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Hélio Coelho - Texto de Neusa Mendes

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Júri

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“SONHAR COLORIDO FAZ BEM”

Hélio Coelho, artista visual, autodidata, oriundo de Resplendor (MG), residente há muitos anos em Vila Velha (ES). A obra de Hélio atua nas zonas limítrofes dos encontros que se dão em um universo muito particular, nas vias do acúmulo e da repetição, mas que de certa forma se tornam reconhecíveis a todos, entre o real absoluto e a experiência, levando a pintura para o desenho, e vice-versa. Para além, o gesto engendra ambos. Na verdade, é importante um relato temporal acerca do meu encontro com Hélio Coelho, exatamente em 1980, pelas mãos de Antonio Claudino de Jesus, por ocasião da exposição “Unidade na arte – pelas liberdades democráticas”. Coordenei a mostra, dedicada aos artistas Oduvaldo Viana Filho, Coracy Coelho Leal, Mestre Galdino e Antônio Rosa, que aconteceu na Galeria de Arte Espaço Universitário (Ufes), de 9 a 22 de abril de 1980, uma promoção de Inap, Seac, MEC, Funarte, SRC, Ufes. Participaram Eduardo Pignaton, Hélio Coelho, Marcos Santolim, Margô Dalla, Marta Baião, Murilo Rocha, Orlando da Rosa Farya, Sérgio Lucena Mendes e eu, Neusa Mendes.

Naquela época, Hélio Coelho trabalhava numa grande fábrica de chocolates em Vila Velha. Ele apresentou, nessa mostra, uma série de desenhos e ilustrações feitos à mão, sobre papel, na técnica de bico de pena, na cor preta. Os desenhos retratavam a beleza de uma cidade. Hélio descreve-a em finas linhas, de forma visível, exata e leve. Traça caminhos possíveis, das construções existentes com telhados, portas, portões e janelas, elevações e perspectiva, para ali exercitar um olhar que abranja elementos que não são comumente, ou facilmente, formas canônicas de representação do sistema construtivo do agora. Permitia-me reconhecer, nessa série de paisagens, a semelhança com a cidade Ouro Preto (MG), mas nunca me atrevi a perguntar ao artista se, porventura, havia passado por lá.

Particularmente considero que muitas questões levantadas pelos artistas do movimento gerado pela exposição interrogativa “Como vai você, Geração 80?”, no Parque Lage, Rio de Janeiro, foram apreendidas rapidamente pela poética estética de Hélio Coelho. A exposição torna-se uma referência importante para a compreensão de algumas direções tomadas pelas artes visuais na década de 1980, período de abertura política que começava a ser sentida no início dos anos 80, com o movimento Diretas Já entre 1983 e 1984. O diálogo com a Geração 80 faz Hélio articular outras visualidades, como operar em grande formato e abordar signos implícitos ou explícitos dos cartuns, como o vigor da simples repetição e a produção de comentários muitas vezes irônicos. Experienciam-se novas possibilidades. Nesse momento, as obras de Hélio ganham novos contornos

e chamam a atenção dos visitantes e críticos de arte, das galerias e espaços culturais, obtendo notoriedade local e nacional.

A trajetória de Hélio fez com que estivesse presente na primeira edição do projeto “Procedência/80”, em 2001, na Galeria de Arte Espaço Universitário. O título abarca uma série de exposições, das quais fiz a curadoria, cujo objetivo era indicar, dar voz a nomes que se destacaram no panorama artístico, a partir de meados dos anos 70 até os anos 80, aqui no estado. A ideia surgiu a partir de um mapeamento que propunha apreciar, organizar e dar visibilidade a essa produção. A pesquisa demonstrou que a geração atual desconhecia completamente os trabalhos realizados por artistas das gerações anteriores. O trabalho de Coelho tornou-se foco do projeto neste momento. O texto de apresentação da exposição foi escrito pelo artista e professor Orlando da Rosa Farya, que elevou a conduta, o mérito e a conexões contidas na poética heliana, capazes de expandir o círculo de empatia humana. Nas palavras de Lando:

Hélio transborda em tinta, em cor, em forma

Hélio se transmuta fugaz que é. volatiza, espalha extrapola. se inflama. nos aquece a alma como quem não quer nada com calma detalha, medita, trabalha faz arabescos. escrita, poemas verdes, amarelos, azuis. vermelho grita, cheio de rodeios desenha o carro, a casa, a cidade o que lhe chega a vista. Hélio é banquete. um bom pasto pros olhos um deleite pra alma se oferece em molhos. empadas como entrada sobremesa além das saladas. como prato princial. Coelho. Em 2018, com o diretor do Museu Vale, fiz a curadoria da exposição “20 anos de Museu Vale. 20 artistas do Espírito Santo”. Durante cinco meses, de março a julho de 2018, buscamos entender como as práticas e poéticas dos artistas podem suscitar novas maneiras de se fazer e pensar a arte, que sentidos elas constroem e que narrativas se explicitam. O resultado, escolhemos 18 artistas da novíssima geração e 2 mestres, aos quais a arte muito deve: Hélio Coelho faz parte dessa mostra como referência: Coelho é um dos mestres.

Com o ofício de revelar, por gestos, emoções, sentimentos e ideias, os desenhos/pinturas de Hélio Coelho são linguagens surgentes. Configuram-se por meio de aparições, com toda a pureza d’alma. Hélio denomina a sua mão como tagarela e conta que, desde pequeno, para silenciar a casa, à hora de dormir, a mãe de Hélio, Dona Dora, munia-o de lápis e papel: a ponta do lápis maciço na fricção do papel, o som ressoando contínua e ininterruptamente: “Tenho a mão tagarela (...), é comum eu sonhar com as pinturas. Sonho com as imagens falando comigo, sonho até com as coisas que ainda não pintei. As cores também ficam falando (...). Sonhar colorido faz bem”.

O atrito do lápis no papel, um silenciar para poder dormir, a pintura como um sonho. Sonho atravessado por linhas, formas e cores, que trazem as remotas imagens, ora definidas, que lembram formas marinhas; ou umas que se assemelham a espaços urbanos, numa sensação de paisagens organizadas; e outras, formas vitais e obsessivas de signos do planeta, figuras humanas, flora, fauna, símbolos sociais e históricos; imagens que, por meio de relações combinatórias, se influenciam umas às outras. Não à toa, a obra do artista abrange tanto o biográfico quanto o universal, com a possibilidade, mesmo que utópica, de um sistema mais fluido e plural, como os próprios seres humanos.

É incontornável não aludir, aqui, ao tema que domina o mundo neste momento: “a guerra contra um vírus” que pausou o mundo, ameaçando a existência do Homo sapiens, e que interrompeu a rotina de vida, fechando os espaços públicos, vilipendiando os idosos e encaminhando-nos rumo ao desastre e à ruína social. A partir desse marco doloroso, definido pela triste surpresa de uma pandemia que assola o mundo, é consensual o entendimento de emergência do tempo, de alteração irremediável das coisas rotineiras, em que a vida passa a ser construída de um lado a outro através da janela digital. Mas esse contexto também nos confirma o quanto a obra de Hélio pode ser medida no aqui e agora! Para o povo Yanomami, o branco que não conhece o segredo da criação mexe com as regras de Omana, por sua avareza e cobiça material: “escavando tanto, os brancos vão acabar até arrancando as raízes do céu” (Xamã Kopenawa1). A obra Pele, do artista Hélio Coelho, age como método e materializa o seu desejo de transformar o mundo em uma representação espiritual, mediando os conteúdos simbólicos dos Yanomami. Nesse trabalho, Hélio reinstala um corpo circunscrito de dulçor, de brilho, de luz e de sonho. Este “sonhar colorido faz bem” torna-se, nas mãos do artista, um manifesto e uma possibilidade de realinhamento dos orgasmos viventes no planeta Terra. É necessário registrar o quanto foi indigente a realização deste trabalho. Organizar esta edição, neste momento, é resistir ao tempo tosco que estamos vivendo. Torna-se impossível ficar quieta diante da incompreensão do que é o nosso país. O Brasil é um país plural! Entretanto, como o universo é algo extraordinário, Lucia Caus foi uma grande maestrina, e profética ao mesmo tempo, sobretudo pela capacidade de urdir relações, ao convidar Gilberto Gil e Antonio Claudino de Jesus, como homenageados, e o artista Hélio Coelho, sujeito afável, homem luminoso que colocou à disposição a sua poética colorida, para dar voz altiva à esperança. Gil, Claudino e Hélio são como árvores prodigiosas, crescem exuberantes, lançam ramadas até o céu.

Este encontro reafirma que a construção de um país que sonhamos, e que vamos conquistar, será feita com as mesmas armas dos artistas da Geração 80, exatamente na direção que o crítico de arte Frederico Morais aponta: acreditar “ser a arte capaz de transformar o mundo” e iludir-se “com as utopias sociais”2 . Gostaria de concluir este texto com a frase do artista Hélio Coelho, plena de poesia, que conduziu a 27ª edição, por consagrar o conceito de ação na condição humana:

“SONHAR COLORIDO FAZ BEM”. As cores, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se fizermos delas ESPERANÇA. A 27ª edição do Festival de Cinema de Vitória será um manar frutífero, não é, Hélio Coelho?!

Neusa Mendes

Primavera de 2020

1 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo : Companhia das Letras, 2015. 2 MORAIS, Frederico. Cronologia das artes plásticas no Rio de Janeiro: da Missão Artística Francesa à Geração 90: 1816-1994. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

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