmo eixo das políticas conservadoras, dependentes e subordinadas aos interesses do capital internacional.
Ilustração:Todd R. Emmerson
“
Se o país quiser mesmo vencer a ditadura, definitivamente, precisa derrotar agora quem ainda segue o programa dos golpistas de 1964.”
Colocado de outra forma, se pode dizer que as forças populares e de esquerda que lutaram contra a ditadura, vinculadas aos trabalhadores, aos pobres e excluídos sociais, e que carregavam projetos de uma transformação mais ampla e profunda da sociedade não foram capazes ou não tiveram acúmulo suficiente para assumir a vanguarda do processo de democratização, no pós-ditadura, o qual acabou sob o controle ou tutela dos mesmos grupos que estiveram presentes no golpe de 64 e no período militar. Por isso, ainda hoje, para qualquer campo que se olhe, as marcas reforçadas pela ditadura continuam a anular avanços significativos, e em muitos casos ocorreram retrocessos efetivos em relação ao que era mais progressista socialmente antes de 1º de abril de 1964. Basta lembrar o que aconteceu com o poder aquisitivo do salário mínimo do início dos anos 1960 para cá, e o que se perdeu com os direitos trabalhistas contemplados na CLT de 1943 e mesmo na Constituição de 1988, violentamente “flexibilizados” nos anos 1990 e 2000, em pleno “Estado Democrático de Direito”. Nos vários setores da economia perpetua-se a concentração empresarial da terra, da renda e da
riqueza; a desnacionalização da terra, da indústria, das finanças e do domínio tecnológico; a dilapidação dos recursos naturais; a desindustrialização dos mais simples aos mais complexos bens de consumo; a privatização e o descontrole dos preços de serviços essenciais como saúde, educação, energia, telefonia, comunicações e transportes (metrôs, rodovias, ferrovias, portos e aeroportos). A regra geral em todas as áreas é o alheamento do Estado, o predomínio do lucro extorsivo e a impotência crescente da maioria da população diante da degradação dos serviços públicos e privados e da qualidade de vida.
Projetos interrompidos Se um dos objetivos dos golpistas de 64 foi impedir a aprovação de uma lei sobre a remessa de lucros, regiamente cumprido no período da ditadura, agora então nem se fala: o País vive a fase do mais deslumbrante paraíso financeiro, não só porque paga aos especuladores o maior juro do planeta, recebe todos os capitais de braços abertos, não coloca barreiras ou restrições, oferece mil vantagens fiscais que os contribuintes brasileiros não têm e ainda por cima permite a enorme evasão de divisas sem limites – algo fora de série nas próprias economias capitalistas que idolatram o Deus Mercado. No histórico comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, o presidente Jango assinou – perante mais de 150 mil pessoas – a lei da reforma agrária, que previa a desapropriação da faixa de terra ao longo das rodovias e ferrovias e no entorno de lagos e açudes. Era um compromisso importantíssimo com milhares de famílias de trabalhadores rurais sem terra. Mas, passado o regime militar e tantos anos de “redemocratização”, o que o país viu de reforma agrária foi algo pífio, ridículo, muito aquém da demanda social e da urgência de combater o latifúndio e a contínua concentração da propriedade. Nem mesmo o plano de reforma agrária elaborado no começo do governo Lula, que previa o assentamento de um milhão de famílias, chegou a ser cumprido pela metade. No governo Dilma o antigo sonho
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Ilustração: Diego Novaes
da reforma agrária – que poderia ter mudado para melhor a cara do país nos últimos 50 anos – foi enterrado de vez, para desespero do MST. A reforma da educação sonhada antes do golpe contemplava mais investimentos no ensino público, fim do analfabetismo, adoção de novos métodos de formação cidadã transformadora e ampliação da rede pública de ensino superior – pressionada pelo aumento crescente de concluintes do antigo colegial (ensino médio). A ditadura não apenas detonou as melhores experiências que o País havia construído na área da educação (Universidade de Brasília, ginásios vocacionais, escolas de tempo integral), perseguiu os maiores educadores em atividade (Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Maria Nilde Mascellani etc), como também priorizou e acelerou o processo de privatização dos vários níveis de ensino, notadamente o superior, cuja tendência – em número de vagas – permanece até hoje. Os golpistas de 64 centraram boa parte de seu discurso propagandístico – para justificar o golpe – em cima de três bandeiras principais: defesa da democracia, combate à corrupção e luta contra o comunismo. Geralmente relacionavam todas elas com o governo, os políticos e os partidos, o sindicalismo e as lutas dos trabalhadores – em especial com as Ligas Camponesas, que tinham forte organização no nordeste e demonstravam grande combatividade. Tanto é que os atos institucionais da ditadura trataram de punir lideranças políticas e sindicais ligadas ao governo, baniram os partidos e as representações de trabalhadores e estudantes e cassaram muita gente sob o ensejo da corrupção. Após 21 anos de ditadura, a maior parte do quadro partidário
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As forças populares que lutaram contra a ditadura não foram capazes de assumir a vanguarda no processo de democratização”
que ressurgiu da “redemocratização” se deteriorou rapidamente nos anos 1990 e 2000, abandonou em pouco tempo seus programas diferenciados e as principais bandeiras de luta, enveredou pelo pragmatismo e se deixou contaminar pela ideologia do modelo econômico adotado pelas mesmas classes dominantes que haviam atuado em sintonia com o regime militar. Com as raríssimas exceções no campo da esquerda programática, os partidos deixaram de cumprir seu papel no aperfeiçoamento da incipiente democracia brasileira e embarcaram numa sanha fisiológica de sobrevivência a qualquer custo e a qualquer preço. Da mesma forma que a ditadura não melhorou em nada a democracia e não acabou com a corrupção, o quadro político-partidário dominante que sobrou agora continua muito distante de uma sociedade efetivamente democrática e livre das bandalheiras de todos os tipos. Em relação à luta contra o comunismo, grande fantasma de 1964, apenas serviu para a ditadura disseminar a mais brutal violação dos direitos humanos contra opositores e lutadores populares, e enraizar na sociedade um conservadorismo político e ético, que até hoje se manifesta em boa parte da população independentemente da classe e da origem social. O fantasma do comunismo é usado para assombrar ainda hoje, por mais incrível que possa parecer. Mas entre as inúmeras heranças malditas do regime militar que perduram ainda hoje, de forma brutal e desumana, é sem dúvida a generalização da violência do Estado contra as populações mais pobres, especialmente, mas não só, nas periferias das grandes cidades. Se o país quiser mesmo vencer a ditadura, definitivamente – e todos aqueles que deram sustentação às políticas daquele regime –, precisa derrotar agora quem ainda segue o programa dos golpistas de 1964. É preciso retomar o fio da meada para todas as reformas de base, a começar de um novo quadro partidário, um novo modelo eleitoral, um novo tipo de governo, uma nova forma de democracia – na qual os trabalhadores e o povo possam falar mais alto do que as elites que sempre cuidaram apenas dos seus privilégios. Ainda tateamos na busca de um país justo, igualitário, livre, independente, soberano e verdadeiramente democrático. Um país precisa ser construído com luta – e, evidentemente, com rupturas.
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Entre o esquecimento, o conservadorismo e a luta por direitos
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Ilustração: Rafael Balbueno
O momento simbólico do aniversário do golpe civil-militar de 1964 nesse ano é importante para colocar em discussão o período da ditadura na sociedade, que, segundo dados oficiais, matou cerca de 500 opositores, mas que a própria Comissão Nacional da Verdade reconhece que esse número pode chegar a 8 mil, levando em consideração o extermínio de povo indígenas a mando dos governos militares. Apesar do peso da data e a repercussão midiática que esta traz consigo, gerando certa evidência do tema no cotidiano da população, nossa sociedade ainda tem muitas dificuldades em enxergar a impunidade, a repressão e o peso do poder econômico privado na atuação dos governos, em parte, enquanto legado desse período, vide o que foi o apoio de grupos empresariais, como a FIESP, por exemplo, e as suas relações com a ditadura e com os governos atuais. Pior, ainda não existe uma construção política enfática o suficiente em relação ao significado desse passado que gere ações coletivas no intuito de enfrentá-lo no presente, para além da institucionalidade. Os avanços que temos tido com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012, além da atuação das várias comissões e comitês que pautam o direito à memória, verdade e justiça em todo o Brasil, têm sido importantes na garantia do andamento dos processos de retratação à ex-presos políticos e familiares de mortos e desaparecidos, criação de lugares de memória em antigos centros de tortura e até em algumas mobilizações populares em torno desse debate, além disso, vemos uma crescente incorporação dessa discussão por parte dos movimentos sociais, principalmente dos que perderam militantes na resistência à ditadura. Porém, o que se percebe é que todo este trabalho tardio por parte dos governos em torno do enfren-
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Boa parte da sociedade brasile ira cristalizou a noção de que o reg ime militar já foi superado”
tamento a esse passado autoritário não foi suficiente para conscientizar a população da necessidade dessa luta. Pior, como fruto do atraso em políticas nesse sentido, boa parte da sociedade brasileira cristalizou a noção de que o regime militar já foi superado, e que se trata de uma página virada em nossa história. Isso gera uma grande dificuldade para a luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça ganhar força na sociedade. Construiu-se uma “neutralidade conservadora” que não se propõe a revisitar aquele período, tomar posições em relação aos seus crimes e combater os seus resquícios. Algo que não se deu de maneira natural, mas construído em benefício daqueles que fomentaram aquele regime e com a conivência daqueles que aspiravam transitar, e hoje transitam, nas esferas de poder. Esse problema se intensifica na medida em que dá margem para o crescimento de um discurso moralista deturpado, que coloca tanto os que resistiram à ditadura quanto os torturadores e assassinos do regime militar enquanto objetos do mesmo juízo de valor. O ascenso desse conservadorismo ao longo dos anos, e a ineficácia em seu combate por parte dos governos, impossibilitaram ações necessárias, como a revisão da Lei da Anistia (1979), que hoje é questionada por ter isentado os crimes de lesa-humanidade perpetrados pelos militares.
Por muito tempo houve uma passividade na disputa pela memória da ditadura, talvez pelo entendimento de que o seu fechamento político já foi a grande vitória final, e as consequências disso se expressam no atraso de nosso país na aplicação de procedimentos que buscam lidar com o autoritarismo desse passado, ou seja, nas falhas na nossa justiça de transição. Mais do que nunca se torna necessário retomar a luta pelo significado daquele processo histórico e ganhar a consciência da sociedade nessa disputa entre o esquecimento, o conservadorismo e a luta por justiça!
A disputa da memória como base para a necessária justiça de transição. No Brasil, após a reabertura política na década de 80, apesar da forte luta encampada pelos expresos políticos, pelos familiares de mortos e desaparecidos e por parte da esquerda para investigar as atrocidades cometidas na ditadura e punir os torturadores, ainda assim, houve uma grande dificuldade em promover e massificar esse debate no seio da sociedade civil. Os únicos setores da sociedade que continuaram no enfrentamento as injustiças da ditadura militar e ao seu legado foram, praticamente, os que tiveram ação efetiva na sua resistência. E porque isso se deu dessa forma? Percebemos que o processo de transição para uma “nova república” no Brasil se deu
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50 anos do golpe
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io Faz-se cada vez mais necessár a da radicalizar a disputa cotidian memória”
de uma maneira bastante degenerada, na medida em que o restabelecimento da democracia se fez enquanto um acordo entre os dirigentes e fomentadores do regime, e isso criou muitos obstáculos para garantir a continuidade da luta contra a lógica de poder instaurada pelos militares. O próprio processo que se deu a partir da pressão política e resistência dos movimentos de esquerda e que trouxeram consigo o desgaste da ditadura, avançaram para a Lei da Anistia (1979) e a Emenda Dante de Oliveira (1982) garantindo mudanças, mas, ao mesmo tempo, algumas limitações. A eleição de forma indireta do primeiro presidente civil e a impunidade dos militares são reflexos das deformações que estão no berço do nosso lento e débil processo de redemocratização.
Diferentemente de outros países da América Latina o Brasil teve um processo de encerramento da ditadura no qual, apesar deste não ter se dado em um contexto efervescente de guerra no país, como no caso da Nicarágua e da Argentina, acabou se enraizando intensamente estruturas de violência que permanecem até hoje. Segundo o filósofo Vladmir Safatle, professor da USP, o Brasil é o único país que aumentou o número de casos de torturas após o regime militar. Mesmo com toda essa violência, as elites políticas que conduziram a “transição democrática” o fizeram de forma que garantisse a manutenção das instituições e a ideia de conciliação nacional, tudo isso em seu próprio benefício, e com o discurso de que se fez em prol de novas conquistas como a própria constituição de 1988. Essas estruturas de violência e o legado
Ilustração: Rafael Balbueno
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O carnaval voltou às ruas no dia 01/04 em São Paulo com o Cordão da Mentira, o bloco luta pelo fim do genocídio da população negra e pobre e exige a condenação dos Militares da Ditadura. O ato se iniciou no DOI-CODI na Vila Mariana, passando por outros pontos marcados por serem locais de repressão e tortura na Ditadura, chegando até a Praça da República. No percurso, manifestantes renomearam diversas ruas com nomes de guerrilheiros que lutaram contra a ditadura. | Foto: Mídia NINJA
de autoritarismo e repressão se fazem evidentes no presente, seja no âmbito da educação, das relações políticas ou, principalmente, da segurança pública. Exemplos disso se expressam nas estatísticas do ano de 2013, em que 9 mil pessoas desapareceram no estado do Rio de Janeiro, sendo em sua grande parte “sem explicação”; em 2012, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública a Polícia Militar brasileira matou 5 pessoas por dia. A própria Polícia Militar do Estado de São Paulo, sozinha, matou mais que todas as polícias dos Estados Unidos juntas. Na Argentina, onde o regime militar assassinou 30 mil opositores, o envolvimento da sociedade civil na luta por justiça em relação ao terrorismo de estado naquele país se deu logo após o fim da ditadura. Com o Juicio de las Juntas (1985) houve punição aos principais mentores das violações de direitos humanos, e, além disso, a população se engajava na criação de comitês em cada bairro das cidades com o intuito de escrachar torturadores
e não deixar que seus crimes fossem esquecidos, como disse Lorena Bossi, membro do GAC (Grupo de Arte Callejero - ARG) em debate na Universidade Estadual do Ceará em 2013. Isso nos mostra como começamos muito tarde a estabelecer a nossa justiça de transição: somente em meados da década de 90 que tivemos as primeiras retratações aos prejudicados pela ditadura, somente em 2012 tivemos a nossa Comissão Nacional da Verdade atuando, e, mesmo assim, essa pauta ainda não ganhou a consciência da maioria da população. Nenhum torturador foi punido no país, pior ainda, estes podem declarar abertamente as atrocidades que cometeram e saírem livremente pelas ruas. Esse atraso demasiado é fruto de um processo degenerado de restruturação da república e, ao mesmo tempo, produto de uma passividade em relação ao embate com esse passado. Hoje, como reflexo disso, jornais buscam dar a versão tanto dos perseguidos políticos quanto dos militares sobre a
ditadura (como no caso da Folha de São Paulo, em que o regime militar é caracterizado de “ditabranda” por ser considerado “leve” no seu ponto de vista), colocando ambos no mesmo patamar em nome de uma pretensa neutralidade. Nesse sentido se faz cada vez mais necessário radicalizar a disputa cotidiana da memória sobre aquele período e superar a noção de que esta é uma luta meramente simbólica e sim uma luta por direitos humanos. Somente a partir dessa disputa dos significados que a ditadura teve em seu tempo poderemos então, de forma mais concreta, lutar contra o seu legado de impunidade e repressão no presente. A luta no campo da memória é fundamental por formar a base onde o confronto com o crescente conservadorismo pode ser vencido, além de gerar a devida conscientização política que fomentará a nossa justiça de transição, garantindo assim, uma consolidação das estruturas democráticas e a real efetivação de nossos direitos sociais.
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ENTREVISTA INCLUSIVA:
TAVAREZ
Por Alexandre Kubrusly e Mariana Moraes
Se você mora no Rio de Janeiro, já deve ter visto nas costas dos assentos de ônibus ou pelas redes sociais o Tavarez. Esse cara de boné que levanta diversas questões sobre a sociedade tem cavado seus espaços relacionando o dia a dia dos trabalhadores que trafegam pelas ruas do Rio de Janeiro com os problemas que eles enfrentam. Nenhuma grande pauta passa sem que Tavarez dê sua opinião. Em entrevista à Vírus Planetário, enquanto grafitava, o artista que dá vida ao Tavarez (que permanecerá anônimo por segurança) conta sobre a criação do personagem, sobre sua atuação artística em diferentes espaços e a importância da arte engajada que tem se fortalecido desde as jornadas de junho.
Quem é o Tavarez? O Tavarez é um personagem que surgiu no contexto das jornadas de junho. Depois de já estar intervindo de outras formas, resolvi criar um personagem que acabou nos traços desse boneco. Eu sempre procurei um traço específico e não achava. Cheguei até a fazer algumas Mafaldas, mas depois parei. Depois de ler um livro sobre a revolução russa vi que os trabalhadores tinham quase o mesmo rosto que ficou marcado pra mim. Eu fiz algumas adaptações e acabou surgindo o Tavarez, com aquele chapéu.
E o nome? O nome foi um pouco de intuição, não tem nada muito elabo-
rado, mas é também de um autor, de um literato, chamado Gonçalo M. Tavares, português. Depois eu fui saber que Tavarez também é “camarada” em russo. E aí encaixou perfeitamente. Por isso eu falo que foi um pouco de intuição.
Por que você começou a fazer essas intervenções? Acho que qualquer pessoa que se indigna com alguma coisa quer se expressar de alguma forma, seja na rua fazendo uma manifestação, seja escrevendo um texto, um poema ou tirando uma foto. No meu caso foi desenhar e colocar frases. E aí, isso ganhou corpo, houve uma sistematização maior a partir das jornadas de Junho. A produção vem muito nessa linha, desde coisas mais abstratas, que eu acho que não tem problema
Tavarez realizando grafite durante entrevista
Grafite feito por Tavarez no momento da entrevista. Confira o vídeo: www. tinyurl.com/tavarez
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Qualquer pessoa que se indigna com alguma coisa quer se expressar de alguma forma”
nenhum ser político e abstrato ao mesmo tempo, até coisas mais concretas como remoções, aumento da passagem, etc. A produção depende muito da situação, da política.
diretas, que dizem respeito ao cotidiano da classe trabalhadora. Quando é no facebook eu tenho mais tempo, eu posso fazer uma charge, é outra abordagem.
Qual a importância que você acha que tem esse tipo de ação?
Você percebeu alguma mudança nas pichações pela cidade desde as jornadas de Junho?
Primeiro, num contexto geral é uma produção cultural, ideológica, educativa, contra hegemônica. Contra a sociedade que está aí, a sociedade burguesa, então, a importância é de questionar. Atualmente poucas pessoas questionam sobre o porquê de certas imagens estarem em determinados lugares, e o grafite, a pichação, enfim, alguma expressão artística na cidade, com tinta ou com papel e colagem, acaba entrando nesse contexto: a pessoa vai olhar, ela pode passar despercebida ou pode olhar e tocar nela.
É visível. Vários pichadores, grafiteiros, pessoas que querem intervir na cidade em geral, têm feito expressando alguma mensagem política. Até nas jornadas de junho eu lembro que tinham muitos pichadores nas manifestações e, esses pichadores, tentavam como sempre ir aos lugares mais difíceis, mais altos e além de botar o nome, botavam uma mensagem ou um símbolo de um movimento político. Isso é importante porque provoca o pichador que tá intervindo na cidade a escrever alguma coisa sobre uma determinada ideia. Há uns cinco anos atrás eu só imaginava um pichador escrevendo o nome dele e descendo pra rua. Hoje não. Tem por exemplo, um pichador chamado Blah que escreve “Educação é investimento” e tá espalhando isso pela cidade. Não conheço ele pessoalmente e não sei se já fazia isso antes, mas parece que depois das jornadas de junho isso ganhou corpo. Como ele, outros pichadores fazem esse tipo de intervenção. O problema é que essas pessoas não estão organizadas e por isso, eu tenho a preocupação de que isso suma e a galera volte a fazer apenas o nome. Nem todo pichador é de esquerda, volta e meia você vê numa pichação um símbolo nazista, isso também preocupa. A ultradireita também quer intervir dessa forma na cidade.
Qual você acha que é a diferença entre uma pessoa ver o seu trabalho no facebook ou na rua? São mídias diferentes. Quando eu to usando o ônibus, eu to dialogando com os trabalhadores, acredito que nenhum burguês use ônibus, então eu to tocando diretamente no trabalhador. No facebook já abre mais, não necessariamente burguês e proletariado, mas tem uma abrangência maior de pessoas que não utilizam o ônibus. A mensagem também muda muito, quando eu vou ao ônibus com a ideia de escrever alguma coisa, são mensagens muito mais rápidas e
Qual a sua opinião sobre a forma como a pichação é vista pela sociedade? Pra mim é lamentável como a sociedade encara jovens que querem escrever alguma coisa na parede. Independente de ser uma frase política ou só um nome que também é político, já que ele tá intervindo na cidade na qual ele não se reconhece e aí quer colocar sua marca. Lamentável também é a repressão que sociedade faz, desde o Estado com o aparato policial, prendendo ou torturando, até a própria população que reprime de várias formas, ou derrubando o pichador quando ele tá num prédio, ou quando pega ele, torturam. Tem casos de pichadores que foram mortos, que tomaram tiro. O Nuno foi um desses, um pichador famoso que tomou um tiro que nem se sabe de onde veio, só porque estava pichando. Então a forma de tratar esse assunto da pichação na sociedade é extremante repressora.
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ENTREVISTA INCLUSIVA_TAVAREZ
Tavarez realizando grafite durante entrevista
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As imagens são referentes ao que está acontecendo no momento na luta de classes”
A publicidade tá sempre invadindo, não pede permissão pra aparecer na sua frente. Como você vê essa invasão?
E da onde você acha que vem esse horror a pichação? Como não é legalizado, então as pessoas acabam sendo educadas a entender que aquilo não é importante, não é legal pra cidade. E acaba não se questionando o porquê, como várias outras coisas que não se questiona, a pichação é mais uma. Pode ser uma questão estética, mas eu acho que isso nem intervém muito, porque se fosse estética, tem vários prédios aí que são horríveis e ninguém questiona o porquê daquele prédio estar ali. Então por que uma tinta que está na parede é reprimida?
E essa diferenciação entre pichação e grafiti? Pra mim não há diferença. É tinta na parede. Aí entra a questão estética que é muito subjetiva e não faz sentido discutir. Eu acho bizarro o Estado fazer essa diferença entre “bem” e “mal” do grafite e da pichação. O Eduardo Paes legalizou o grafite, mas não deixou muito claro o que é grafite pra ele e nem onde se pode fazer essa intervenção e é só um discurso, porque ele já apagou um grafite meu com o Roma, então é uma questão política pra ele. Pode ter uma pichação na porta da prefeitura que vai demorar dias, meses pra ser apagada, mas se tiver uma mensagem política, independente de ser um grafite ou só uma palavra escrita com tinta, ele vai mandar apagar. E a sociedade cai nesse discurso de “bem” e “mal” entre o grafite e a pichação.
Qual a relação que você vê entre a pichação e a publicidade? Pra mim são opostos, intervenção urbana e a publicidade. Primeiro que o pichador usa o próprio dinheiro pra fazer essa intervenção. Usando o próprio dinheiro, não busca nenhum retorno financeiro. Eu fiz aquele desenho na parede e não espero ganhar dinheiro com aquilo. Fiz porque me incomoda, primeiro a parede sem nada, segundo a situação política do Rio de Janeiro. E a publicidade é o contrário, só visa o retorno tanto ideológico quanto financeiro. Por exemplo, pintar na cabine da polícia “meu amigo de fé, meu irmão camarada” é uma propaganda utilizando dinheiro do Estado, dinheiro nosso, pra fazer uma propaganda ideológica. A coca-cola a mesma coisa, bota lá um índio abraçando a coca-cola. Índio, coca-cola e copa do mundo, são coisas antagônicas, mas a propaganda as coloca juntas visando o retorno financeiro e ideológico. Por isso que várias placas de publicidade são pichadas.
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Se fosse conversar com uma pessoa que não questiona a sociedade que tá aí, ela diria que a publicidade não faz nenhum mal, não tem nenhum problema ter várias mensagens de marcas pra você comprar os seus produtos. Mas quando você começa a questionar e ver que não faz nenhum sentido, que você compra o que você quiser e não precisa de marca nenhuma te dizer o que você precisa, isso passa a te incomodar e aí tem várias formas de se expressar, ou vai lá na facebook, ou no jornal de esquerda, ou as pessoas que querem pichar ou grafitar vão fazer alguma crítica a essa sociedade que tá toda hora te invadindo com publicidade.
Como é a reação das pessoas quando elas te veem fazendo o Tavarez? Você já foi repreendido? Eu evito ao máximo ser visto fazendo alguma intervenção, porque de fato a sociedade não tá preparada pra esse tipo de intervenção. É difícil, mas a toda hora aparecem as contradições. Comigo já tiveram vários casos de pessoas observando a intervenção e dialogando de alguma forma comigo. Aconteceram dois casos bem marcantes. O primeiro é que uma vez eu tava com um amigo escrevendo na parede de um banco. Umas pessoas passaram e eu achei que era tranquilo; a gente tava escrevendo
Algumas das intervenções de Tavarez nos ônibus do Rio de Janeiro. Acima à direita, intervenção em poste próximo à entrada principal do estádio Maracanã. Fotos: página Tavarez no facebook
uma frase da Mafalda que diz “e se as bibliotecas fossem mais importantes que os bancos?”. Quando eu acabei de escrever, virei, a pessoa era um policial a paisana que sacou a arma, enquadrou e ponto. No outro caso eu tava desenhando no ônibus uma favela e aí passou uma criança com o pai e falou: “pai, a gente pode fazer isso um dia?”. O pai não respondeu e continuou andando lá pra trás. Como é criança, ainda não tá na consciência dela a proposta da sociedade burguesa que impede as pessoas de se expressarem em lugares públicos, então ela perguntou ingenuamente se poderia fazer aquilo um dia. Quando eu e o Roma fizemos o Paes com o Gari, o guarda municipal e um policial no muro do metrô do Estácio, uns dez garis passaram e falaram “pô, cara, ‘brigadão’, é isso mesmo que a gente sente nesse momento de greve sendo obrigado a tra-
balhar com escolta”. Depois guardas municipais passaram e agradeceram também porque não era o que eles gostariam de fazer, mas como é um braço “armado” do município, da prefeitura, eles tiveram que cumprir o papel deles de reprimir os garis, mas não reprimiram a gente por estar representando eles com uma corrente no pescoço do gari e acharam interessante. Grande parte das imagens que o Tavarez trabalha é referente ao que tá acontecendo no momento, como greve dos professores no ano passado, greve dos garis, a questão do negro na sociedade, o machismo. Quando você começa a olhar o que tá incomodando mais os movimentos de esquerda você acaba ficando muito preso a pauta do momento. Mas também é importante a gente sempre tá olhando mais estrategicamente, porque tá tudo interligado, é a repressão da sociedade capitalista, ora ela atinge mais um grupo, ora
atinge menos, mas nunca pode sair do horizonte todos os grupos que são atingidos, que de uma forma geral é a classe trabalhadora.
Se você pudesse escolher um lugar pra pichar na cidade, qual você escolheria? Eu lembro que, quando eu era pequeno, o Vinga, um pichador famoso aqui no Rio de Janeiro, pichou no relógio da Central do Brasil. Publicamente ficou famoso como o pichador que pichou a Central do Brasil e ficou famoso entre os pichadores por que conseguiu essa façanha. Eu acho que ali seria um lugar interessante por que é simbólico. Era um lugar onde a classe trabalhadora no período do Vargas tinha essa referência, a hora do Brasil, a preocupação com a hora de chegar no trabalho. Sempre tinha essa referência de olhar para o relógio.
*Improvável, mas não impossível.
Rafucko entrevista Polícia Civil
Semana passada, recebi uma intimação da Polícia Civil para prestar esclarecimentos sobre um processo do qual eu não tinha conhecimento. O número estava no topo da página, mas ligar para a delegacia para descobrir sobre o que se tratava seria um mero exercício de curiosidade, já que estava certo de que não havia quaisquer esclarecimentos a serem prestados por mim a polícia nenhuma. Enquanto esperava o dia e hora do depoimento, fui juntando as peças que se apresentavam à minha frente. O que eu descobri, relato abaixo:
Um processo interno da Polícia Civil foi aberto contra o delegado Orlando Zaconne, que assistiu à performance “1º UPP – Prêmio de Protestos” em novembro do ano passado. O “crime” cometido por Zaccone ao assistir a performance artística teria sido o de “prevaricação”, quando um agente da lei presencia uma contravenção e nada faz. Mas qual seria a contravenção? O uso de um manequim roubado da Toulon (os manequins receberam o prêmio de “Maior Ato de Vandalismo”). A denúncia de que o artista teria feito interceptação de um objeto de roubo foi feita por este homem:
A Polícia Civil, muito corretamente, levou a cabo as investigações, não sobre Reinaldo e sua lucidez/confiabilidade, mas sobre Rafucko. Rafucko não se deixou intimidar e fez o que qualquer pessoa que preza pela liberdade faria em um momento tão difícil como este: se vestiu de Ana Maria Braga e chamou azamiga tudo pra ir com ele fazer um auê na Corregedoria da Pol. Clica o play e acooooooooorda, menina (veja aqui - www. tinyurl.com/anamariarafa ) O vídeo rodou a high society ativista carioca e muita gente mostrou apoio nas redes sociais! Rafucko pensou em ignorar a intimação, pois desde pequeno adora ser desobediente. Porém, o castigo que os titios da Polícia Civil ameaçaram lhe dar era um pouco mais grave que algumas palmadas (aliás, antes fosse, rs… mas isso é assunto pra outra hora!). Se tem duas coisas que ele odeia elas são: passas no arroz e ser privado de sua liberdade!
Reinaldinho escreve para a revista de ficção “VEJA”
Auxiliado por vários advogados (que lhe diziam “não faça isso!”), Rafucko compareceu à delegacia vestido assim:
A ossada de Amarildo, os autores dos tiros que mataram Cláudia Ferreira, o dançarino Douglas, e as outras milhares de vítimas fatais da UPP ainda não foram encontrados e, ignorando tudo isso, o Secretário de Segurança do Rio de Janeiro lançou uma campanha contra o extermínio da população de manequins negros. Rafucko foi questionado acerca do 1º UPP – Prêmio de Protestos, mas disse ao delegado que preferia permanecer em silêncio, por não se sentir confortável em prestar esclarecimentos sobre uma performance artística à Polícia. Aproveitando o gancho da campanha de arrecadação de fundos para produção do seu próprio Talk-Show, o desobediente e provocativo sósia do sagrado William Bonner fez perguntas à Polícia Civil na frente do prédio, para um grupo de mídiativistas. As perguntas estão neste vídeo - www.tinyurl.com/rafucko123 e
podem ser respondidas pela Polícia Civil ou pelo delegado Felipe Bettencourt do Vale a qualquer momento. Este humilde reporter se põe à disposição para a divulgação de suas respostas: O jornalista do blog LGBT ligou para a Polícia Civil – veja só que curioso, ainda há jornalistas que apuram os fatos, coisa rara hoje em dia! – para questionar sobre a intimação feita a Rafucko. Vejam a frase final desta matéria: “Procurada pela reportagem do BLOG LGBT, a Polícia Civil informou que houve um erro material na expedição do documento enviado ao artista, que deveria ser um convite e não uma intimação.” A declaração gerou desconfiança na internet, mas me sinto no dever de informar que, de fato, a Polícia não estava mentindo. Fizeram questão de corrigir o erro e a seguinte correspondência chegou na casa do ativista Rafucko:
William Bonner Sexy aposta em look ousado: meia-calça “arrastão” e military boots. Aqui, ele posa ao lado do Presidente (foto: Carmen Astrid)
William Bonner Sexy foi impedido de entrar no prédio com as pernocas à mostra, mas argumentou que a intimação não especificava o dress-code para a ocasião. Depois de 30 minutos, pôde entrar para ser interrogado com uma calça balonê azul, que não compôs o look. A pedido do artista, não iremos reproduzir aqui as fotos deste momento. A Polícia fez uma investigação exemplar: o exame de DNA provou que o manequim que compareceu à premiação não era o mesmo manequim violentado na noite de 17 de julho no Leblon. Os manequins violentados na Toulon eram negros.
“Era pra ser um convite, mas porque queríamos tanto a sua presença, enviamos uma intimação!”, disse o chefe da Polícia Civil, Fernando Veloso.
Manequim espelhado que compareceu à premiação (à esquerda) e manequins agredidos no Leblon (à direita) não eram da mesma família, segundo laudo do IML.
CONFIRA A SEGUIR O PRONUNCIAMENTO DE RAFUCKO SOBRE O CASO
Compreenda o artigo de Rafucko lendo o Sensacional Reporter Sensacionalista na página anterior
RAFUCKO Rafael Puetter é artivista, escreve e dirige vídeos que conseguem unir humor com militância magistralmente. Estreou recentemente seu talkshow: www.tinyurl.com/rafucko
A arte é
conduta atípica (Pronunciamento de Rafucko após ser intimado a prestar esclarecimentos à Polícia Civil do Rio de Janeiro, que fora motivada por acusações de colunista da Veja)
Dentro da delegacia, me mantive em silêncio, porque acredito que tenho poucas respostas a dar para a Polícia Civil. Entretanto, tenho muitas perguntas: O Rio de Janeiro tem uma das polícias que mais mata no Brasil – e no mundo! Quantas investigações estão sendo feitas sobre este fato neste momento? Quantas já foram julgadas? O ex-governador Sérgio Cabral é notório mandante de vários crimes contra a população. Por que nem ele nem ninguém da sua quadrilha de Secretários foi intimado a prestar qualquer esclarecimento? A internet está cheia de páginas que apóiam e promovem a violência policial. Quantas destas páginas são alvo de investigações da Polícia Civil? Quantos administradores já foram intimados para prestar esclarecimentos? Hoje, em pleno 2014, eu fui intimado – e intimidado – a vir neste prédio anexo do antigo DOPS para prestar esclarecimentos sobre uma performance artística, a partir de uma denúncia feita… pela Revista VEJA. 38
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Mas não se trata de uma denúncia qualquer! O colunista mentiroso Reinaldo de Azevedo me acusou de “interceptação”. Disse que eu teria usado um manequim roubado da Toulon na performance “Prêmios de Protesto”, onde ironizei a distorção patética do governo do Rio e da mídia durante os protestos de 2013. Durante a “premiação”, um manequim inanimado recebeu o prêmio de “Maior Ato de Vandalismo”, porque, em julho de 2013, a quebra de uma loja no Leblon causou mais comoção na cúpula de segurança do RJ do que a retirada de vidas humanas na favela da Maré uma semana antes. Foi a imaginação fértil – ou a cegueira ideológica – deste nada confiável colunista, nesta nada confiável revista, que me trouxe aqui hoje. Inclusive, o fato da gente estar aqui hoje, nesta situação, é MAIS UMA PROVA de que a Polícia continua se preocupando mais com os manequins da Toulon do que com os corpos humanos estendidos no chão das favelas. Repudio publicamente esta investigação patética da Corregedoria da Polícia Civil, a acusação infunda-
da e criminosa da Revista VEJA, e a conivência e cumplicidade do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame, do governador Pezão e da presidenta da República Dilma Rousseff. Se você parar pra refletir, você vai perceber que esta guerra que estamos vivendo não é contra as drogas, mas contra os pobres. Traficantes do morro e policiais não são lados opostos. Eles são o mesmo lado, o único lado cuja morte é aceitável para a nossa sociedade, para a nossa mídia. Os policiais, assim como os traficantes, são em sua maioria negros, pobres, e moram em comunidades. Enquanto eles se matam entre si, os verdadeiros fornecedores – e proibidores – das drogas voam de helicóptero e transitam livremente no Senado, na Câmara e nas Assembleias Legislativas. Se você parar pra se informar, você vai ver que esta guerra não é contra vândalos, mas contra as pessoas que querem mudanças reais. O número de crimes cometidos pelas polícias militares durante as manifestações nunca foi exatamente registrado, divulgado e nem
Montagem de Rafucko com a legenda irônica: “O Secretário de Genocídio do Rio de Janeiro lançou campanha pelo fim do extermínio de seres inanimados (foto: Divulgação)“
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O número de crimes cometidos pela PM nunca foi registrado, divulgado e nem julgado” E pra você que tá sentado no sofá, achando que tá tudo bem, eu sinto lhe dizer, mas esta guerra é contra você! E ela vai chegar até você, porque a nossa mídia trabalha para justificar os crimes de polícias e governos.
julgado. No ano passado, muitos brasileiros puderam experimentar nas ruas uma amostra do que é a violência nas favelas. Mas, como vimos ontem, no coração do Rio, as balas que acertam os favelados não são de borracha. E fica cada vez mais claro que a polícia brasileira não detém apenas o monopólio da violência. Ela detém o monopólio do crime.
Pra não dizer que trouxe apenas problemas e nenhuma solução, eu reuni uma lista de veículos de comunicação alternativa para a Policia Civil se informar melhor, e parar de usar a VEJA como fonte, pois é de meu interesse que esta instituição volte a fazer investigações realmente relevantes para o bem-estar do nosso país. Delegado, eu recomendo que você procure as páginas do coletivo Rio na Rua, do jornal A Nova Democracia, da Midia NINJA, do Mídia Independente Coletiva, da Assembleia do Largo, do Voz das Ruas, do Coletivo Mariachi, do CMI… Tem informação bacana também num tal de Rafucko.com. E pra quem está me ouvindo agora, eu faço um apelo: Rebele-se! É legítimo! É legal! E, neste momento, é extremamente necessário!
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rio grande do sul
boate kiss: um ano depois, mais do mesmo Mais de um ano depois da tragédia que abalou Santa Maria, pais dizem que sentem em território de abandono Por Atilio Alencar e Bibiano Girard Santa Maria, no Rio Grande do Sul, passou por seu dia mais triste no dia 27 de janeiro do ano passado. Numa cidade de aproximadamente 300 mil habitantes, 242 pessoas foram vítimas de uma sucessão de erros que envolvem desde a inoperância de fiscalização do poder público quanto a prepotência da iniciativa privada em utilizar material altamente tóxico em ambiente fechado. De lá para cá, a cidade vem enfrentando uma sensação de abandono. O caso do incêndio da boate Kiss não ultrapassou as instâncias da consternação pública. Os donos
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do estabelecimento estão soltos, o Ministério Público caminha a passos lentos, sendo veementemente hostilizado pelos pais e vítimas da tragédia, e o poder público, acusado de negligenciar seu papel fiscalizador, lava as mãos com tranquilidade. Foram criados na cidade alguns movimentos que atuam diretamente reivindicando justiça ao caso, como o movimento Santa Maria do Luto à Luta, e a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, que tramita na área burocrática. Sendo as duas organizações as mais im-
portantes e ativas quanto o caso, conversamos com integrantes dos dois grupos para falar sobre a luta por justiça e a movimentação social que promovem. Do primeiro, conversamos com Carina Mignon. Da Associação, Sérgio Silva, também pai de vítima. Ambos destacam a revolta dos pais e amigos quanto à fragilidade dos grupos e das famílias perante a politicagem local: “os interesses do empresariado infelizmente falam mais alto”, diz Sérgio. Você lê abaixo um resumo da entrevista, que está no ar, na revista o Viés, de Santa Maria (RS) na íntegra.
Homenagens às 242 vítimas do incêndio da Boate Kiss na porta da boate, pela data de um ano da tragédia. | Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
Carina Mignon, do movimento Santa Maria do Luto à Luta | Foto: Bibiano Girard
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O caso não ultrapassou as instâncias da consternação pública”
Em fevereiro de 2014, a prefeitura retirou várias faixas expostas pelo movimento “do Luto à Luta” em locais públicos. Segundo a prefeitura, as faixas foram retiradas porque não tinham autorização para o uso do espaço. Como se formou essa situação? Carina: As faixas com críticas ao prefeito Cezar Schirmer e ao Ministério Público foram recolhidas pelos fiscais da prefeitura. Quando fomos até eles, disseram que teríamos que fazer um documento protocolando o pedido de devolução dos banners. Se os banners se enquadrassem nos pré-requisitos deles, seriam devolvidos. Mas no meio disso tudo, eles também disseram que além de estarem em lugares indevidos, as faixas seriam ofensivas às pessoas que estavam representadas nelas, ou seja: prefeito, ministério e vereadores. Foi a alegação que fizeram. Mas somos de um movimento que grita por justiça. O chargista Latuff, quando fez a charge exposta, ouviu toda nossa história. Não omitimos nada, e saiu disso a charge, da nossa história. Foi o próprio Secretário de Desenvolvimento, Renato Brunet, que alegou que o conteúdo dos banners era ofensivo. Sérgio: A prefeitura luta por uma suposta democracia entre aspas. Na hora que cidadãos foram se manifestar, a prefeitura foi lá e retirou. Foi arbitrária. Não sabem receber crítica. Poderiam ter usado esse poder de polícia na Kiss. A
frente da boate tinha sido toda alterada, estava irregular. Cadê a fiscalização empenhada que agora retira faixas do centro da cidade? Na boate não fizeram a ação de polícia que exerceram sobre meia dúzia de faixas. Estão assinando o atestado de incompetência. A autoridade deles surge quando convém. Até então, o Ministério Público disse que a prefeitura não tinha poder de polícia. Mas têm poder para tirar faixa, deter manifestação popular?
Como vocês analisam a importância da manutenção do espaço de vigília na praça Saldanha Marinho (a mais central da cidade, em frente ao gabinete do prefeito, distante menos de duas quadras da boate)? Carina: A princípio, o que buscamos é chamar os pais para que venham participar das vigílias. Aquele espaço é muito importante para nós, pais, porque simboliza no centro da cidade que estamos em luta, que vamos continuar pedindo justiça. É um espaço pra mostrar que, por mais que a cidade queira nos empurrar pra debaixo do tapete, porque nós somos uma parte “feia” da cidade, por mostrarmos que a corrupção matou os nossos filhos, a gente está aqui, a gente vai continuar gritando. Sérgio: É o local onde dizemos tudo o que aconteceu, é não aceitar o esquecimento. Além de ser um local para manter viva a história. Se abandonarmos a vigília, cai tudo no esquecimento, porque infelizmente algumas instituições de Santa Maria, como as partes empresarial e política da cidade, querem abafar tudo de qualquer maneira. [Em março de 2014, a prefeitura ordenou a retirada da tenda da vigília erguida a pedido da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, mas voltou atrás depois da massiva desaprovação da população quanto à notificação.] O problema é que a sociedade cai, um pouco, nesse jogo de esquecer, porque nós somos comandados pelo empresariado, que não aceita perder a boca, perder os valores de aluguéis e outros lucros mais. A parte política é comandada pelos empresários. Se fosse outro prefeito que estivesse no cargo, o pessoal teria expulsado da SUCV [Palácio da Sociedade União dos Caixeiros Viajantes, onde está localizado o gabinete do prefeito].
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rio grande do sul Sérgio Silva, da Associação de Pais e Vítimas da Tragédia de Santa Maria Foto: Bibiano Girard
de todas as ordens. Eu, Sérgio, sou simpático aos movimentos sociais da cidade, sem eles nós estaríamos perdidos. Nós como sociedade precisamos de movimentos sociais. A associação não vai responder se apoia movimentos. Os pais que fazem parte dela, sim. O Movimento Santa Maria do Luto à Luta é apenas um braço da associação. Eles todos fazem parte da associação.
Mas como o Schirmer (PMDB) foi colocado lá pelos empresários que mandam na cidade, assim se mantém. É um conchavo de interesses. Eu não tenho nada a ver com PT, com PSOL, não tenho. Sou funcionário público, trabalho e recebo o que necessita minha família, não dependo de partido algum, não sou candidato. Mas pensa se fosse um prefeito do PT ou do PSOL, tinha saído dali no mesmo dia. Os empresários construiriam uma bola de neve até atropelá-lo. Mas como é um cidadão da parte empresarial, que está ali porque empresários o elegeram, tudo se mantém paradinho. Senão, o prefeito já teria caído há muito tempo.
>>>Durante a CPI para apurar possíveis irregularidades do poder público quanto ao incêndio, um áudio comprovou que os parlamentares Maria de Lourdes Castro (PMDB), Sandra Rebelato (PP) e Tavores Fernandes (DEM), integrantes da CPI, trabalhavam para que a comissão “não chegasse ao prefeito”. A crise gerou a ocupação da Câmara da cidade, que durou seis dias.
Depois da ocupação da Câmara de Vereadores ano passado, quando o movimento Tarifa Zero, junto à Associação e ao Movimento Santa Maria do Luto à Luta, reivindicaram suas pautas por seis dias de ocupação, muitos grupos seguem ativos em protestos, marchas e coletivos da cidade. Como vocês têm se relacionado com outros movimentos sociais e qual a visão sobre os protestos que ocorrem contra o aumento do preço da tarifa em Santa Maria, por exemplo?
Carina: Nós do Luto a Luta temos um relacionamento bem estreito com todos os movimentos estudantis e sociais da cidade, são nossos aliados. Todo e qualquer protesto e manifestação organizado por esses grupos, a gente deve apoiar. Entendemos que também somos excluídos, fomos excluídos quando mataram nosso filhos, quando ficamos sem justiça. Esses outros movimentos também são excluídos de certa forma, e a gente tem que se unir. É assim que a gente caminha, é assim que a gente faz. Sérgio: Pode notar que estou respondendo como Sérgio, em alguns casos, e como pai da associação, em outros. A associação é uma instituição, tem CNPJ, é um ser jurídico. Então dentro dela trabalhamos com pessoas
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Como é para vocês encarar e ter encarado toda essa reviravolta na vida? Num dia, vocês eram pessoas anônimas, e de repente tornaram-se foco de atenção da imprensa, de entidades, da comunidade em geral. Como tem sido o cotidiano de vocês depois da tragédia? Sérgio: Abandonei a faculdade, minha cabeça funciona 24 horas na associação. Posso estar em casa, mas estou pensando como procurar justiça. Eu vivia um mundo de ilusão. Não que achasse que tudo era lindo, tinha minhas reivindicações. Mas quando você entra no meio do bolo da Justiça, da Política e do Governo, aí você vê que se não rezar, não tomar alguns remédios, acaba cometendo coisa pior, como um suicídio. Carina: Eu não tenho orgulho nenhum de estar no lugar que eu estou. Daria tudo para ter minha vida normal do jeito que eu tinha, com a minha filha do meu lado. Não me arrumo para ir a entrevistas porque a questão não é a minha exposição. Como é a minha vida hoje? Existem pessoas que eu não consigo nem mais falar. Cada leitura de inquérito ou documento é um parto, um sofrimento, porque cada vez que a gente tem que ler esses relatórios, é como tocar o dedo na ferida. Como se todo dia acontecesse o 27 de janeiro de novo. É muito dolorido.
O maior da história do sindicato
O 14º Congresso Ordinário do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (Sepe) terminou no dia 29 de março, no Clube Municipal, Bairro da Tijuca, com a participação de 1416 delegados credenciados – foi o maior congresso em termos de número de delegados da história do sindicato. Durante quatro dias (26 a 29 de março), professores, funcionários administrativos e aposentados debateram e buscaram
as melhores estratégias e alternativas para a mobilização e resistência contra o desmonte da escola pública, gratuita e de qualidade que vem ocorrendo em nosso estado. Com isso, o Congresso comprovou a vitalidade do nosso sindicato, que vem, há 37 anos, mobilizando a categoria e a sociedade em defesa da educação. No site do Sepe (www.seperj.org. br), disponibilizamos mais informações sobre o Congresso.
www.seperj.org.br
foto: Samuel Tosta
Congresso do Sepe teve a participação de 1416 delegados credenciados
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foto: Rafael Gonzaga
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or Pezão e do governad a ci ên g si an ionais Diante da intr aes, os profiss P o ), d to ar o u (f d E al , ip o Rio alternativa, Clube Munic do prefeito d tiveram outra realizada no a a luta ão ar n p o co çã ri ca tó u is A assembleia rofessores da ed co h Por isso, os p ro. o, foi um mar . ai ei ve n m re Ja e g d e a d 7 el ia io p d R no do e do a no senão decidir colas do esta cação públic a u es el ed as p d a m d s a ra io ta es ár n uistar Rio vo em def e funcio as para conq municipal do ru , e o às al ai u d m am e ta ar d lt es 12 Rio vo As redes ucação de partir do dia município do ional e uma ed uma greve a a 2014. ss e d fi d ca ro ão p ifi n o aç u iz çã al al ri za re de Janeiro. ha sala a valori icípio do Rio ão à campan n u aç m u n e ti o n d co ta es cadas: em icações unifi qualidade no Eis as reivind aposentados; idade para os ar p m co % 0 do; ear de 2 rreira unifica 1) Reajuste lin 2) Plano de ca a; ia pedagógic pela autonom e ia ac cr o it er ção; 3) Contra a m ção da educa za ti va ri p à 4) Não s, presas, banco rbas para em s, fundações; ve as d se as p Sociai 5) Contra o re Organizações eirização; 6) Fim da terc ! extraclasse Já planejamento e d 3 1/ e d ! to inistrativos, já 7) Cumprimen onários adm ci n fu s o a ar ores; 8) 30 horas p eta para diret 9) Eleição dir cola; rícula uma es 10) Uma mat II; tre PEI, PI e P ão salarial en aç ar ip u q E ) 11 lar; heira (o) Esco rgo de cozin ca o d to en im íveis; 12) Reconhec ajuste entre n 13) 15% de re dos em horas aprova ipal. 0 4 e d s re o ss rede munic ção dos profe concursos da 14) Convoca