Prévia Edição 31 Revista Vírus Planetário

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Entrevista_Hailey Kaas Ativista fala sobre a importância do transfeminismo

Vírus Porque neutro nem sabonete, nem a Suíça

R$5 edição nº 31 março 2014

Planetário

Feminismo

Intersecional

A luta contra as opressões é coletiva

70 anos de Henfil Confira nosssa homenagem Hamilton Octávio de Souza

Brasil revive clima da copa de 70

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Aline Valek

Antonio Zanon

100 vezes

Cláudia

O site Think Olga - www.thinkolga.com - fez uma belíssima

homenagem à Cláudia Silva Ferreira, assassinada brutalmente pela PM do Rio no sábado, 16 de março em Madureira (zona norte do Rio de Janeiro). Confira no link abaixo e ao lado a divulgação do projeto

A mulher arrastada pela Polícia Militar tinha nome: Cláudia Silva Ferreira. Cláudia também tinha família. E sonhos, coragem, dores e medos, como qualquer ser humano. As denúncias da barbárie ocorrida são importantes e elas não devem cessar, mas fugir do sensacionalismo e humanizar esse momento também é! Por isso, nos propusemos a retratar Cláudia com mais carinho do que o visto nos últimos dias. A convite da OLGA, alguns artistas gentilmente criaram imagens sensíveis, que se dispõe a resgatar a dignidade roubada por criminosos. Este projeto se chama 100 VEZES CLÁUDIA e é aberto para que qualquer um possa enviar suas

Gui Soares

homenagens. Ou seja, esperamos publicar aqui novas artes com Didi Helene

frequência. Gostaríamos de imprimir algumas das ilustrações e enviar à

www.tinyurl.com/olga100claudia

família de Cláudia. Quer participar? Escreva para olga@thinkolga.com


o i e rr ral o C Vi >Envie colaborações (textos, desenhos, fotos), críticas, dúvidas, sugestões, opiniões gerais e sobre nossas reportagens para

contato@virusplanetario.net Queremos sua participação!

Afinal, o que é a Vírus Planetário? Muitos não entendem o que é a Vírus Planetário, principalmente o nome. Então, fazemos essa explicação maçante, mas necessária para os virgens de Vírus Planetário: Jornalismo pela diferença, não pela desigualdade. Esse é nosso lema. Em nosso primeiro editorial, anunciamos nosso estilo; usar primeira pessoa do singular, assumir nossa parcialidade, afinal “Neutro nem sabonete, nem a Suíça.” Somos, sim, parciais, com orgulho de darmos visibilidade a pessoas excluídas, de batalharmos contra as mais diversas formas de opressão. Rimos de nossa própria desgraça e sempre que possível gozamos com a cara de alguns algozes do povo. O bom humor é necessário para enfrentarmos com alegria as mais árduas batalhas do cotidiano.

O homem é o vírus do homem e do planeta. Daí, vem o nome da revista, que faz a provocação de que mesmo a humanidade destruindo a Terra e sua própria espécie, acreditamos que com mobilização social, uma sociedade em que haja felicidade para todos e todas é possível.

Recentemente, unificamos os esforços com o jornal alternativo Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e nos tornamos um único coletivo e uma única publicação impressa. Seguimos, assim, mais fortes na luta pela democratização da comunicação para a construção de um jornalismo pela diferença, contra a desigualdade.

Expediente: Rio de Janeiro: Alexandre Kubrusly, Ana Chagas, André Camilo, Artur Romeu, Bruna Barlach, Bruno Costa, Caio Amorim, Camille Perrisé, Catherine Lira, Chico Motta, Débora Nunes, Eduardo Sá, Joyce Abbade, Julia Campos, Livia Valle, Marcelo Araújo, Mariana Moraes, Raquel Junia | São Paulo: Ana Carolina Gomes, Duna Rodríguez, Gustavo Morais, Hamilton Octávio de Souza, Jamille Nunes, Jéssica Ipólito, Luka Franca e Sueli Feliziani | Brasília: Alina Freitas, Edemilson Paraná, Luana Luizy, Mariane Sanches e Thiago Vilela | Minas Gerais: Ana Malaco, Laura Ralola e Paulo Dias | Ceará: Iorran Aquino, Joana Vidal, Livino Neto, Lucas Moreira e Rodrigo Santaella | Piauí: Nadja Carvalho, André Café, Sarah Fontenelle, Mariana Duarte e Diego Barbosa | Bahia: Mariana Ferreira | Paraíba: Mariana Sales | Mato Grosso do Sul: Marina Duarte, Tainá Jara, Jones Mário, Fernanda Palheta e Eva Cruz | Rio Grande do Sul: João Victor Moura, Maiara Marinho e Rafael Balbueno Diagramação: Caio Amorim | Ilustração capa: “Contra a Violência de Gênero” Leitura de Elisa Riemer da obra de Salvador Dalí - “Girafas queimando e telefones – as sete artes” (1957).

Conselho Editorial: Adriana Facina, Amanda Gurgel, Ana Enne, André Guimarães, Claudia Santiago, Dênis de Moraes, Eduardo Sá, Gizele Martins, Gustavo Barreto, Henrique Carneiro, João Roberto Pinto, João Tancredo, Larissa Dahmer, Leon Diniz, MC Leonardo, Marcelo Yuka, Marcos Alvito, Mauro Iasi, Michael Löwy, Miguel Baldez, Orlando Zaccone, Oswaldo Munteal, Paulo Passarinho, Repper Fiell, Sandra Quintela, Tarcisio Carvalho, Virginia Fontes, Vito Gianotti e Diretoria de Imprensa do Sindicato Estadual dos Profissionais de Edução do Rio de Janeiro (SEPE-RJ) Siga-nos: twitter.com/virusplanetario Curta nossa página! facebook.com/virusplanetario

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www.virusplanetario.com.br Comunicação e Editora A Revista Vírus Planetário - ISSN 2236-7969 é uma publicação da Malungo Comunicação e Editora com sede no Rio de Janeiro. Telefone: 3164-3716


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Editorial Aprendemos desde muito cedo que o mundo se divide em dicotomias: o bem e o mal, o oito e o oitenta, a liberdade e a opressão. E não demoramos para perceber como essa ideia é equivocada. Se isso fosse correto, nossas batalhas certamente seriam mais simples: concentraríamos nossa força em combater apenas um inimigo. Mas existem muitos degradês entre o oito e o oitenta, que podem passar batido se não nos esforçarmos para vê-los. A opressão, na verdade, se mostra como “opressões”. Opressões que se apresentam de maneiras tão plurais que uma fórmula apenas não é possível para combatê-las. Por isso surge a necessidade de nos articularmos, ouvirmos e questionarmos para entender as relações de causa e efeito das ferramentas que tentam nos manter desiguais. Por vezes, partilharemos de pontos em comum. Outras vezes, lutas específicas nos diferenciarão, mas jamais nos separarão. Este é o momento de reflexão sobre feminismo e as diversas facetas que compõem esse movimento social complexo. É o momento de pensar em que aspectos temos privilégios, em nosso lugar de fala, e como podemos auxiliar sem protagonizar uma luta que não é nossa. As correntes que nos prendem podem não ser iguais, mas não seremos livres enquanto não extinguirmos todas elas. A entrevista inclusiva deste mês é com Hailey Kaas, uma das maiores referências nacionais sobre o tema. Além disso a sub-representatividade das mulheres no cinema é tema da bula cultural, na qual o teste de Bechdel aponta como ainda vivemos numa sociedade que desvaloriza as narrativas das mulheres. Fechamos comemorando os 70 anos que Henfil teria feito esse ano se não tivesse nos deixado cedo demais. Henfil se foi, mas sua luta gráfica continua presente e sempre atual. Outros marços virão e nós aqui da Vírus seguiremos lutando contra o machismo e contra todas as formas de opressão, não só em março, mas cotidianamente. Caminhe conosco por mais uma edição desta revista e nos vemos novamente em abril.

Sumário

(da edição completa)

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Sórdidos Detalhes

8

Hamilton Octávio de Souza_ Brasil revive clima da Copa de 70

13

Bula Cultural_A mulher e o cinema

16 Bula Cultural_Indicações e Contra

17 Fazendo Media_Dá-lhe, Henfil! 21 Rio Grande do Sul_Ruína indígena à maneira gaúcha

24

CAPA_Feminismo_Várias lutas, uma só luta

29 Traço Livre 30 Entrevista Inclusiva_Hailey Kaas 34 Passatempos Virais


A verdade varrida pra debaixo do tapete...

sórdidos es detalh

chega da favela chorar

Coletivo Pinte e Lute

No domingo, dia 16 de março, a auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira saiu de casa, no Morro da Congonha, Madureira (zona norte do Rio de Janeiro) para comprar pão. No caminho, foi baleada por um policial militar que, segundo depoimento de testemunha “estava de frente para Cláudia” a curta distância, tendo a bala atravessado seu peito e batido num muro. Após terem assassinado sumariamente Cláudia, os três PMs Alex Sandro da Silva Alves, Adir Serrano Machado e Rodney Miguel Archanjo a alojaram no porta-malas de sua viatura sem o menor cuidado tendo seu corpo ficado preso no para-choque do veículo e arrastado pelo chão por mais de 350 metros na Estrada Intendente Magalhães. Testemunhas relatam que os policiais foram alertados por outros motoristas de que o corpo estava sendo arrastado no asfalto e batendo em outros carros e mesmo assim não pararam o carro. A versão da Polícia de que Cláudia havia sido morta durante uma troca de tiros com traficantes do Morro da Congonha e que levaram Cláudia com vida ao Hospital Carlos Chagas foi completamente desmentida, uma vez que o vídeo amador filmado pelo carro de trás que acompanhou a viatura - mostra claramente que o corpo de Cláudia foi tratado como um saco de lixo. Também não condiz a versão de que Cláudia fora assassinada em troca de tiro, pois duas testemunhas asseguram que foi uma execução, uma vez que Cláudia estava sozinha quando se deparou com os dois policiais que atiraram. “Do jeito que eles chegaram com a arma, ela virou de lado, ela deu caminho pra eles. Eles não enxergaram?! Uma mulher de blusa branca e bermuda preta?” afirma uma das testemunhas do crime. Os três policiais que estavam na viatura chegaram a ser presos na segunda, dia 17/3, mas soltos na sexta,

dia 21/3. Há de se registrar que os três PMs já tinham assassinado ao menos 16 pessoas. O advogado da família de Cláudia, João Tancredo, afirma que o fato de os policiais estarem soltos aumenta muito o medo de seus familiares, que devem ser incluídos no (frágil) programa de proteção à testemunha. Abaixo, a antropóloga e membro do conselho editorial da Vírus, Adriana Facina, faz uma emocionante homenagem, colocando dois roteiros que tragicamente se encontraram: o dos policiais e o de Cláudia e sua família.

Um tento, em dois tempos... O choro em coro Por Adriana Facina Roteiro para a banalidade do mal: Mais um dia de operação. Calor, adrenalina a mil, doido pra fazer o fuzil cantar contra aqueles animais. Arrego de merda, mixaria du carái. Um vulto negro brilha contra o sol ao virar a esquina. Pá pum. Corpo no chão. Deu merda, mulher com copo de café na mão e saco de pão. Gritaria, choro. Bora sumir com esse corpo daqui. Olha a perícia. Tiro pra alto, sai todo mundo. E aquela garota gritando ali, diz que é filha,que merda é essa. Enfia essa porra na caçamba. Filha da puta, tinha que passar ali naquela hora? Gente maldita que surge que nem formiga do buraco. Enfia, enfia aí. Caralho, caiu o corpo. Bora bora. Onde a gente vai desovar isso. Peraí, que porra é essa? Todo mundo gritando. Tão aplaudindo a gente. Pára pára. Putaqueopariu a mulher tava pra fora. E agora? Alguém filmou. Tamo fudido. Prestando socorro irmão, prestando socorro. Foi só um erro operacional. Infelizmente, uma tragédia, esperamos que não se repita. Próximo.

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Vírus Planetário - março 2014

Roteiro para a singularidade do mal: Tiro. Que barulho é esse? Mãe. Mãe. Cadê você? Tá todo mundo gritando. Quero minha mãe, quero pão, tô com fome. Minha barriga dói. Tô com medo. Entra e sai gente daqui de casa. Ela nunca demora assim. Silêncio. Estão falando comigo. Polícia, caiu, hospital, machucado. Quando ela volta? Não volta mais? Não? Dormiu pra sempre. Pra sempre, meu filho. Mas por quê? Tô com frio, tá doendo tia. Quero a minha mãe. Sua mãe morreu, meu filho. Foi quem, tia? Quem matou? A polícia, menino, foram eles…. Abraça, tia. Tem um troço doendo aqui dentro de mim. Abraço. Um corpo pequeno estremece. Chora, meu filho, chora.


Bruna Barlach

O machismo mata todos os dias...

Uma mulher que merecia viver e amar Como outra qualquer do planeta

ilustração: Gilberto Maringoni

Como visto na página 2 aqui nesta edição, o site thinkolga.com fez uma belíssima homenagem à Cláudia, reunindo diversos artistas que enviaram (e continuam enviando) suas obras artísticas em homenagem à memória de Cláudia, como esta à esquerda do coletivo Pinte e Lute. Negra, favelada, mulher e guerreira, Cacau, como era chamada merecia viver e amar como outra qualquer do planeta, mas os podres poderes ignoram a existência do povo, das pessoas negras, dos excluídos, tratam como saco de lixo a ser arrastado, ceifado, assassinado, “pacificado”. E é para isso que centenas de artistas estão mostrando a face humana de Cláudia. Para lembrar que não! Não admitimos viver em um mundo tão cruel e hostil. Não queremos mais ver e saber que existem cenas tão dilaceradoras. Acesse aqui o projeto: www.tinyurl.com/olga100claudia

… E nenhuma de nós está livre da violência advinda do machismo. Nem mesmo militantes feministas. No mês passado a militante do PSTU-PE Sandra Lúcia Fernandes foi assassinada, juntamente com seu filho de 10 anos. O assassino, seu namorado, disse que cometeu o brutal assassinato por sentir ciúmes de Sandra. Junto com o nosso pesar, é preciso que nos lembremos sempre que o machismo não é uma força invisível. Ele mata. Só no Brasil, mais de 15 mulheres são mortas a cada dia. Ou seja, a cada uma hora e meia morre uma mulher assassinada por conta do machismo. Nos lembramos hoje e a cada dia de todas as mulheres mortas pelo machismo e que a presença da ausência delas nos fortaleça na luta contra o machismo. Companheira Sandra, presente!

Por Paulo Marcelo Oz / facebook.com/tirinhasoz

A história se repete... ...às vezes como piada sem graça 50 anos atrás cerca de 100 mil pessoas se reuniram em São Paulo para o episódio coletivo mais reacionário da história: a marcha da família com deus pela liberdade. Esta tal marcha, coordenada pela Igreja, pela burguesia, partidos conservadores (e com a presença ilustra da CIA), foi um dos elementos utilizados como “desculpa” para instauração do golpe militar de 1964, que instaurou a ditadura. Como todos sabem, foram anos áureos para o Brasil: tortura, assassinatos político, silenciamento das vozes dissonantes com o sistema, controle das telecomunicações pelo governo, políticos biônicos, fechamento dos partidos de esquerda e outros eventos que jamais nos esqueceremos. No entanto, há quem sinta saudades deste tempo. Tanta saudades que estão organizando uma nova marcha da família com deus e etc. Dessa vez, encabeçam o movimento conservadores de classe média auto-organizados via facebook e sabe-se lá mais quem. Se a primeira marcha já foi uma farsa, o que será a reedição da farsa? No mínimo, uma piada. Mas como avanço do conservadorismo não é engraçado, assim como reivindicar uma ditadura militar, são poucos os dispostos a rir. Vírus Planetário - março 2014

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feminismo


Piquenique feminista - Rosa Luxemburgo - Angela Davis - Simone de Beauvoir - Maria Lacerda de Moura Pagu e Marx | Arte por Elisa Riemer

várias

uma só

luta(s)

al ou n o i c e s r e t n I o m, a m o s Feminism e s s e õ s s e Quando as opr ar junt@s nos fortalece lut Por Sueli Feliziani, Hailey Kaas e Bruna Barlach “Ao longo de vários séculos de lutas, tivemos muitas conquistas como o direito de votar, de estudar e de trabalhar. No entanto, ainda somos responsáveis pelas tarefas domésticas nas famílias; nossa participação ainda é minoritária tanto na política, quanto nos sindicatos; a violência contra as mulheres só cresce; ainda recebemos salários 30% menores que os homens (chegando a 72%, no caso das mulheres negras), para mesma escolaridade e função.” exclama Danielle Bornia, militante do Movimento Mulheres em Luta (MML). Desde seu início, no século XIX, o movimento feminista nasce como uma organização contra o patriarcado. O patriarcado, como abstração cultural tinha como sujeito universalizado o homem. Mais especificamente o homem caucasiano, dono de propriedades, heterossexual, que era o portador hegemônico dos direitos políticos, reprodutivos, educacionais, econômicos e civis da época. Assim, na sua gênese, o feminismo surge como uma luta contra este sujeito universal. No entanto, as primeiras mulheres a se organizar também eram um tipo específico de mulher: a mulher branca,

pertencente às camadas médias e burguesas. Em função desta caraterística, a primeira onda do movimento feminista ocupou-se de demandas como: direito ao voto, propriedade, direitos de sucessão, educacionais, direito ao trabalho e direitos reprodutivos e sexuais, dentro de um viés que não abordava outras nuances importantes das relações de gênero como classe, etnia, orientação sexual, capacitação ou identidade. Resumindo, era um feminismo branco, pensado e executado por mulheres financeiramente e socialmente privilegiadas em relação a outras mulheres.

Percurso feminista Enquanto, no século XIX, sufragistas Europeias e norte americanas brigaram por direitos políticos, Sojourner Truth, ativista negra abolicionista, fazia seu célebre discurso “Ain’t I A Woman?” (em português: “E não sou mulher?”) - questionando a inferioridade em que as mulheres negras estadunidenses eram colocadas em relação às mulheres brancas - em 1851 em uma convenção de mulheres em Akron, Ohio, EUA.

E aqui no Brasil, Luíza Mahin, em 1835, liderava a revolta dos Malês em Salvador, Bahia. Foi o século em que mulheres negras ajudaram a escrever a história contra a escravidão, mas a sua luta e a luta das primeiras feministas ainda não se encontrava. Já no século seguinte a grande pauta do movimento feminista foi a luta por direitos reprodutivos e sexuais, junto com o reconhecimento da cidadania para as mulheres negras e pobres. Lembrando que no Brasil, o voto feminino só foi alcançado a todas as mulheres em 1946. De acordo com a doutora em psicologia social Jaqueline Gomes de Jesus, em contribuição para o “Blogueiras Negras”, “o Brasil é um país que naturalizou, ao nível das instituições, todo tipo de segregação: racial, étnica, classista, de gênero, regional, capacitista…” Mas é claro que, para notar que isso ocorre é preciso sentir na pele. Por isso, as pautas do feminismo foram mudando com a incorporação de novos sujeitos dentro do movimento. Nesta perspectiva, enquanto que para as feministas brancas e burguesas as pautas rodavam em

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feminismo

Mulheres trans* têm seu gênero a invalidado até por quem deveri delas” lutar com elas e pelos direitos

torno do direito à propriedade e sucessão de bens, as mulheres negras e trabalhadoras seguiam nas demandas por cidadania e melhores condições de trabalho, como nas grandes greves das indústrias têxteis no início do século XX. Nos EUA, Rosa Parks abriu caminho ao fim da segregação racial que culminariam em Black Power, Panteras Negras, o fim da segregação e o direito ao Voto Negro. Foi em 1965 que os conflitos por direitos civis revelaram nomes como Angela Davis, Ericka Huggins e outras feministas negras que foram presas, torturadas, e perseguidas até o fim dos anos 90 por sua participação nas lutas por cidadania do século XX. Mas é Audre Lorde, teórica estadunidense negra e lésbica, que aponta pela primeira vez, em 1979, no ensaio “As ferramentas do mestre nunca irão desmantelar a casa do mestre” o descaso da teoria e da academia feminista com a mulher negra, pobre, sexualmente diversa. Para Lorde, seria uma arrogância acadêmica particular supor qualquer discussão sobre teoria feminista sem examinar as muitas diferenças entre as mulheres, e sem uma contribuição significante das mulheres pobres, negras e do terceiro mundo, e lésbicas.

O nascimento do feminismo interseccional A partir dos debates trazidos por Lorde para a academia e para a militância, nasceu o feminismo intersecional, que tem como primeiro grande referencial teórico o seu ensaio “Não Existe Hierarquia de Opressões”. Neste ensaio, a teórica se posiciona dizendo que não há como escolher entre as opressões de orientação, de gênero, de classe, ou de raça, e que todas devem ser combatidas com igual energia, pois esta seria a função de uma luta intersecional que leva em consideração a diversidade das faces sócio políticas dos indivíduos. A este debate se juntaria Bell Hooks, também norte-americana, que escreveu seu primeiro livro em 1981, intitulado “Eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Neste trabalho ela critica duramente a visão clássica do feminismo que não levava em consideração a questão de classe e de raça em suas pautas. Até hoje Hooks é uma das referências quando se trata do tema, com ótima produção sobre como o sexismo atinge as mulheres negras e como, a partir deste sexismo, as mulheres negras sofrem com opressão diferentes das mulheres brancas, seja no âmbito econômico, social, afetivo e de representação na cultura. 10

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De acordo com a doutora Jaqueline Gomes, “os diversos feminismos que adotam e aplicam o conceito de interseccionalidade, criado pelo Feminismo Negro, reconhecem e denunciam a realidade degradada pelas discriminações multiplicadas pelas diferentes identidades sociais das pessoas, e felizmente têm se tornado mais populares no discurso comum de quem reflete criticamente sobre tudo isso que aí está.” Nascido das feministas negras, o feminismo intersecional promoveu um espaço para outros grupos que não eram representados pelo feminismo clássico, branco, heterossexual, magro, cisgênero e de classe média. Pois da mesma forma que não há hierarquia entre as opressões, elas são várias e precisam ser discutidas em suas especificidades.

Interseccionalidade avança Como a “mulher universal” das correntes feministas tradicionais não abarcava, de fato, um grande número de mulheres, também não aceitavam mulheres trans* em seus círculos, pois partiam de uma mentalidade bio-essencialista que relegava as mulheres trans* à categoria homem - ora por terem um genital considerado masculino, ora por considerarem que mulheres só são mulheres se designadas como tal no momento do


nascimento. No entanto, “Mulheres trans* são assassinadas e a existência delas é tão silenciada que suas mortes acabam fazendo parte das estatísticas de homofobia, além de terem seu gênero invalidado até por quem deveria lutar com elas e pelos direitos delas”, como nos aponta Renata Mol, blogueira feminista intersecional focada em combater a gordofobia em seu ativismo. Conforme aponta Danielle Bornia do Movimento Mulheres em Luta (MML), “as opressões se combinam. Quando olhamos as estatísticas de violência, vemos que as mulheres negras são as que mais morrem e são estupradas. O tráfico sexual também tem como seus maiores alvos as mulheres negras e jovens.”

As mulheres negras são as que mais morrem e são estupradas. ”

Angela Davis, lutadora feminista contra o racismo Arte: Elisa Riemer

Renata também nos lembra que, “mulheres e meninas negras são assassinadas, violentadas, sexualizadas, exploradas e desprezadas por uma sociedade que não as vê como seres humanos. Elas também estão entre as maiores vítimas de um sistema carcerário podre em todos os sentidos.” - completa Renata. Outro elemento fundamental para o debate interseccional é a questão das mulheres lésbicas, bissexuais e pansexuais, que têm a sua sexualidade tão invisibilizada ao ponto de não haver dados concretos sobre sua situação, conforme nos aponta Danielle, “É a chamada ‘invisibilidade lésbica’. Sem dados, é ainda mais fácil negar políticas públicas para combater a homofobia e o machismo. Não existem métodos de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis específicos para as mulheres lésbicas. O machismo e a homofobia também se combinam numa prática absurda e recorrente, que é a do ‘estupro corretivo’ – um jeito de ‘castigar’ as lésbicas e reeducá-las em relação ao seu ‘devido’ papel numa relação sexual.”

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feminismo Ilustração: Didi Helene

Feminismo intersecional e o sujeito dinâmico Desta forma o feminismo intersecional pretende que seu sujeito seja dinâmico e se pretenda múltiplo, com desejos, percepções, sentimentos múltiplos, assim como as pessoas também o são. As vivências são intersecionadas por todos os tipos de opressão como racismo, classismo, capacitismo, gordofobia, machismo e lesbofobia (entre outros) que constroem as vidas (ou não-vidas) destas pessoas nos espaços sociais. Por isso, é sempre importante abordar o assunto com cuidado e tendo isso em vista, para que possamos realizar uma análise mais objetiva, que leve em conta todos os vários vetores que possam oprimir o sujeito. Para a blogueira Renata, “O feminismo não deveria ser sobre o que se entende por poder, porque o poder de algumas é a exploração de outras. É uma luta pelos direitos e pela libertação de todos esses 12

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O feminismo é uma luta pelos direitos e pela libertação de todos esses grupos marginalizados que se interseccionam”

grupos marginalizados, e tantos outros, que se interseccionam – criando sistemas opressivos repletos de nuances ignoradas pelo feminismo generalizado e dominante. Por isso a perspectiva intersecional é tão necessária e urgente.” Danielle, militante do MML, nos lembra que, “Além de se combinarem, as opressões contribuem para aumentar a exploração.” Por isso, a luta contra as opressões deve ser travada em conjunto com a luta pelo fim da exploração, rumo a uma sociedade mais justa e igualitária. Se o machismo, o racismo, a lesbofobia, transfobia, gordofobia e todas

as demais opressões simplesmente não se extinguirão magicamente ao ter fim o capitalismo, é sabido que sem destruir este sistema, essas opressões jamais acabarão. Para Danielle, a saída está na construção do socialismo. Para isso, o caminho apontado pela militante do MML é que os setores oprimidos sejam protagonista da luta contra a exploração, por isso, é fundamental que a luta pelo socialismo também incorpore a luta contra as opressões. A sociedade que queremos construir deve ser livre em todos os sentidos, inclusive de qualquer forma de opressão.


foto: arquivo pessoal

Entrevista INclusiva:

Hailey Kaas

Por Jamille Nunes e Jéssica Ipólito Em apenas três anos, o blog Transfeminismo, consegue cada dia mais levantar no espaço virtual um debate que até então era escasso: o da transgeneridade aliado ao feminismo. A página do Facebook alcança mais de 5.500 pessoas, onde textos de outros blogs também são compartilhados.

Confira a entrevista na edição completa digital ou impressa

A fundadora do blog, Hailey Kaas, que além de ativista trans é também tradutora, pesquisadora, e linguista, nos recebeu para um bate-papo sobre sua história, militância e experiências. Ela foi a principal responsável por traduzir textos sobre transfeminismo e abrir as portas para uma demanda tão importante e necessária para a luta pela igualdade em meio a um mundo tão machista e transfóbico, que só será mudado com muita militância coletiva.


XIV Congresso do Sepe/RJ As jornadas de junho, o sindicato e a luta pela educação pública, laica de qualidade, contra a criminalização dos movimentos sociais.

26 a 29 de março de 2014 no Clube Municipal (Rua Hadock Lobo, 359, Tijuca)

Rio de Janeiro O Congresso é o mais importante fórum de deliberação do Sepe, maior sindicato do estado do Rio. A sua finalidade é a de organizar a categoria para as suas lutas, adequando a estrutura interna da entidade para a defesa dos direitos dos profissionais e da escola pública. Os filiados do sindicato podem participar das assembleias para a escolha dos delegados nas Regionais do Sepe, na capital, e nos núcleos nos demais municípios.

Participe! www.seperj.org.br


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