A quinta das tulipas obra competa a5

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ROMANCE

A QUINTA DAS TULIPAS

VÍTOR PAULO FERNANDES

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Prefácio É a primeira vez que me chega um convite tão lisonjeador. Escrever o prefácio do primeiro livro do Vítor Paulo é, no mínimo, um privilégio. Uma regalia quase tão grande como a amizade que nos une há mais do que uma década. Embora tenha sido ligeiramente apanhada de surpresa com a publicação desta obra, a sua genialidade não me espantou nem um pouco: a escrita é apenas uma das muitas habilidades artísticas a que o “Stones” já me habituou, a par com a pintura, o desenho, e a sensibilidade – que também é uma arte. Li a “Quinta das Tulipas” em dois fôlegos. Mas li tudo, até ao fim, porque cada capítulo deixa água na boca, e uma vontade enorme de passar ao seguinte. A história prende desde o início: a menina do lago, que fala italiano e português sem saber bem como, encontra na Quinta das Tulipas o aconchego e o carinho da família de Afonso, em tudo típica da Beira Alta, onde se passa a trama. O autor tão depressa nos deixa curiosos com um novo mistério em torno da menina-que-não-sabequem-é, como nos faz desatar a rir com os modos antiquados e grotescos da empregada da casa. E até quando o mistério principal parece estar resolvido, as personagens da “Quinta das Tulipas” não param de surpreender, e o que parece ser o desenlace torna-se o mote para um novo capítulo. Através das notas descritivas e do espaço que dedica a cada personagem, o Vítor pinta vários quadros bucólicos e cheios de cor, com pormenores de Portugal e Itália, que mostram o seu grande empenho em dar a conhecer a História por trás das “estórias” que conta. As observações sobre os valores da família, as novas modas da televisão e da internet, a religião, e sobretudo sobre o amor e as suas (in)decisões e

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(des)ilusões, mostram a capacidade de observação do Vítor e o espírito aberto que sempre lhe conheci. E porque as tulipas – as vermelhas, sobretudo – simbolizam declarações de amor, esta história deixa-me um sabor na boca de quero-mais. Fico – ficamos todos – a aguardar a próxima. Marisa Soares

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Ao meu av么 Jos茅 Fernandes Foi dele que herdei um apelido, a fantasia e o prazer em contar hist贸rias.

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Capitulo 1 Acordou em absoluto estado de confusão. Sabia que estava numa cama, sabia que tinha um tecto azul. Não sabia mais nada. Nem sequer sabia quem era, aliás, só sabia que era alguém porque tinha consciência de que existia. Todo o corpo lhe doía quando se tentava mexer. Levantou a cabeça, mas foi invadida por uma tontura que a fez tombar para trás. Parecia que alguém lhe tinha espetado um ferro aguçado na cabeça. Alguém sussurrou algumas palavras perto de si. Algumas palavras que lhe transmitiram segurança apesar do estado de confusão em que se sentia. - Durma menina, durma mais um bocadinho. Precisa de descansar. O estado de exaustão em que se encontrava obrigou-a a fechar os olhos. Mesmo debatendo-se contra si própria acabou por adormecer. Sonhou, se é que se pode chamar sonho ao turbilhão de imagens que lhe acometeram a mente. Estava a meio de um túnel e algo a perseguia. Tentava fugir, mas levantavam-se paredes à sua frente. Ficou encurralada. O seu perseguidor, que não conseguia ver, agarrou-a. Sentiu o seu peso que a esmagava e rasgava. Tentou gritar, mas não conseguiu. Sentiu-se liberta e quis fugir, mas achou-se à beira de um precipício. Quis desesperadamente agarrar-se a algo, mas tudo em que tocava transformava-se em cobras horríveis. Caiu. Nunca mais parava de cair. Silvas de espinhos aguçados rasgavam-lhe a roupa e a pele. Ouvia claramente gargalhadas de escárnio e palavras murmuradas em conspiração. Estava agora num lugar escuro, mas continuava a ouvir sons assustadores. Uma matilha de cães raivosos movia-

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se perto de si. Sentiu a sua fúria. Não foi capaz de gritar nem de fugir. Sentiu-se mergulhada em água gelada, tentou respirar, mas não conseguiu. Sentiu-se desfalecer até que um estrondo infernal a trouxe à realidade. Quando voltou a acordar viu o mesmo tecto azul, mas os raios de sol entravam agora pela enorme janela. - Coitadinha. Estava a delirar. Era outra vez aquela voz afectuosa e tranquilizante. Olhou com alguma dificuldade. Ao lado da cama estava sentada uma senhora idosa de lindos e meigos olhos verdes. As rugas que lhe sulcavam o rosto davam-lhe um delicado ar de extrema bondade. Segurava nas suas pequenas mãos uma chávena de chá. Sorriu para ela. Tinha um sorriso plácido e terno. - Beba este cházinho menina. Vai-lhe fazer bem. - Dove mi trovo? Perché ho tanto dolore? A senhora não percebeu patavina, mas continuou a tranquilizar a jovem rapariga. - Descanse menina. Está em casa de boa gente. Deve ter sofrido muito, mas agora está bem e vai ficar boa num instante. Sentou-se na cama com alguma dificuldade. Continuava a ter dores pelo corpo todo. Sentia os músculos doridos e uma terrível enxaqueca não a deixava pensar com clareza. Olhou em volta com estranheza. Nunca tinha visto aquele lugar. Não conhecia aquela senhora. Era incapaz de avaliar a situação. - Beba menina. É camomila. Vai acalmá-la e dispô-la bem. A senhora sorria docemente enquanto lhe estendia a chávena fumegante. Aceitou o chá com algumas reservas embora a senhora lhe inspirasse confiança. - Beba devagarinho que está quente.

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O aviso veio tarde demais. Ao primeiro gole queimouse, engasgou-se e só não deixou cair a chávena do chá porque a senhora a segurou a tempo. - Signora… - Joana. Chamo-me Joana. E a menina? - Io? ... Non lo so. Non so il mio nome. Non riesco a ricordare. Apesar da língua desconhecida, a anciã compreendeu que a rapariga devia ter perdido a memória. Nem o nome sabia! - Isso é agora que ainda está assustada. Precisa de descansar. Agora beba o cházinho. Bebeu mais alguns goles. Tinha um sabor e um aroma agradável que a confortava. Estremeceu quando a pesada porta de madeira do enorme quarto se abriu de rompante. Surgiu um homem de aspecto austero. Devia estar na casa dos setenta anos. O cabelo grisalho tinha já algumas falhas na testa e na nuca. Um farto bigode em conjunto com as rugas que lhe sulcavam o rosto dava-lhe um ar robusto e circunspecto. Olhou para ela com ar inquiridor. Uma ruga nascia-lhe na testa e encovava-lhe os olhos. Permaneceu em silêncio perante o olhar confuso da rapariga até que, parecendo despertar, fez soar a sua voz cavada e altiva. - Então? A rapariga já acordou? A velha senhora passou a mão pelo rosto à jovem e respondeu. - Já está melhorzinha. Agora só precisa de descansar. O homem sentou-se na cama cravando o seu olhar penetrante e inquisidor à assustada criatura. Ela continuava intimidada. Sentia-se frágil por não perceber nada da sua situação.

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- Então menina. Como raio é que se meteu em tamanha trapalhada? O que é que lhe aconteceu? Para começar diga-me o seu nome? - Il mio nome? Non so il mio nome... - Você é italiana? Ela ficou ainda mais confusa com aquela pergunta. Também sabia falar aquela língua. Compreendia bem o que eles diziam e conhecia os termos que devia usar, embora com mais dificuldade. - Eu não sei meu nome! Eu não sei quem sou! Não sei onde estou nem de onde venho! É horrível. - Afinal também fala português. Atravancado, mas fala. Principiou a chorar. O homem levantou-se, virou costas e saiu exclamando entre dentes. - Perdeu a memória. Não há nada a fazer por agora. Quando recuperar saberemos quem é a italiana. Vou telefonar ao Martinho. Aquelas palavras deixaram-na ainda mais aflita. A velha senhora tentava tranquilizá-la. - Beba mais um pouco de chá enquanto lhe vou buscar uma torradinha. Não se apoquente menina. Está em boa casa. Aproximou-se mais do seu ouvido e sussurrou: - O meu irmão tem a mania que é bruto, mas é só mania. É um coração de manteiga. Não lhe ligue. Ele vai falar com o Martinho. - Quem é o Martinho? - Um grande amigo que nos vai ajudar. Eu volto já. Afastou-se e saiu. Era uma senhora baixinha e septuagenária. Andava um pouco encurvada pelo peso dos anos. O cabelo branco e as argolas em ouro nas orelhas davamlhe um ar de fino trato, assim como os modos delicados.

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Ficou sozinha. Estava deitada numa cama estilo “Luís XIV”. O quarto era amplo, mas da sua mobília constava apenas um roupeiro, uma pesada mezinha de cabeceira e um curioso baú, além da cama, é claro. Cobriam-na lençóis de linho e uma bela colcha de renda. Estava vestida com uma camisa de dormir dos princípios do século XX cheia de bordados feitos à mão e fitinhas de seda. Tudo isto cheirava a naftalina. Pela grande janela entravam exuberantes raios de sol que iluminavam o quarto dando tons acolhedores às paredes cor-derosa e ao tecto azul. Uma única e inquietante pergunta martelava o seu cérebro: Quem sou eu!? A senhora baixinha voltou com um tabuleiro de onde exalava um agradável aroma a pão torrado. - Vamos menina. Coma uma torradinha. Devorou dois pães e bebericou mais uma chávena de chá. Sentiu-se mais animada apesar de todas as confusões e interrogações que lhe afogueavam o espírito. Ouviu passos para além da porta. A senhora também ouviu. - Vem aí o meu irmão. Tal como já lhe disse, ele é um bocado rude mas é boa pessoa. Entrou com um semblante menos carregado do que da primeira vez. Sentou-se na cama e agarrou-lhe na mão apertando-a um pouco. Inclinou-se ligeiramente. - A menina já se sente melhor? Eu há pouco fui um bocado brusco consigo, mas fique descansada que está em segurança e faça de contas que esta é a sua casa. - Il Signor chi è? Dove mi trovo? - Tenha calma que tudo se explica. O meu nome é Afonso. Esta é a minha irmã Joana. Estamos na Quinta das Tulipas. Se chegar àquela janela poderá ver que estamos num sítio isolado com a Serra da Estrela no horizonte. A menina não se lembra de nada?

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- Não sei de nada. Como vim aqui parar? Che cosa è successo? - Primeiro temos que a baptizar. Eu em princípio baptizei-a como “Dama do Lago”, tal como nas histórias dos Cavaleiros da Távola Redonda. Mas, pensando melhor, Posso chamar-lhe Inês? - Inês!? Suona bene per me. Dona Joana ou Dona Joaninha como era conhecida estremeceu e benzeu-se. A jovem Inês não compreendeu, mas também não se preocupou com isso. Outras dúvidas lhe flagelavam a alma. - Porquê “Dama do Lago”? - Porque foi junto ao lago da nossa quinta que o Carlos a encontrou ontem à noite. - Per favore mi dica tutto. Sono così spaventata. Chi è Carlos? Afonso, bem como a irmã, tinham dificuldade com o italiano falado pela jovem. Entreolharam-se confusos. - Se a menina sabe português, agradecia que evitasse o italiano. Ela percebeu a situação. - Desculpem. Vou tentar falar só em português. - Sim. Peço-lhe que faça um esforço. Inglês, francês ou mesmo alemão, eu entendo. Italiano só compreendo pela semelhança do vocabulário. A voz de Afonso era agora bastante amável. Nada tinha que ver com a severidade da primeira vez. Eu conto-lhe aquilo que sei. O Carlitos é meu empregado desde miúdo. É surdo-mudo de nascença, mas é um rapaz inteligente e trabalhador. Por vezes pede-me sempre para ir à aldeia jogar às cartas. É esse o seu único vício. Ontem, por volta da uma da manhã, veio-me acordar. Estava muito

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inquieto e assustado. Por gestos indicou-me o caminho até ao lago. Lá estava você desmaiada, amordaçada, roupas rasgadas e toda encharcada. Presumo que deve ter sido violentada e foi atirada ao lago. Agora já se lembra de alguma coisa? Inês ouviu tudo com assombro. Esforçava o cérebro para que este lhe confirmasse aquela história, mas nada. Parecia que estava a ouvir uma notícia que nada tinha a ver com ela. Quando quis falar apenas conseguiu à terceira tentativa. Um nó feito de medo apertava-lhe a garganta. - Isso é horrendo. Não me lembro de nada. Só sei que há pouco tive um pesadelo terrível. Acordei quando me senti dentro de água. - Talvez haja relação. O subconsciente lembra-se de tudo. A perda de memória é, na maior parte dos casos, temporária. Em breve irá contar-nos a sua história. Tal como já lhe disse, está em boas mãos. Dona Joaninha passou-lhe a mão pelos cabelos e exclamou em jeito de confidência: - O meu irmão é médico. Afonso levantou-se de rompante. Voltava a ser o mesmo homem áspero e arrogante. Cravou os olhos na irmã e vociferou: - Fui, Joana. Fui médico. Nunca te esqueças disso. Saiu apressado batendo com a porta. Inês preferiu não fazer comentários. A Dona Joaninha encolheu os ombros resignada. - Ele é assim. Não ligue, menina. - Acho que lhe devo a vida. É horrível não me lembrar de nada. - Sossegue que a memória volta. Só precisa é de descansar. Já pedi à nossa empregada que lhe arranje umas

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roupas da filha dela que tem dezoito anos. Deve ser mais ou menos a sua idade. - Nem a minha idade sei. Che cosa è successo ai miei vestiti? A velha senhora apurou o ouvido. - Diga menina. - Desculpe senhora. Que aconteceu às minhas roupas? - Estavam rasgadas, completamente inutilizadas. Tenho-as guardadas para a menina ver. Agora descanse menina. Tente dormir mais um bocadinho. - Será difícil, senhora. Era difícil, mas as palavras da Dona Joaninha pareciam ter efeito de calmante. Enquanto ela se afastava, recostou-se e sentiu que o sono tomava conta de dela. Aconchegou-se melhor. Apesar de tudo sentia-se invadida por um estranho estado de tranquilidade. Esforçou a memória, mas não conseguiu encontrar nada do passado. Parecia que o seu cérebro tinha criado um bloqueio a más recordações, mas também as boas não existiam. Acabou por adormecer. Só mais tarde soube que não eram as palavras da Dona Joaninha, mas sim o chá que tinha sedativos. - Ai! Ela é tão linda. Foi esta frase que a voltou a acordar não sabendo quanto tempo depois. Aos pés da cama estava uma mulher gorda de aspecto rude, mas com um rasgado sorriso deixando ver dois dentes desalinhados. Vestia uma velha bata azul e usava um chapéu de pano puído pelo tempo. - Parece um anjo que aqui veio parar. Tome lá menina. São roupas pobres, mas estão lavadinhas. São da minha filha. Ela também é assim espirra-canivetes como todas as da idade dela.

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A mulher estendia-lhe um saco cheio de roupa. A todo custo tentou agradecer por entre a longa e complicada dissertação sobre uma caterva de temas. - Esta juventude não come para não cagar. Querem ser elegantes. - Grazie per i vestiti Signora. Conseguiu balbuciar. Ela fingiu não ouvir e continuou com o discurso. - No meu tempo queria comer e não havia. Era só fome e porrada. Agora estragam mais do que o que comem. Assim nem força têm para trabalhar. Mas ó menina! Você é tão linda. Experimente lá as roupas da minha Sofia. Vestiu umas jeans que lhe serviram muito bem e uma tshirt curta, mas um pouco larga. Calçou umas sapatilhas Adidas em óptimo estado. Enquanto se vestia pôde ver melhor as inúmeras contusões de mau aspecto que tinha um pouco pelo corpo todo. De facto tinha sido mal tratada. Felizmente não tinha nenhum osso partido nem nenhum ferimento preocupante. A sua benfeitora desviava os olhos desses danos enquanto desenfiava mais uma garrulice sobre as roupas modernas. - No meu tempo não havia nada disto. Havia de ser lindo andar aí de umbigo à mostra. É o que aprendem nas televisões. Apesar do seu estado e da sua situação, Inês, não pôde deixar de se rir. A Dona Joaninha benzia-se com o desfiado de observações. Certamente era uma mulher arreigada à religião. O seu sorriso levou a que as duas mulheres se regozijassem. A Dona Joaninha reagiu de pronto. - A menina já se ri!? Temos mulher. A outra mulher avançou abraçando-a de tal forma que quase a sufocou.

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- São as minhas doidices que a fazem rir. As orações da Dona Joaninha, a alegria e uns caldos daqui da Florinda vão pôr a menina rija como o aço. De repente voltou a tomar consciência da sua posição. Aqui estava numa casa de gente estranha. Gente amistosa, mas estranha. Uma velhota religiosa, um velho médico que desistiu da profissão e agora esta mulher carinhosa e extremamente divertida. Sabia que foi violentada, não sabia por quem. Também não sabia quem era, de onde vinha, quem era a sua família, quem eram os seus amigos, que fazia na vida, quantos anos tinha. Quando tentava recordar-se de algo sentia uma dor de cabeça e uma sensação de agonia e de medo. – Será que a minha memória vai voltar? Será que anda alguém à minha procura? Será que alguém deu pela minha falta? Quem? Onde? Quando? O quê? – Tudo isto a deprimia e acabou por deixar escapar um suspiro que não passou despercebido àquelas boas mulheres. - A menina não fique assim. Olhe, está um dia lindo, quer dar um passeio pela quinta? A minha filha mostra-lhe tudo. Dizendo isto e antes que a atordoada jovem pudesse replicar, foi à janela e chamou a filha. - Ó Sofia. Ó Sofia anda cá caraças. Deves ter os ouvidos atafulhados da cera que fazes. Nunca me ouves à primeira. Pouco depois apareceu a Sofia um pouco ofegante. - Credo mãe! É preciso essa gritaria? De certeza que a ouviram em Lisboa! Porque é que tem que ser assim? - Porque tu és “mula”. Só ouves o que te convém. Inês sorria com o espalhafato de ambas. Embora não soubesse quantos anos tinha viu logo que a Sofia era da sua idade. Com dezoito anos acabados de fazer, era uma bela

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rapariga de olhos amendoados, cabelos louros e lábios finos. Parecia impossível que aquela criatura elegante e delicada fosse filha da Florinda. Parecia ainda mais impossível que fosse filha do Alfredo, marido dela. Era um sujeito atarracado de feições rudes. Onde teria herdado ela aqueles cabelos de ouro fino? O Alfredo dizia que uma filha assim era uma dádiva dos céus, um anjo enviado por Deus. Florinda não achava nada disso, principalmente quando se recordava do alto, espadaúdo e louro dinamarquês que há dezanove anos atrás andou por aquelas paragens a estudar espécies raras da flora da região e a aproveitar os favores das fogosas raparigas da terra. Tudo aconteceu depressa e bem na adega da quinta. Já nesse tempo Alfredo e Florinda eram empregados da Quinta das Tulipas. Namoriscavam timidamente às escondidas. Menos timidamente quando ela ia ter com ele na calada da noite ao celeiro. Quando ficou grávida foi lavada em lágrimas contar ao bom Alfredo. Ele ergueu as mãos para o céu e casou com ela daí a quinze dias. Depois nasceu a Sofia, filha de ambos, apesar do ADN nórdico. A mesma Sofia que agora olhava aquela jovem confusa vinda de Itália, do espaço, ou sabe-se lá de onde. - Queres conhecer a quinta? Podes vir comigo. Eu mostro-te tudo. A voz de Sofia condizia com o resto. Era delicada e melodiosa. - Sì, se non fastidio. Sofia sorriu. Um sorriso fresco e belo que lhe desenhava duas covinhas no rosto. Florinda só agora reparava no idioma estrangeiro de Inês. - Ó menina, eu não sei que algaraviada é essa que a menina fala, mas a gente entende-se de qualquer maneira. O Carlitos nem diz nada e eu entendo. Sofia resolve atalhar.

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- Não incomodas nada. Vamos embora. Deixa lá as velhas, senão ainda ficas maluca. Dona Joaninha benzeu-se. Florinda espetou as mãos na cintura enquanto vociferava. - Olha lá! Ó minha reles. Por acaso esta velha não é a tua mãe que te pariu e te criou com todas as paparocas? Pelo menos vê lá se tens respeito pela dona Joaninha que é uma senhora de “dom” e de “inho”. Inês acabou de se vestir e olhou o espelho. Até a sua imagem era estranha para ela. Era também bonita, mas diferente de Sofia. Tinha a frescura natural da adolescência. O cabelo negro e liso abatia-se sobre os olhos cor de mel dando uma graça peculiar à testa alta reveladora de inteligência. O nariz empinado aliado a um sorriso safado dava-lhe um ar atrevido e encantador. As roupas de Sofia, apesar de um pouco largas, adornavam graciosamente a sua airosa figura. Sofia agarrou Inês por um braço e levou-a por um corredor comprido enquanto a Florinda continuava com o arejo. - São umas doidivanas, umas estoura-vergas, umas sem vergonhas. É o que aprendem nas televisões. Olhe lá. Ó Dona Joaninha, a rapariga é brasileira ou espanhola? - Porque dizes isso? - Ela fala assim a modos que a cantar! - Fala italiano, mas também fala português. Talvez seja emigrante ou filha de emigrantes. - Não andou para aí dar uma novela com brasileiros a falar italiano? Há-de ver que é tão portuguesa como nós. Bem digo eu. É o que aprendem nas televisões. Florinda praguejava contra a televisão, apesar de ser a única telespectadora daquela casa. Sofia preferia a Internet, Alfredo só conhecia três actividades: trabalhar, comer e dormir.

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Dona Joaninha passava o tempo em orações e Afonso tinha uma opinião particular sobre o assunto – a televisão é como os fios das marionetas. É com ela que os poderosos dominam a vontade do povo. Dizia ele quando lhe aconselhavam a ver um filme ou outro qualquer programa. Ao fundo do corredor havia uma porta que Sofia abriu com dificuldade. Saíram para uma varanda de granito e o espectáculo que se abriu aos seus olhos deixou Inês extasiada. A casa da quinta era um belo solar setecentista totalmente construído em granito. Uma enorme varanda coberta, com a guarda em cantaria dava para um frondoso jardim saído do mais belo postal ilustrado ou de um qualquer filme fantástico. Ficava no meio de uma grande quinta cheia de terrenos cultivados, árvores de fruto e um pequeno bosque. Ao fundo, junto à estrada e ao portão de entrada, havia um belo lago. Era assim a Quinta da Tulipas. - Não ligues à minha mãe. Ela é bota-de-elástico, mas é boa pessoa. - Non so come si paga tanti favori. - És italiana? - Ai. Desculpa. Também falo português, mas às vezes esqueço-me. Estava um belo dia de primavera. Desceram a escadaria granítica. Caminharam por entre labirintos de alecrim. O sol fazia brilhar algumas gotas de orvalho nas roseiras. - É verdade que não te lembras de nada!? - É vero, é horrível. Só sei que acordei nesta casa e que tenho o corpo dorido. De repente, ao darem a volta a um limoeiro, eis que surge um enorme cão com aspecto feroz. Inês encolheu-se toda com o pânico de tal aparição. Sofia tranquilizou-a enquanto dava ordens severas ao extraordinário animal.

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- Não tenhas medo. Isto é mais corpo do que alma. - É enorme e não me conhece. - Quieto Cometa. Ela é amiga. O corpulento animal pareceu entender. Ficou calmo, de olhos meigos e veio farejar as calças da assustada Inês. - Vês? É muito estúpido este Cometa. Só tem corpo. Inês, mais calma, acarinhou o animal que agradeceu com um uivo fininho. A um recanto do jardim havia uma fonte decorada com um painel de azulejo representando Adão e Eva no paraíso. Era uma imagem digna daquele lugar edílico. Foi aí, num banco de pedra, que as duas jovens se sentaram conversando sobre banalidades. O Cometa deitou-se junto delas emitindo pequenos ganidos. O ar estava cheio de sons melódicos: pardais, abelhas, um melro, grilos, interpretavam um maravilhoso concerto. Inês admirava a bela fonte cuja água era pura, leve e fresca. - Si può bere quest’ acqua? - Quê!? - Desculpa. Podemos beber desta água? - Esta água é muito boa. Dizem que faz bem aos ossos. - Era bom que fosse boa para a memória. Bem precisava. - Tu vais recuperar. Tem fé. Passaram por um portão metálico já meio consumido pelo tempo. Em frente estendia-se uma enorme vinha. A seguir erguiam-se pinheiros mansos, o bosque e lá ao longe avistavase a Serra da Estrela ainda salpicada de branco apesar de já estarmos em Abril. - Algum dia foste à serra? - Non lo so. Non mi ricordo. - Desculpa. Estava-me a esquecer da tua amnésia.

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Ao fundo da quinta, entre junco e salgueiros, avistavase o lago que era alimentado pelas inúmeras nascentes da região. - Aquele lago… - Sim. Foi ali que o Carlitos te encontrou. Repara que a seguir é a estrada. Alguém te abandonou ali. - Não me lembro. Não se lembrava, mas a imagem do lago fê-la estremecer de medo. Parecia que alguma recordação medonha tentava furar o bloqueio que o seu cérebro criou. - Acho giro o teu sotaque italiano. Deves ter dupla nacionalidade. Nasceste em Portugal ou na Itália? - Não sei. Não sei nada de mim. - Quando recuperares a memória vais ter muito que contar. Ao longe ouviu-se o som estridente da voz da Florinda. - É meninas. O almoço está na mesa. Já chega de moina por hoje. Voltaram à casa das Tulipas e foram contempladas por um sumptuoso almoço: borrego assado no forno. Inês e Sofia passaram o resto da tarde em brincadeiras. Correram pela quinta, apanharam flores, encontraram um ninho de melro e Inês ficou a conhecer o Caramelo: um gato amarelo que fez as delicias das raparigas com as suas brincadeiras. Rebolava-se no chão, subia às árvores e perseguia as galinhas pondo o galinheiro em absoluto estado de confusão. Os gatos são seres fascinantes. Coabitam connosco há milénios, não nos reconhecem como donos e levam-nos a tratar deles em troca de quase nada. Foram ter com o pai de Sofia que cavava um canteiro. Era um homem triste que se limitou a acenar e voltou para a sua lide de amanhar a terra.

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- O que a minha mãe fala a mais, fala o meu pai a menos. - Parece-me ser boa pessoa e a tua mãe é muito divertida. - Vivem nesta quinta desde sempre. O meu pai trata da cultivação e a minha mãe da cozinha. Somos pobres. Eu espero bater asas e sair daqui para fora o mais depressa possível. - És estudante? - Sim. Estou a acabar o 12.º ano. Para o ano vou para a universidade. E tu? Também deves ser estudante. - No lo so. - Desculpa. - Já te disse para não estares sempre a pedir desculpa. Hoje não é dia de aulas? - Não. Estamos de férias. São as férias da Páscoa. Toda a tarde, ninguém viu o Senhor Afonso. A Dona Joaninha confidenciou a Inês que ele passava assim muitos dias fechado no escritório. Era verdade. Os dias de Afonso eram tristes e solitários. Mesmo quando não se isolava no escritório vinha para a varanda, sentava-se numa cadeira de baloiço e ali passava a tarde envolto em sombrios pensamentos. A única companhia que tolerava era o Cometa que se deitava a seus pés assumindo o mesmo ar melancólico. As pessoas habituaram-se a não o incomodar. Quando isso acontecia, ele reagia mal. Respondia de forma grosseira e ficava de mau humor. Quando a Sofia era pequena ainda era costume sentá-la nos joelhos e contar-lhe histórias. Ela chamava-o avô. Ele não gostava e corrigia-a. - Eu sou teu padrinho, não sou teu avô.

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Sofia ficava a olhar um pouco triste. Gostava daquele homem rude. Gostava de ser sua neta, mas ele não queria que assim fosse. Contentava-se em chamar avó à Dona Joaninha. Inês chegou à noite cansada. Deitou-se na cama que lhe destinaram e rezou para que a sua memória voltasse. Depressa adormeceu embalada pelo silêncio da quinta. Amanhã seria outro dia cheio de dúvidas e de interrogações.

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Capitulo 2 Ainda não eram nove horas da manhã quando o potente BMW entrou pelo portão da Quinta das Tulipas, rolou pelo caminho de terra batida e parou junto à casa. De dentro da viatura saiu um homem na casa dos cinquenta anos. Saiu do carro mirando a bela casa. Retirou os óculos escuros e sorriu para a varanda de onde Afonso lhe acenava. - Martinho! Eu sabia que tu vinhas. Usava um fato bege e tinha aspecto de homem duro apesar da elegância de gestos e da forma de vestir. Subiu as escadas com a mão estendida. - Meu caro Afonso. Não passa um ano por ti. - Desculpa chatear-te ao sábado, mas trata-se de uma situação delicada. - Não chateias nada. É sempre bom vir à Quinta da Tulipas. Além disso somos amigos. - Ficas para almoçar? - Claro. Eu podia lá perder os cozinhados da Florinda. - Assim temos tempo para conversar. Inês estava na varanda esperando pela Sofia quando os dois homens passaram por ela. Martinho olhou-a demoradamente, o que a deixou naturalmente inquieta e intimidada. Afonso pigarreou. - Inês, diz à minha irmã que eu tenho muito que falar com o Doutor Martinho. Não quero ser incomodado por ninguém. - Esteja descansado Senhor Afonso. - Tu também não vás para longe porque também temos que falar. Depois chamo-te. - Vá biene signor dottore.

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Arriscou chamar Doutor ao seu anfitrião. Foi um desafio àquele mistério dele não o querer ser. Eles seguiram em frente, mas Afonso parou de repente olhando para trás. Falou como que escolhendo as palavras. - Inês… nunca mais… me chames… Doutor. - Mi scusi. Seguiram caminho e desapareceram pela porta que dá acesso ao escritório, não sem antes deixarem escapar uma conversa que a deixou a pensar. - Afonso! Ouvi bem? Chamaste-lhe “Inês”!? - Foi o nome que lhe dei enquanto não se lembra do dela. - Com tantos nomes possíveis escolheste Inês!? - O que é que tem? É um nome como outro qualquer. - Não é bem assim, Afonso. Ambos sabemos que não é bem assim. Inês ficou encostada à coluna da varanda com cara de pato. Que raio tinha o seu novo nome? Recordou a reacção da Dona Joaninha quando o irmão lhe aplicou esse nome pela primeira vez. Talvez no passado tenha havido uma Inês de má ou de boa memória. Certo é que aquele nome causava estranheza a todos. Era um mistério que gostava de desvendar embora não se atrevesse a questionar. Então aquele era o tal Martinho. O tal amigo que vinha ajudar. Mas ajudar como? Correu a dar o recado. Entrou na cozinha. A Florinda preparava o pequeno-almoço. A Dona Joaninha acendia uma vela a um santo que havia num pequeno oratório junto à lareira. O Caramelo ronronava junto ao lume. - Dona Joaninha. Tenho um recado do Senhor Afonso. Ele diz que vai estar com o tal amigo chamado Martinho no escritório e não quer ser incomodado.

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- Está cá o Doutor Martinho!? Hoje ao sábado!? Talvez já haja informações sobre ti. Ele é da polícia. Inês estremeceu. O senhor Afonso tinha chamado a polícia!? A sua inquietação não passou despercebida à boa senhora. - O Doutor Martinho é um velho amigo da família. É inspector da Polícia Judiciária e é a pessoa indicada para te ajudar. - Será que anda alguém à minha procura? - Certamente que sim, menina. É muito jovem, deve ter pais, amigas, colegas de escola e até mesmo um namorado. De certeza que já deram pela sua falta. - Não sei. Não me lembro di niente. - Não se apoquente. Vamos comer alguma coisa. A Florinda pôs a mesa com pão, manteiga, queijo, marmelada, fruta, café e leite. Cuidava de empurrar tudo para a desditosa jovem. - Coma menina. Olhe que o corpo não tem raízes na terra. Não tenha medo de engordar. Olhe que gordura é formosura. Eu fui sempre bem cheiinha e o meu Alfredo gostou de mim na mesma. - O seu marido não vem comer? - Esse, ainda não havia sol, já estava a andar para o campo. Lá é que ele gosta de petiscar. Tenho que arrancar o cu da cama cedo por causa do farnel para ele. Não é homem que se dê com ninguém. É um bicho-do-mato que ali anda. Tirando o domingo de Páscoa, nunca põe os pés nesta casa. Por falar nisso, já é para a semana. Temos muitos bolos para fazer. Será que o Padre Alberto ainda se atreve a dar a cruz a beijar? - Deus dá-lhe forças. - Ó Dona Joaninha olhe que Deus também há-de ter mais que fazer.

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A boa senhora benzeu-se em jeito de penitência pelas palavras de Florinda. Sofia chegou nesse momento com um enorme saco de roupas para Inês. A mãe aproveitou para estender o repertório sobre a alimentação com intenção de admoestar a filha. - A menina alimente-se. Não queira ser como essa minha filha que não come nada de jeito. É o que aprendem nas televisões a ver aquelas pindéricas das passarelas. Sofia acolhia os comentários da mãe com um sorriso e um encolher de ombros muito característico. A Dona Joaninha benzia-se repetidamente. Apesar da idade e da estrema religiosidade era muito mais tolerante e aberta a novas ideias, comportamentos e concepções do mundo moderno. Inês continuava em silêncio. Alem de não perceber nada daquela história do padre e da cruz para beijar, continuava preocupada e ansiosa por saber o que se passava no escritório do Doutor Afonso. Ou melhor, do Senhor Afonso, já que ele não quer o tratamento de “Doutor”. Sentia uma forte vontade de ir bater àquela porta, mas considerava indelicado tal procedimento. Era preciso pensar no futuro, visto que o presente é confuso e o passado estava, por enquanto, apagado. - Será que a minha memória não volta, Dona Joaninha? - Claro que sim menina. O Afonso diz que é só uma mazela do estado de choque em que a menina esteve. - Tenham paciência comigo. Espero vir a retribuir-vos tudo isto. - Não pense nisso. Esteja à vontade. Foi então que a Sofia teve uma saída que mesmo a brincar lhe deu uma ideia. - Se levares uma pancada na cabeça ficas logo boa. A Dona Joaninha benzeu-se horrorizada. - Credo Sofia! Isso só acontece nos filmes.

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Florinda não podia deixar escapar a deixa. - Pois. É o que aprendem nas televisões. Inês pensou que talvez Sofia tivesse alguma razão. Não com a ideia da pancada na cabeça, mas se fosse confrontada com algo do passado, talvez a mente despertasse. Agora o que mais a preocupava era mesmo o que se passava atrás da porta do escritório. Será que a conversa iria durar muito? Que notícias teriam para ela? Em que pilares estava assente a sua vida? Teria uma família e um bando de amigos a percorrer Seca e Meca à sua procura? Será que tinha um namorado aflito com o seu desaparecimento? Ou será que era uma solitária abandonada que levou sumiço e ninguém deu conta? Terminou o pequeno-almoço, fez uma festa ao Caramelo e foi com a Sofia ao seu quarto ver o guarda-roupa que ela lhe emprestou. Sofia pensou em tudo. Roupa interior, tshirt’s, calças, camisolas, dois vestidos e até um fabuloso conjunto de top e mini-saia de cor roxa, tanto do agrado de Inês e que ela se apressou a vestir. Sofia nem sequer se esqueceu dos pensos para aqueles dias. - És uma querida. Parece impossível que não tenhas um namorado. Será que os homens andam cegos!? - Bem, andam dois atrás de mim, mas não gosto de nenhum deles. - Porquê? São assim tão feios? - O Chico é bom rapaz, mas só toma banho de quinze em quinze dias. O Nuno é burro como uma porta. Uma vez disse-lhe que nas cesarianas os bebés são tirados pelas costas e ele acreditou. - Nem acredito. Que burro! - Ainda há melhor. Ele estava convencido de que tuberculose é uma doença provocada pelos tubérculos. Chegou

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a andar uns tempos sem comer batatas, nem nabos, nem cenouras. Foi um fartote de rir para as duas amigas. Entre elas estava a despertar uma intensa amizade. Sofia, a pedido de Inês, levou-a a conhecer o Carlitos. Ela queria saber quem era o herói que a salvou sabe-se lá de quê. Para irem para a rua passaram junto à porta do escritório. Inês abrandou o passo e tentou ouvir alguma coisa. A porta era sólida, não distinguiu uma única palavra. A Sofia apercebeu-se. - Não estejas assim. Eles têm que pôr a conversa em dia e depois devem dizer alguma coisa. - Estou ansiosa. - Sim, mas agora vamos lá ver o Carlitos. Encontram-no a tratar das galinhas, dos patos e dos perus. Era um jovem de vinte e cinco anos, mas com a candura de uma criança. Cabelos encaracolados, olhos expressivos e sempre um sorriso nos lábios. Nasceu surdo-mudo. - Vive feliz no seu mundo de silêncio. Dizia a Dona Joaninha. - Pelo menos não ouve as baboseiras do mundo. Rematava a Florinda. Quando viu as duas raparigas, ficou visivelmente intimidado, não por Sofia que conhecia desde o colo, mas por aquela nova moradora que tinha encontrado perto da morte à beira do lago. As galinhas esvoaçavam à volta dele. A Sofia explicou, por gestos, que Inês estava bem e que estava muito agradecida. Olhou para ela sorrindo. Inês não sabia que era possível haver tanta alegria espelhada num olhar. Estendeu-lhe a mão. Ele pegou-lhe com uma delicadeza surpreendente. Ela depositou-lhe um beijo no rosto. Ele ficou um pouco embaraçado, mas reagiu prontamente. Foi com grande surpresa que o viram correr até um canteiro de roseiras e colher uma

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bela rosa de cor púrpura. Entregou-a a Inês com um largo sorriso. Ela aceitou, colocou-a ao peito, e voltou a ver a esplendorosa imagem da felicidade estampada naqueles olhos verdes. - Apesar de não ter memória acredito que foi o mais belo presente que recebi em toda a minha vida. Como é que é possível que esta quinta seja só habitada por gente boa? Terei morrido e estarei no céu? Carlitos ficou comovido. Tinha percebido as palavras de Inês. Sabia ler nos lábios muito bem. Na adolescência foi internado numa escola paga por Afonso. Também conhecia a fundo a linguagem gestual. Inês estava ainda a admirar a rosa do Carlitos quando ouviu a voz estridente da Florinda. - Ó menina Inês! Olhou para cima. Lá estava a Florinda debruçada na varanda. - Ó menina Inês venha cá que o Doutor Martinho quer falar consigo. Olhou para a Sofia com o coração aos pulos. Ela sorriu. - Vai lá parva. Estás à espera de quê? Correu escadas acima. Que revelações estariam à sua espera? Em breve saberia. Inês entrou no escritório. O ar estava pesado com o fumo dos charutos que os dois homens fumavam. Era uma sala não muito grande, mas luxuosamente mobilada. - Entra miúda. Afonso estava sentado atrás de uma pesada secretária atafulhada de papéis. A organização não era seu apanágio e também não deixava que ninguém mexesse nas suas coisas, nem mesmo para arrumar.

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- Vens muito linda! Fica-te muito bem a rosa ao peito. - Foi o Carlitos que ma ofereceu. - O Carlitos!? Esse rapaz anda a ficar atiradiço! Inês ficou sem jeito. O Doutor Martinho estava enterrado num sofá. Ergueu-se um pouco e pigarreou. - A menina Inês importa-se de responder a umas perguntas? - Espera Martinho. Faltam as apresentações. Inês, este é o Doutor Martinho, inspector da Polícia Judiciária. - Prazer. Sentou-se numa cadeira de verga. Estava um pouco acanhada por estar em frente a um polícia. Ele fitou-a como que a tentar ler os seus pensamentos. - A menina Inês é italiana? - Não sei. Parece que falo bem as duas línguas. - Como se sente fisicamente? - Um pouco dorida, mas já estou bastante melhor. - E psicologicamente? - Muito confusa. Não sei quem sou nem de onde venho. Sei que fui agredida, mas não sei por quem. É horrível Senhor Doutor. - Não sente alguma ansiedade? Algum desejo em particular? - Só o desejo e a ânsia de achar respostas para a minha situação. - Não me referia a isso. - Não entendo. - Por exemplo: Não tem vontade de fumar um cigarro? - Não. Seria incapaz. Odeio fumo. Os dois homens apressaram-se a apagar os charutos. Pouco adiantou visto que a sala já estava alagada. - E uma cerveja ou uma vodka? E um charro?

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- Que horror! Por quem me toma? Afonso deu uma palmada na mesa e levantou a voz. - Martinho! Que raio de conversa é essa!? Pedi-te para seres brando com a menina. Pensas que estás a interrogar algum criminoso? - Desculpem os dois, mas é necessário saber tanto quanto possível. Todos os pormenores são importantes. - Não vês que a menina está sem memória? - Sim, mas sabes bem que as dependências físicas e psicológicas como sejam os vícios não se perdem quando se perde a memória. - Pode continuar. Estou disposta a colaborar tanto quanto possível para resolver a minha situação, mas não me parece que seja uma drogada ou uma bêbeda. - Menina, agora preciso de lhe fazer uma pergunta um pouco embaraçosa. - Esteja à vontade. - Apesar de estar sem memória acha que foi violada? - Não. Isso não. Eu sei que não, eu sinto que não. - Então o móbil do crime deve ter sido o furto ou o tráfico de mulheres para a prostituição em Espanha. Andamos no encalço de uma rede dessas. Ainda assim creio que foi mais um golpe de Multibanco. A menina deve ter resistido ou reconhecido alguém e eles tentaram-se livrar de si. Afonso fez um gesto de impaciência. - Ó Martinho, não achas que estás a atirar palpites sem qualquer consistência? - Estou apenas a pensar alto e analisar todas as hipóteses. Menina, só preciso de mais uma coisa. Mostre-me os seus braços. Afonso protestou.

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- Lá estás tu com a mania da droga. És mesmo obcecado em drogados. Para ti todos os jovens são drogados. Inês mostrou os braços a Martinho. Ele analisou-os com todo o cuidado. Por fim declarou. - Estão limpos. Estava enganado e preciso de pedir desculpa a ambos. Afonso fez um gesto de enfado. - Que esperavas encontrar? - Afonso, a verdade é que esperava chegar aqui, fazer uma detenção e resolver um caso. - És capaz de explicar melhor? - Quando me telefonaste a contar o sucedido com a miúda, pensei que se tratava de uma traficante que persigo há muito. Ela também desapareceu e pensei que viesse aqui parar. Inês ficou um pouco chocada. Pensamentos diversos atormentavam-lhe a alma. Era a sua vez de reagir e de começar a fazer perguntas. - Doutor Martinho, como sabe que não sou eu essa criminosa? - A descrição física que tenho dela é bastante coincidente com seu aspecto, à excepção da cor dos cabelos, mas isso é fácil de modificar. - Então!? - Ela fuma convulsivamente, bebe bebidas fortes e tem os braços na última miséria das agulhas. - E como sabe que desapareceu? Se anda à procura dela, não sabe onde ela possa estar. - Sabíamos onde ela morava. Fizemos uma rusga ao bairro dela e só encontrámos um apartamento abandonado à pressa. Chegámos tarde. Estamos a vigiar de dia e noite, mas não há sinal. - Que vai fazer comigo?

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- É melhor continuar aqui em casa do Afonso. Eu vou investigar e creio que em breve teremos novidades. Agora pode-se retirar se assim o desejar. Inês agradeceu e ia a sair quando o Doutor Martinho a voltou a chamar. - A menina já esteve em Itália? - Não faço ideia, mas parece que falo como eles. Se não estive em Itália já estive com italianos. A não ser que seja alguma doença rara nas cordas vocais. Talvez uma “italianite aguda”. Os dois homens entreolharam-se e soltaram uma estrídula gargalhada. Afonso atirou com um lápis a Martinho. - Toma lá inspector e aponta essa. É para veres que nesta casa só há gente inteligente. Até mesmo quando caem do ninho. Martinho, ainda a rir, despediu Inês. - Pronto menina. Vá-se embora que já não quero mais nada consigo. Ela saiu e ao bater a porta, percebeu que os dois homens continuariam a falar dela. Bem gostaria de os ouvir, mas isso seria má educação. Será que eles saberiam mais alguma coisa sobre ela? De que ficariam a falar? – Será que pensam que eu sou a tal traficante? O pior de tudo é que podem ter razão. Sei lá quem sou. – Estes pensamentos aperreavamna. Começava a ter medo da realidade. Da sua própria realidade. Pressentia que aqueles dois sabiam algo mais. Teve vontade de voltar atrás e fazer perguntas. Não teve coragem de ser indelicada. Tranquilizou-se um pouco quando viu a Sofia que a esperava com impaciência sentada na guarda da varanda. - Então? Que novidades tens? - Nada de especial. O Doutor Martinho vai investigar. - Ânimo, amiga. Tudo se vai resolver.

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- Só espero ter posses para pagar tudo isto. - Estás em casa de gente abnegada. Até se ofendem se alguma vez quiseres pagar seja o que for. Quanto às tuas posses… a julgar pelas tuas roupas! - As minhas roupas!? É vero. Esqueci-me completamente. - Estão um bocado rotas, mas anda comigo que eu mostro-te. Foram até uma sala de costura. Lá estavam num saco plástico: umas calças “Levi’s”, um top “Benetton” e roupa interior “Pierre Cardin”. - Vês amiga. Tu só vestes altas marcas. - Está tudo roto e sujo. - A minha mãe quis lavar, a dona Joaninha quis deitar fora, eu não deixei. - Porquê? Já nada presta. - Pode servir para a polícia. - Bem pensado, minha jovem. Vinha justamente à procura dessas roupas. As duas amigas assustaram-se com a voz que irrompeu na sala sem qualquer aviso Era o Doutor Martinho que entrava na sala. Apressou-se a juntar a roupa e guardou-a numa caixa. Voltou-se para Inês, pensativo. - Já agora, menina Inês. Quero dois ou três cabelos seus. - É para recordação? Gracejou. - O nosso laboratório pode chegar a importantes conclusões. Chegou-se a ela e com um rápido gesto arrancou-lhe dois cabelos. Teve um reflexo de dor, apesar da delicadeza da operação.

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- Magoei-a? - Não Senhor Doutor. - Bem menina. Fique nesta casa até eu investigar a fundo. Espero dar-lhe novidades em breve. - Fico ansiosa. Felizmente tenho a boa companhia da Sofia e o carinho de todos. Despediu-se e foi-se embora. Pouco depois ouvia-se o potente motor do BMW a arrancar levando o homem que deixava esperança de descobrir quem ela era. Estranha missão de um polícia habituado a procurar pessoas desaparecidas. Agora era ao contrário; tinha uma aparecida e queria descobrir de onde é que desapareceu. Agora tinha fé que em breve iria encontrar o seu passado sumido do seu miolo cinzento e confuso.

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Capitulo 3 Era domingo. Domingo de ramos. Dia de todos irem à missa, até mesmo os menos crentes. Assim era a tradição para a maior parte do povo, mas naquela casa era a Dona Joaninha que rezava por todos. Inês acordou com o som leve de algo ou alguém a mexer na porta. Levantou-se, vestiu-se sempre à escuta. Não ouviu mais nada. Quem teria mexido na porta? Seria o Caramelo? Os gatos têm a mania de afiar as unhas em tudo. Abriu a porta e logo percebeu. Tinha uma bela rosa vermelha colada com fita adesiva no aro da porta. Só podia ser o Carlitos. – Que querido. Pensou. Colocou-a no cabelo. Ficoulhe a matar. Depois de uma miradela ao espelho foi ter à cozinha onde a Florinda atafulhava a mesa com coisas deliciosas para o pequeno-almoço. O Senhor Afonso vestia o seu traje domingueiro: um fato azul-escuro, uma camisa branca e uma gravata em tons púrpura. A Dona Joaninha usava um alegre vestido bege. Só a Florinda mantinha a habitual bata florida. A Sofia ainda não tinha chegado. Era costume a Sofia chegar atrasada, o que provocava ataques de fúria na sua mãe. - É um cu de sono. Está até às tantas a matraquilhar no computador, na “interléte” ou lá o que é. De manhã é sempre o mesmo degredo. E então ao domingo pior ainda. Nem vai a uma missa nem nada. Nem hoje que é domingo de ramos. Afonso mostrava-se surpreendentemente bem disposto. - Ó Florinda deixa lá a pequena. Tomara-mos nós ter a idade dela e desta menina aqui. - Nem sei quantos anos tenho, mas se a Sofia tem dezoito, eu também não devo andar longe. Afonso passou-lhe a mão na cabeça. - Em breve vai contar-nos a sua história. Uma história bastante agradável. Tenho a certeza disso.

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Por vezes, Inês ficava pensativa. Ficava com a sensação de que o Senhor Afonso sabia algo mais sobre ela, mas não se atrevia a perguntar. A Dona Joaninha acabou o café, pegou num livro e num terço, exclamando. - São horas de ir. A missa começa daqui a meia hora. Os vossos ramos estão na varanda. - A senhora vai à missa? - A menina não costuma ir? - Não sei. Não me lembro. A Florinda aproveitou a deixa para tecer mais uma das suas considerações sobre a juventude. - Esta canalhada não acredita em nada. Não temem a Deus. No outro dia a minha filha até disse que nós somos descendentes dos macacos! Pode lá ser uma coisa dessas!? É o que aprendem nas televisões. Afonso também terminou a refeição e exibiu as chaves do carro. - A menina se quiser ir à missa pode acompanhar a minha irmã, se não quiser pode ir comigo à cidade. Eu também não estou para aturar padres. - Sinceramente preferia passear e espairecer. Isto é se a Dona Joaninha não se importar. A Dona Joana benzeu-se e encolheu os ombros em tom de resignação. - Então vamos? - E a Sofia? - perguntou Inês. A Florinda virou a cabeça enquanto lavava a loiça. - Essa, ao Domingo, não tira os cornos da cama enquanto o sol não virar. Afonso voltou a defender a rapariga ausente. - Sabes uma coisa Florinda? - Diga Senhor Afonso!

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- A tua filha tem razão em, pelo menos, uma coisa. - Em quê? - No nosso parentesco com os macacos. Ela tem razão. Nós é que somos presunçosos demais para o admitir. - Ai Senhor Afonso nem diga uma coisa dessas. Olhe que Deus até o pode castigar. Dona Joaninha benzeu-se repetidamente até ao fundo das escadas empunhando o seu ramo de loureiro. Ficaram os outros ramos na varanda. Seria um para o Doutor Afonso, mesmo sabendo-se que este há muitos anos que não queria nada com a igreja. Florinda ficaria a tratar do almoço, Alfredo nunca foi à missa e a Sofia preferia ficar entre lençóis. Tal como já disse, cabia a Dona Joaninha o papel de rezar por todos. Isso fazia ela com tal fervor que certamente todos seriam salvos no dia do juízo final. Do meio do jardim, Carlitos acenou a Inês. Esta mostrou-lhe a rosa no cabelo e ele sorriu com toda a felicidade do mundo espelhada naquele cândido sorriso. Também ele, apesar de temente a Deus, não tinha hábitos eucarísticos. Seguiram pela estrada fora. Afonso ao volante conduzindo com mestria. A sua idade avançada não lhe tirou as faculdades de bom condutor. A Dona Joana ao lado empunhava o terço enquanto murmurava palavras imperceptíveis. Certamente orações. Inês aconchegava-se no espaçoso banco traseiro do antigo Volvo. Uma verdadeira peça de colecção. Chegaram à aldeia onde os sinos dobravam anunciando a missa dominical. Muita gente, de verde ramo na mão e exibindo os seus melhores trajes, dirigia-se para o velho edifício de traça manuelina, mas com visíveis actualizações, que era a Igreja Matriz. Dona Joana saiu do carro e Inês passou para o banco da frente. Seguiram em direcção à cidade sede do concelho deixando a aldeia para trás.

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Lagos da Beira era uma típica aldeia beirã. No centro ainda dominavam as casas em granito, apesar de algumas reconstruções de péssimo gosto. Mais para a periferia destacavam-se modernas vivendas ao estilo francês importado pelos numerosos emigrantes que daqui saíram nos anos sessenta em busca de vida melhor. Afonso notou o interesse com que Inês observava e aproveitou para demonstrar os seus vastos conhecimentos acumulados nas horas em que se fecha na biblioteca. - Esta aldeia é muito antiga. Esta região já era habitada na pré-história. Existem vestígios desses tempos. - Podiam ser atracção turística. Afonso fez um gesto de enfado. - Está tudo abandonado. Era preciso fazer um sério trabalho de inventariação e classificação, mas O IPPAR não quer saber de nada. - Quem é esse? - Esse quem? O IPPAR!? É o Instituto do Património Arquitectónico! - Ah! É um instituto!? Pensei que era um gajo. Riram ambos com gosto. Foi a primeira vez que Inês viu rir o Senhor Afonso. Gostou de ver. Aquele homem, duro e com sintomas de ter um passado marcado de forma negativa, precisava de se rir e de enfrentar a vida com prazer. Ele quase se envergonhou da gargalhada e voltou ao tom doutoral. - Isto foi uma importante vila. O seu nome aparece pela primeira vez nas Inquirições de D. Afonso III. Chamava-se então São João de Lagos. Pertenceu à Real Casa do Infantado e teve foral manuelino em 1514. Era sede de um vasto concelho só extinto em 1843. - Que era lá isso da casa do infantado?

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- Foi D. João IV que criou. Era um enorme conjunto de bens e propriedades para os segundos filhos que não tinham direito a herdar a coroa. - Uma espécie de prémio de consolação para quem tinha o azar de não ser o mais velho? - Sim. Era isso mesmo. - Extinguiram o concelho!? E depois? - Passou a ser mais uma freguesia do concelho de Oliveira do Hospital e aconteceu o que acontece a todas as aldeias. As pessoas emigraram Os campos, de uma agricultura outrora rentável, foram abandonados e só ficaram os velhotes como eu. Afonso falava agora com alguma nostalgia. Inês preferiu ficar em silêncio. O carro avançava por uma estrada nova rasgada entre pinhais e olivais. Não muito longe avistavam-se os primeiros prédios da cidade. Oliveira do Hospital era uma cidade pequena, mas em franca expansão. O centro histórico mantinha a traça de vila pictórica e típica do interior. Na periferia cresciam blocos de modernos apartamentos um tanto ou quanto desordenados. É sempre assim; a febre de construir e vender ou alugar sobrepõe-se sempre ao correcto ordenamento urbano e à preservação dos espaços verdes. Afonso voltou a derramar a sua imensa cultura. - Esta cidade já existia no início da nacionalidade. A rainha Dona Teresa doou-a aos Cavaleiros da Ordem de S. João de Jerusalém, também chamada a Ordem dos Hospitaleiros. - O senhor sabe tudo! - Ninguém sabe tudo e não há maior ignorante do que aquele que pensa que sim.

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Passaram por uma rotunda adornada com uma imponente escultura moderna. Um monumento ao empresário. Inês achou curioso. - Aqui vêem os empresários como heróis! - Sim. É verdade que é graças à tenacidade e sacrifício de muitos deles que isto tem evoluído, mas os tempos são outros. A indústria anda na corda bamba e o futuro não se antevê muito risonho. Mais à frente havia outra rotunda. No centro tinha uma estátua de um cavaleiro medieval cujo cavalo erguia as patas dianteiras. - Quem é o do cavalo? - Domingos Joanes, o Cavaleiro de Oliveira. - Um herói? - Conta-se que era um simples ferreiro. Um dia veio ter com ele um agricultor com metal para ele lhe fazer um arado. Domingos Joanes viu que aquilo era ouro puro e, aproveitandose da ignorância do homem, pediu que lhe trouxesse todo o metal que tivesse igual àquele. Assim aconteceu e o ferreiro partiu para França onde fez grande fortuna. Participou em batalhas e voltou aqui como cavaleiro. Constituiu família e construiu para si e para a sua esposa uma capela que lhe serviu de túmulo. A famosa Capela dos Ferreiros. - Espertinho esse ferreiro. Coitado do agricultor. - Toda a vida houve espertos a viver à custa dos idiotas. Ainda hoje é assim. Estacionaram junto ao edifício da Câmara Municipal e entraram no Café Portugal. Café considerado por muitos como uma espécie de sala de visitas da cidade. Afonso pediu um vermute. Inês bebeu uma água. - Devias apanhar alguns vícios. Um vermute não faz mal a ninguém.

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- Ó Senhor Afonso, tenho medo dessas coisas. Se soubesse que uma bebedeira me fazia recuperar a memória… - Sabe-se lá. - O Senhor Afonso devia saber. Tem conhecimentos para isso. Inês aventurou-se a falar naquele tabu. Afonso ficou de sobrolho carregado. Duas vezes abriu a boca e duas vezes a fechou. Faltavam-lhe as palavras. Inês arrependeu-se da sua afoiteza. - Desculpe Senhor Afonso. Fui uma atrevida, mas… - Mas o quê? - São certos mistérios que me deixam apreensiva. - Que mistérios!? - O Senhor Afonso não se zanga comigo? Afonso acabou o vermute e mandou vir outro. Sentia que era tempo de falar em algo que não queria nem pensar. - Desembucha miúda. - É que acho estranho o Senhor Afonso abandonar a carreira de médico e também não percebo porque toda a gente se espanta com o nome de “Inês” que o senhor me atribuiu. Afonso passou as mãos pelo rosto como que a querer apagar os olhos, o nariz e a boca. Cravou o seu olhar penetrante em Inês. Esta ficou um pouco aflita e profundamente arrependida do seu atrevimento em relação ao seu benfeitor. Afonso tranquilizou-a com uma palmadinha no ombro. - Tens razão miúda. É tempo de saberes um pouco da minha desgraçada vida. Até talvez me faça bem falar. - O senhor desculpe-me. Se não quiser falar, não fale. Eu é que sou muito curiosa. - Vou-te contar um triste episódio, mas não aqui. Está um dia radioso demais para estarmos aqui fechados.

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Afonso pagou a despesa deixando uma choruda gorjeta. Saíram ambos para a rua em direcção a um frondoso jardim. Ele caminhava com um braço sobre os ombros da jovem num gesto de carinho paternalista. Sentaram-se num banco de madeira carcomido pelo tempo debaixo de um frondoso cedro. Afonso suspirou. - Senhor Afonso. O senhor não tem qualquer obrigação de me falar da sua vida. Mais uma vez peço desculpa por ser abelhuda. - Inês, como penso que já sabes, sou viúvo. - E é isso que faz do senhor um homem tão triste? Há quanto tempo aconteceu? - Não é o tempo, mas sim a forma como aconteceu. Agora deixa-me contar a minha história sem interromperes. - Se assim deseja, sou toda ouvidos. - O meu pai era médico e o meu avô também. Desde jovem que nunca tive dúvidas de que também eu seria médico. Era esse o desejo deles e eu, apesar de não sentir grande vocação, resignei-me e segui medicina. Formei-me na Universidade de Coimbra. Apesar de não ser essa a minha tendência, consegui as melhores notas do curso. Foi lá, nesses tempos de estudante, que conheci o amor da minha vida. Ela era estudante de enfermagem. Era linda. Era a mais bela rapariga daquela escola. Cabelos negros, olhos lindos cor de mel, nariz arrebitado como o teu e um sorriso meigo e arrebatador. Afonso ficou por momentos contemplando o rosto sereno de Inês. - Foi amor à primeira vista Senhor Afonso? - Sim. Das primeiras e tímidas palavras ao namoro firme foi um pequeno passo. Eu era o mais feliz estudante de Coimbra. Claro que nem tudo corria bem. Ela era originária de

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famílias humildes e o meu pai, alem de determinar o meu curso, também já me tinha planeado o casamento com uma prima afastada, única herdeira de grandes fortunas para juntar às nossas. Tivemos grandes discussões. Cheguei a ameaçar sair de casa. Valeu-me o apoio da minha mãe e da minha irmã Joana. Ele acabou por ceder e assim que terminámos o curso casámos com toda a pompa e circunstância. - Um final feliz Senhor Afonso. - Um principio feliz. O final ainda vem longe. Ao fim de um ano nasceu o nosso filho. Um rapaz forte e saudável. Éramos um casal feliz. Até o meu pai acabou por se render aos encantos da minha querida esposa. Estava o meu filho a fazer vinte anos quando ela começou a sentir os primeiros sintomas da terrível doença. Tudo começou com dores de cabeça pela manhã. Depois vieram as náuseas, as tonturas e os problemas de memória. Facilmente lhe diagnostiquei um tumor no cérebro. A única solução era a intervenção cirúrgica. Foi aí que cometi o erro que faz de mim o mais desgraçado dos homens. Afonso ficou calado e pensativo com o rosto entre as mãos. Inês depressa percebeu que aquele homem duro e altivo estava a chorar. Tentou tranquilizá-lo. - Senhor Afonso não diga isso nem se martirize mais. Nem conte mais nada. Tudo isso é passado. Não há nada a fazer. - Agora deixa-me ir até ao fim. Eu era um médico de sucesso. Especializei-me mesmo em neurocirurgia. Resolvi casos bastante complicados para a medicina dessa época. Muitos dos meus métodos foram estudados por outros e são hoje ensinados nas universidades. Por tudo isto não confiava nos meus colegas cirurgiões. Teimei, movi todas as minhas influências e consegui ordem para ser eu mesmo a operar a

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minha esposa. Maldita e desgraçada hora em que fui o mais teimoso dos homens. Inês começava a adivinhar a tragédia. Temerariamente arriscou perguntar. - Correu mal? Foi com a voz dilacerada pelas lágrimas que Afonso respondeu. - A última palavra dela antes de entrar no sono da anestesia foi um “amo-te” emoldurado no seu belo sorriso. No bloco operatório apliquei tudo aquilo que sabia, mas a certa altura aquele coração parou para sempre. Com ele parou também a minha alegria de viver. Percebes agora porque sou um homem triste? Percebes agora porque não posso ouvir a palavra “médico” nem “doutor”? Eu matei a minha mulher e desgracei a minha vida. Tirando a minha irmã Joana, ninguém me perdoou. É normal. Nem eu me perdoo a mim próprio. Inês abraçou-se aquele homem flagelado pelo passado. - Senhor Afonso, a morte deixa sempre uma desculpa. Se fosse outro a operar teria sido diferente? - Não sei miúda. Nem sei nem tenho forma de saber. Só sei que tenho que carregar esta cruz até ao resto dos meus dias que já não serão muitos. - E o seu filho? Que é feito dele? - Ele também me culpabilizou pela morte da mãe. Saiu de casa e nunca mais lhe pus a vista em cima. Não o condeno por isso. No lugar dele faria o mesmo. - Nunca o tentou contactar? - Tentei saber o paradeiro dele. O Martinho investigou e durante alguns anos fui tendo informações. Viveu no Porto, no Algarve e depois sumiu sem deixar rasto. É daí que vem a minha amizade com o Martinho. Mesmo sabendo onde estava nunca fui ter com ele. Agora não faço ideia, mas se algum dia

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me perdoar, será ele a vir ter comigo. Infelizmente já não conto com isso. Abandonaram o banco de jardim e passearam pelas ruas pouco movimentadas da cidade. Era domingo. Era dia da cidade descansar da azáfama da semana. Chegaram a uma esplanada, sentaram-se a gozar o sol de Abril. Passados alguns momentos, Afonso levantou-se e encarou Inês com ar autoritário. - Ficas aqui à minha espera. Não saias daí nem dês trela a estranhos. Inês espetou a mão aberta na testa em gesto de continência militar. - Certo chefe. Às suas ordens. Afonso não conseguiu disfarçar um sorriso enquanto virava costas e descia a avenida em direcção a um centro comercial. Inês ficou a observar com alguma curiosidade. Onde é que ele iria? Pediu uma água ao empregado de mesa. O Senhor Afonso tinha-lhe deixado algum dinheiro. Noutra mesa ali perto, um rapaz olhava-a disfarçadamente. Ela achou-o bonito com os cabelos louros em desalinho. Talvez um pouco tímido e ao mesmo tempo convencido, mas bonito. O Senhor Afonso regressava com um enorme saco na mão. - Tens aqui algumas roupas. Espero que gostes. - Inês ficou atónita, mas encantada com dois pares de jeans, uma saia azul e dois top’s, um laranja e outro na sua cor preferida: o roxo. No saco vinha ainda uma colecção de colares, brincos e outras bijutarias a condizer com as roupas. - Senhor Afonso. Eu não posso aceitar. Bem basta tudo quanto tem feito quanto mais gastar dinheiro comigo. Posso nunca poder-lhe retribuir.

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- Agora tens que aceitar porque a loja não aceita devoluções. De repente Inês lembrou-se de algo que tinha esquecido aos dois. - Ó Senhor Afonso. A missa já deve ter acabado. A Dona Joaninha deve estar à nossa espera. Afonso deu um pulo enquanto consultava nervosamente o relógio. - Pois é. Esqueci-me das horas. A Joana já está pendurada e alem disso é hora de almoço. Ficaram por momentos a olhar um para o outro até desatarem a rir com vontade. Foram para o carro. Inês olhou para trás. O rapaz continuava lá olhando-a com ternura. Sorriulhe. Ela voltou a cabeça e seguiu caminho. – Ragazzo molto convinto – pensou. Encetaram a viagem de regresso. - Sabes uma coisa miúda? Já há muito tempo que não me ria assim. Depressa chegaram à aldeia. Lá estava a Dona Joana plantada junto à igreja aproveitando a sombra de uma carvalha secular com o missal numa mão e o ramo de loureiro na outra. Entrou no carro com ar preocupado. - Já estava aflita. Já pensava que tinham tido algum acidente. Que demora foi essa? - Ó Joana, porque é que pensas sempre o pior? Porque é que não pensaste que fui mostrar a cidade à cachopa e que perdi a noção do tempo? - Porque não é costume em ti. És tu que dizes sempre que a pontualidade é uma das principais regras da boa educação. - Mas desta vez fui mal-educado. Também tenho direito.

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Seguiram para a Quinta das Tulipas em silêncio. Inês estava desejosa por mostrar as roupas novas à Sofia. Planeava já oferecer-lhas quando a sua situação se resolvesse. Continuava a esforçar o cérebro tentando recordar-se de algo, mas nada. Apenas se lembrava daquele dia em que acordou naquele quarto e do horrível pesadelo de que foi acometida. Até quando duraria isto? Ao entrarem na quinta, foram ultrapassados por uma moto de alta cilindrada. O negro do blusão e os cabelos louros denunciaram a Inês o motociclista que, em acto de exibição, viajava de capacete no braço. Era o rapaz da esplanada. Que fazia ele aqui? Seria coincidência? Uma suspeita muito mais terrível assolou a cabeça de Inês: seria um dos seus raptores? Sentiu medo, embora soubesse que dentro dos muros da quinta estava protegida. Ao chegarem a casa, a Dona Joana saiu do carro. Inês ia a sair também, mas Afonso segurou-a por um braço. - Miúda, não quero que comentes a nossa conversa do jardim. Ainda há uma coisa que te quero explicar. Aquela coisa que te intriga. - O meu novo nome? - Exactamente. Depois de almoço explico-te e quero mostrar-te uma coisa. Agora vamos almoçar. Inês já não estava intrigada com nada. Já tinha percebido tudo. Ainda assim resolveu esperar que Afonso a esclarecesse e seguiu de braço dado com aquele homem até à casa da quinta.

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Capitulo 4 Almoçaram em verdadeiro espírito de confraternização. O Senhor Afonso estava particularmente bem disposto a ponto de até a Dona Joaninha se admirar. - Não sei o que é que andaram a fazer na cidade, só sei é que vens muito animado. - Ó Joana deixa-te de observações e passa-me o vinho. Inês também estava feliz com tudo aquilo. Admirava aquele homem que, por vezes, se mascarava de rude, mas que era uma criatura fantástica. Depois das confidências dessa manhã, ainda o admirava mais. Florinda servia o almoço enquanto censurava a ensonada Sofia. - Não tens vergonha de estares com o focinho na palha até ao meio-dia? Agora estás aí com essa cara de enjoada a mastigar e a enrolar. Vale bem a pena fazer de comer para ti ao domingo. Olha aqui a menina Inês. Rosadinha e bem disposta. É que a ela não se lhe prega o cu à cama. Sofia encolhia os ombros e sorria com cumplicidade para a nova amiga. No fim do almoço, Afonso voltou-se para Inês num tom grave. - Inês, compreendo que queiras ir divertir-te com a Sofia, mas peço que me dês um pouco do teu tempo. Sofia atalhou a conversa enquanto descascava uma laranja. - Peço desculpa à Inês, mas não vou ser grande companhia esta tarde. Tenho que ir a uma festa de aniversário de uma amiga. É a Daniela. Depois apresento-ta. É uma boa amiga. Vais gostar dela. Florinda não se conteve. - Pois. Ontem foi boa-vai-ela, à noite foi “interlete”, de manhã foi choça e agora vais para a festa. Os livros que se

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lixem, não é? Hás-de levar um rico enterro com tanta galderice. É o que aprendem nas televisões. - Ó mãe, estou de férias! - Ai estás de férias!? Quero ver as notas que me apresentas. Se não estudares vais trabalhar para uma fábrica para veres o que custa a vida. Afonso acabou por perder as estribeiras com tamanho alarido. - Ó Florinda cala-te. Que farias se a tua filha aparecesse em casa a altas horas da manhã, bêbada e ensopada em droga. Olha que na geração dela há muito disso. Florinda voltou às lides domésticas. Não tinha resposta para Afonso. Nunca tinha resposta para ele mesmo quando tinha razão. Devia-lhe favores demais para lhe responder. Foi criada naquela quinta desde menina. Foi daquela casa que saiu para a igreja no dia do casamento. Foi o Senhor Afonso que lhe pagou a boda e o vestido de noiva. Foi ele que lhe baptizou a Sofia. Foi ele que lhe acudiu quando o seu Alfredo esteve tuberculoso. Era ele que lhe pagava os estudos à filha. Por tudo isso nunca se atrevia a contrariar aquele homem. Ainda se lembrava de quando baptizou a sua menina. Sugeriu que lhe pusesse o nome de Inês. Ele quase a expulsou da quinta. - Não quero nem sequer ouvir esse nome quanto mais baptizar a tua filha com ele. Agora era ele mesmo que chamava Inês àquela desafortunada que ali tinha vindo cair. As pessoas mudam. O tempo tudo traz e tudo leva. Talvez ele se queira reconciliar com o passado. É sempre difícil adivinhar o que vai na mente do Senhor Afonso. Assim pensava Florinda enquanto lavava a loiça. Dona Joaninha recolheu-se no seu quarto envolta nas suas orações, Sofia quis dar uma espreitadela às roupas novas da amiga.

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- Tudo do bom e do melhor! O Senhor Afonso teve bom gosto. - Nem tenho palavras. - Inês, ficas chateada por eu ir para uma festa? - Claro que não! Vai à tua vida. Eu não quero ser um peso para ninguém. - Se eu falasse com a Daniela, talvez pudesses ir comigo. - Não quero. Não conheço ninguém, nem tenho cabeça para festas. Alem disso prevejo que o Senhor Afonso tem algo muito importante para me revelar. Eu depois conto-te. - Hum. Andam aí grandes mistérios, mas está bem. Agora vou-me embora. Logo trago-te uma fatia do bolo da minha amiga. Foi-se a Sofia para a festa enquanto Inês e Afonso mergulhavam no interior da enorme casa das tulipas. - Esta casa é enorme, Senhor Afonso. - Foi construída pelo meu avô, mas já foi o meu pai que acabou as obras e que comprou todos os terrenos envolventes. - Porquê o nome “Quinta das Tulipas”? - Foi a minha avó que encheu o jardim de tulipas. Ela adorava essas flores. Infelizmente morreu muito jovem e o meu pai, com o desgosto, mandou arrancar as tulipas todas. O nome é que já ninguém lho tirou. Foi o próprio povo que assim baptizou a quinta. - Estou a ver que na sua família há uma apetência para apagar tudo o que diz respeito ao passado. Afonso estacou a meio do longo corredor com ar meditativo. - Tens razão miúda. Agora vamos ver algo que te surpreenderá.

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Afonso rodou a chave de uma porta que abriu com ruído e entraram para um belo salão. Com um ar de abandono, mas ainda assim um belo salão. Grandes cortinados adornavam as janelas. A um canto havia uma mesinha em madeira trabalhada ladeada de quatro poltronas em cabedal. As paredes estavam decoradas com vários quadro pintados a óleo. Por todo lado havia belas esculturas. O tecto estava ornamentado com pinturas de gosto popular. Ao meio sobressaía um piano de cauda. Foi esse instrumento que mais atraiu Inês. - Um piano! Eu acho que sei tocar. - Podes experimentar se quiseres. Inês levantou a tampa. Sobre o teclado estava uma partitura de Giuseppe Verdi, mais propriamente da bela ária “Libiamo ne'lieti calici” da ópera “La Traviata”. Colocou-a no suporte e os seus dedos começaram a percorrer as teclas. A música, primeiro mais timidamente e depois com mais clareza, inundou a sala. Quando terminou olhou para o Senhor Afonso sorrindo de felicidade. Ele tinha os olhos rasos de lágrimas. - Foste divinal Inês. Há vinte e dois anos que esse piano não tocava. - Nota-se. Está um pouco desafinado. O senhor não sabe tocar? Nem a sua irmã? - Não. Esse piano foi um presente que dei à minha esposa. Só ela o fazia vibrar. Só ela enchia esta quinta de alegria. - Sinto-me muito honrada por ser a primeira depois de tanto tempo. Um pensamento completamente diferente surpreendeu a cabeça de Inês. - Senhor Afonso. Como é que eu me lembrei tão bem daquilo que sei sobre piano!? Será a minha memória a voltar? - Recordas-te de quem te ensinou a tocar?

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- Não. Isso ainda não. Só sei que sei. - Ainda assim é bom sinal. Tenho a certeza que em breve vais acordar desse meio sono em que a tua cabeça caiu. Tem fé. - Espero que sim Senhor Afonso. Mas às vezes tenho medo. - Medo de quê? - De saber quem sou. Será que tenho uma família? Será que estou bem no mundo e com mundo? Quem sou eu? Questo è terribile. - Afianço-te que és uma pessoa de bem. Agora quero que vejas aquele quadro. Inês voltou-se para um belo retrato a óleo representando uma senhora ainda jovem. Longos cabelos negros, testa alta, lábios finos com um ligeiro sorriso e nariz levemente arrebitado. Todo aquele rosto tinha algo de familiar para ela. Voltou-se para Afonso que a contemplava com aquele ar triste do costume. Arriscou adivinhar o porquê dele a trazer ali e de lhe mostrar aquele quadro. - É uma bela pintura. É a sua esposa? - Sim. Aquele “sim” vinha recortado pela tesoura da emoção. - Agora repara melhor no rosto dela. Não encontras nada de fascinante? Inês aproximou-se mais do quadro. Contemplou melhor aquele rosto ameno e sereno. Sentiu um arrepio e um baque no peito. Aquele retrato era para ela como um espelho. Tinham ambas o mesmo olhar, o mesmo sorriso e o mesmo nariz alçado. Voltou-se de novo para Afonso. - Se não tivesse a certeza podia jurar que esta sou eu com roupas antigas. Que incrível coincidência.

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- É verdade miúda. Quanto te levei da beira do lago para casa e te vi pela primeira vez à luz, nem queria acreditar em tantas semelhanças. - Então deixe-me adivinhar esta dúvida. A sua esposa chamava-se Inês. Afonso virou-se para a janela olhando para o vazio. Tinha medo de falar. Tinha medo que a emoção lhe cortasse as palavras. Respirou fundo e voltou-se para Inês. Ela continuava ao lado do quadro com um leve sorriso nos lábios. Parecia que a imagem a óleo se tinha materializado. Por fim conseguiu responder. - É verdade miúda. Essa que aí vês é a minha adorada Inês que a minha estupidez matou. Era ela a dona desse nome que passou a ser proibido nesta casa. A tua amiga Sofia era para se chamar Inês, mas não deixei e até tratei mal a pobre da mãe. Agora compreendes porque toda a gente estranha? Até eu estranhei aquele impulso de te chamar assim, mas com tanta semelhança não podia chamar-te outra coisa. Ainda tentei aquela da “Dama do Lago”, mas não dava. Tinha que te dar um nome. - Gosto de “Inês”. Até gostava que fosse esse o meu nome verdadeiro. Tristemente nem sei o meu nome. - Posso pedir-te uma coisa? - Claro. - Mesmo depois de recuperares a memória posso continuar a chamar-te “Inês”? - Claro Senhor Afonso. Para si serei sempre Inês. Até posso mudar de nome. Isso é possível, não é? - Sim. É possível. É um processo complicado graças à nossa burocracia, mas é possível. Não quero que faças um sacrifício desses. O nosso nome é a nossa identidade. Já faz parte de nós.

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Ela atalhou. - Senhor Afonso. Fica aqui a promessa: quando souber o meu nome troco-o por “Inês”. É um nome bonito. Assunto encerrado. - Pronto, pronto. Não te quero contrariar. Até na teimosia és parecida com ela. Nada a fazer. Inês voltou a olhar o quadro tentando sondar aquele rosto sereno e sorridente. Era o rosto de uma mulher feliz, de uma mulher amada. Pena que a morte seja cega e leve indistintamente quem quer e não quem merece viver. Talvez tenha que ser assim. Que mundo seria o nosso se a morte fosse algo previsível e com padrões definidos? Como seriam os dias da nossa vida se já conhecêssemos o dia da nossa morte? A esperança de viver sobrepõe-se à certeza da morte. Dona joaninha, no seu quarto, ouviu o piano. Verdi era o compositor preferido da sua cunhada. Já tinha perdido as esperanças de ouvir aquele piano e aquela música. De onde teria vindo aquela menina? Quem era ela para ser capaz de operar tamanho milagre? Voltava a ver o seu irmão sorrir. Voltava a ouvir música naquela casa. Voltava-se a pronunciar o nome “Inês”. Aquilo só podia ser obra de Deus. Olhou para a imagem de Cristo e agradeceu. Começou a rezar um pai-nosso quando voltou a ouvir o piano. Não acabou a oração. Queria ver de perto o prodígio. Cristo não se havia de importar com o seu momentâneo desleixo. Dirigiu-se ao salão. Ficou à porta que se encontrava entreaberta. Inês dedilhava o teclado do piano inundando o salão com a bela música do período romântico italiano. O seu irmão, encostado ao piano sorria e abanava a cabeça ao ritmo da magia protagonizada por aqueles delicados dedos. Raios de sol atravessavam os cortinados desmascarando a poeira irrequieta. Uma visão de outros

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tempos. Joaninha não conseguia segurar as lágrimas. Do outro lado, na parede estava o quadro a óleo da outra Inês. Por ilusão de óptica ou de pensamento também ela parecia sorrir. Florinda, ouvindo o piano, largou os seus afazeres e veio também para a porta. Colocou-se atrás de Dona Joaninha com as lágrimas a bailar nos olhos. Não conseguiu ficar calada por muito tempo. - Ai minha senhora. Que bem que a menina toca. Até faz lembrar aquele anjo que está no céu. Apesar de falar em surdina, foi o suficiente para chamar a atenção. Afonso olhou para a porta. - O que é que vocês as duas aí estão a fazer plantadas!? Entrem e venham assistir ao concerto. Inês, surpreendida, parou de tocar. Foi como que se acordasse daquela letargia que a música lhe provocava. As duas mulheres aproximaram-se um tanto ou quanto envergonhadas. - Querem que toque qualquer coisa mais moderna? Há aqui uma partitura bem gira. É o Yellow Submarine dos Beatles. Dona Joaninha encolheu os ombros. Florinda nada percebia de música, mas concordou. - A menina toque o que quiser e souber. Toca tão bem que até me arrepio toda. Afonso encontrou uma resma de partituras num armário que foram passando pelo suporte do piano. Os dedos ágeis e delicados de Inês foram correndo as teclas num autêntico festival de música. De Vivaldi a Janis Joplin passando por Duke Ellington, tudo se ouviu naquela tarde. Até Dona Joaninha, com algum assombro, deu por si mesma a bater o pé. Passaram as horas sem que ninguém desse conta. Foi o espanto

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dos espantos quando Sofia, regressada de outra festa, apareceu à porta completamente confusa com o espectáculo. - Isto aqui está animado! Não é costume! Festa rija! O aparecimento de Sofia surpreendeu-os a todos. A mãe foi a primeira a reagir. - Anda cá minha cabra do Tibete. Vem o ver o que é música. Não é como tu que só gostas de batuques. É o que aprendem nas televisões. Riram todos com vontade só parando quando Florinda levou as mãos à cabeça. - Ai o caraças que são horas de ir tratar do jantar. Está aqui uma pessoa a laurear a pevide e nem se dá pelas horas. Desde a morte da Dona Inês que esta casa não via assim uma tarde. Há muito que um manto de tristeza cobria aquela família. A perda de tão boa senhora e o sentimento de culpa do Senhor Afonso bastavam, mas ainda estava na memória de todos aquele dia em que o filho chamou assassino ao próprio pai, entrou num táxi e nunca mais ninguém o viu. - Assassino. Mataste a minha mãe, desgraçado. Nunca mais te quero ver. Aquelas palavras foram uma punhalada no peito de Afonso. Perdeu a sua adorada Inês, perdeu o seu querido filho, perdeu toda a vontade de viver. Carregando às costas a culpa das suas desgraças deixou-se envolver por um manto de tristeza que se foi estendendo a todos os que o rodeavam. Agora, um qualquer capricho do destino trouxe-lhe esta bela e jovem italiana parecida com a sua Inês e capaz de iluminar aquela casa com música e sorrisos. Que mais lhe estaria reservado no futuro?

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Capitulo 5 Era segunda-feira. Inês acordou com o chilrear matinal dos pardais. Acordava sempre na esperança de ter a mente repleta de recordações boas e más como toda a gente. Mas nada. O seu cérebro continuava vazio. Apenas tinha as imagens mentais dos últimos três dias passados naquela quinta habitada por gente caridosa. Para trás não havia nada de que se pudesse lembrar com orgulho, com alegria, com tristeza ou mesmo com vergonha. – Será que o doutor Martinho vai dar notícias? Será que algum dia vou acordar deste vazio? Quando deixarei de incomodar esta boa gente? Como vou agradecer? Quem sou eu meu Deus. Quem? – Estes pensamentos foram interrompidos por um suave bater à porta quando uma lágrima já lhe rolava pelo rosto. A porta abriu-se. Era a Sofia carregada de livros. Inês tentou limpar aquela teimosa lágrima, mas não foi a tempo. - Que é lá isso!? As meninas bonitas não choram. - Non mi ha pianto. - O quê? - Não estava a chorar. - E eu sou o Pai Natal! - És o Pai Natal porquê? - É uma forma de falar. Deixa lá isso. Olha o que aqui tens. Sofia abriu mais a porta do quarto deixando ver uma bela rosa fixada com adesivo. Inês sorriu. - Mais uma simpatia do Carlitos. - Hum. Acho que o Carlitos está a ficar apaixonado por ti. - E ele é bem giro. Pena a doença dele. Certamente teria muito para dizer.

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- Tenho que ir embora. Desculpa, mas tenho umas cenas para fazer. Não te posso fazer companhia. Não venho almoçar, mas quando voltar, devo ter notícias para ti. - Que notícias!? - Por volta das três horas já cá estou. Tenho uma cena para te contar. - Que cena!? - É um gajo que te quer conhecer. - Que gajo!? Eu não conheço ninguém! - De certeza que não viste um gajo com ar de interessado ontem na cidade? Sofia atirou com a rosa para a cama e desenharam-selhe duas covinhas no rosto a ornar o seu belo e matreiro sorriso. - Agora adeus que estou a ficar atrasada. Dito isto fechou a porta deixando a confusa amiga com cara de pato a olhar para a rosa do Carlitos. Lembrou-se do rapaz louro da esplanada que era o mesmo que passou por eles de moto. – Um convencido qualquer. Pensou. Tratou de saltar da cama, tomou um banho reconfortante e vestiu as roupas que o Senhor Afonso lhe comprou. Na cozinha estava apenas a Florinda. O Senhor Afonso não quis o pequeno-almoço e estava trancado no escritório. A Dona Joaninha tinha bebido só um copo de leite e Sofia tinha saído em jejum. Florinda maldizia a sua sorte. - São todos uns emplastrados que aqui andam. Ninguém come nada. Têm medo de engordar ou trazem a bicha-solitária? Ó menina Inês venha você comer. Não queira ser como a cangorsa da minha filha que se foi embora a ladrar com a fome. E nem sei para onde foi essa cabra do Tibete. - Devo confessar que estou esfomeada.

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- Pois claro. A menina é cá das minhas. Quem não é para comer também não é para trabalhar. Eu já me aqui sento ao pé de si. Hei-de encher bem a leira e hei-de beber. Inês ficava assombrada com a quantidade e variedade de comida que a Florinda ingeria logo pela manhã. Ficava ainda mais assombrada quando ela rematava o repasto com um grande copo de vinho branco. O ar incrédulo de Inês não passou despercebido a Florinda. - A minha filha diz que o vinho faz mal. Ela é doida. Para se poder puxar pelo corpo é preciso comer e beber. A água cria rãs na barriga. Inês não respondeu. – Costumes arreigados da região e infiltrados no espírito do povo. Mitos criados pelo senso comum. De qualquer forma é a realidade deste povo que ainda arranca o seu sustento às entranhas da terra. – Certamente que este não é o meu mundo. Não tenho estes costumes. Mas qual é o meu mundo? Que vida é a minha? – Estes pensamentos foram cortados por uma observação da Florinda que vinha ao seu encontro. - A menina não deve saber o que é puxar pelo corpo. Tem as mãos bem mimosinhas e a sua pele não é de quem anda à chapa do sol. Deve ser de gente fina. Gente que deve estar cheia de aflições por sua causa. Eu queria era ver presos esses patifes que a trataram mal. O mundo está cheio de corrécios, de valdevinos que não querem trabalhar. É o que aprendem nas televisões. - Ó Florinda, sei lá se está alguém aflito por mim. - Então não hão-de estar menina. Há-de ter um paizinho, uma mãezinha, irmãos e um namorado todo bom. A menina deve ser bastante viajada. - Porquê!?

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- É esse sotaque com que fala. A princípio parecia-me brasileiro como o que se fala nessas poucas-vergonhas das novelas, mas agora parece mais espanhol. - Falo italiano com facilidade, mas também falo bem o português, embora com algum sotaque. - Ó menina! Italianos são os gagos. A menina não gagueja! - Não Florinda! Os italianos são da Itália. - Pois sim, pois sim. Isso é que vocês dizem. O tio Chico serrador era gaguinho de todo e sempre lhe chamaram italiano. Riram ambas com tais comparações. Acabaram o pequeno-almoço. Florinda foi tratar da lide doméstica. Inês foi para a varanda. Dali podia observar o belo jardim, as terras cultivadas, o verde dos pinheiros e a serra no horizonte. Também se via o lago, mas ela fugia-lhe com o olhar. O medo mordia-lhe o peito quando olhava para aquelas águas pardacentas. Era aquele medo que lhe bloqueava a memória, que a deprimia e inquietava. Quando terminaria aquele pesadelo? – Será que o meu passado vai ficar apagado para sempre? Mesmo que me digam quem sou de que valerá tal revelação se nada existir para mim? O seu pensamento voltou a ser cortado pela visão do lago. Não pelo lago em si, mas pelo Carlitos que corria para ele com uma vara na mão. - Que vai fazer aquele maluco!? Carlitos, com uma surpreendente agilidade, saltou o lago de um lado para outro com a ajuda da vara. Seis metros de largura na sua parte mais estreita. Inês, apesar da distância, aplaudiu com uma vigorosa salva de palmas. Logo a seguir ficou envergonhada. Tinha-se esquecido que Carlitos era surdo-mudo. Ele repetiu a façanha mais três vezes. À terceira olhou para a varanda e acenou a Inês. Afinal aquilo era uma

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exibição dedicada a ela. Sempre valia a pena aplaudir. Foi o que ela fez com as mãos no ar e redobrado vigor. Mesmo a duzentos metros conseguia vislumbrar o sorriso feliz de Carlitos. No seu escritório, Afonso tinha o telefone encostado ao ouvido e esperava com impaciência que alguém atendesse. Finalmente ouviu a voz do inspector Martinho. - Estou! - És tu Martinho? - Sim Afonso. Como estás? - Bem. - Então a miúda já recuperou a memória? - Não. Tens novidades? - Ainda não tenho o resultado do exame de ADN. Pus uma equipa a telefonar para todas as universidades e escolas secundárias, mas ninguém deu pela falta de ninguém. Também não há qualquer queixa de desaparecimento. Tudo indica que a miúda é uma turista ou uma filha de emigrantes. - Sim. Até o sotaque com que fala leva a crer isso mesmo. - Sotaque italiano. É estranho. Não há assim tantos portugueses em Itália. Se fosse francês, alemão, inglês… - Ora Martinho. Sabes bem que nós somos uma raça espalhada por todo mundo. - Vou continuar a investigar. Quando tiver novidades digo-te. - Tomara que não descubras nada. - O quê!? - Temo o dia em que esta menina me deixará para ir para os seus. - Não entendo.

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- Lembras-te da minha esposa? - Claro que sim. Porquê? - Já reparaste nas semelhanças? Martinho ficou calado por uns instantes. Até que respondeu com algum assombro. - Tens razão Afonso. Agora já sei o que me intrigava no rosto da miúda. Ela é a cara chapada da tua mulher. - Não é só isso. Anda como ela, mexe-se como ela, fala como ela e até toca piano como ela. É uma coisa incrível que anda a dar comigo em doido. - Afonso… não estarás por aí a ficar apaixonado pela cachopa? Afonso ficou deveras irritado. - Estás parvo ou quê? Tenho quase quatro vezes a idade dela. Essas coisas já não são para mim. Não achas que estás a ser ridículo? - Pronto. Desculpa. Há casos desses. Também fiquei apreensivo com essa possibilidade. Ainda bem que não é assim. - Claro que não, mas vejo esta rapariga vinda do céu como uma neta que eu não tive. Se fosse possível, não me importava de ficar aqui com ela até ao resto da minha vida que já não é longa. Estava até disposto a nomeá-la minha herdeira. Sabes que, além da Joana, não tenho ninguém. - Tudo é possível. Bem, pelo menos, nunca mais perdes a amizade dela. Quanto à tua herança, ainda pode acontecer que o teu filho te venha bater à porta. - Já perdi a esperança. Se ele tivesse reconsiderado, já tinha dado notícias. Ele é casmurro por natureza, embora tenha razão. - Casmurro, tem a quem saia. Razão, não tem nenhuma. Vê se te convences disso de uma vez por todas.

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Continuaram os dois homens a tagarelar até que Florinda anunciou que o almoço estava pronto. Foram para a mesa. Faltava a Sofia que tinha avisado que não vinha e também ninguém sabia dela. Inês pensava naquilo que ela lhe disse. Que novidades traria? Alguma coisa sobre aquele convencido da cidade? Por agora era coisa que não interessava. Logo se veria. O almoço decorreu com grande animação graças às anedotas picantes de Florinda. A Dona Joaninha abanava a cabeça e benzia-se repetidamente. - Credo Florinda! Não tens vergonha nem da menina Inês!? - A menina também já sabe o que é o mundo. Pode é não se lembrar. Isto agora não é como no nosso tempo que éramos umas cegas. Não havia televisões como agora. A Dona Joaninha já conhece a do padre? - Do senhor prior!? Eu não! - Então vá lá e ele que lha mostre. As gargalhadas de Afonso e Inês acabaram por pôr também um sorriso encavacado no fino rosto da anciã. Após o almoço Inês voltou à varanda. Afonso emprestou-lhe um livro de Alberto Morávia: “A Romana”. Uma bela obra do genial escritor italiano. Ela começou a ler, mas o seu pensamento voava aleatoriamente entre a sua situação, o passado apagado e o futuro incerto. Acabou por fechar o livro. Sentou-se na cadeira de balouço do Senhor Afonso e adormeceu embalada pelos sons da natureza envolvente. Acordou com um suave sopro no ouvido. Viu o rosto de Sofia onde duas covinhas anunciavam um sorriso de troça. - Rica vida! Uma sesta bem dormida? - Adormeci, não foi? Que horas são?

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- Três e meia. Eu não disse que vinha cedo? Vou arrumar os livros e apresentar-te o Jorge. - Quem é o Jorge? - Quem é? Daah! Que te disse de manhã? - Aquele convencido que vi na cidade? - Ele até é fixe. Vais ver. As duas voaram pelo jardim nas asas da juventude, atravessaram o prado e chegaram junto ao portão da quinta. À direita estendia-se o lago cinzento que tanto embelezava o local como despertava terrores no íntimo de Inês. Jorge estava encavalitado na sua moto de capacete nas mãos. Tinha dado boleia a Sofia com o intuito de conhecer Inês. Quando a viu na esplanada deu-se-lhe um nó no peito. Quando ela olhou para ele com aquele ar terno ficou encantado. Tinha que a conhecer de perto. Era importante e urgente para ele entrar na vida daquela graciosa morena. Foi fácil segui-la até à quinta. A mesma quinta onde vivia a Sofia, sua colega de escola. Nunca teve grande convivência com Sofia, mas agora precisava dela e tinha sido relativamente fácil e rápido ganhar a sua confiança. Com algumas perguntas simples e concisas ficou a saber que se chamava Inês e que tinha perdido a memória. Explorando o desejo que Sofia tinha em ajudar a amiga, convenceu-a a fazer as apresentações. As duas raparigas chegaram junto a ele. Inês olhou-o com curiosidade. O rosto dele, agora que o podia ver melhor, era de facto muito belo. Parecia um deus grego. O seu olhar intenso incomodava-a ao mesmo tempo que a encantava e assustava. Assim ficaram em silêncio como que em estudo mútuo até Sofia estabeleceu a ponte entre ambos. - Jorge, esta é a Inês. Inês, este é o Jorge.

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Deram um beijo de cumprimento. Inês não tinha palavras. Jorge também estava um pouco embaraçado, mas acabou por quebrar o gelo. - Disseram-me que és uma deusa que nasceu num lago! - Referes-te àquele lago? - Sim. - Ali esteve a morte à minha espera, mas um anjo salvou-me. Tens razão. Afinal há algo de divino na minha história. - A morte não teria coragem para levar alguém como tu. - Que é que eu tenho!? Tu nem me conheces… - Por isso aqui estou. Sofia começou a sentir aquela sensação de quem está a mais. Na sua cabeça começou a passar a imagem de um castiçal com velinhas. Achou melhor sair pelas traseiras. - Bem, tenho que ir estudar um pouco para a minha mãe não me atrofiar a cabeça. Divirtam-se. Jorge não disse nada. Inês ficou um pouco aflita. - Não vás Sofia. - Vou sim. Tenho mais que fazer do que ouvir arrulhados. Afastou-se, não sem antes deixar no ar o seu sorriso trocista entre as graciosas covinhas do rosto. Jorge continuou com palavras amáveis. - Como é que uma rapariga tão bonita aqui veio parar a este cu de Judas? - Isso também eu gostava de saber. Assim como também gostava de saber qual é o teu interesse nisso. - Gostei de ti quando te vi na esplanada. Depois vi-te com o Senhor Afonso e fiquei curioso. Pensei que fosses família, mas não sei como. - E depois vieste feito parvo atrás de nós.

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- Era só para saber se vivias aqui na Quinta das Tulipas. - Ou para exibires a moto? - Também. Não achas natural que quisesse dar nas vistas e causar boa impressão? Inês admirou a sinceridade dele e também começava a gostar daquele rosto másculo, mas com ar infantil no seu largo sorriso. - Depois foste chatear a Sofia? - Consegui o número do telemóvel dela através de uma amiga e mandei-lhe uma mensagem. Hoje de manhã falei com ela e pronto. Aqui estou. - Aqui estás e depois? - Posso cá voltar? Podemos ser amigos? - Por um lado sim, por outro lado espero que não. - Não percebi. - È bom que voltes porque eu aqui não tenho amigos da minha idade. Só tenho a Sofia. Também era bom que eu recuperasse a memória para poder ir embora para a minha terra e para a minha família, se é que a tenho. - Deve ser estranho não ter memória. - Nem imaginas. - Bom. Agora tenho que ir, mas volto amanhã. Despediram-se com um beijo informal. Jorge colocou o capacete, fez roncar o motor da Suzuki e partiu a toda a velocidade sacando um cavalinho no arranque. – Exibicionista – pensou Inês. Afastou-se dali em direcção à casa. Sofia esperava por ela com uma cascata de perguntas. Que é que ele disse? Deu-te o número do telemóvel? Quando cá volta? Marcaram encontro? Declarou-se? Deu-te algum presente? Inês foi respondendo conforme podia ao turbilhão de perguntas da amiga enquanto se dirigiam a casa. Florinda preparava já um belo lanche.

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A seguir ao lago, ĂĄ sombra de um carvalho, estava sentado Carlitos, envolto no seu silĂŞncio e na sua solidĂŁo. Tinha observado tudo. Os seus olhos brilhantes estavam semicerrados e o seu eterno sorriso estava agora apagado.

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Capitulo 6 Terça-feira. O dia começou como de costume à volta da mesa da cozinha. Inês trazia uma rosa ao peito. Mais uma rosa colada à porta do seu quarto pelo Carlitos. Uma prova tímida de afecto com que aquele rapaz a tratava. Afonso comia em silêncio enquanto lia o jornal. Dona Joana murmurava uma oração em frente à estatueta de Santo António. Sofia bebeu meio copo de leite e foi-se embora a mastigar a torrada seguida dos desabafos de Florinda. - Para onde é que ela já vai sem comer quase nada!? - Não me demoro. Só tenho que fazer uma pesquisa na Net. - É na neta é. E no neto? Não comam não. Ainda hão-de querer comer e não há-de haver. Ainda há-de ser como no tempo em que me criei. Até caroços de maçãs roídas dos ratos nós comia-mos. Era só fome e cabelo. Inês ousou interromper o silêncio de Afonso. - Senhor Afonso. Desculpe. Tenho uma coisa para lhe pedir. Afonso atirou com o jornal. Parecia ter despertado de um qualquer sono. - Diz lá miúda. - Conheci um rapaz. Ele quer ser meu amigo. Será que ele podia vir visitar-me aqui na quinta? - Um rapaz? Que rapaz? - É um colega de escola da Sofia. - Bem. Desde que venha por bem. - A Sofia disse que ele é bom rapaz. - Então ele que venha à vontade. - Obrigado Senhor Afonso.

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- Até é bom para ti teres alguém da tua idade para quem falares. Nós já somos todos uns trastes velhos. - Credo Senhor Afonso! Não diga isso. Vocês são as melhores pessoas do mundo. - Está bem, está bem. Diz lá ao rapaz que venha, mas que se porte com juízo. Florinda não podia deixar de comentar. - Temos passarinhos novos! É Primavera, sangue na guelra, pimba, pardais ao ninho. Fazes bem rapariga. Goza a vida enquanto és nova. Não queiras ser como a minha filha que é uma bicha fria que ali anda. Eu também era bem namoradeira, mas nesse tempo era um atraso de vida. Era eu na janela e o meu Alfredo na rua. O desgraçado até apanhou um triciclo no pescoço. Agora começam a namorar, começam logo a lamberem-se. Ao fim de poucos dias até já… Deus me perdoe que nem sei o que digo. É o que aprendem nas televisões. Inês ria às gargalhadas. Dona Joaninha sumiu-se para o seu quarto benzendo-se repetidamente. Afonso mantinha o ar sisudo, mas ria-se para dentro. Não queria encorajar a língua de Florinda, mas decidiu corrigi-la. - Então o Alfredo apanhou um triciclo no pescoço? - É o que lhe digo, Senhor Afonso. Andou três dias a olhar para o… para o lado. - Está bem Florinda, mas isso chama-se um torcicolo. É um distúrbio caracterizado pelo endurecimento dos músculos do pescoço, fazendo com que os movimentos da cabeça se tornem muito dolorosos e limitados. Também pode ser uma doença congénita adquirida nas últimas semanas de vida intrauterina. Nesse caso deriva de uma alteração de um dos músculos esternocleidomastóideus. - Credo Senhor Afonso! É cada palavrão! Eu chamo-lhe triciclo e pronto. A gente cá se entende.

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- Deixa lá Florinda. A maior parte das pessoas também não sabe dizer o nome da doença. Chamam-lhe turcicólogo. - Então já não sou só eu burra. - O torcicolo causa dores intensas, mas é geralmente ultrapassado com o repouso. No entanto, há casos graves em que até pode ser precisa intervenção cirúrgica. - Isso, o senhor é que sabe. O senhor é que tem os livros. Inês adorava quando o Afonso usava aquele tom doutoral com que esmagava toda a gente com a sua cultura. Pena que aquele homem tivesse deixado a sua profissão tão cedo. Muito teria contribuído para os avanços da ciência aquela mente brilhante. Enquanto Afonso se refugiava no escritório, Inês veio instalar-se na varanda, na cadeira de balouço. Gozava o sol de Abril. Os sons e os perfumes campesinos encantavam-na. Estava um pouco surpreendida com a atitude da Sofia. Sair a correr com aquela história da Net e sem lhe dizer nada!? Cheirava-lhe a desculpa para outra coisa qualquer. Logo se veria. O Cometa veio deitar-se a seus pés fitando-a com os seus enormes olhos meigos. O Caramelo corria a varanda de lés a lés, perseguia o próprio rabo e vinha meter-se com o Cometa. Este afastava-o com uma patada, mas ele voltava à carga. - Esse gato é doido de todo. Dona Joaninha chegava com um regador para regar os inúmeros vasos da varanda. - A menina não lhe dê muita confiança. - É tão engraçado. - Os gatos são assim. Caramelo tinha descoberto uma pequena maçã e iniciara um complicado jogo de futebol com uma agilidade de fazer inveja a qualquer Cristiano Ronaldo.

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- Esse rapaz que a menina conheceu é para ser coisa séria? - É só amizade. No me quero envolver muito. Eu queria mesmo era saber quem sou. - A menina já pensou que pode ter um compromisso sério com outro rapaz? Pode até ser casada! - Não deve haver nada de sério na minha vida. Veja esta marca no meu dedo. É de um anel que me devem ter roubado. Não é marca de aliança. - O Carlos vai gostar de saber isso. - O Carlos? Porquê? - A menina ainda não percebeu? Ele está apaixonado por si. À maneira dele, mas está. - Fica feliz quando me vê, dá-me uma rosa todos os dias. É um querido. Gosto muito dele, mas compreenda senhora… - Sim, eu compreendo. O ruído de um potente motor interrompeu a conversa. Ao longe via-se o portão da quinta. Lá estava o Jorge montado na sua moto vestido de negro como habitualmente. O Carlitos surgiu por detrás de um arbusto, dirigiu-se ao portão e fechouo. Mesmo à distância percebia-se pelos gestos de Carlitos que este mandava embora o jovem. Dona Joaninha reagiu. - Vá lá menina. Tem que se explicar ao Carlitos que o rapaz é bem-vindo. Ele é muito zeloso pela segurança da quinta. Inês já não ouviu. Corria pelo jardim e depressa chegou ao local. Dona Joaninha pôde ver os gestos de Inês para Carlitos. Este acabou por abrir o portão e afastou-se com ar de taciturno. Viu também Inês saltar para a moto. Subiam agora o caminho do prado entre alegres gargalhadas. Em breve estariam naquela varanda trocando frases bonitas. Regou o

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último vaso e desapareceu no interior da grande casa. – Juventude. Lindas idades. Pensou a boa senhora. Também ela já foi jovem, mas as suas recordações eram ofuscadas por uma névoa de contrariedades e de desgostos. A educação rígida e os costumes desse tempo não lhe permitiram estudar como era da sua vontade. Frequentou apenas o ensino primário. A mãe ainda lhe quis dar asas, mas o pai arrumou a questão com uma única frase: as mulheres são para estar em casa ao serviço do marido e a cuidar dos filhos. Assim foi a sua juventude aprendendo as artes da cozinha, dos bordados e a dar catequese. Ir à missa e ensinar o catecismo era a sua única oportunidade de transpor os muros da Quinta das Tulipas. O tempo que lhe restava era para tomar conta do irmão Afonso cinco anos mais novo. Tempos duros esses. A Europa estava em guerra. O negro fantasma da Alemanha nazi assustava o mundo. O troar dos canhões não chegara a Portugal, mas um mar de fome corria o país deixando incólumes umas poucas famílias abastadas como era o caso da Quinta das Tulipas. A jovem Joana não raras vezes se esgueirava até ao muro da quinta para distribuir pão e carinho aos mais pobres que ali vinham em busca de caridade. Ainda hoje, os mais velhos a cumprimentam na aldeia com uma respeitosa vénia e um cortês “bom dia minha santa senhora”. Diz-se até que em segredo a chamam “santa mãe dos pobres”. Tinha já dezoito anos quando o pai a autorizou a ir aos bailes da aldeia. Eram realizados no salão paroquial e animados pela “Tuna Instrução e Recreio”. A um canto ficavam as raparigas casadouras. No lado oposto amontoavam-se os rapazes novos. Numa fila de bancos corridos sentavam-se as mães de olhar atento ao atrevimento dos rapazes e às

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leviandades das filhas. Quando a tuna começava a tocar, os rapazes avançavam até ao magote de raparigas em busca de par para a dança. Joana sobressaía pelas roupas finas, pela candura e pela delicadeza de gestos. Estava rodeada de mulheres feitas à força a escavar mísero sustento tanto à chapa do sol como nas farpas do frio. Eram jovens donzelas de mãos calejadas e pele endurecida. Os rapazes acanhavam-se de ir pedir uma dança à “menina das tulipas” e ela era, por algum tempo, rainha da festa sentada em trono de solidão. Apenas o Augusto barbeiro se atrevia a convidá-la. - A menina dança? Joana olhava para a mãe em busca de um gesto de consentimento que lhe era concedido. Augusto era um amigo da família. Era ele que se deslocava à quinta e transformava a varanda em barbearia para senhores, empregados, meninos e meninas. Estava de namoro firme com a Beatriz, filha do sapateiro, mas esta perdoava-lhe a dança com a menina da quinta. Sabia que ele só fazia isso para a tirar da sua cadeira solitária e fazer rodopiar os seus vestidos de cambraia no meio de um mar de chita. Foi num desses bailes que apareceu o Américo. Fora amigo de infância de Joana. Companheiro de longas brincadeiras pelos jardins e prados da Quinta das Tulipas. Um dia chegou o jovem dissolvido em lágrimas ao pé de Joana. Vinha despedir-se. A mãe tinha entregue a alma ao criador há poucas semanas. O pai, cravado de dor e de miséria, decidiu partir para Lisboa levando o filho com ele em busca de melhor vida. Joana sentiu-se mulher de repente e limpou as lágrimas ao amigo. - Não chores. Um dia hás-de voltar e eu estarei à tua espera.

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Tinha voltado e vinha diferente. Um homem feito de farto bigode e vestido à moda de Lisboa. A vida tinha-lhe sorrido. Foi em pouco tempo que passou de empregado de balcão a dono da cervejaria “Flor Serrana”, na Rua Morais Soares. Por outro lado, o pai não se adaptou à vida citadina. De taberna em taberna deixou-se apanhar nas teias do vinho morrendo seco como as palhas com o fígado dissolvido em álcool. Um respeitoso e correctíssimo aperto de mão, uma dança e umas palavras sussurradas ao ouvido restabeleceram a confiança. Pouco depois veio o pedido de namoro. Ela não aceitou logo por temer que o rapaz fizesse mau juízo sobre a sua reputação, mas acabou por dizer que sim alguns dias depois. O pai de Joana ainda torceu o nariz, mas quando soube da vida de sucesso do rapaz apressou-se a dar o consentimento. - Quem deixou de ser um pelintra em tão pouco tempo também é capaz de governar a minha filha e administrar os meus bens quando eu fechar os olhos. O casamento ficou marcado para daí a um ano. A jovem e bela Joana estava perdida de amores pelo menino feito homem. Faltavam duas semanas para o casamento, já com a Quinta das Tulipas engalanada, quando Américo anunciou que tinha que ir a Lisboa tratar de negócios e comprar o ultimo grito da moda em fatos de casamento. Voltaria dois dias antes da grande boda. Não voltou. Não voltou dois dias antes, nem nunca mais. O pai de Joana ainda foi a Lisboa de pistola no bolso e fígados envenenados de raiva, mas nada. A cervejaria “Flor Serrana” tinha mudado de dono e de ramo. Era agora a ervanária Dr. Kalmar: produtos naturais para todos os males. O pretenso doutor nada sabia do paradeiro do antigo proprietário. Joana, além da amargura, ainda teve de desabafar algo mais grave. Grave e deveras marcante para o resto da vida.

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Confessou à mãe e acompanhada da sua compreensão e da resignação do pai deslocou-se a Coimbra em segredo onde uma conhecida parteira lhe resolveu o problema em troca de avultado pagamento e choruda gorjeta. Este desgosto feito de malogro e remorso marcou-a para o resto da vida. A partir daí dedicou-se ao irmão e a Deus. Deus está sempre presente na ausência de tudo. Ainda teve muitos pretendentes, mas a todos respondeu que era casada com Deus, com o único que nunca a enganaria. Também era a Deus que pedia agora que aquela jovem trazida nos ventos do destino fosse o sonho do irmão e o renovar da alegria daquela casa. O dia seguinte foi de grande felicidade para Inês. Jorge passou todo o tempo na quinta. Correram os arredores de moto. Encontraram ninhos e colheram flores silvestres. Florinda serviu-lhe um lauto almoço numa mesinha instalada na varanda. Afonso e Dona Joaninha aproveitaram para submeter o rapaz a um longo interrogatório. – Idade? Em que ano andas? O que fazem os teus pais? Que queres ser na vida? Jorge ia respondendo um pouco contrariado. Era de humildes origens. O seu único luxo era a sua moto que, segundo ele, foi comprada com dinheiro ganho nas férias. Inês também não gostou de tanta pergunta. Florinda, adivinhando sentimentos acabou por intervir. - Credo Senhor Afonso! Deixe comer o rapaz. Assim nem lhe faz préstimo. Deixe lá andar os passarinhos. Eu da idade deles não tinha liberdade para andar por ai no pavoneio. A tarde foi passada na conversa à sombra da velha carvalha. Jorge revelou-se muito conversador e muito divertido. Inês adorava ouvi-lo falar. Parecia que já o conhecia há muitos anos. Estranhamente, essa sensação trazia-lhe

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desconforto. Afinal não se lembrava de conhecer alguém há muitos anos. Sofia, de olhos mordidos pelo ecrã do computador, veio juntar-se a eles. Inês reparou no olhar cansado da amiga. - Tu andas a abusar da internet. - É o MSN. Altas conversas. Depois conto-te. - Hum. Já estou como diz a tua mãe: passarinhos novos por aí. - Não é nada. Depois conto-te. - Agora já sei porque é que desapareces à pressa. Anda por aí coisa. Florinda interrompeu a conversa. Veio trazer-lhes um enorme cesto de piquenique. Inês protestou embora apreciasse a ideia. - Ó Florinda! Tu queres pôr-nos a todos gordos!? - Já sei que os namorados não têm fome, mas é preciso comer. Olhem que o corpo não tem raízes na terra. Quem não é para comer, não é para trabalhar. E não mesmo. A vossa geração quer é moina. No tempo em que me criei não era assim. Com onze anos puseram-me a servir numa casa onde até fome passava. Só comia quando sobrava alguma coisa da mesa dos patrões. Também me pus a andar de lá para fora num instante. Foi só receber o primeiro mês e ala que se faz tarde. Jorge desfazia-se de tal modo em carinhos com Inês que Sofia tratou de arranjar pé para se afastar. - Tenho que ir estudar. Inês não gostava que ela se afastasse assim. Era amiga dela e não queria que ela se sentisse substituída pelo Jorge. - Não vás. Tens tempo de estudar. Fica mais um pouco. - Desculpa, mas tem que ser. Afastou-se. Não tinha jeito para segurar a vela. Estava contente por ver a amiga feliz. Um namorado ajudaria muito na

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situação de abatimento psicológico em que ela se encontrava. Eles viram-na ir embora sem teimarem mais. Também queriam ficar sós e também compreendiam a posição de Sofia. Ninguém gosta de se sentir a mais. Ficaram à sombra da carvalha numa estranha e divertida conversa. Jorge falava do passado. Inês, temporariamente, não tinha passado. Jorge falava do futuro. Inês não fazia ideia de qual seria o seu futuro. Só quando falavam do presente é que o olhar e a juventude de ambos se iluminava. Voltaram ao bosque. Desta feita foram a pé. Sofia, da janela do seu quarto, viu-os ir e sorriu maliciosamente. Ligou o computador. Iniciou sessão no Windows Live Messenger. Viu quem estava on-line e os seus olhos iluminaram-se ao ver um certo nome. Jorge e Inês voltaram bastante mais tarde, já o sol declinava no horizonte dourando toda a paisagem. Vinham de mãos dadas. Traziam, ao pescoço, grinaldas feitas de flores silvestres e no rosto um sorriso ainda mais belo que as flores. Quem reagia mal a tudo isto era o Carlitos. Deixou de haver rosas coladas à porta do quarto de Inês. Andava cabisbaixo. Tinha ataques de fúria. Ele, que adorava animais, chegou a pontapear o Cometa quando ele se recusava a sair da frente da porta do galinheiro. Queria arrecadar as galinhas e não esteve com meias medidas. O pobre animal afastou-se surpreendido e naturalmente confuso. Que raio daria ao dono silencioso para o tratar assim!? O cérebro de um cão seria lá capaz de compreender a trapalhada que é um coração atingido por Cupido? Nessa tarde, também viu os dois internarem-se no bosque e regressarem cobertos de flores. Ele rachava lenha em frente à casa. Inês acenou-lhe. Ele respondeu ao gesto, mas sem o habitual sorriso. Em seguida atirou com o machado a um cepo. Fê-lo com tal força que este se abriu em duas grandes cavacas que saltaram ao ar. Foi claramente um gesto de raiva

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que não passou despercebido. Inês, depois de se despedir de Jorge, entrou em casa e contou a Dona Joaninha. Ela sorriu. - Coitado. São os ciúmes. Isso passa-lhe. - Mas os ciúmes podem ser perigosos. - O Carlitos tem um grande coração. É incapaz de fazer o mal. Ele vai compreender e vai ser teu amigo e desse rapaz. Dá-lhe tempo. Inês foi para o quarto descansar um pouco. Sofia foi lá ter. Vinha com aquele sorriso malandro chapado no rosto. - Vens-te a rir de quê? - Foi uma tarde em cheio! - Foi fixe. O Jorge é maravilhoso. - Hum! Andaram bastante tempo no bosque. Gostava de ser mosca para ver a festa. - Qual festa!? - A festa dos sentidos, dos prazeres, das hormonas em fogo. - Estás parva!? Ainda não quero nada disso. Ainda não o conheço. Aliás eu nem a mim me conheço. Sei lá quem raio sou eu!? - Queres dizer que não aconteceu nada? - Só apanhamos flores e fizemos grinaldas. - Ok. Não quero coscuvilhar mais a tua vida. Não tens nada que me dar explicações. - Está bem, eu conto. É claro que estivemos muito bem. Também é verdade que ele quis ir mais longe, mas eu não deixei. Ainda é cedo e tal como já te disse eu não sei quem sou. - E ele? - Aceitou muito bem. Um perfeito cavalheiro. Um grande alívio para mim. - Alívio!?

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- Sim. Isto é estranho, mas é verdade. Por vezes, quando estou com ele a sós, sinto um arrepio súbito e quase entro em pânico. - Isso passa-te. É a cabeça que anda doida. - Depois é o Carlitos! - Que é que tem o Carlitos. - Anda ciumento. - Isso passa-lhe. Inês soltou uma gargalhada. - Tu és porreira Sofia! - Obrigado. Porquê? - Haja o que houver, resolves tudo com duas palavras: “Isso passa”. - É verdade. Tudo passa. O tempo tudo trás e tudo leva. - É verdade outra coisa: Que história é essa de só quereres internet? Quem é o príncipe encantado vindo do ciberespaço? Sofia ajoelhou-se em cima da cama com olhar esgazeado e sonhador. - Ai ó pá! Conheci um gajo lindo, lindo. - Na Net!? - Sim. Chama-se André. É de Viseu. Em breve vem-me visitar. - Hum. Tem cuidado. Essas cenas na Net podem ser tanga. - Neste caso não. Tenho montes de fotos. Queres ver? Puxou pelo telemóvel e fez desfilar uma colecção de fotos. - É pá! O gajo é giro! Ainda to vou roubar ou trocar. - Trocar? - Sim. Fico com ele em troca do Jorge e do Carlitos.

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Desataram as duas a rir enquanto iniciavam uma guerra de almofadas em cima da cama de Inês. A batalha só terminou quando a Florinda apareceu à porta do quarto. - Meninas, acabou o pagode. O jantar está na mesa.

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Capitulo 7 Chegou o sábado. Há mais de uma semana que Inês se encontrava naquela situação confusa e inquietante. Uma semana em casa daquela boa gente. Uma semana após ser vítima de malfeitores sem escrúpulos. Uma semana de memória apagada. Todos os dias, devorava os jornais que o carteiro trazia na esperança de encontrar um daqueles anúncios com fotografia de pessoa desaparecida, mas nada. Nem uma foto, nem um artigo, nem uma linha. A rádio e a televisão debulhavam todo o tipo de desgraças, mas também não havia antena para falar de uma jovem que levou sumiço. O doutor Martinho telefonava todos os dias a Afonso, mas sem qualquer novidade. Pelo menos era isso que ele lhe comunicava. - Signore Afonso há novidades? - Não menina. O Martinho segue várias pistas, mas ainda não tem certezas de nada. Será que ninguém a procurava? Será que não tinha ninguém? Será que ninguém a conhecia em Portugal e era procurada na Itália, pátria da sua pronúncia e algum vocabulário? Nem isso. O doutor Martinho tinha contactado as autoridades italianas e não havia registo compatível com uma adolescente de cabelos negros e olhos meigos e nariz alçado. Levantara-se bem cedo. Até a Florinda, única alma acordada àquela hora, se admirou quando a viu entrar na cozinha. - Buongiorno Florinda. - A menina já aí vem!? Ainda nem tenho nada feito para comer, mas faço-lhe num instante uma torradinha. - Não tenho fome. - Ora menina Inês. Já sabe que comigo ninguém pode passar fome. A menina tem que se alimentar.

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Inês aproximou-se da janela contemplando a bucólica paisagem que o sol já pincelava com tons dourados. - Oggi è bello. Fa caldo! - Caldo menina!? Logo de manhã!? Hei-de fazer caldo, mas é para o almoço. - Não Florinda. Mi scusi. Quero dizer que está um dia lindo e está calor. As duas olharam-se com ar divertido e acabaram abraçadas à gargalhada. - Ó menina! Eu mal falo português. Quando a menina começa com a sua algaraviada italiana, eu não a entendo ou percebo outra coisa. Inês sentou-se à mesa onde a Florinda lhe serviu uma torrada barrada com manteiga. Mal começou a comer quando ao seu ouvido chegou o som de um motor, um som que ela já conhecia bem. Largou a torrada e correu para a porta. Florinda ainda tentou impedi-la. - Ó menina para onde vai sem comer!? - Mi scusi. Como mais tarde. Saiu porta fora no momento em Afonso entrava na cozinha. - Que é que lhe deu!? - Ó Senhor Afonso, é o sangue na guelra. Inês corria pelo prado de onde já avistava Jorge montado na sua moto. Depressa chegou ao pé dele. - Então! Tão cedo por aqui!? - Claro. Sonhei contigo. Estava ansioso por te ver. Sentaram-se no muro da quinta tagarelando sobre tudo o que lhe vinha à cabeça. O importante para ambos era estarem juntos. O Cometa veio deitar-se aos pés de Inês. Olhava desconfiado para o Jorge. - Esse cão não gosta de mim.

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- Está a guardar-me. Tem medo que eu seja raptada. Não seria a primeira vez. Jorge ficou cabisbaixo. - Que tens? Também tens medo que alguém me leve? Só se fores tu. Tens cara de raptor. Jorge respondeu com raiva mal dissimulada. - Não quero que fales assim. É que eu… tenho medo de cães. Inês, divertida, espantou o Cometa. Este afastou-se com ar triste. Ultimamente toda a gente o espantava. - Medo de cães? - É um trauma de infância. Nesse momento avistaram o Carlitos. Vinha com uma vara às costas. Possivelmente vinha para o seu desporto preferido: saltar o lago à vara. Jorge fez um gesto de enfado. - Ali vem outro que não gosta de mim. - Não gosta de ti porque gosta de mim. Tem ciúmes. Carlitos corria para o lago de vara em riste. Pregou-a no fundo e saltou para o outro lado com uma invejável destreza. Inês gostava de ver aquela exibição. Sabia que era um espectáculo dedicado a ela e assim decidiu provocar o Jorge com uma pergunta um tanto ou quanto desafiante. - Tem, ou não tem habilidade? Há poucos que façam aquilo. - Também era capaz. - Gostava de ver. - Então diz-lhe que me empreste a vara. Inês acercou-se de Carlitos e pediu-lhe a vara. Ele mostrou-se contrariado, mas acedeu ao pedido. Jorge tomou balanço, correu e também conseguiu saltar o lago, embora a façanha lhe valesse um aparatoso trambolhão. Carlitos sorriu

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vendo o rival estatelado no chão. Inês, encorajada pela destreza dos rapazes e pela sua juventude perdeu de repente aquele medo que sempre teve do lago. - Também sou capaz. Carlitos percebeu a intenção dela e maneou a cabeça em sinal de negação. Jorge, por seu turno, falou em tom de desafio. - Sempre queria ver isso. Tu até tens medo do lago! - Dá cá a vara. Jorge estendeu-lhe a vara sorrindo convencido de que ela não teria coragem. Ela correu para o lago, apoiou a vara no fundo e elevou-se. Um ruído seco anunciou que a vara se partia em duas. Inês caiu desamparada no meio do lago. Carlitos atirou-se de imediato às águas turvas, agarrou Inês pelo pescoço e trouxe-a para a margem. O susto fê-la desmaiar. Jorge acercou-se quando Carlitos lhe dava umas palmadas no rosto. Ela abriu os olhos. Olhou à volta com um ar confuso. Tranquilizou-se ao ver o Carlitos, mas quando encarou com os o rosto de Jorge, soltou um grito de terror e voltou a desmaiar. Algo de estranho aconteceu a seguir: Jorge correu para a moto, pôs o motor a trabalhar e partiu a alta velocidade perante a estupefacção de Carlitos. Restou-lhe pegar na rapariga ao colo e levá-la para a quinta. Acordou na sua cama. Parecia o dia em que ali acordou pela primeira vez com uma única diferença: sabia quem era. Sabia o seu nome, sabia a sua idade, sabia de onde vinha, sabia quem era a sua família, sabia tudo sobre a desgraça de que tinha sido vítima. Lembrava-se de todos os pormenores. Mesmo do mais doloroso que tinha descoberto uma hora antes. O lago que lhe tinha tirado a memória tinha-lha devolvido. Ao seu lado estava Dona Joaninha. Mais uma vez lá estava ela de terço entre as mãos. Do outro lado era Sofia que lhe agarrava

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numa mão com uma lágrima ao canto do olho. Aos pés da cama estava o Senhor Afonso olhando para ela paternalmente. Ao lado dele, Florinda sorria com um par de lágrimas a correr pelo rosto. Parecia uma criança que desata a rir no meio de uma birra. Foi ela que quebrou o silêncio. - A menina já abriu os olhinhos. O nosso anjinho está bom. Foi só um susto. Afonso aproximou-se mais. - Sente-se melhor, menina… Inês? Afonso acentuou a palavra “Inês” já prevendo uma resposta. Ela olhou para ele languidamente e com o nascer de um sorriso respondeu. - Lamento desapontá-lo Senhor Afonso, mas meu nome é Mónica. Tal como combinamos pode continuar a chamar-me Inês. - Isso quer dizer que recuperou a memória? - Assim é. Já me lembro de tudo. Já sei quem sou, mas valia mais não saber. Florinda correu para ela abalroando a filha que só parou com as costas contra a parede. Abraçou-a com força. - Agora é que temos mulher. Dona Joaninha benzia-se e beijava o terço. Afonso manteve-se calmo. - A menina talvez queira descansar. Depois conta-nos o que se passou. - Posso contar agora. Devo-vos isso. Isso e muito mais. - Se quiser… também temos curiosidade. Mónica recostou-se e começou a falar. - Tal como já vos disse, o meu nome é Mónica Felini Ferreira. Sou italiana nascida em Veneza. O meu pai era português, daí o apelido “Ferreira”. Florinda interrompeu.

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- Ai que lindo nome… Afonso quase que se zangou. - Vê se te calas e deixa a rapariga falar. Mónica continuou. - O meu pai conheceu a minha mãe aqui em Portugal quando ela vinha de férias para o Algarve. Para Faro. Foi a vez de Afonso interromper. - A menina disse que o seu pai era português. Disse “era”. Que aconteceu. - Morreu quando eu tinha oito anos. Chamava-se Alberto. Alberto Soares Ferreira. Morreu de cancro no pulmão. Afonso fez um olhar de pesar. Dona Joaninha pôs as mãos em sinal de oração enquanto Florinda tapava o rosto com as mãos. Mónica continuou. - Desde pequenina que venho passar as férias a Portugal. A minha mãe adora Portugal. O meu pai adorava tanto a Itália que nunca veio connosco. Foi com ele e com as férias que aprendi a falar português. Este é o primeiro ano que venho sozinha. Já farta do Algarve, quis vir mais para norte. Aluguei um quarto em Coimbra. Estava perto da praia da Figueira da Foz e também da Serra da Estrela que queria conhecer. Depois aconteceu aquilo. Inês, ou melhor, Mónica começou a soluçar. Afonso achou melhor que parasse por ali. - A menina descanse. Tem tempo de contar o resto. - Não, agora vou até ao fim. Um dia saí à noite. Procurei um bar para me divertir um pouco e conhecer pessoas. Entabulei conversa com um rapaz bonito e simpático. Conversámos algum tempo. Quando quis regressar ao meu quarto ele ofereceu-se para me levar até à residencial. Aceitei. Ele tinha uma moto de alta cilindrada muito do meu agrado. Disse-lhe que precisava de levantar dinheiro. Ele parou junto

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de uma caixa Multibanco numa rua pouco movimentada. Estava a concluir o levantamento quando senti uma faca encostada ao pescoço. Não dei conta do bandido saltar da moto e de se aproximar de mim pelas costas. Obrigou-me e revelar o código do meu cartão. Tirou-mo da mão e experimentou ameaçando-me. – Se me estás a mentir morres já aqui. Disse. Claro que não menti. Temia pela minha vida. Ele levantou o dinheiro possível e obrigou-me a dar-lhe o que já tinha levantado. Tudo isto enquanto ele me torcia um braço e me segurava pelo pescoço com a faca encostada. Ouvi parar um carro. Pensei que viesse alguém em meu socorro, mas não. Eram amigos dele. Antes de levar uma pancada na cabeça que me fez perder os sentidos, ainda ouvi uma frase no meio de risos de escárnio. – Traz a gaja. Levamo-la para a serra. – Quando voltei a mim estava dentro de um carro com mais dois bandidos. Tinha as mãos e as pernas atadas com fita adesiva. Tentei reagir. Estava pronta a tudo para lutar pela minha vida. Eles pararam o carro. Logo a seguir parou a moto com o tal patife. Foi ele que me passou para trás de um muro. Rasgou-me as roupas. Queria violar-me. Ouvi o ladrar de um cão que se aproximava. Ele teve medo. Bateu-me com força e atirou comigo para um lago. Agora sei que era o vosso lago e o cão era o Cometa. Felizmente, a fita adesiva soltou-se em contacto com a água. De braços soltos, nadei para a margem. Ao sair do lago, tropecei, arrumei com a cabeça em qualquer lado e desmaiei. Quando acordei estava nesta cama como vocês sabem. Sofia abraçou a amiga lavada em lágrimas. Lágrimas iguais às que balouçavam em todos os rostos presentes. Até Afonso tinha deixado cair a sua máscara de dureza e foi o primeiro a reagir.

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- Agora é preciso fazer justiça. Vou telefonar ao Martinho. Já ia a sair a porta quando se voltou com ar inquiridor. - A menina seria capaz de reconhecer algum desses bandidos? - Sim. Reconheceria um muito bem. Aliás, já o reconheci. - Como assim!? - O bandido da moto chama-se Jorge e era meu namorado até há uma hora atrás.

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Capitulo 8 Martinho apareceu a tempo de almoçar na quinta. Chegou esbaforido, com ares de quem tem um assunto para dominar e controlar. Vinha acompanhado por dois agentes. Dois duros saídos de algum filme de acção americano. Um deles, pela pose, devia ter a mania que era o Clint Eastwood. Pelo menos assim gracejava a Sofia e a Mónica. - Parece o Clint Eastwood. - Sim. O outro também deve ter visto muitos filmes do Steven Seagal. Martinho inteirou-se da situação com Afonso. Tomou nota da morada de Jorge e deu ordens aos dois homens que partiram imediatamente no potente BMW. Mónica viu-os partir. Estava na varanda com a Sofia. Esta viu o olhar triste da amiga. Não sabia se havia de falar ou não, mas arriscou. - Estás triste porquê? Por eles irem prender o patife do Jorge!? Quando me lembro que fui eu que to apresentei… - Estou triste pela desilusão que foi afeiçoar-me a um rapaz que afinal era o meu sequestrador e quase violador. - Grande cabrão. Foi grande a coragem dele aproximarse de ti depois daquilo que fez. Ou será que não te reconheceu? - Se não me reconhecesse não tinha fugido quando percebeu que eu recuperei a memória. - Ama-lo? - Estava a ficar apaixonada, mas agora… - Agora odeia-lo. É normal. Ténue é a fronteira entre o amor e ódio. - Enganas-te Sofia. Devia odiá-lo, mas não odeio. - Não me digas que continuas a amá-lo!

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- Não, isso não. Mas também não o odeio. Tenho pena dele. Só isso. - Pena daquele porco!? - Sim Sofia. Certamente que foi criado em mau ambiente, vive em más companhias e sente-se frustrado com a vida. Percebi isso quando ele mostrava sinais de inveja de outros colegas que tinham tudo enquanto ele só tinha uma moto. Tudo isto leva-o a cometer as mais atrozes patifarias. - Temos que viver com aquilo que temos. Eu também gostava de ter certas coisas e não ando aí a assaltar nem a violentar ninguém. - Tudo me leva a crer que ele se aproximou de mim, não para concretizar o que não fez, mas para se redimir. - Achas que sim!? - Sim. Estivemos várias vezes a sós e ele agiu sempre com o máximo respeito. Acredito que há algo de bom nele. Algo que não consegue emergir das águas infectas onde vive. - Tu tens é bom coração. Tens o dom do perdão. Se fosse comigo, partia-lhe o focinho e mandava-o capar. Não precisava de polícia para nada. Eu mesmo tratava dele. - Isso é errado. Ninguém deve fazer justiça pelas próprias mãos. Ele violentou-me. Foi um canalha, mas se eu respondesse com violência, estava a ser igual a ele. - É o que eu digo. És uma santa. Quem passou o que tu passaste e continua a pensar assim só pode ser santa. O que sentiste dentro daquele lago. - Uma terrível aflição. A agonia de quem sabe que vai morrer. Quando senti as mãos soltas é que ganhei ânimo e comecei a nadar. Sou boa nadadora. Até acho estranho ter desmaiado hoje quando caí no lago. - Foi a tua cabeça que se recordou do outro susto e entrou em pânico.

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As duas covinhas no rosto de Sofia anunciavam um sorriso. Mónica apercebeu-se disso. - Qual é a piada!? - É tu dizeres que és boa nadadora. - Tens dúvidas? - Não. Só podes ser boa nadadora… nasceste e cresceste em Veneza. As duas jovens soltaram duas gargalhadas. Aquelas gargalhadas naturais e espontâneas muito próprias da juventude. Após o almoço, servido com a boa disposição de toda a gente, foram tomar o café para a varanda. Estava um dia lindo demais para estarem no interior da fabulosa moradia. Um dia lindo pelo tempo radiante e pelos acontecimentos dessa manhã que levaram a confusa “Inês” e trouxeram Mónica, a bela italiana. Dona Joaninha recordou outros tempos, mas Afonso não a deixou mergulhar muito no passado. - Já não tomávamos o café na varanda desde o tempo… - Cala-te Joana. Deixa lá o tempo disto e daquilo. O que passou é passado. Já não interessa. É tempo de viver o futuro por curto que seja. Joaninha olhou para o irmão com algum assombro. Não se melindrou com as palavras rudes. Pelo contrário. Ele falava do futuro! Um homem que há vinte anos vivia enterrado nas brumas do passado falava agora no futuro!? Ainda por cima com entusiasmo e optimismo! Joaninha já não tinha dúvidas. Aquela casa nunca mais seria a mesma. Tudo graças a um anjo saído de Itália e caído no lago da quinta. Martinho levou Mónica para o escritório de Afonso. Quis saber todas as informações que ela lhe pudesse fornecer de memória. Anotou tudo num bloco de apontamentos o nome completo da mãe, morada, datas de nascimento, etc.

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Infelizmente, Mónica não se lembrava dos contactos telefónicos. - É assim doutor Martinho. Os números de telefone estão gravados no telemóvel. Nunca precisei de os saber de memória. - Não te preocupes. Eu vou descobrir isso tudo. Tenho amigos em Itália. Vou também tratar da tua papelada toda. Em breve poderás falar com a tua mãe e regressar ao teu país. - Mi madre deve estar preocupada. Eu prometi que lhe telefonaria todos os dias. O ruído de um carro a entrar na quinta acabou com o inquérito. Precipitaram-se ambos para a varanda. “Clint Eastwood” saiu do carro e fez um gesto de regozijo com o polegar espetado no ar. - Apanhamo-los chefe. Esse tal Jorge já se tinha entregado à G.N.R. Quando chegamos ao posto, denunciou os outros dois: um primo com vinte e oito anos e um tio com quarenta e cinco. Estavam os dois em casa. - Não ouve problema? - Não. Não tínhamos mandato de captura, mas também não foi preciso. Eles entregaram-se logo. Até parecia que estavam à nossa espera. Estão os três arrecadados na G.N.R. - Vou providenciar a transferência para Coimbra. Segunda-feira quero-os no T.I.C. Sofia chegou a tempo de ouvir as novas. Abraçou a amiga. - Pronto. Prendem-se os maus e abençoam-se os bons. Que a pena seja bem pesada. - A pena mais pesada será o remorso da consciência. Continuo a acreditar que há algo de muito bom neles. Afonso apareceu na varanda e inteirou-se da situação. Em seguida fechou-se no escritório com Martinho e Dona

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Joaninha. Os dois polícias voltariam à cidade. Sofia e Mónica resolveram aproveitar a boleia. Foi só o tempo de trocarem de roupa. Sofia vestiu uma mini-saia curtíssima. Tão curta que contrastou com o longo discurso da mãe. - Eu cegue se não há cintos mais largos. Olha só que preparo! Basta um descuido e ficas logo com tudo ao léu. É uma pouca-vergonha. Se fosse no meu tempo havia de ser o lindo. Uma vez vesti uma saia com uma racha para ir ao baile. O meu pai deu-me o baile: um excerto de porrada e cama. Olha que a Mónica não se veste assim. Pois então. Ela é uma menina decente. Florinda teve que se calar quando Mónica apareceu na cozinha com uns calções curtos e justos. Saíram as duas jovens a tempo de não ouvirem um último comentário. - É tudo um putedo. É o que aprendem nas televisões. Foram à cidade festejar a prisão dos bandidos e o regresso da memória de Mónica. Sofia queria ver a amiga animada e conseguiu, apesar de uma sombra de tristeza lhe varrer o rosto de quando em vez. Apresentou-lhe as amigas e os amigos. Montes de gente jovem e divertida. Andaram pelo centro comercial. Correram os bares bebendo cerveja. Mónica começou a ficar tonta e virou-se para a Coca-Cola enfrentando os gracejos de Sofia. - Tens fígados fracos. Um dia destes vamos à discoteca e ponho-te a beber shot’s. Vais ver. Até te passas. - Não me aguento com o álcool. - É falta de treino. Agora a sério. Num fim-de-semana vamos à discoteca. Digo ao André para vir cá e finalmente vou conhecer o gajo. Alinhas? - Ah sim! O príncipe do ciberespaço. Claro que alinho. Assim que o doutor Martinho me der a minha carta de condução, alugo logo um carro e depois vamos a todo o lado.

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No dia seguinte era domingo de Páscoa. O Senhor Afonso levou a Dona Joaninha bem cedo à missa. Depois de almoço ficaram todos à espera da cruz. Mónica não sabia o que esperava, mas ficou a saber quando um estranho cortejo entrou na quinta. Um padre de saias brancas, um homem com uma cruz metálica de braçado, um outro com uma espécie de balde cheio de água. Estes dois vestiam uma bata vermelha com uma faixa branca a fazer lembrar os mosqueteiros. Precedeu o estranho grupo um rapazote que fazia soar uma enorme campainha. Tudo normal para estes portugueses beirões, mas tudo novidade para a bela italiana. Entraram na sala. O padre abençoou toda a gente espalhando água com uma maçaneta molhada no balde. O homem da cruz correu todos os presentes para que pudessem beijar aquela imagem de um Cristo crucificado. Mónica cumpriu o ritual imitando os outros. Logo a seguir saíram todos a caminho de outra casa. Assim era a visita pascal. O povo celebrava a ressurreição de Cristo beijando a imagem dele morto. Coisas da igreja, muito bem explicadas e justificadas pela choruda nota de cem euros que o Senhor Afonso entregou ao padre. Passaram-se dias animados na quinta. Mónica já não era a menina mistério. Tinha muitas histórias para contar. Florinda queria saber tudo sobre cozinha italiana, mas acabava sempre por defender os pratos nacionais. - Qual macarrão qual quê. Há lá coisa melhor que uma boa torresmada! Dona Joaninha ficava deliciada com a descrição que a jovem lhe fazia das belas igrejas de Veneza. Benzeu-se até às lágrimas quando ela lhe relatou a sua viagem a Roma para ver o Papa. Mónica não era religiosa, mas também não punha em

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dúvida a existência de uma entidade divina dona e senhora dos destinos do universo. Até o Alfredo com o seu ar taciturno apreciava as histórias da bela Itália. Por seu lado, Sofia também sonhava em ir com ela conhecer Veneza com os seus canais, as suas gôndolas, os seus monumentos e o seu povo, mas por enquanto sonhava muito mais com o seu amor marinheiro de um oceano chamado Internet. Ainda assim ia colocando questões de curiosidade. - Como são os gajos italianos? - São iguais aos portugueses. Há feios e bonitos como em toda a parte. - Tens lá namorado? - Não, mas tenho um pretendente: um gondoleiro muito fixe, mas só o quero como amigo. Chama-se Filippo. Carlitos mostrava-se tão radiante com a prisão do Jorge que passava os dias a tentar agradar a Mónica. Voltou a haver rosas coladas na porta do quarto. Trazia-lhe cestinhos de fruta madura. Foi às suas economias e comprou uma máquina fotográfica digital. Fotografou a jovem de todas as maneiras. Mónica adorava fotografia e pousava para ele no meio do jardim. Quando Sofia tirou uma foto aos dois juntos em frente da fonte, o rosto dele era o espelho da felicidade absoluta. Afonso revelava-se mais curioso que os outros. Queria saber tudo até ao mais ínfimo pormenor. - Como é a escola? Tens muitos amigos? Como é a tua mãe? E o teu pai? Era bom para ti? Que família tens mais em Itália? E em Portugal? Não tens ninguém em Portugal? Não. Mónica não tinha ninguém em Portugal. O pai era o último de uma família com o condão de morrerem todos jovens. Mónica lembrava-se de o ouvir dizer que tinha perdido a mãe e o pai no mesmo dia. Provavelmente de acidente. Só

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assim se poderia justificar tal tragédia. Por vezes falava numa tia que também já deveria ter falecido. Em Itália tinha a avó a viver em Nápoles e duas primas na cidade siciliana de Palermo que já não via há muitos anos. Dona Joaninha chegava a impacientar-se com tanta pergunta. - Credo Afonso! Deixa a menina em paz. Afonso fazia um gesto de enfado e continuava o inquérito. Ela continuava a responder pacientemente até que ele se apercebia que estava a ser maçador. - Desculpa Inês. Sou um velho rabugento. Afonso continuava a chamá-la “Inês”. Assim tinham combinado. Num desses dias chegou o Martinho com uma pasta de papéis. Eram os novos documentos de Mónica. Tudo novo enviado de Itália em correio urgente. Trazia também uma mala com as suas roupas e outros objectos recolhidos na pensão residencial em que ela tinha estado hospedada. - Felizmente tenho amigos em Itália e as autoridades de lá também foram espectaculares. Aqui tem tudo. Também já contactei a sua mãe. Ela ficou um pouco aflita. Não sabia de nada e por isso estava descansada. Só estranhava a falta de notícias. - Mi madre!? Quero falar com ela. - À vontade menina. Aqui tem o número de telefone. Marcou o número e falou com a mãe durante bastante tempo. Tranquilizou-a dizendo-lhe que estava em casa de gente boa. Contou-lhe o que tinha acontecido, mas omitindo sempre os pormenores mais dolorosos. Descreveu a Quinta das Tulipas e só não descreveu mais nada porque era hora de almoço e

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Florinda, impaciente, gritou-lhe da cozinha interrompendo o discurso. - Ó menina olhe que o arroz de cabidela frio, nem o Cometa o come. Há-de ter tempo de contar tudo à sua mãezinha. Dê-lhe um beijinho meu, mas em italiano para ela perceber. Veio para a mesa onde já estava Afonso, Dona Joaninha, Florinda, Sofia e Martinho. Trazia um ar estranho. Apesar do seu belo sorriso, os olhos denotavam alguma tristeza e nostalgia. Dona Joaninha apercebeu-se disso. - A menina sente-se bem? Teve alguma má notícia da sua mãezinha? - Não. Está tudo bem. Estou só um pouco nostálgica. É tempo de regressar a Veneza. Afonso poisou os talheres. Acabou de mastigar e dirigiu-se a Mónica com grande afabilidade. - Sabes bem que podes ficar aqui até para sempre se assim quiseres. Também podes ir para o teu país quando o desejares. Já adiantei dinheiro ao Martinho para te tratar das passagens. Mas gostava que ficasses com nós mais algum tempo. Agora como minha convidada e não como a “deusa nascida do lago”. - É verdade! Eu sou a “dama do lago”! Tenho poderes mágicos! Até tenho a espada “Escalibur”! Um sorriso circulou pela mesa. Depois desta graça, Mónica continuou com o assunto. - Gostava de ficar mais algum tempo. Pedi à minha mãe para me enviar a minha carta de condução. Pretendo alugar um carro e passear por aí. Quero muito conhecer a Serra da Estrela. Enfim, quero continuar as minhas férias. É evidente que pagarei a minha estadia. Também não era necessário dar

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dinheiro ao Doutor Martinho. Eu agora já tenho cartão Multibanco. Posso pagar. Temos contas a fazer. - Então ficas já avisada que a estadia aqui é gratuita. Isto não é nenhum hotel que se possa pagar. Quanto às passagens são um pequeno presente. Fica cá o tempo que quiseres. Podes mesmo ficar para sempre. Já te disse. Mónica queria conhecer a serra. Sim, também era verdade. Mas o que ela queria mesmo era tempo e carro para outra viagem. Uma viagem que só ela sabia onde. Não queria dizer a ninguém. Bem, talvez dissesse à Sofia. Tinha plena confiança nela e seria a única a compreender. A sua carta de condução chegou pelo correio. Tratou de pedir ao Senhor Afonso que a levasse à cidade. No regresso já veio a conduzir um Opel Corsa novinho em folha. Entrou na quinta a buzinar. Afonso, atrás dela, buzinava também. – O Senhor Afonso está a ficar agaiatado. A idade tudo traz. – Assim comentou Florinda espreitando pela janela da cozinha. Sofia veio ao encontro de Mónica. - Arranjaste um carro vermelho!? És do Benfica!? - Não! Sou do Inter de Milano. O resto do dia foi dedicado ao passeio. Sofia servia de guia pelas aldeias e vilas da região. Mónica apreciou particularmente as paisagens do vale do Rio Alva. Um rio que saltitava por entre montes verdes e aldeias pitorescas. Ficou combinado que iriam à discoteca no próximo sábado. Sofia apresou-se a mandar uma mensagem ao André. Chegaram a casa já em cima da hora de jantar onde as esperava o chinfrim de Florinda. - Por onde é que andaram as duas galdérias? Está aqui uma pessoa toda a tarde com o coração num cesto! - Ó mãe, fomos só dar um passeio. A Mónica precisa de se adaptar ao carro.

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- Esta gente nova só quer isto. Vadiagem e mais vadiagem. É o que aprendem nas televisões. Mónica contou a Sofia que no dia seguinte iria fazer uma viagem um pouco maior. Uma viagem muito particular. Não queria adiantar mais, mas depois lhe contaria. Sofia estranhou o mistério, mas não se atreveu a questionar muito sobre o assunto. - Vai onde quiseres. És livre para isso e não tens que dar satisfações a ninguém.

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Capitulo 9 Mónica saiu bastante cedo. Tinha estudado o melhor caminho num mapa de estradas. Era bastante fácil, bastava seguir as placas e o seu destino era Coimbra. Em menos de uma hora estava a entrar na cidade. Encontrou-se com o Doutor Martinho em frente à Igreja de Santa Cruz. Estava ela a admirar a bela arquitectura do imóvel quando ele apareceu. - Então a menina gosta de igrejas? - Gosto de tudo o que seja arte. Esta é muito bela. - Já reparou que é preciso descer degraus para entrar? - Sim. É estranho! Dá ideia que se afundou! - Quando foi construída, era preciso subir degraus. - Então afundou-se mesmo!? - Não. Foi o chão que subiu. - Como assim!? - O Rio Mondego vai depositando sedimentos e vai subindo as margens. Mónica ficou desconfiada, embora lhe parecesse bem possível aquela explicação. Mas não era para apreciar a arquitectura manuelina que tinha viajado até ali. - Vamos lá Senhor Doutor? - Sim. Vamos. Entraram no carro de Martinho e pouco depois estavam em frente à penitenciária. - A menina tem muita coragem em vir aqui. Quando recebi o seu telefonema nem queria acreditar. - Só um confronto directo poderá esclarecer as minhas dúvidas. No interior do edifício foram direitos à sala de visitas. Martinho falou com um guarda e minutos depois apareceu o Jorge. Estava mais magro e desfigurado. Ficou naturalmente

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surpreso quando deu com os olhos em Mónica. Esta pediu que lhe retirarem as algemas, mas o guarda recusou. Olhou para Martinho, mas este também não atendeu o seu pedido. - É melhor assim menina. Para sua segurança e para nosso sossego, é melhor assim. Agora vão ficar a sós, mas estão sobre vídeo-vigilância. Saiu o guarda precedido por Martinho. Mónica olhou Jorge nos olhos. Ele baixou a cabeça. - Porque fizeste aquilo? - Vieste martirizar-me e humilhar-me Ainda mais? Não me basta ter perdido a minha liberdade e o meu bom-nome? Já estou a pagar pelos meus crimes. Que queres mais? - Quero perceber. Vamos por partes. Primeiro roubasteme. O teu problema era dinheiro? Ficas-te rico com o produto do roubo? Jorge, três vezes abriu a boca e outras tantas a fechou. Era difícil explicar o inexplicável. Não tinha sangue frio nem paz na alma para enfrentar aquele interrogatório que se adivinhava longo e tortuoso. Olhava para Mónica com cara de sofrimento. Para ele sempre fora Mónica e não Inês como a tinham baptizado. Era outro segredo que guardava desde aquela desgraçada noite. Ela pôs-se de pé. Mãos espetadas na cintura em tom de desafio. - Vamos homem. Desembucha. Ou será que só tens coragem para raparigas indefesas, amarradas e amordaçadas? Ele olhou para ela quase que a pedir clemência. Encheu o peito de ar e decidiu falar. - Tens razão. Fui um cobarde, mas não sou nenhum bandido. Aprendi uma lição. Quando estamos no fundo somos capazes de tudo para vir ao cimo. - Incluindo roubar, violar e matar?

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- Estava aflito. Devia dinheiro ao meu tio. Aquele que apareceu lá de carro. Emprestou-me para pagar a última prestação da moto. Naquele dia ameaçou deitar-lhe o fogo se não lhe pagasse. Quando te vi levantar dinheiro, perdi a cabeça. - Querias o meu dinheiro para alimentar caprichos. Ok. A primeira justificação está dada. O que não quer dizer que esteja perdoada. Depois levaram-me de carro. Para onde me queriam levar? - Também não espero perdão. Só queria que percebesses um pouco melhor as razões que me levaram a fazer aquilo. - Deixa-te de cenas e responde. Para onde me queriam levar? - O meu primo queria divertir-se contigo. Ele é um doente. Não é a primeira vez que tenta violar raparigas. Eu é que tenho evitado sempre. Mónica bateu as palmas em sinal de escárnio. - Palmas para o grande herói. Para evitar que o teu primo viole raparigas, tu antecipas-te a violá-las. Isso é heróico. - Não é nada disso. - Ai não!? Olha que o teu primo não me fez mal nenhum. - Não fez, mas ia fazer. - Sim, mas antes apareceu o super-herói que me atirou para trás de um muro afim de se divertir antes do primo. - Não é nada disso. Eu quis-te proteger. Eu gosto de ti a sério. Gostei desde a primeira hora em que te vi. Aquela foi a oportunidade que tive de te libertar daqueles dois. - Sim. E conseguiste. A melhor maneira de libertar uma pessoa e afogá-la num lago. - Deixas-me explicar sem interrupções?

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- Ok. Conta lá o teu feito heróico. - Não sou nenhum herói. Pelo contrário, sou um fraco. Como já te disse, eu andava a ser pressionado pelos dois. Tinha que lhes fazer as vontades. Assim caí na tentação de te assaltar e aceitei que eles te levassem. Eu segui atrás na esperança de te defender assim que chegasse a hora certa. Quando o carro parou, achei que era a minha oportunidade. Se quisesse violarte, tinha-o feito logo ali. Não te teria passado para trás do muro. A minha ideia era simular a violação e deixar-te ali. Se tivesse oportunidade de te explicar o meu plano, ficarias à espera que eu voltasse. Se não voltasse, poderias obter ajuda na Quinta das Tulipas. - Ou no fundo do lago? - Quem estragou tudo foi o cão da quinta. - O Cometa!? Queres dizer agora que a culpa foi do pobre animal? - Eu já te disse que tenho medo de cães. - Oh! Coitado! - É verdade. Uma verdadeira fobia. Quando tinha cinco anos fui mordido por um cão. Era um pitbull. Costumava brincar com ele, mas nesse dia aconteceu aquilo. Quase me matou. Só me lembro de proteger o rosto e sentir aqueles dentes a rasgarem-me a carne. Queres ver? Levantou a camisola e exibiu duas cicatrizes junto às costelas. Tinha mais uma no ombro. Mónica já as tinha visto antes, mas nunca questionou a sua origem. - Já tinha visto isso. Imaginei algum acidente de moto. - Tenho mais nas pernas, mas isso agora não importa. Desde a minha infância que tenho pesadelos por causa disto. Quando ouço um cão, entro em pânico. Fico completamente desnorteado. Foi o que aconteceu nesse dia. Fiquei louco de medo. Só pensei em duas coisas: livrar-me de ti e fugir. Dei-te

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um empurrão, mas nunca pensei que caísses ao lago. Fiquei ainda mais assustado, mas lembrei-me que o lago não devia ser muito profundo e fugi. O meu tio e o meu primo também se puseram em fuga quando eu lhe disse que vinha lá gente. Mais tarde voltei atrás, mas já não te encontrei. Já tinhas sido socorrida pelo Carlos mudo. Mónica ficou, por instantes em silêncio, de braços cruzados abanando a cabeça. - Sim senhor. A cadeia espevita a imaginação. - É esta a verdade. - É essa a história que vais contar ao juiz? - Não sei. Depende de ti. - De mim!? - Se não acreditares em mim nem me perdoares, nada farei para me defender. Tanto me importa estar na rua, como na prisão, como na cova. Nem sequer aceitarei advogado. - Isso cheira-me a chantagem emocional. Jorge adquiriu um tom mais ríspido nas suas palavras. - Que vieste aqui fazer? Se querias saber a verdade, já sabes. Se vieste para me acusar e recriminar, não eras cá precisa. É verdade que fui um patife. É verdade que me deixei levar por medos e pressões, mas também é verdade que tentei remediar o mal que fiz. Quando te vi na cidade com o velho Afonso, respirei de alívio. Quando soube pela Sofia que tinhas perdido a memória, aproximei-me de ti. Queria contar-te a verdade, mas não tive coragem. - Vou tentar engolir essa verdade, mas não esperes que te perdoe. Foi duro de mais para uma rapariga longe do seu país ver-se assaltada, espancada, quase violada e mergulhada num lago de mãos e pés atados. Jorge ficou atónito. - Eu não te desamarrei!?

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- Não! - Quando te deitei as mãos e puxei, não te soltei? - Não. Rasgaste-me apenas a t-shirt. A minha sorte foi que a fita adesiva descolou-se em contacto com a água. Agora vou pensar no assunto, mas não esperes perdão. É difícil engolir tudo e deitar para trás das costas. Vou-me embora. Fica bem. Levantou-se e ia a sair quando ele a chamou. - Inês. - Eu não sou Inês. Tu sabes bem que não é esse o meu nome. Pelo menos para ti. - Eu sei Mónica. - Que queres? - Há uma verdade em que tens que acreditar. - Qual? - Amo-te. Ela virou as costas e bateu com a porta deixando-o embebido em lágrimas. Cá fora, Martinho esperava-a. - Então!? Correu bem? - Mais ou menos. Fiquei a saber umas coisas, mas também penso que ouvi muita aldrabice. - Ele tratou-a mal? - Os senhores não estiveram a ver? - A ver sim. A ouvir não. - Não me tratou mal, mas tem uma história comovente capaz de iludir qualquer juiz. Que pena poderá apanhar? - Depende das atenuantes, depende da defesa, mas não irá muito além dos dois ou três anos de prisão. - A justiça em Portugal é frouxa. Tem a mão muito leve.

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Jorge regressou à sua cela. Estava visivelmente abatido. Deixou-se cair em cima da cama. Será que ela lhe perdoaria? Era tudo contra ele. O colega de cela notou o desalento dele. - Então rapaz! Veio cá a tua princesa? - Deixa-me, Mário. Não me chateies. Mário, conhecido por “brocas”, cumpria pena por tráfico de droga. Uma história triste. Tudo começou bem quando deu o nó com a Zézita, uma mimada menina namorada do liceu. Com ajuda do pai abriu um bar. “Dakota-bar”. Coisa fina para a época. Clientes poucos, mas rendimentos muitos. Zézita ficava em casa e nunca questionou de onde vinha tanto dinheiro. Seis meses após o casamento nascia a Andreia e tudo corria bem no jovem casal. Um dia veio a policia e fechou o bar. Levaram o Mário num carro preto. O juiz sentenciou oito anos de cadeia. Pena dura. Mais dura ainda com a reacção da Zézita. - Desaparece meu filho da puta. Apodrece na cadeia. Nunca mais me pões a vista em cima. Nem a mim nem à nossa filha. - Deixa-me Mário. Não me chateies. - Pois é. As mulheres são assim. Nós temos que perdoar tudo e trazê-las nas palminhas. Elas nunca perdoam nada. - Se ela acreditasse em mim… - Ela acredita. Não o quer admitir, mas acredita. Tens sorte. - Sorte? - Sim. Ela ama-te. Quem ama perdoa sempre. Não é como a minha mulher. Só me amou enquanto houve dinheiro para todos os luxos e miminhos.

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Martinho levou Mónica até junto do seu carro. Ela despediu-se dele reiterando o pedido de sigilo sobre a sua viagem. Apressou-se a sair da cidade rumo à quinta das Tulipas. No caminho, uma violenta trovoada ensombrou-lhe a viagem, mas não tanto como as lágrimas que cobriam o seu rosto.

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Capitulo 10 No dia seguinte, Afonso chamou Mónica ao escritório. - Senta-te aí Inês. Lá se mantinha o nome “Inês”. Ela sentou-se um pouco curiosa. Afonso, apesar de bem disposto, estava com um ar muito sério. - Telefonou o Martinho. Tenho novidades para ti. Inês estremeceu. Será que o Doutor Martinho lhe tinha falado na visita ao Jorge? Não queria que ninguém soubesse, além da Sofia a quem fazia tenção de contar. - Diga Senhor Afonso. - Tal como desejas-te, tens voo marcado para deste sábado a oito dias. Tens que estar em Lisboa, no Aeroporto da Portela, às oito e meia. Eu levo-te lá. - Não é preciso. Posso ir de autocarro. A viagem é longa e… - E eu sou um velho atarantado que se vai espadeirar no caminho. - Não é nada disso, Senhor Afonso. Eu já incomodei demais. Não quero mais nada. - Levo-te lá e pronto. Não há volta a dar. Mónica sabia que ele era teimoso. Não valia a pena insistir mais. As suas decisões eram sempre irreversíveis. - Tenho mais novidades. - Sim? - O Jorge e os outros vão ser julgados no dia vinte e sete de Setembro. Até lá ficam em prisão preventiva. - Só em Setembro!? É muito lenta a justiça no seu país Senhor Afonso. - Infelizmente, assim é. Alem de lenta é leve. Vive-se um clima de impunidade. Nesta terra, o crime ainda compensa.

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Já que na semana seguinte era tempo de regressar a Itália, tinha que aproveitar este sábado para a prometida ida à discoteca. Falou nisso a Sofia. - Yá! Tasse bem. Vou mandar uma mensagem ao André. Vamos ver se é desta vez que conheço o gajo. No sábado, após jantar, passaram as duas raparigas quase duas horas fechadas no quarto de Mónica. Valeu a pena. Vinham as duas deslumbrantes. Vestidos coloridos. Penteados sensuais, acessórios surpreendentes. Florinda começou a coçar o nariz. - Para onde vão as galdérias assim tão bem arreadas!? Apenas Sofia respondeu. - Voltamos tarde. Florinda encolheu os ombros. Que havia de fazer? Já nada era como antigamente. Só rezava a Deus para que a filha não lhe desse nenhum desgosto. “Espíritos Club” era o nome da melhor discoteca da região. Um edifício do início do século vinte fora adaptado de forma harmoniosa para espaço de divertimento nocturno. Diz a lenda que aquela casa nunca foi acabada por oposição dos espíritos que nela habitam. Mónica e Sofia passaram algum tempo num dos muitos bares da cidade e depois dirigiram-se para a discoteca. Inseridos num numeroso bando de jovens que elege o local para passar a noite. Mónica reparou no ar misterioso da casa. - Parece uma casa assombrada! - Pois. As pessoas supersticiosas dizem que sim. Lá para as cinco da matina, quando o álcool começar a bater, vais ver cada assombração que até ficas assombrada. Dirigiram-se ao bar e pediram duas canecas de cerveja. - Será que o teu André vem?

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- Sei lá. Ele disse que sim. Estou em pulgas. Como que a responder às dúvidas e anseios das duas amigas, alguém tocou no ombro de Sofia. - Olá. És a Sofia? Eu sou o André. Sofia olhou para trás enquanto Mónica se afastava um pouco. Todas as palavras de aviso que tinha ouvido sobre a Internet e que recusava como bons conselhos batiam-lhe agora nos ouvidos como granizo em vidraça. À sua frente, no lugar daquele jovem esbelto das fotos, estava um homem quase quarentão. Barriga de cerveja, nariz de papagaio, orelhas de abano e um penteado horrível. A camisa tropical desabotoada mostrava o típico peito cabeludo já meio grisalho. Sorria para ela exibindo uma fileira incompleta de dentes apodrecidos. Sofia só teve um gesto rápido e conciso. Pegou na caneca da cerveja e despejou-lha pela cabeça abaixo. Um desperdício. Os elementos da segurança da casa ficaram atentos, mas o embusteiro teve a mais decente reacção. Foi pagar o cartão e desapareceu para sempre pela porta de saída. Nem por isso a noite ficou estragada. As duas jovens amigas divertiram-se ao máximo até o astro rei anunciar um novo dia. Entraram em casa aos tropeções. Agoniadas e com um sabor a absinto na boca. Sofia foi dormir com a Mónica para a mãe não topar a hora tardia e o mau estado. Deitaram-se vestidas e adormeceram ao cair na cama. Florinda, madrugadora como sempre, espreitou pela porta da cozinha a entrada desajeitada das duas jovens. Dias não são dias. – Pensou – É tudo um putedo. Se fosse no meu tempo… É o que aprendem nas televisões. Foi a boa mulher à sua lide enquanto as meninas da casa destilavam bebidas com nome de metralhadora russa e outras mistelas.

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A semana seguinte passou num ápice. Num desses dias, Mónica contou a Sofia a história da sua viagem mistério. Ela ouviu, incrédula, os argumentos de Jorge. Ficou tão confusa como a própria Mónica. Seria possível? - Acreditas nisso? - Não sei Sofia. - Pode muito bem ser verdade, mas deixa comigo. - Que queres fazer? - Eu vou tirar isso a limpo. Por agora só te digo isso. Chegou aquele sábado. O dia de dizer adeus à bela Quinta da Tulipas. Mesmo sem tulipas, ninguém lhe tirava o nome. Seria por pouco tempo. Mónica teria que vir ao julgamento do Jorge, e dos outros dois. Tio e primo. Ficaria tudo em família. Foi o próprio Afonso que levou Mónica ao Aeroporto da Portela. Há muitos anos que não fazia tão longa viagem. Admirou-se com a qualidade das estradas. - Tenho que vir mais vezes a Lisboa. Isto agora é um saltinho. Antigamente era quase meio-dia de viagem. Sofia acompanhou-os. Fez questão de se despedir da amiga nos últimos momentos em que ela ainda pisasse solo lusitano. Mais despedidas tinham ficado para trás. Dona Joaninha, tolhida pela emoção, não conseguiu articular palavra. Beijou-a repetidamente enquanto lhe metia no bolso a imagem do São Cristóvão, padroeiro dos viajantes. Florinda esmagou-a no meio dos seus braços gordos chorando como uma criança. - Ó menina, não se vá embora. Fique cá com a gente. Ou então vá lá matar saudades da mãezinha e volte no mesmo avião. Carlitos deu-lhe um beijo suave e fugiu pela quinta abaixo embrenhando-se no bosque. Não queria que ninguém visse as suas lágrimas. Lágrimas feitas de amor e silêncio.

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Até Alfredo, com o seu ar triste, lhe desejou boa sorte. Depois afastou-se envergonhado. - Este homem é assim: um macambúzio. Nem sei como é que fui gostar dele. Devia estar nevoeiro e não o vi bem. Mónica sabia que, entre muitas mais coisas, iria ter saudades das graças da Florinda. Chegaram ao aeroporto ainda a tempo de tomarem o pequeno-almoço. Depois o relógio acelerou até à hora do resto das despedidas. - Sofia, grazie por me aturares. Grazie por tudo. Ritorno nel mese di agosto, con mia madre. - Quê!? - Volto em Agosto com a minha mãe. - Vou ter saudades tuas, minha italiana do caraças. - Depois vamo-nos divertir muito. Tanto aqui como em Itália. - Em Itália!? - Sim! Quero que conheças o meu país, a minha cidade e os meus amigos. Ainda te arranjo um namorado italiano. Abraçaram-se as duas amigas nadando num mar de lágrimas. - Senhor Afonso. Não há palavras que cheguem para lhe agradecer. O senhor foi um verdadeiro pai para mim. - Não digas isso que eu nunca fui um bom pai. Só fiz o meu dever como homem. Agora vai-te embora antes que também comece por aí a chorar. - Senhor Afonso. Tenho fé que um dia ainda vai ver entrar o seu filho pelos portões da Quinta das Tulipas. Afonso abraçou a jovem com uma ternura comovente. Era tempo de ir embora. Ela afastou-se andando de marcha a trás. Dizia adeus com os dois braços no ar e não cansava de repetir um muito desejado “até breve”. Afonso, aquele homem

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rude e austero, não conseguia reprimir as lágrimas. Pouco depois, o aparelho da “Air Itália” elevava-se no ar e afastava-se a alta velocidade em direcção à cidade das gôndolas e dos canais. Afonso deitou o braço por cima dos ombros de Sofia e afastaram-se os dois. Voltaram a fazer aquela viagem em direcção à Quinta das Tulipas. Uma viagem de silêncio. Mónica já tinha saudades de Veneza. Os acontecimentos das últimas semanas tinham-na marcado de tal forma que viu a cidade com outros olhos. Tudo parecia mais belo e mais cheio de luz, apesar daquela nuvem de nostalgia que, por vezes, lhe toldava o pensamento. Os seus tempos livres eram passados muitas vezes a passear a cidade. Veneza é um dos maiores tesouros culturais e arquitectónicos do mundo. A cidade foi fundada no século V e tornou-se num importante centro mercantil que atingiu o seu apogeu no início do século XV. O seu declínio, a esse nível, deu-se após a descoberta do caminho marítimo para a Índia pelo português Vasco da Gama. As rotas comerciais do Oriente foram desviadas para o atlântico. O que faz da cidade uma verdadeira pérola é o facto de ser construída sobre cento e dezoito ilhas e uma laguna onde fica a ilha de Murano, famosa pelos seus bordados e pelo fabrico do vidro desde o século XIII. Cento e quarenta e sete canais serpenteiam a cidade, atravessados por mais de quatrocentas pontes. Algumas são famosas como a Ponte do Rialto, que cruza o Grande Canal ladeado por belos palácios com varandas de ferro e salpicados de begónias e gerânios. A Praça de São Marcos é das mais belas do mundo. Aí fica a Basílica de São Marcos, o Campanile com os seus noventa e nove metros e o Palácio dos Doges, construído no século XIV. É daí que sai a celebre Ponte

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dos Suspiros atravessando o canal entre o palácio e a prisão estatal. Em mil novecentos e sessenta e seis, inundações catastróficas puseram a cidade em risco de se afundar. De então para cá foram tomadas medidas para evitar tal desastre. Apesar de todas as obras, Mónica e grande parte dos venezianos, sabiam que a cidade estava condenada a uma desgraça. Ela dava “graças a deus” por viver no Sestieri de Dorsoduro, assim chamado por ter um subsolo duro e estável. Chegou a casa de mochila às costas e ar cansado. A mãe recebeu-a com grande alegria e alguma apreensão. Naturalmente quis conhecer todos os pormenores da sua atribulada estadia em Portugal. Laura era uma bela mulher de longos cabelos negros e tez morena. Uma verdadeira beleza tipicamente italiana. O seu corpo mantinha ainda as formas juvenis. Um observador pouco atento e desconhecedor podia concluir que mãe e filha eram irmãs, embora Mónica tivesse herdado mais traços do pai falecido. Entre ambas ficou combinado que iriam a Portugal no Verão. Passariam lá o mês de Agosto e só voltariam em Setembro, após o julgamento de Jorge. Desta vez trocaria o sol e o mar do Algarve pelo verde e a imponência da Serra da Estrela. Trocariam os luxuosos hotéis de faro pela Quinta das Tulipas. Laura era napolitana, mas veio para Veneza com apenas dezassete anos. Foi um caça talentos que a trouxe de um pequeno grupo de teatro amador para o Teatro La Fenice, o principal teatro de Veneza. Tinha o perfil e a aptidão ideal para uma nova peça. Depressa se impôs como uma das maiores jovens actrizes, enquanto solidificava a sua formação musical. Apaixonou-se por Portugal na primeira vez que veio para uma

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representação em Lisboa no Teatro São Carlos. Logo nesse ano escolheu o Algarve como destino de férias. Foi aí, na noite de Faro, que conheceu o futuro marido. Alberto era um “bon vivant” em férias por tempo indeterminado, como ele próprio dizia. Foi amor à primeira vista. Foi tão à primeira vista que Laura regressou a Veneza carregando com Mónica em fase embrionária. Pouco tempo depois, Alberto recebia uma longa carta com um cheque agrafado. A preocupação inicial deu lugar à alegria. Ia ser pai. Juntou os poucos trapos e apanhou o primeiro avião para Veneza. O amor à primeira vista voltou a acontecer assim que pisou solo italiano. Cresceu exponencialmente quando viajou por Florença, Nápoles, Milão, Roma. A sua nova profissão de caixeiro-viajante levou-o a apaixonar-se por toda a Itália. Infelizmente, a morte ceifou-o muito jovem. Um cancro no pulmão mirrou-o até ao último suspiro dado em grande agonia. Laura vestiu-se de luto por fora e por dentro. Transformou-se numa mulher triste e melancólica. Quis mesmo vender o piano e teria vendido se não fossem os protestos da pequena Mónica. Com apenas oito anos já interpretava obras de Mozart e Choupin com admirável mestria. Aos dezasseis anos, Mónica começou a receber flores de Filippo Conti, um gondoleiro oito anos mais velho. Encantava-a com palavras bonitas e presentes que estavam muito acima das suas parcas posses. Filippo era gondoleiro filho de gondoleiro. Desde tenra idade que se habituou a serpentear os canais de Veneza passeando turistas. O seu sonho era ser engenheiro civil. Fascinava-o a ideia de construir obras que fossem admiradas no futuro tal como os turistas admiravam os belos monumentos venezianos. A morte prematura do pai não lhe permitiu voar tão alto. A mãe, fraca de saúde, precisava dele. Dedicou-se à única herança do pai:

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uma bela gôndola para ganhar o sustento. Amava Mónica desde menina. Ela dedicou-lhe uma grande amizade, mas nada mais do que isso. O seu coração ainda não despertara para o amor. Tal só viria a acontecer nas suas primeira férias sozinha em Portugal. Tinha logo que apaixonar pelo homem que a roubou, raptou e quase matou. O coração prega partidas dessas. Bom seria que não fosse assim tão aleatório nas suas escolhas, mas a natureza sabe o que faz. Afinal toda a vida na Terra é o resultado de milhões de escolhas feitas ao acaso. Estamos cá porque a peneira da evolução deixou passar um conjunto de características que fazem de nós aquilo que somos. Se a rede da dita peneira fosse mais larga ou mais estreita seríamos outra coisa qualquer ou até nem seríamos nada. Para tal, bastava que não houvesse condições para que se formasse a primeira molécula de ADN. Também é possível que tal prodígio aconteça em situações extremas. Se assim for, o universo fervilha de vida. O coração de Mónica dizia-lhe para aceitar as justificações de Jorge e para o perdoar. A razão dizia-lhe o contrário, principalmente quando se lembrava do momento em que caiu no lago de mãos e pernas atadas. Quem venceria esta batalha? Ela recordava os bons momentos passados com Jorge. Recordava a sua afabilidade para com ela. Recordava os momentos em que estiveram a sós e em que ele a tratou com todo o carinho e respeito. Mesmo quando a juventude e paixão faziam disparar as hormonas, ele soube sempre respeitar a sua posição. - Não podes fazer amor com uma donna que nem sabe quem é. Até posso pertencer a uma religião que proíba essas coisas.

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- Eu compreendo e sei esperar. Temos a vida toda. Nunca mais te safas de mim, nem que tenha que ir a pé até Itália. - Sabes lá se eu sou italiana!? - Aposto que sim. Claro que apostava. Ganhava a aposta com certeza. Ele sabia bem que ela era italiana. Foi quase a primeira coisa que ela lhe disse naquele bar de Coimbra. Recordava, acima de tudo, a história que ele lhe contou. Seria uma hábil mentira ou seria a realidade? Grande tormento lhe deixava tal dúvida. Era tempo de organizar a sua vida. Teria, acima de tudo, que tomar uma decisão em relação a Jorge. Tanto poderia retirar a queixa e prestar outro depoimento como poderia telefonar ao Senhor Afonso para que ele contratasse o tal advogado amigo. O advogado que o faria passar uns tempos arrecadado do mundo. Longe dos canais do mar adriático, na pátria de Camões e Pessoa, Florinda punha a mesa para o jantar. Os habitantes daquela casa sentavam-se em volta. Havia um lugar vazio. Não era só o espaço físico. Era acima de tudo um vazio feito de saudade era o lugar de Mónica, a chamada “Inês”. Mónica saiu de casa bem cedo. Estava um dia radioso, excelente para passear pela mais bela cidade do mundo. Era assim que ela dizia ao Senhor Afonso. - Signor Afonso, Veneza é a mais bela cidade do mundo. - Dizes isso porque não conheces bem Lisboa. - Sim, mas Lisboa só é bela porque tem duas coisas parecidas com Veneza: a luz e a magia.

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O pretexto do passeio foi fazer compras. Queria enviar presentes aos seus amigos e benfeitores portugueses. Era também uma forma de matar saudades deles. Há quinze dias que tinha regressado a Veneza. Não via a hora de regressar à Quinta das Tulipas. Não eram só as saudades que provocavam tal ânsia. Queria também saber qual seria o destino de Jorge. Seu odiado criminoso? Seu amado herói? Fosse como fosse, jamais esqueceria Jorge. A pensar na Dona Joaninha, levou a câmara fotográfica. Entrou na Igreja de Santa Maria Della Sallut, e fotografou tudo. Era um belo monumento do século XVII erigido em acção de graças por Veneza ter sido libertada da peste. Mais tarde faria o mesmo na Basílica Dei Frari, majestoso monumento gótico situado no Sestieri de San Pólo. Dirigiu-se em seguida ao Rialto. Era aí a zona mais comercial da cidade. Comprou uma gravata para o Senhor Afonso, outra para o Alfredo, um vestido azul celeste para a Sofia, uma t-shirt para o Carlitos e uma toalha com bordados de Murano para a Florinda. Encontrou ainda um livro que haveria de agradar a Dona Joaninha. Tratava-se de uma biografia de Santo António de Lisboa ou de Pádua. - Se calhar havia dois. – Pensou com algum humor. Pegou no telemóvel e ligou a Filippo. Pobre Filippo. Há quinze dias em Veneza e ainda não lhe tinha dito nada. Às vezes duvidava se merecia a amizade dele. - Já vieste!? Até que enfim. Nunca deste noticias. Andava preocupado. - Nem imaginas o que me aconteceu. Vem ter comigo à Praça de São Marcos. Encontraram-se pouco depois na esplanada do costume. Ele vinha apreensivo. - Então o que é que aconteceu? - Senta-te e ouve-me.

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Mónica contou todas as peripécias vividas em terras de Camões. Ele escutou sem grandes intervenções. Ele sabia bem que ela não gostava de ser interrompida quando falava. Ficou boquiaberto com tanta aventura. Uma única pergunta no fim de tudo. - Amas esse Jorge? - Não sei. - Hum. Parece-me que sim. Quando falas nele há um brilho nos teus olhos. - Deixa-te de romantismos. Ele foi um patife para mim. - Sim e até gostava de lhe esmurrar o focinho, mas acho que ele te apanhou. - Estou confusa Filippo. Muito confusa. - Não há confusão nenhuma. É tudo bem claro. Estás apaixonada por ele. Está escrito na tua cara. Apanha um avião e vai para Portugal. Tira-o da cadeia e fica com ele. Filippo falava com brusquidão. Estava zangado com o mundo. Apesar de tudo mantinha uma secreta esperança em relação a Mónica. Uma esperança que se desvanecia agora com o aparecimento desse canalha português. - Não sejas parvo. Agora vou para casa. Passa por lá logo à noite. - Talvez. Mónica despediu-se de Filippo e regressou a casa. A mãe veio-lhe abrir a porta. Ela ficou especada à entrada. Algo tinha acontecido. Seria bom ou seria mau? Laura tinha um sorriso e uma lágrima no rosto. Fazia lembrar as duas máscaras que são o ícone do teatro: a tragédia e a comédia. Afinal ela era actriz, mas em qual das duas devia acreditar? - Porque choras mãe? Laura limpou a teimosa lágrima com a cota da mão. - Também podias perguntar porque me estou a rir!

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- Que aconteceu? - Estás preparada para a maior surpresa da tua vida? - Credo mãe. Não me aflija mais. Que se passa? - Entra e já vais ver.

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Capitulo 11 - Entra filha. Vai à sala que tens lá uma surpresa. Uma boa surpresa. Apesar do sorriso, a sua voz era modulada pela comoção. - Que surpresa!? - Já vais ver. Vai à sala e já vais ver. Ela correu para a sala e ficou boquiaberta. Uma onda de grande alegria fez estremecer o seu corpo até às profundezas da alma. Sentado no sofá estava o Senhor Afonso e ao seu lado, de pé, estava a Sofia com um largo sorriso entalado entre as duas graciosas covinhas do rosto. Mónica correu para eles. - Signore Afonso! Sofia! Vocês aqui!? Que alegria. Estava louca de saudades. Abraçaram-se os três sem poderem evitar que a emoção lhe molhasse os olhos. Mónica inundou-os com um mar de perguntas. Queria saber tudo. - A Dona Joaninha? - Sempre de volta dos santos essa minha irmã. Quando morrer vai a direito para o céu. - E os teus pais, Sofia? - O meu pai é aquele feitio de sempre, a minha mãe passa a vida a falar na “nossa menina”. - E o Carlitos? - Anda triste como a noite. Passa os dias empoleirado na carvalha a olhar para o vazio. Coitado. Sabes como é? Isso passa-lhe. - Tenho pena dele, mas não posso fazer nada. Ninguém manda no coração. Mas nem acredito que vos tenho aqui. Que bom, que bom, que bom. Morria de saudades vossas. Laura aproximou-se e dirigiu-se a Sofia.

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- Venha comigo. Quero mostrar-lhe a casa e o jardim. Sofia foi logo atrás dela sorrindo. Sorrindo sempre e olhando de lado para a amiga. Mónica ficou desconfiada de algo que não sabia o quê. Que pressa teria a mãe em privá-la da companhia da amiga portuguesa!? Aquilo parecia-lhe encenação entre as duas. Assim que desapareceram pela porta do corredor, Afonso sentou-se e respirou fundo. Adquiriu um ar grave que começou a preocupar Mónica. Era certo que ali havia algo novo. Bom ou mau? Começou a ficar impaciente. - Que se passa Senhor Afonso? - Senta-te Inês. É bom que estejas sentada para ouvires o que tenho para te dizer. - Que se passa!? Mónica, já aflita, ergueu a voz. - Tem calma que não se passa nada de mau. Muito pelo contrário. Deixa-me explicar. - Então explique-se. - Não foram só as saudades que me trouxeram a Itália. Há algo de muito importante que já devias saber. Por isso agora senta-te e escuta-me. - Bem me pareceu que havia aqui mistério. Por favor, vá direito ao assunto. Eu não suporto rodeios. - Eu também não sou de rodeios. Por isso senta-te e ouve-me. Aquilo que te vou contar é algo de grande importância para todos nós. Principalmente para mim e para ti. Mónica sentou-se apreensiva. Que raio se passaria? Quando ia para perguntar decidiu ficar calada. Tratou de se acalmar enquanto Afonso escolhia as palavras. - Lembras-te de tanta estranheza por te chamar Inês? - Sim, lembro. Até lhe perguntei e o Senhor explicoume. - Explicar, não expliquei. Levei-te a descobrir.

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- Ah sim. Agora me lembro. Descobri no salão do piano quando vi o retrato da sua esposa. Somos parecidas. - Tu e a minha esposa parecem-se como duas gotas de água. Os mesmos olhos. O mesmo sorriso. O mesmo tom de voz. Até os mesmos gestos, maneira de andar e tudo o mais. - Sim. Reparei que aquele quadro em sua casa era como que se fosse o meu próprio retrato. Senhor Afonso. Foi por isso que se afeiçoou tanto a mim? - Cumpri o meu dever em socorrer-te, mas admito que sim. Tanta semelhança acabou por mexer com o meu velho coração. - Uma fantástica coincidência. Um capricho do destino. - Agora falaste errado e certo. - Não entendo! Onde quer chegar? - Coincidência: errado. Capricho do destino: certíssimo. - Agora é que não percebi nada. Senhor Afonso deixese de jogos com as palavras e vá direito ao assunto. Estou cada vez mais confusa. - Ainda não adivinhas-te!? Não é coincidência nenhuma seres parecida com a minha esposa. Digamos antes que é genética. - Genética!? Genética como!? Afonso levantou-se de rompante. Parecia que algo explodia dentro dele. Ergueu a voz enquanto estendia os braços a Mónica. - É genética sim Inês. Tu és a cara chapada da tua avó. Para Mónica, chamada Inês, foi como se recebesse um murro no estômago. Toda a sua vida girou no seu pensamento num centésimo de segundo. O pai era português. O pai dizia que tinha ficado órfão de pai e mãe no mesmo dia. Era verdade em relação à mãe, mas o pai estava bem vivo apesar de ele o ter morto no seu coração. Por momento odiou o pai ou a sua

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memória. Afinal tinha uma família portuguesa. Uma fabulosa família. Afinal era neta do Senhor Afonso e sobrinha da Dona Joaninha. Afinal não era só uma jovem italiana de ascendência lusa. Era também uma parte da família Ferreira residente na Quinta das Tulipas virada para a Serra da Estrela. Estava sem palavras. Olhava fixamente para a foto de seu pai colocada num móvel de canto em moldura de prata. Olhava para a mesma foto que Afonso fitava com ar sorumbático. Queria falar, mas não conseguia. Também não conseguia desviar os olhos do retrato do pai. Agora via claramente visto traços do Senhor Afonso no rosto paterno. Era tudo tão claro. Tudo tão surpreendente e, acima de tudo, tudo tão bom. Afonso reparava agora no olhar da sua neta nascida do lago da quinta. - Sim Inês. Aquele é o teu pai. Aquele é o meu filho Alberto. Apesar do torvelinho de perguntas que se aglomeravam na cabeça de Mónica, naquele momento só lhe ocorreu um gesto. Caiu nos braços do velho Afonso entre lágrimas, soluços e sorrisos. Muitas montras tem a alma humana. Laura e Sofia tinham entrado silenciosamente na sala e observavam a cena. Também elas tinham os olhos marejados de lágrimas. Nem sempre as lágrimas são salgadas. Estas eram doces de alegria. Foi Laura a primeira a atrever-se a falar. - Belo quadro: avô vaidoso e neta feliz. - Mãe. Tu sabias disto? - Não, minha filha. Fiquei tão surpreendida como tu, embora compreenda agora algumas das últimas palavras do teu pai. Na altura pensei que fossem proferidas em delírio, mas agora sei que não. - Foi a vez de Afonso ficar surpreendido. - Por favor senhora. Fale-me desse momento. É duro, mas eu já aguento tudo.

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- Pode ser duro falar nisso, mas também acredito que vai gostar de ouvir meu caro sogro. As boas notícias ainda não acabaram. - Conte-me. - Foi dois dias antes de falecer. Eu estava com ele no hospital. Ele já pouco falava, mas nesse dia melhorou de repente. Diz-se que é sempre assim: as pessoas melhoram para morrer a seguir. É como o canto do cisne. - Por favor senhora vá direita ao assunto. - Ele agarrou-me nas mãos e disse as seguintes palavras que eu memorizei no momento e escrevi mais tarde para nunca mais esquecer. Laura abriu uma pequena gaveta de onde tirou uma folha de papel. - Escutem. Estas foram as suas últimas palavras: “Laura, o meu pai é o melhor médico do mundo. Estou a morrer por minha culpa. Ele salvava-me se aqui estivesse e se eu não fosse tão estúpido. Não digo que lhe vou perdoar porque ele não tem qualquer culpa. Eu é que lhe peço perdão por ser a besta de um filho que ele não merecia”. Afonso fitou mais uma vez o retrato do filho. - Isso quer dizer que o meu filho me perdoou? - Sim senhor. O Alberto deixou de o considerar culpado pela morte da sua esposa. Agora sou eu a pedir desculpa. - Porquê? - Depois das palavras do meu marido devia ter adivinhado que ele não era órfão como sempre me tinha dito. Devia tê-lo procurado, mas a dor de perder o Alberto não me deixou pensar. Também a ti peço perdão minha filha. Há muito tempo que podias conhecer o teu avô e demais família.

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Afonso abanou a cabeça e abraçou-se à nora. Mónica juntou-se a este abraço de família. Foi Sofia, até ali calada, que interrompeu a cena. - Bem. Isto parece a igreja na Quaresma. É só pedidos de perdão. E que tal se acabassem com a choradeira e fossemos almoçar em festa? Hoje, com tantos encontros, é dia de festa. Afonso concordou. - Tens razão Sofia. Hoje é dia de festa. Vamos almoçar e quem paga sou eu. - Não senhor. Em Itália pagam os italianos. - Menina Laura, não me contrarie. - Meu caro sogro. Estamos na minha terra, na minha casa, quem manda sou eu. - Minha cara nora, respeite os meus cabelos brancos. Sofia acabou por dar uma palmada na mesa. - Então!? Ainda agora se conheceram e já parecem nora e sogro!? Porque é que não pagam a meias? Mónica telefonou a Filippo a convidá-lo para o almoço. Ele aceitou e apareceu pouco depois. Almoçaram em grande alegria. Contaram-se anedotas portuguesas e italianas. Mónica fez as devidas apresentações. - Filippo, este é o meu avô e esta é a minha amiga Sofia de quem já te falei. Este é Filippo, um amigo muito grande. Um autêntico irmão. Filippo ficou um pouco confuso com o aparecimento daquele avô de Mónica, mas não ligou importância. Só via a Sofia. A partir daquele momento só conseguia ver e pensar em Sofia. Ela também ficou intimidada com aqueles olhos verdes e aquele largo sorriso. Mónica demoraria algum tempo a ver que as setas de Cupido andavam a fazer estragos para aqueles lados.

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Durante o almoço, Mónica ficou a saber de toda a investigação desencadeada por Martinho. A ultima pista que tinham do falecido Alberto apontava justamente para Itália. O sotaque italiano de Mónica e a incrível semelhança com a avó Inês levaram à suspeita. Ela própria confirmou os pressentimentos ao dizer o nome do pai quando recuperou a memória. O teste do ADN feito com o cabelo e a investigação da sua ascendência feita pelas autoridades italianas a pedido de Martinho levaram à certeza absoluta. Após o almoço foram passear os três jovens. Laura e Afonso tinham muito para conversar. Mónica seguiu à frente com espírito de guia turística. Estava no seu habitat e queria devolver a Sofia a hospitalidade que tinha recebido em Portugal. Enquanto ela indicava o nome das ruas, praças e monumentos, Filippo e Sofia trocavam sorrisinhos e olhares arrebatadores. Entraram na Basílica de São Marcos. Mónica mostrava o seu estilo bizantino com influências românicas, góticas e renascentistas . Não obtendo qualquer resposta ou comentário olhou para trás. Filippo e Sofia estavam-se nas tintas para o estilo gótico em geral e para o bizantino em especial e beijavam-se apaixonadamente sem nem sequer pensarem no solo sagrado que pisavam.

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Capitulo 12 - Então tu e foi só chegares a Itália e pronto! Roubasme o rapaz. - O quê Mónica!? Tu e o Filippo? Mónica sorriu para tirar a aflição à amiga. - Estava a brincar. Eu e o Filippo somos bons amigos, embora ele seja meio apaixonado por mim. Estás à vontade e até fico muito feliz por ti e por ele. As duas raparigas passeavam pelo Rialto. Sofia queria fazer compras para ela e para toda a gente. - Mónica. Há uma coisa que te quero contar. - Diz. - Fui a Coimbra visitar o Jorge. Mónica estacou de repente. Com tanta confusão até se tinha esquecido do Jorge. Também nem sequer imaginava que a Sofia tivesse notícias dele. - Como está ele? - Mal, muito mal. Contou-me tudo o que se passou com todos os pormenores. - Qual versão? A realidade ou a história dele? - Em qual acreditas? - Gostava de acreditar naquilo que ele me contou a mim. - Pois, também não me esqueço que foste falar com ele e não me disseste nada. Grande amiga. - Desculpa, mas foi tudo muito complicado para mim. E depois contei-te. - Sim. Contaste dias depois. Bateu-te o remorso, não foi? - Não quis chatear mais ninguém com os meus problemas.

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- Os problemas são para partilhar com as amigas. - Ok. Desculpa. - Sabes uma coisa. O Jorge não mente. Ele não foi muito homenzinho, mas não está a mentir. Eu usei um truque. - Que truque? - Disse-lhe que estava zangada contigo e que nunca mais te queria ver. Depois pedi-lhe que me contasse tudo ao pormenor. A história coincide em tudo com o que te contou a ti. Nenhum aldrabão consegue contar a mesma aldrabice duas vezes seguidas. Mentir é fruto da imaginação e essa está sempre a variar. - Mas que grande teoria! Agora deixa lá o Jorge. Falame de ti e do Filippo. - Estamos muito bem. Ele quer ir comigo para Portugal. - Que bom! - Falei com o teu avô. Ele foi falar com o Filippo. Estiveram mais de uma hora a conversar e pronto. Vamos todos para Portugal. Eu, tu, o teu avô, a tua mãe e o Filippo. É quase um avião cheio. Daí a dias, a Air Itália transportou-os a todos confortavelmente até terras de Portugal. O Senhor Afonso revelou-se um verdadeiro ás do volante até à Quinta das Tulipas. Os braços de Florinda e Dona Joaninha abriram-se para receber Mónica. - Minha querida sobrinha. Bem vinda a esta casa. A tua casa. Florinda afastou a pobre senhora quase atirando com ela. Mónica sentiu mais uma vez o seu poderoso abraço. - Ai menina, tenho andado doidinha de todo. Não digo coisa com coisa. Então a menina é mesmo filha do menino Alberto que Deus tem!? Que surpresa boa!

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- Olá mãe. Olá pai. Sofia apresentava-se. Filippo vinha atrás pouco à vontade com aquilo tudo. Alfredo estava ao fundo da varanda espremendo a boina com ambas as mãos. Foi a mãe a primeira a abraçar a filha. - Então rapariga. Gostaste da Itália? Não tiveste medo dos aviões? - Gostei muito. Gostei tanto que até tenho uma surpresa. - O que foi? - Apresento-vos o Filippo. É meu namorado. Florinda mirou o desalentado gondoleiro de alto a baixo. - Ó minha cabra do Tibete! A quem pediste autorização para namorar? - Mãe, tenho dezoito anos. Quase a fazer dezanove. Florinda, rápida e concisa, apontou o dedo inquiridor a Filippo. - Você promete estimar e respeitar a minha filha? O rapaz, atrapalhado, fez um gesto afirmativo. - Olha lá, ó meu italiano do caraças, tu vê lá o que dizes. Se vens para aqui só com ideias no truca-truca, ponho-te a dar com os calcanhares no cu até à Itália! Filippo não percebeu nada. Pôs o braço por cima dos ombros de Sofia como que a pedir socorro. Florinda lembrouse do marido. - Tu não dizes nada!? Alfredo mastigou em seco escolhendo as palavras. - O que estiver bem para vocês, também está bem para mim. - Estás um bom pamonha. Queres é trato e loja. Triste peido deu Adão. Afonso decide acudir à situação.

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- Florinda, o rapaz é bom rapaz. É amigo da minha neta há muitos anos. Fica descansada. - Se assim é, está bem. Namorem lá à vontade, mas tenham juízo. Laura também foi apresentada deixando toda a gente encantada pela sua beleza e fino trato. Pouco depois chegava Martinho. Após cumprimentos abraçou Mónica. - Então a menina vem de Veneza aterrar no lago da quinta do seu avô!? Que grande pontaria! - É o destino Dr. Martinho. Um crime deu em milagre. A propósito, precisava de falar consigo a sós. - Tudo bem. Afonso, podemos usar a biblioteca? - Estejam à vontade, mas aviso que o jantar é daqui a uma hora. Foi mais ou menos esse tempo que demorou a conversa privada. Quando saíram esperava-os um sumptuoso jantar em honra de Mónica. Sentaram-se à mesa Afonso, Mónica, Dona Joaninha, Alfredo, Sofia, Filippo, Laura e Carlitos. Este último estava feliz como nunca por voltar a ver aquela menina que um dia apanhou à beira do lago. Florinda servia o jantar. Mariscos para entrada, bacalhau com natas e leitão como pratos principais, sobremesas diversas e o bom vinho da região. Antes dos doces, Mónica levantou-se. - Posso fazer um discurso? Afonso condescendeu com reservas. - Podes, mas não fales muito por causa do arroz-doce. - Mas primeiro também quero a Florinda à mesa. - Está bem menina. Você agora também é patroa. - Começo por agradecer por me terem socorrido naquela noite. Agradeço também pela forma como fui tratada nesta casa. Quero agradecer a Deus ou ao destino que,

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anulando distâncias, uniu pessoas que sempre deviam estar juntas. Afonso interrompeu. - Minha querida neta, deixa-te de agradecimentos e vamos passar ao arroz-doce. - Desculpem, mas antes quero comunicar duas decisões e fazer um pedido. Falei com o Dr. Martinho sobre a possibilidade de alterar o meu nome de Mónica para Inês. Não são coisas da sua competência, mas prontificou-se a tratar de tudo. Martinho explicou. - Primeiro tem que adquirir nacionalidade portuguesa, depois resolve-se isso. Tenho amigos nos serviços… Afonso atalhou. - Tens cunhas, não é? Tu devias chamar-te Martinho da Cunha. Quanto ao resto, fico muito feliz por ter uma neta de nome Inês. Verdadeiramente “Inês”. A futura Inês continuou. - Também tomei outra decisão muito mais importante. Como todos sabem, quando estava sem memória, apaixonei-me pelo Jorge. Depois fiquei cega de raiva, mas algo me dizia que não devia odiá-lo. A forma como ele me tratou nesses dias indicava que ele não podia ser assim tão vil. Depois conversei com ele na prisão. Quase fiquei convencida, mas ainda duvidosa. Reflecti muito sobre o assunto. Depois a minha amiga Sofia que também falou com ele acabou por me convencer que ele não é um bandido e que até lhe devo a vida. Mesmo alguns ressentimentos também já estão esquecidos. O amor é mais forte. O amor é a maior força do universo. Assim decidi retirar a queixa contra ele e contra os outros dois. Martinho confirmou.

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- Já telefonei para Coimbra. São postos em liberdade ainda hoje. Os outros dois não mereciam, mas trata-se do mesmo processo. Mónica retomou o discurso. - Talvez lhe sirva de lição. Ninguém é infinitamente mau nem infinitamente bom. Sempre é tempo de mudar. Todos aplaudiram de pé. Carlitos, apesar de não ouvir, compreendeu tudo e baixou a cabeça por instantes. Depois acabou por aplaudir também. Mónica levantou o braço fazendo lembrar um imperador romano que acalma as multidões. - Agora tenho um pedido a fazer ao meu querido avô. O Filippo é meu amigo do peito. Somos como irmãos. Ele e a Sofia têm um futuro para construir juntos. Gostava que ele ficasse aqui connosco. Afonso levantou-se. - Agora é a minha vez de falar. Preferia depois do arrozdoce, mas paciência. Fica sabendo minha neta que o teu avô está velho, mas não anda a dormir. Ainda em Itália conversei com o Filippo e sei que ele tem um velho sonho de estudar engenharia. O sonho comanda a vida. Filippo fica aqui a viver e vai estudar até ser engenheiro. Nova salva de palmas. Sofia beijou Filippo desencadeando o protesto de Florinda. - Ó menina, não quero ver poucas-vergonhas à mesa. Afonso continuou. - Tenho outra novidade. Contactei o Teatro Nacional Dona Maria II. Eles precisam de uma actriz para uma nova peça que vai entrar em produção. A minha nora tem o perfil indicado para o papel. Caso aceite, é só assinar o contrato. Terá que viver em Lisboa, mas esta é a sua casa. Laura levantou-se comovida e foi abraçar o sogro.

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- Obrigado meu caro sogro. Esse é um sonho de uma vida. O seu filho está ver-nos do céu e está muito feliz. - Trate de ir a Itália, venda a casa e volte depressa para cá. Quanto ao meu filho, também foi a pensar nele que tomei outra decisão. Já contactei a Universidade de Coimbra e a Ordem dos Médicos. Vou dar aulas para a faculdade e desenvolver investigação no tratamento de diversos cancros. Dentro em breve podem voltar a chamar-me Doutor Afonso. E agora para terminar e ainda antes do arroz-doce, quero pedir uma coisa aos jovens. Inês, Sofia, Filippo e o Jorge que deve vir amanhã. Peço-vos que não andem para aí a engonhar. Tratem de pôr esta casa cheia de crianças a correr por todo lado. Florinda levou as mãos à cabeça. - Isso Senhor Afonso! Dê-lhe corda que eles já têm pouca. Não sabe que essa canalhada está sempre pronta para a cavalgada!? E o senhor ainda os manda!? - Ó Florinda, cala-te. Vamos lá ao arroz-doce. Riram todos com gosto. Há muitos anos que não se ouviam tantas gargalhadas naquela casa. No dia seguinte, a Quinta da Tulipas, acordou com o poderoso roncar de um motor. Mónica vestiu-se à pressa e veio a correr para a rua. Jorge esperava-a sentado em cima da moto de capacete na mão. Antes de qualquer palavra caíram nos braços um do outro. Um longo beijo despertou a paixão que habitava em ambos e que os unia com fulgor. - Obrigado Mónica. - Eu não sou Mónica. Sou Inês. Estou a mudar de nome. - Obrigado Inês. - Não me agradeças. Dá-me apenas um beijo. - Amo-te Inês.

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- Amo-te patife. Abraçados percorreram o jardim. Atravessaram o prado em direcção ao lago. Aquele lago que tanto aterrorizara Inês e que agora lhe parecia tão belo. Ela decidiu baptizá-lo com o nome “Lago dos Amores”. Do cimo da carvalha, Carlitos observava a cena chorando copiosamente. Dias depois, Afonso descansava na sala do piano. Tinha mandado afinar o belo instrumento. Todas as noites havia música naquela casa. Voltava a haver música e alegria como antigamente. Afonso olhou para o retrato da sua Inês e sorriu. Por qualquer ilusão de óptica ou porque o desejasse, pareceulhe que ela sorriu também. O encanto foi quebrado com a entrada de Florinda. Vinha esbaforida. - Olhe Doutor Afonso. Eu bem o avisei para não dar corda à garotada. Isto é uma pouca-vergonha nesta casa. A sua neta, o Jorge, o italiano e a cangorsa da minha filha passam a vida no arrolhanço. Abraçam-se, beijam-se e lambem-se em todo lado. É o que aprendem nas televisões. - Ó mulher, deixa lá a juventude viver. Só tenho pena não ter a idade deles. - Pois é, mas agora deu-lhe para pior. - Para pior!? - Andam todos a cavar o jardim. Derretem tudo quanto lá há. - Eu já vou ver. Afonso foi à varanda. Lá andavam os quatro jovens de enxada, pá, ancinho e outras ferramentas de jardinagem. - Posso saber o que raio é que vocês andam a fazer!? Foi Inês que respondeu. - Então avô! Andamos a plantar tulipas. Tem lógica, não tem?

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Claro que tinha l贸gica. Afonso ficou debru莽ado na varanda observando aqueles rapazes e raparigas que na verdura da idade plantavam ali o futuro em forma de flor. Muito em breve voltaria a haver tulipas na Quinta da Tulipas.

Fim

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