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EDUCAÇÃO E CULTURA: o cinema em questão

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PREFÁCIO

PREFÁCIO

Carlos Daniel dos Santos Trindade Cabral Beatriz Brandão Maylta Brandão dos Anjos

Introdução

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O hábito de assistir a filmes é algo que a sociedade vem cultivando desde que os irmãos Lumière desenvolveram a sétima arte, anteriormente pensada por volta do século XIX por Leon Bouly como “fotografias animadas” que retratavam as cidades. No Brasil, a chegada deste invento não demorou e apenas seis meses após sua criação, em 1896 na cidade do Rio de Janeiro, houve a primeira sessão de cinema. Neste, que pode ser chamado primeiro momento do cinema no Brasil, existia poucas salas de projeção fixas e quase todo material a ser exibido era importado, onde a presença estrangeira na mão de obra das poucas produções locais era fortemente identificada.

O Brasil era fundamentalmente um país exportador de matériasprimas e importador de produtos manufaturados. As decisões, principalmente políticas e econômicas, mas também culturais, de um país exportador de matérias-primas, são obrigatoriamente reflexas. Para a opinião pública, qualquer produto que supusesse certa elaboração tinha de ser estrangeiro, quanto mais o cinema (BERNARDET, 1978, 80). Todavia, a chegada da sétima arte trouxe possibilidades diversas, não apenas no âmbito mercadológico de produção e criação de oportunidades econômicas, mas como uma oportunidade de, dentro do processo de criação, ser mostrado um pouco do país e de sua cultura. Por exemplo, por volta de 1910 através da Comissão Rondon, o cinegrafista Luis Thomas Reis, produziu diversas imagens de tribos e da cultura indígena, fazendo com que o cinema assumisse um caráter etnográfico e documental de valor científico, assim como meios de registrar a produção artística e cultural.

No início do século XX, o cinema permitiu uma nova possibilidade com o nascimento dos filmes de ficção, neste momento ao invés de registrar, vislumbrava a oportunidade de criar uma nova realidade, uma realidade inventada, recriada ou apenas possível de ser imaginada. Os filmes conquistaram a possibilidade de criar e difundir hábitos, e passam a ser tomados como uma produção cultural, tanto influenciando, quanto criando e revelando costumes, e ainda exibindo traços, sinais e símbolos da cultura presentes em um dado momento histórico. Nos estudos de Fabris (2008) essa face do cinema se evidencia da seguinte forma:

[...] passei a tomar o cinema como uma produção cultural que não apenas inventa histórias, mas que, na complexidade da produção de sentidos, vai criando, substituindo, limitando, incluindo e excluindo realidades [...] como produções datadas e localizadas, produzidos na cultura, criando sentidos que a alimentam, ampliando, suprimindo e/ou transformando significados (FABRIS, 2008, p. 120). O pioneiro desta nova forma de se fazer cinema e criador da tão admirada “magia do cinema” foi o francês Georges Méliès. Como? Talvez da mesma maneira que a heroica maçã resolvera cair na cabeça de Newton e dar início a Teoria da Gravitação Universal; a película da câmera de Méliès ficou presa enquanto o francês filmava as belas ruas de Paris. Na volta para casa, ao revelar o filme, percebeu que as imagens saltaram de um intervalo ao outro, sem passar pela ordem natural dos acontecimentos. De acordo com Rosália Duarte (2009, p. 23) “Quando revelou o filme viu, entusiasmado, que o ônibus que estava filmando havia se transformado em carro fúnebre e os homens haviam se tornado mulheres”. O então ilusionista Méliès se encantou ainda mais com o presente que lhe foi dado por Robert William Paul (criador do teatrógrafo e contemporâneo em quesito de invenções primordiais ao cinema das outras figuras já citadas) e iniciou seu trabalho de diretor aplicando a fórmula descoberta em cada um de seus mais de 500 filmes produzidos durante toda a sua vida. O francês era responsável não apenas pela filmagem, ele também escrevia seus próprios roteiros, cortava e colava seus negativos de forma a criar os efeitos extraordinários presentes em suas obras. A empolgação era tanta que se não conteve com pouco e criou seu estúdio próprio com estrutura de palco similar ao do teatro, além de fundar a Star Film, responsável por distribuir toda esta filmografia em países da Europa e posteriormente no mundo inteiro.

Estonteada pela inovação tecnológica e artística logo no início do século XX, a burguesia europeia lotava as salas de cinema para presenciar as primeiras obras de ficção da história. A questão não era mais apenas o vídeo, a simples representação do real. O recémformado público criou a necessidade do fantástico, da ilusão, da fuga da realidade e da aplicação das técnicas iniciadas por Méliès. "Nenhuma tecnologia nova pode ser introduzida sem que o sistema econômico o exija, e mesmo assim não terá sucesso a não ser que satisfaça algum tipo de necessidade" (BUSCOMBE, 1977 citado em TURNER, 1997, p. 21). O poder comercial do cinema logo foi evidenciado, gerando lucro extraordinário não apenas para os primeiros exploradores, mas para os donos das salas de projeção, os negociantes e lojistas que vieram a possuir acesso aos acervos de filmes produzidos e suas cópias, além dos empresários que negociavam os termos das exibições e faziam o papel da divulgação deste nobre espetáculo. Todos receberam sua parcela pela contribuição no desenvolvimento da sétima arte e de sua transição de atividade comercial promissora à indústria. Como foi citado há pouco, o crescente público gerou novas necessidades, exigências e demandas, e para que o mercado continuasse sua expansão, os empresários logo trataram de criar um ambiente mais acolhedor ao lugar de apenas as salas frias de cinema.

O cinema ascende dos subsolos e catacumbas, os pavilhões de feira ganham ares de teatro, os espaços improvisados recebem adornos espalhafatosos, pianistas são contratados para minimizar com o acompanhamento musical os inconvenientes ruídos do projetor. A descoberta da arquitetura adequada ao espetáculo cinematográfico enseja os mais diversos devaneios, dando origem a salas e modalidades de projeção singulares (MOGRABI; REIS, 2013, p. 21). Contemporâneos de Méliès amadureceram o conceito de longa-metragem narrativo e buscaram diversificar os temas e gêneros abrangidos: na Inglaterra, Charlie Chaplin apresentava ao mundo o gênero da comédia e suas possibilidades. Representando inúmeras facetas em seus filmes, o “Vagabundo”, por exemplo, foi e ainda é um dos mais aclamados personagens da história do cinema. No imaginário coletivo, Chaplin é uma espécie de representante fiel do cinema mudo, tendo optado por migrar para o cinema falado apenas a partir da década de 40. O inglês foi um expoente importantíssimo no histórico da sétima arte, deixando como legado

obras clássicas da comédia, com elementos de expressão corporal do teatro, a técnica de edição de Méliès e uma boa dose de genialidade em suas críticas nas sublinhas.

Tratava-se, então, não apenas de tentar captar o ‘real’ como ele acontece, mas de inventar uma realidade a partir da escolha da forma de filmar e da seleção de planos a serem utilizados na montagem do filme, criando a ilusão de realidade que é própria do cinema. Desse modo, o aparato técnico inventado para registrar o mundo passaria, também, a recriá-lo, segundo novas regras e artifício, ou, ainda, a criar outros mundos, mais ou menos semelhantes àquele. Ao invés de apenas registrar em imagem hábitos e costumes de povos distintos, os filmes de ficção passariam a inventar costumes, criar modas e difundir hábitos, tornando-se o entretenimento número um de milhões de pessoas em todo o mundo, pelo menos até meados dos anos 1950 (DUARTE, 2009, p.24). D. W. Griffith trouxe a maturidade para o cinema em suas obras, aplicando o conceito de seleção das imagens filmadas e organização destas em uma sequência temporal na montagem, trazendo à tona as definições de cortes e tomadas. Talvez tenha sido o expoente cinematográfico que trouxe o verdadeiro conceito de cinema à tona com suas obras. “Nascimento de uma Nação” (1915) e “Intolerância” (1916) são filmes que não apenas apresentam estes novos conceitos, como também criam conceitos, teorias e discussões, são o primórdio do cinema como ferramenta crítica da sociedade representada.

Em 1915, ocorreram dois fatos que valem a pena ser apontados, pois representam uma espécie de momento crucial para o cinema nas culturas ocidentais. Birth of a Nation / O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith, foi lançado com uma extraordinária reação por parte do público e da crítica. Em sua escala épica (era o filme mais longo até então) e na qualidade pessoal de sua visão parecia definir o potencial de grande arte. O filme seguinte de Griffith, Intolerance / Intolerância (1916), não conseguiu repetir o sucesso de público e crítica e assim ele perdeu algo de sua preeminência nos Estados Unidos como artiste do cinema. Sua influência, no entanto, espalhou-se para além dos Estados Unidos, e na década de 1920 foi particularmente forte na Alemanha e na Rússia. Nestes países, indústrias cinematográficas financiadas pelo Estado produziam filmes em que o ‘cineasta como artista’ tinha o seu lugar garantido (TURNER 1997, p.38).

O advento do cinema como arte, já passado o processo de maturação, espalha-se por todos os cantos do globo. A partir das décadas de 1920/30 não eram mais diretores únicos em seus países que ditavam o rumo das coisas. Os países mais desenvolvidos dentro da indústria cinematográfica revelavam novos diretores proeminentes, cada qual com seus métodos e concepções, mas cada país com seu gênero definido. Era o início do cinema de movimentos. O primeiro grande movimento cinematográfico mundial aconteceu na Alemanha pós-guerra. O Expressionismo Alemão, como foi denominado, teve realmente seu início após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) onde a Alemanha saiu como grande derrotada e perdeu parte de seu território para dar origem a Polônia. A economia do país foi devastada pela guerra e por pesadas dívidas que precisavam ser pagas para a França e Inglaterra, além da redução do seu exército e a incapacitação de utilizá-lo determinado pelo Tratado de Versalhes. Era um cenário de pessimismo geral, representado também no cinema. Os filmes do Expressionismo Alemão eram extremamente estéticos, evolução natural do cinema até então explorado. Os cenários surrealistas, góticos e sombrios, os personagens fantasiosos e monstruosos, a ausência de finais felizes e da “magia hollywoodiana”, a utilização de textos melancólicos e o piano de fundo inspiravam um cenário ficcional pessimista, uma representação da vida interior e do mundo subjetivo. O cinema neste momento era um instrumento de fuga do real, uma porta de acesso ao surreal, ao fantasioso mundo em que os fantasmas da Primeira Guerra Mundial eram histórias com uma hora de duração. “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919) dirigido por Fritz Lang (principal diretor do Expressionismo Alemão) é, até os dias de hoje, o ponto de partida do cinema visto como arte.

Entre 1920 e 1930, a Alemanha dá uma vigorosa contribuição ao desenvolvimento da linguagem cinematográfica: a partir de um roteiro escrito por Hans Janowitz e Carl Mayer, Fritz Lang dirige O Gabinete do Dr. Caligari (1919), marco do nascimento de um movimento que faria com que o cinema passasse a ser visto como arte: o Expressionismo Alemão (DUARTE, 2009, p. 26).

“Nosferatu” (1922), “Metrópolis” (1927), “M, o Vampiro de Dusseldorf” (1931) e outros são considerados relíquias da sétima arte que possuíam sua própria forma de narrar uma história, extremamente inovadora para os padrões da época. A partir da década de 1930, com o crescimento do partido nazista, o cinema passou a ser utilizado na Alemanha de forma totalmente diferente. A arte foi deixada em segundo plano e os fantasmas da Primeira Guerra Mundial evaporaram. O partido Nazista possuía um Ministério de Publicidade e Propaganda extremamente eficaz. Joseph Goebbels, ministro e assistente pessoal de Hitler, possuía doutorado, trabalhou como jornalista, bancário e pregoeiro na bolsa de valores antes de se unir a Hitler e revolucionar a forma de se fazer publicidade no cenário mundial. Em relação ao cinema, Goebbels utilizava os filmes de entretenimento como um instrumento de distração, relaxamento e disseminação ideológica para a grande massa. Ao emocionar o grande público com cenas grandiosas de Hitler, utilizando-se de elementos católicos, os filmes representavam o líder do partido como grande salvador da pátria, o homem que sozinho se sacrificou pelo povo alemão para livrar a grande nação do pessimismo da guerra e do baixo astral geral pela situação do país, que se agravou após a quebra da bolsa de valores de Nova York em 1929. Goebbels priorizava a questão do imaginário coletivo e utilizava os meios de comunicação como forma de manipulação constante, distorcendo as noções de certo/errado e até mesmo convencendo a burguesia alemã de que eliminar os não pertencentes à raça ariana era um ato isento de culpa.

Os nazistas foram um dos primeiros a usar o cinema como instrumento de propaganda ideológica. Goebbels acreditava que os filmes de entretenimento tinham uma intenção política, pois os mesmos afastavam todos das preocupações domésticas e familiares, por isso ordenou que todos os filmes que fossem produzidos não se concentrassem em informações e sim nas emoções, retratando Hitler como um homem que se sacrificou por uma nação. Por sua natureza ideológica, manipuladora, a propaganda nazista preparava o espírito do povo alemão na amenização de qualquer culpa ao matar e eliminar qualquer elemento que não pertencesse à raça ariana. Os nazistas investiram toda sua “artilharia” na propaganda, até mesmo no aprisionamento dos judeus no campo de concentração de Auschwitz, onde na entrada do mesmo, lia-se a frase: ‘Arbeit macht frei’, O trabalho liberta. Uma forma de persuadir os judeus

ao trabalho pesado na fabricação de armamentos, em busca da liberdade. Goebbels levava a sério a questão do imaginário e isso fez com que revelasse o poder que os meios de comunicação exerciam sobre a sociedade. Responsável pelo mito do Fuhrer e brilhante orador que movia multidões, Goebbels à frente do Ministério da Conscientização Pública e Propaganda, com suas técnicas de propaganda produziu uma significativa quantidade de filmes exaltando o racismo e o ódio a estrangeiros, mais especificamente, os judeus, a quem denominava culpados pela degradação da Alemanha (SANTOS, 2012, p. 6). Foi um processo relativamente longo desde a criação do partido nazista até o início da Segunda Guerra Mundial. Neste intervalo, diversas obras importantíssimas para a história do cinema foram produzidas, porém destaco A Regra do Jogo / La règle du jeu de Jean Renoir, considerado pela crítica um dos filmes mais representativos da alta classe da sociedade burguesa europeia e símbolo do movimento de Avant-Garde / vanguarda francesa que buscava fugir da forma tradicional de narração e influenciaria diversas obras surrealistas futuras. Regado de relativismos, questões morais, traições e tragédia, muitos dos costumes considerados inadequados para os padrões da época são explorados no desenrolar da trama. Inadequados em teoria, pois o que o público não esperava era apenas que eles fossem tão evidenciados para que, basicamente, qualquer um pudesse ver. Falarei mais sobre esta obra em específico nos próximos capítulos.

O som, a cor e a evolução do cinema

Voltando alguns anos no tempo, não podemos deixar de mencionar o advento do som no cinema ou o início do cinema falado. Foi em 1927, em The Jazz Singer / O Cantor de Jazz que os diálogos finalmente se integraram a uma obra cinematográfica. É fato consumado que a tecnologia para tal já existia, mas não com essa aplicação. Por que motivo tanto tempo foi desperdiçado? Como já citei neste capítulo, a famosa afirmação de Ed Buscombe de que nenhuma tecnologia é introduzida sem que o sistema econômico crie a necessidade se repete neste exemplo. O custo para manter uma orquestra se apresentando em conjunto com a exibição da película era extremamente alto. Basicamente, eram dois espetáculos distintos que se complementavam, e literalmente com o custo de dois espetáculos.

Com a implementação da nova tecnologia, aos poucos o espetáculo de apoio foi sendo extinto e o custo de exibição diminuindo. O fator comercial não se sobrepôs ao fator de evolução do cinema como arte, para que a obra narrativa pudesse se tornar ainda mais realista, se fazia necessária tal evolução.

A introdução do som também facilitou a elaboração da narrativa realista dos filmes. Aqui o realista não é apenas uma posição ideológica, mas também explicitamente estética – um conjunto de princípios de seleção e combinação empregados na elaboração do filme como obra de arte. A reprodução do diálogo voltou a vincular o cinema com a vida real, e a indústria cinematográfica rapidamente desenvolveu um sistema de convenções para filmar e editar o diálogo (TURNER 1997, p. 22). Impossível seria continuar destacando o aspecto comercial do cinema sem citar os Estados Unidos uma vez a cada duas frases. Para que se possa ter uma ideia clara, após a Primeira Guerra Mundial os EUA dominavam 98% do mercado cinematográfico das Américas e 85% do mercado mundial. A exportação subiu de 10 milhões e 500 mil metros de rolos de filmes em 1915 para 47 milhões e 700 mil metros em 1916. Apenas a exibição em território doméstico já garantia receita suficiente para pagar as despesas das películas e lucrar. Exportação? Parte do domínio norte-americano na economia mundial e nos mais variados segmentos. O volume de produções norte-americanas só teve queda após a Segunda Guerra Mundial e, principalmente, com a criação da televisão como forma de entretenimento sem precisar sair do conforto do lar. As estratégias para voltar ao topo (e consequentemente as inovações tecnológicas) foram muitas: o Cinerama em 1952 (exibição com 3 projetores em uma tela curva criava um efeito visual único), o Cinemascope em 1953 (exibição em telas alongadas com dimensões bem maiores que as de costume), as experiências com 3-D e Aromarama (sempre buscando tirar o espectador do real e atiçar os sentidos da visão e do olfato para que a imaginação pudesse fluir livremente) e finalmente a implementação da cor. A cor não foi exatamente uma exclusividade da década de 1960. Aliás, décadas antes já existiam sistemas e rolos de filmes em cores produzidos principalmente, senão em totalidade, pela Technicolor, processadora responsável pela hegemonia desse mercado desde 1915. O fator para que os filmes em cores ainda não fossem regra ao invés de exceção era o custo para sua produção e/ou exibição.

Uma das razões de não se ter utilizado cores antes da década de 1960 foi o custo. Alguns dos primeiros processos eram trabalhosos, as câmeras eram caras e o monopólio definitivo da Technicolor geralmente irritava e restringia os produtores. A cor era usada principalmente para exibições, épicos ambientados no passado ou para efeitos especiais em fantasias. Seu emprego, porém, foi ampliado após o advento do som e da introdução, pela Technicolor em 1932, de um novo processo subtrativo de três cores (TURNER 1997, p. 30). Eventualmente o monopólio foi derrubado e o processo de Eastmancolor reinou nos filmes coloridos, barateando o custo de produção e tornando padrão a utilização das cores em obras audiovisuais. Ainda que eu, humildemente em posição de um mero admirador da sétima arte, considere esta uma transição importantíssima em um contexto histórico cinematográfico, sou traído pelas cifras. O mercado é cruel, e mesmo com toda a força de produções históricas, a diminuição do público foi inevitável. A televisão a cabo e o vídeo restringiu o nicho que outrora era composto por adultos de classe média para um grupo com faixa etária menor, geralmente de 14 aos 24 anos, conforme cita Turner em seu texto já mencionado anteriormente. Um dos motivos de eu admirar o trabalho com o Eastmancolor principalmente na França foi o início do movimento da Nouvelle Vague e o reconhecimento do trabalho de Jean-Luc Godard. Antes de ceder e demonstrar minha admiração profunda por este diretor em específico volto alguns anos no tempo para citar as influências de tal movimento. Serguei Eisenstein foi o principal expoente do cinema russo e soviético no cenário mundial. Bronenosets Potyomkin / O Encouraçado Potemkin, Statchka / A Greve, Ivan Groznii I e II / Ivan, o Terrível - Parte I e II foram algumas de suas obras mais aclamadas que fazem parte de qualquer lista dos filmes mais importantes para a história do cinema mundial. Sua posição de filmólogo, teórico e intelectual ativo na Revolução Russa e da defesa do espaço dos artistas na sociedade apenas acrescentava relevância ao seu trabalho. A montagem intelectual proposta por Eisenstein iniciou o processo do cinema como criador de conceitos inteiramente novos na cabeça do espectador. As metáforas visuais aplicadas em suas obras são formas inteiramente originais de prender a atenção do espectador na tela e combinar freneticamente planos espetaculares. Desta maneira são abordados temas essenciais críticos da sociedade russa e evidenciadas as desigualdades sociais do país.

Diversos cineastas pós-Eisenstein buscaram beber na fonte de sua forma de montagem para expressar o sentimento do país em determinadas épocas. Nikita Mikhalkov, por exemplo, buscou através da metáfora visual de uma pequena bola de fogo representando o Sol, explorar o horror do autoritarismo do regime soviético em Utomlionnie Solntsem / O Sol Enganador. Por falar em realismo, os jovens italianos da década de 1940 não ficaram para trás em importância histórica cinematográfica: o Neorrealismo foi um movimento utilizado como ferramenta direta para evidenciar a realidade da sociedade pós-guerra e os destroços causados pela mesma. Os filmes que não possuíam recursos financeiros elevados utilizavam como cenário os reais lugares onde o cotidiano e o sofrimento da população do país estavam. O alcance em termos mercadológicos deste movimento não foi grande, era de se esperar que orçamentos pequenos e atores amadores não chamassem tanta atenção de produtoras e investidores.

Se recursos técnicos sofisticados e orçamentos milionários não eram imprescindíveis para a realização de bons filmes; se o importante era contar as histórias daqueles que, tradicionalmente, estavam fora das telas e das plateias do cinema, então muitos mais poderiam fazê-lo, independentemente das grandes estruturas de produção. E foi o que de fato aconteceu, pelo menos por algum tempo (TURNER 1997, p. 27). E assim novas gerações de diretores, roteiristas e cineastas em geral surgiram. Jovens revolucionários que através da arte buscavam seu espaço no mundo e buscavam fazer do mundo seu espaço. Novas obras que retratavam o cotidiano de países pobres e subdesenvolvidos foram produzidas daí em diante. Urga / Urga – Uma Paixão no Fim do Mundo de Nikita Mikhalkov retrata com perfeição uma família mongol nos extremos de uma Rússa pós-soviética, região pouco explorada e lar de desigualdades sociais notáveis durante a trama. Sofremos inclusive um choque de realidade ao acompanharmos a transição do personagem principal para a cidade grande.

Nouvelle Vague

Cahiers du cinema é uma revista francesa criada pelo teórico André Bazin durante a efervescência do cinema da década de 1950 na França e o ápice do surgimento de novos jovens diretores. Não falarei

sobre a Cahiers du cinema em específico, mas é impossível deixar de citá-la por sua relevância mundial e por criador. Hollywood nesta mesma época vivia o momento das superproduções, dos grandes estúdios e de consolidação da indústria cinematográfica mesmo após a Segunda Guerra Mundial. Em busca de contrariar a tendência mundial, jovens franceses apaixonados por cinema – utilizando exatamente este ímpeto juvenil de sempre querer ser contrário ao que está em evidência – iniciaram suas filmagens próprias em ambientes urbanos. Ruas, subúrbios, casas simples e os monumentos de Paris serviam de cenário para os atores até então desconhecidos figurarem em obras com produção extremamente barata, com liberdade estética total e temas pessoais, cotidianos e corriqueiros, como é o caso de Les quatre cents coups / Os Incompreendidos. O filme de François Truffaut retrata a vida de um menino chamado Antoine Doinel que se rebela contra o sistema vigente de ensino, o autoritarismo da escola e a aversão do padrasto contra sua presença. Ele resolve fugir de casa, faltar à escola para frequentar cinemas e brincar com os amigos, cometer pequenos crimes e aprender com a vida. Muitos dizem que esta é a própria história da adolescência do diretor, que teve como tutor o próprio André Bazin, relação iniciada através da concorrência de público entre o cineclube dos dois e construída com o passar dos anos pelo auxílio que Bazin continuava a dar para Truffaut em sua vida pessoal e artística. A Nouvelle Vague então surge com o interesse destes jovens em terem liberdade de criação suficiente para participarem do cenário cinematográfico mundial com poucos ou nulos recursos financeiros. Jean-Luc Godard, François Truffaut e outros mais criaram uma estética completamente contrária à Hollywoodiana, com planos extremamente ousados, atemporalidade (tempo subjetivo e pessoal, não cronológico) e utilização assídua de cores (ou obras monocromáticas por opção própria de cada diretor). O cinema como arte é vivido intensamente neste movimento, que ainda sim possuía sucesso de público na França e recebia indicações contínuas em prêmios de cinema internacionais. Outros movimentos e muito mais história aconteceu nestes mais de 100 anos da sétima arte em território global. Porém, encerro este capítulo por acreditar que a maioria dos diretores, obras e acontecimentos que citarei nos próximos capítulos já foram abordados.

Podemos dizer que a cultura é um todo complexo que inclui conhecimentos, crença, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos como membro da sociedade (LARAIA, 1993 p. 25). Lembro-me ainda no primeiro período, frente à excitação do rito de passagem para a graduação tecnológica em Produção Cultural, na famigerada matéria simplesmente intitulada “Produção Cultural I”, em que conheceríamos finalmente quando, onde e os porquês de termos adentrado em tal futuro ainda nebuloso, a seguinte pergunta foi feita: O que é cultura? Por mais simples e objetiva que a pergunta possa parecer, foram seis meses de intensa argumentação por parte de todos os alunos enquanto o professor sentava, observava e ria. Todas as vezes que terminávamos o tempo de classe, os ânimos estavam aflorados e desentendimentos eram inevitáveis, como há de se esperar de trinta indivíduos ocupando um mesmo espaço em âmbito acadêmico. Ainda assim, impreterivelmente ao final de cada classe ouvíamos a mesma frase de nosso tutor: “calma crianças, todos estão certos”. Descobrimos no encerramento do semestre que estávamos (os trinta) corretíssimos em nossas assumpções, ao passo que ouvimos nosso professor discursar sobre a totalidade e simultaneamente a particularidade da cultura, da significação para um e para o todo, do simples inconsciente e do complexo no momento da definição. Não cabe nesta escrita procurar definir e apresentar os diferentes pontos de vista da cultura, mas preciso mencionar para que seja possível dialogar principalmente com outra palavra mágica e de enorme potencial transformador intitulada educação, e comprovar a efetividade da prática do cineclubismo no espaço da escola, possuindo base teórica e pedagógica. Remetendo à citação utilizada no início deste capítulo, podemos compreender a cultura como uma rede de significações e ressignificações, pessoais e coletivas. Do nascimento à morte produzimos hábitos, métodos, técnicas, estudamos, trabalhamos, criamos normas, valores, ideias, nos comunicamos, buscamos sensações pessoais de felicidade e liberdade, adquirimos conhecimento finito. Toda esta elaboração

do homem é sua própria cultura e é desenvolvida na vida social, no convívio do homem em sociedade e na troca de saberes e fazeres levando em consideração a subjetividade de cada indivíduo. Dizer que um ser humano não possui cultura é não diferenciá-lo dos demais seres, ou como diz Solange Lucena:

Todo esse conjunto completo e diferenciado que os homens elaboram é o que constitui a cultura. Ela, então, é produzida pelos homens que vivem em sociedade. Daí, não haver sentido algum dizer que tal ou qual indivíduo não tem cultura. Isso seria o mesmo que dizer que ele não é humano no sentido pleno da palavra, porque a sua vida seria impossível de ser vivida, a não ser no convívio com outros seres de sua espécie. [...] o isolamento total e absoluto de um indivíduo, desde o seu nascimento, impede o desenvolvimento de suas capacidades perceptivas e intelectivas, que somente são possíveis de existir na interação com os outros. É essa interação a base da vida coletiva, em que ele aprende a pensar e agir, passando a ter noção de si mesmo, dos outros e do mundo que o cerca. É através da linguagem que os homens se relacionam mutuamente, criam e desenvolvem os diversos significados para aquilo que pensam e fazem ao longo da vida (LUCENA, 2014, p. 9).

O ser humano provou também ter uma capacidade de adaptação enorme, superando a diversidade de linguagens, de costumes, climas e outros fatores que variam de acordo com o local em questão. Na adaptação de um indivíduo são assimiladas novas informações, códigos socioculturais complexos e únicos a cada sociedade, este processo de aprendizagem e adaptação é denominado socialização. O processo de socialização é aquele em que o homem aprende sua própria cultura, interiorizando e naturalizando normas e regras presentes no seu contexto social. Neste processo o ambiente escolar tem fundamental importância, pois poderá ser um espaço amplo de socialização onde tais normas e regras serão apresentadas fora do contexto familiar de proteção e apego.

Cultura e socialização

A base cultural de cada indivíduo inserido em uma sociedade é determinada por conhecimentos gerais arraigados na sociedade em questão. A sociologia caracteriza estes conhecimentos gerais

como socialização primária, pois é um nível fundamental de fatores classificatórios. Por exemplo, se uma pessoa nascer no Brasil, ela é brasileira. Se nascer no Brasil, no estado do Rio de Janeiro, ela é carioca. Entretanto, esta mesma pessoa pode optar entre inúmeras religiões, inúmeras profissões, inúmeras atividades de lazer e inúmeros meios de transporte para locomoção, estes são exemplos de nível específico ou socialização secundária. Como define Solange Lucena:

O nível específico, relacionado a cada grupo social, é chamado socialização secundária, porque é o aprendizado da expressão própria de cada ambiente particular estabelecido no interior de uma sociedade. Quanto mais complexa a sociedade é, mais padrões, normas, saberes, funções e valores existem. Assim, a socialização secundária é uma realidade sempre presente na vida dos indivíduos. Eles poderão sempre aprender, e tanto mais quanto sejam introduzidos nos muitos espaços sociais existentes (LUCENA, 2014, p. 11).

A escola é responsável pelos dois níveis de socialização, sendo geralmente o primeiro contato da criança, desde o seu nascimento, com indivíduos fora do contexto familiar. Por si só, a educação transmitida pela escola faz parte da bagagem cultural que o aluno levará por toda a vida. O papel formador da escola é determinante para os futuros profissionais de diferentes áreas e que terão variadas trajetórias, funções, carreiras e estilos de vida. A experiência de frequentar o ambiente coletivo escolar traz à tona uma junção do ensino de conteúdos básicos com a experiência social de convivência com outros indivíduos, uma troca de conhecimentos acadêmicos e populares, por isso sua forma de abordagem poderá determinar o sucesso quanto a questões diversas relacionadas à reflexão sobre sociedade e cultura.

Seus conteúdos (da escola) se destinam a formar indivíduos que cumprirão as variadas funções, tarefas, carreiras, trajetórias, identidades e estilos de vida possíveis na coletividade. Isso explica por que a estrutura curricular do sistema de ensino ou estabelecimento escolar pode ser entendida como uma produção da realidade social na qual a educação está inserida. Ao mesmo tempo em que existe o aprendizado da nacionalidade, da história, das crenças de um país, há a aquisição dos diversos entendimentos e procedimentos necessários ao funcionamento das instituições sociais (LUCENA, 2014, p. 11).

Cinema e educação

A linguagem audiovisual desenvolve múltiplas atitudes perceptivas: solicita constantemente a imaginação e reinveste a afetividade com um papel de mediação primordial no mundo, enquanto que a linguagem escrita desenvolve mais o rigor, a organização, a abstração e análise lógica. Nela o limiar do tempo é muito tênue, ele explora um ver que está situado no presente, mas que interliga não linearmente com o passado e com o futuro. O cinema atua como um elemento de aprimoramento cultural e intelectual dos docentes e dos discentes e, problematiza o seu uso no campo da educação. O olhar cinematográfico enriquece a forma de ver a educação e o processo escolar (COSTA, 2012, p. 7). O uso do audiovisual como ferramenta lúdica e educacional não é recente: na década de 1930 o extinto INCE (Instituto Nacional do Cinema Educativo) já formulava e desenvolvia políticas educativas através do cinema (principalmente produções cinematográficas com viés educativo). Nesta época destaca-se Humberto Mauro: cineasta, diretor, escritor, acadêmico, músico, ator, produtor, pintor, artista plástico, político, crítico, roteirista e ativista, foi um dos pioneiros do cinema brasileiro. Através do convite de Edgar Roquette-Pinto, Mauro se juntou ao INCE, onde esteve entre os anos de 1936 e 1964, tendo realizado mais de 300 documentários de curta-metragem, todos com temas variados que por décadas foram utilizados em sala de aula buscando abordar o que a mídia massiva ofuscava. Seguindo os passos de Mauro, muitos outros autores, diretores e artistas em geral buscaram enxergar no cinema uma ferramenta extremamente útil de educar sem entediar, de criar o interesse e despertar a curiosidade, seguindo contra o fluxo do audiovisual apenas como ferramenta de distração, sem uma abordagem educacional. A televisão doméstica atualmente possui (em partes) caráter informativo, podendo ser utilizada também em prol de uma abordagem educacional. Algumas emissoras específicas (TV Brasil, TV Cultura, entre outras), tratam de exibir programas escolares e acadêmicos, filmes nacionais relevantes para a história do cinema brasileiro e pequenas esquetes educacionais com fatos e curiosidades. Porém, a realidade na maioria dos casos é outra. O contexto de lazer e entretenimento que a televisão transmite trata de acomodar desde cedo qualquer um que faça seu uso excessivo. A sensação de relaxamento

supera o caráter informativo da imagem televisiva, minando a leitura crítica que deveria ser feita a qualquer elemento audiovisual, visto que nossos sentidos são amplamente ativados enquanto estamos em estado de distração mental. Nas palavras de Marcelo Henrique Costa:

O audiovisual está ligado umbilicalmente à televisão e a um contexto de lazer, e entretenimento, o vídeo na cabeça dos alunos não significa aula e sim descanso, isto é uma expectativa positiva para atrair o aluno. O vídeo faz parte do concreto, do visível, do imediato, do próximo, que toca todos os sentidos, por ele sentimos, experienciamos sensorialmente o outro, o mundo e nós mesmos (COSTA, 2012, p. 7). Enquanto a linguagem escrita dos textos, fichamentos, resumos e tantos outros modelos de trabalho comuns da sala de aula transpiram rigorosidade e organização nos remetendo apenas ao tempo presente, a linguagem audiovisual desperta a imaginação e o subconsciente, apresentando e desenvolvendo a percepção de diferentes tempos, espaços e afetividades. O cinema é o colírio necessário para uma visão mais nítida do contexto social em que vivemos, é o peso extra da bagagem cultural e educacional assimilada no âmbito escolar, é a ferramenta capaz de ilustrar realidades já vividas, construir o imaginário necessário para a compreensão de acontecimentos históricos e sociais. Ou como Costa excelentemente cita em seu artigo:

Aprender a ver cinema é realizar este rito de passagem do espectador passivo, para o espectador crítico. O cinema pode ser definido como educação informal, que necessita de uma metodologia para melhor aproveitamento na sala de aula. E isso se dá pela compreensão do professor, da linguagem audiovisual, através da produção de metodologias sensíveis às questões ligadas a cultura, ao conhecimento e a correlação com a comunidade local (COSTA, 2012, p. 8). A exibição de obras audiovisuais na escola necessita de um método de ensino rigoroso e bem planejado por parte dos professores ou tutores para que não corra o risco de construir um imaginário incorreto nos alunos. Há uma relação básica de usos adequados e inadequados do vídeo na sala de aula, atendo-se ao sistema de ensino já implantado nas escolas citada neste mesmo artigo de Costa. Considero pertinente utilizar por completo desta citação. Segue:

Audiovisual como sensibilização: é o uso mais importante na escola. Um bom vídeo é interessantíssimo para introduzir um novo assunto, para despertar a curiosidade, a motivação para novos temas. Isso facilitará o desejo de pesquisa nos alunos para aprofundar o assunto do vídeo e da matéria.

Audiovisual como ilustração: o vídeo muitas vezes ajuda a mostrar o que se fala em aula, a compor cenários desconhecidos dos alunos. Um vídeo traz para a sala de aula realidades distantes dos alunos, como por exemplo, a Amazônia ou a África. A vida se aproxima da escola através do vídeo.

Audiovisual como simulação: é uma ilustração mais sofisticada. O vídeo pode simular experiências de química que seriam perigosas em laboratório ou que exigiriam muito tempo e recursos.

Audiovisual como conteúdo de ensino: vídeo que mostra determinado assunto, de forma direta ou indireta. De forma direta, quando informa sobre um tema específico orientando a sua interpretação. De forma indireta, quando mostra um tema, permitindo abordagens múltiplas, interdisciplinares.

Audiovisual como produção/intervenção: como documentação, registro de eventos, de aulas, de estudos do meio, de experiências, de entrevistas, depoimentos. Como atividade complementar, a fim de aguçar no aluno o olhar crítico de quem produz algo. Interferir, modificar um determinado programa, um material audiovisual, acrescentando uma nova trilha sonora ou editando o material de forma compacta ou introduzindo novas cenas com novos significados.

Usos Inadequados

Vídeo tapa-buracos: colocar vídeo quando há um problema inesperado, como ausência do professor. Usar este expediente eventualmente pode ser útil, mas se for feito com frequência, desvaloriza o uso do vídeo e o associa na cabeça do aluno a não ter aula.

Vídeo-enrolação: exibir um vídeo sem muita ligação com a matéria. O aluno percebe que o vídeo é usado como forma de camuflar a aula. Pode concordar na hora, mas discorda do seu mau uso.

Vídeo-deslumbramento: o professor que acaba de descobrir o uso do vídeo costuma empolgar-se e passa vídeo em todas as aulas, esquecendo outras dinâmicas mais pertinentes. O uso exagerado do vídeo diminui a sua eficácia e empobrece as aulas.

Vídeo-perfeição: existem professores que questionam todos os vídeos possíveis porque possuem defeitos de informação ou estéticos. Os vídeos que apresentam conceitos problemáticos podem ser usados para descobri-los, junto com os alunos, e questioná-los.

Só vídeo: não é satisfatório didaticamente exibir o vídeo sem discuti-lo, sem integrá-lo com o assunto de aula, sem voltar e mostrar alguns momentos mais importantes (COSTA, 2012, p. 8 e 9). Considerando que na sociedade atual o audiovisual é o meio de comunicação com maior apelo, força e amplitude, as possibilidades de utilização são incontáveis, assim como toda a tecnologia a seu dispor. Dentro da sala de aula, o professor encara a necessidade de ser o elo entre estas tecnologias e seus estudantes, cativando o olhar crítico e a discussão.

Cinema e linguagem

A cultura é o lugar onde essa condição criadora, imaginativa, representativa da nossa condição se constitui como o ar que se respira sem que se dê conta disso. A gente está completamente mergulhado na linguagem o tempo todo, não se dá conta que está fazendo cultura o tempo todo. Há muitos modos de fazer cultura, mas quando dizemos ‘isso é seu também, não é só meu, preciso passar para você e deixar que você assuma isso’, estamos entrando em outro campo que é o campo da educação. Está muito longe de ‘menino, tem que abrir essa sua cabeça e meter o livro dentro que eu não aguento repetir a mesma coisa’. Porque não é abrir a cabeça e meter o livro dentro, é interagindo, escutando, podendo falar, pensando, que ele vai processar essa cultura dentro dele e deixar vir à tona o sujeito que nele habita, crescendo, atrás da máscara. A palavra educação vem do latim educare e significa ‘conduzir para fora’. O quê? O que está dentro, você vai recebendo uma cultura pelos poros, pelos sentidos, ninguém precisa rachar sua cabeça e lhe dar cultura pelo livro que põe dentro da sua cabeça (YUNES, 2012, p. 31).

Aqui é onde ligamos os pontos. Para além da brutalidade e comunicação primária dos animais, nós, os famigerados seres humanos, líderes da cadeia alimentar e únicos seres racionais da face do Planeta Terra, nos gabaritamos e desenvolvemos este complexo modo de nos comunicarmos e transmitirmos saberes e fazeres entre nossa raça humana denominada linguagem. Sim, alguns animais possuem uma forma básica de compreensão de uma linguagem rústica e de seguirem seus instintos em prol da sobrevivência. Entretanto, nós somos capazes de criar sociedades inteiras baseadas em regras, códigos, condutas, imaginação, sonhos e fantasias apenas através da nossa linguagem, ou seja, a cultura e a socialização totalmente estruturada através de códigos de linguagem. As letras, palavras, frases (sejam elas escritas, faladas, exibidas), constroem e reconstroem o imaginário coletivo e individual em uma constante interação entre indivíduo e meio, além de serem o currículo básico para a vida em sociedade, para a formação da cultura e para os primeiros passos da educação. A linguagem dá forma ao pensamento humano e é capaz de despertar a imaginação, a criatividade e principalmente proporcionar ao ser humano em seus primeiros anos de vida a capacidade de planejamento de ações. O ser humano recém-nascido, no início de sua formação cognitiva, é orientado de acordo com a linguagem cultural e social do contexto em que está inserido. Por exemplo, uma criança criada entre cabras (o russo Sasha), foi trancada em um quarto com os animais por anos, brincando e dormindo entre eles. Ao ser encontrada, a criança não sabia balbuciar uma palavra e agia exatamente como as cabras em questão. Uma das especialistas psiquiátricas que cuidava do caso em questão chegou a dizer que a criança “se recusou a dormir no berço” e “tentou ficar embaixo dele e dormir lá, ele tinha muito medo de adultos e tentou quebrar tudo o que via (janelas e móveis), não sabia falar ou segurar uma colher e não tinha ideia do que fazer com os brinquedos, nem sequer tentar brincar com eles". Como esperar de um ser (mesmo que humano), criado entre seres que não possuem dimensão psicológica, psíquica, cultural ou racional de sua existência, que se comporte da mesma maneira que um ser criado entre semelhantes com todas as dimensões que citei anteriormente já direcionadas? “Cultivamos aquilo que nos deu mais do que uma condição humana enquanto pessoa, que como linguagem nos expressa e nos transforma numa civilização humana”, como bem disse Yunes.

Indo um pouco mais além, mas evitando aprofundar, gostaria de falar um pouco sobre a teoria dos signos. Na Semiologia (ciência dos signos), apadrinhada por Ferdinand Saussure e Roman Jakobson, a linguagem é um sistema de signos que exprimem ideias. “A Semiologia é uma parte essencial da sociologia ([...] a vida social não é concebível sem a existência de signos comunicativos)” (JAKOBSON, 1970, p. 15). O signo linguístico é o termo essencial da linguagem, para estes autores que citei, o signo une o conceito a uma imagem acústica. O conceito seria um artifício implícito dos seres humanos ao se comunicarem e tentarem exprimir algo que faça sentido ou não para o receptor. É uma forma instintiva de ultrapassar o selvagem e de reconhecer no ser humano os traços da evolução. A imagem mental seria uma realidade psicológica relacionada com a atividade mental de indivíduos na sociedade. Os signos linguísticos são a relação direta que possuímos com a linguagem que assimilamos e aprendemos vivendo em sociedade, pois ao sermos indagados de qualquer palavra, fazemos uma associação direta ao conceito que aprendemos desta palavra (seu uso, sua história) e a imagem mental que possuímos dela (grande, pequena, alta, baixa, cor, textura). A associação completa é feita em fração de segundos diretamente em nosso subconsciente, provando o quanto o signo está arraigado em nosso âmago enquanto vivemos em sociedade. “O signo é o material de todas as artes”, (OLIVEIRA; COLOMBO, 2012, p. 16), e na arte, poderiam existir objetos com a mesma função dos signos (significar alguma coisa). “O objeto (óptico e acústico) transformado em signo é na verdade o material específico do cinema” (JAKOBSON, 1970, p. 15). Por tal afirmação o cinema como obra de arte também é constituído de signos e também pode ser definido como linguagem, unindo o conceito à imagem mental. “todo fenômeno da vida externa transforma-se em signo na tela.” (JAKOBSON, 1970, p. 155). O cinema possui uma linguagem única e uma escrita própria, e é um meio de comunicação, de informação, de propaganda, de difusão cultural, de ilustração histórica e social, de conservação de manifestações culturais e também de educação que tem como característica peculiar a junção do espetáculo com a representação do real. Posto que o cinema seja categoricamente uma linguagem artística, esta nunca anda só: os signos então representados são sistemas de significações culturais, sociais, políticas, ideológicas, estilísticas que se relacionam intimamente e se desenvolvem juntamente com o espectador e sua socialização em ambos os níveis.

Como arte, o cinema possui as suas próprias características e sua própria linguagem, assim como as artes plásticas, a música, o teatro, a dança. Diferentemente de algumas vanguardas artísticas compostas, antes de ser uma obra em sua plenitude sem um conjunto de regras, de princípios, um esquema que ela respeita até se materializar. Assim também é o cinema; para se ter o filme e ele ser uma obra de arte cinematográfica, antes ele participa de um processo criativo que lhe garante o aspecto de obra de arte, e esse processo criativo é composto de regras, princípios, que são especificamente o que compõe a linguagem cinematográfica (OLIVEIRA; COLOMBO, 2012, p. 18). Pessoalmente, encanta-me deveras complexidade em se definir o que é instintivamente abstrato. Fazer cinema requer anos de estudo e prática, ao passo que assimilar cinema também não é tarefa simples: através das citações de autores já mencionados, fica a certeza de que é preciso educar o olhar, direcionar o espectador para o conteúdo afirmativamente educativo e como muitos gostam de dizer “sair da zona de conforto”. Em um processo de educação do olhar é preciso aprender a diferenciar as faces do cinema de entretenimento e de retratação da realidade. Como já mencionado o uso do cinema para educação deve ser cuidadosamente planejado. Foi com esse propósito que aceitei e me dediquei ao cineclube durante um breve tempo, porém impactante em minha forma de assistir, consumir, falar, discutir, pensar e transmitir cinema. E espero também ter contagiado outros.

A Experiência de um Cineclube

Não há coincidências, apenas a ilusão de coincidência (V, personagem do filme “V de Vingança”). O caricato mascarado “V” do ótimo “V de Vingança” do diretor James McTeigue arrebatou dezenas de frases inspiradoras durante sua jornada em busca da recriação do famoso “5 de novembro” com sua máscara de Guy Fawkes e suas adagas poderosas. Frases que me já muito me serviram de inspiração nas decisões mais nebulosas que já tive de tomar e nos percalços durante minha própria jornada de vida. Penso com meus estimados botões que é tão bizarro realizar escolhas da nossa rotina diária tendo como base obras cinematográficas, mas ao mesmo tempo é tão automático que nem mesmo há tempo hábil de

se definir o que é consciente ou não. Esta é a simplória e mais profunda forma que o cinema possui de invadir nosso subconsciente e nunca nos abandonar. Parece loucura, mas quantos de nós não utilizamos saídas estratégias de alguma situação complicada que vimos um protagonista utilizar em um filme ou frases prontas em conversas e discursos informais que decoramos depois de vermos nossos filmes favoritos dezenas de vezes ou a pose confiante incorporada da personalidade de algum personagem de filme em determinadas situações? É tudo muito automático, simbiótico. A endorfina/serotonina/dopamina/ocitocina, ou seja lá qual hormônio ligado ao bem-estar e prazer é responsável por esse efeito, nos faz armazenar boas sensações conectadas à lembranças visuais e físicas da experiência do filme. Falando por mim, quando ouvia meus pais dizerem “vamos viajar, voltamos na segunda-feira” já revisava todo o roteiro de “Esqueceram de mim” mentalmente e me figurava na pele do Macaulay Culkin, aquele ator que garantiu o pão de cada dia para o resto de sua vida e da vida de seus filhos interpretando o menino Kevin McCallister, esquecido em casa durante uma viagem familiar, e como diria o anúncio da Rede Globo para este filme: “aquele menininho do barulho que se meteu em altas aventuras”. Entre muitos outros casos, as obras audiovisuais em geral que me marcaram durante minha formação cognitiva e social até os dias de hoje permeiam meu subconsciente sem pedir licença, sendo um dos motivos para a escolha do curso superior na área cultural e artística. Desde que iniciei meus estudos no curso de Produção Cultural, procurei trabalhar e ganhar o máximo de experiência possível no meio, até mesmo para decidir se realmente era válido dedicar longos anos nas salas de aula. Porém, aproximadamente no término de 2014 e início de 2015 analisei a possibilidade de passar mais tempo no âmbito da Instituição Federal e decidi seguir adiante, para que pudesse cumprir os requisitos básicos curriculares para conseguir me formar com sobra. Dei o pontapé inicial trabalhando na biblioteca da Instituição e procurando interagir principalmente com estudantes de outros cursos e também do Ensino Técnico. Conhecer e desmistificar a imagem de que o Instituto seguia o modelo “Cursos de Exatas x Produção Cultural” (que os próprios futuros produtores possuem) era minha prioridade. De fato, foi uma experiência incrível: fiz amizades e percebi tamanha bobagem considerar os alunos do nosso curso superior isolado por terem mentalidades diferentes dos outros. Não alongo tal reflexão, porém é nítido que em termos de conteúdo audiovisual muitos

alunos de outros cursos disparam na frente e possuem um repertório impressionante. E, por coincidência ou ilusão de coincidência, nessa mesma época também estava passando mais tempo com a pessoa que atualmente é minha companheira de todas as horas. Conhecíamos um ao outro então há mais de 3 anos, mas nunca sequer havíamos trocado uma palavra. Mas, os acontecimentos levaram até certo ponto em que ela havia em mãos um esqueleto do projeto de extensão já existente de um Cineclube que é marco na Instituição e passou por diferentes gestões, estando desativado há algum tempo. Juntos, procuramos dar uma diferente identidade ao projeto e principalmente incluir no público alvo quem até então não era lembrado. A questão é que (veja bem, esta é uma assumpção única e exclusivamente pessoal), quem geralmente lida com cinema nãoprofissionalmente mas com certo conhecimento de campo possui determinada resistência com o público mais massivo, não frequentador de circuitos alternativos de cinema, não desbravador de diretores lado B da iconográfica história cinematográfica mundial e por aí vai. Então, dizer para um responsável por um Cineclube dentro de uma Instituição Federal em que o único curso da área de humanas é o dele, intitulado Produção Cultural, que o público alvo deve também ser composto de adolescentes do Ensino Médio/Técnico de Química e alunos do Curso Superior de Matemática é um sacrilégio, um pecado capital sem perdão e sem salvação. “Pobres ignorantes consumidores de pipocas barulhentas do Kinoplex”. Citando o ótimo Álvaro Martins do Blog Preto e Branco:

Há três tipos de cinéfilos no mundo. Os ignorantes (aqueles que gostam de muita porrada, gajas boas e efeitos especiais à maneira), os pseudo-cinéfilos (aqueles que gostam das grandes produções hollywoodescas, do mainstream reconhecido, que chamam obra-prima a tudo que mexe nessa área e que pensam que percebem muito do assunto) e os verdadeiros cinéfilos (que são aqueles que procuram o bom cinema [de autor de preferência], que procuram sempre aprender mais e que, por uma ou outra razão, se tornam arrogantes para com os pseudo-cinéfilos, isto porque os ignorantes, pelo menos, não têm a presunção de se acharem cinéfilos) (MARTINS, 2011, p. 1). Ao passarmos da fase inicial burocrática de repaginar o projeto e apresenta-lo à coordenadora do setor responsável, aproximava-se a parte mais crítica e também a mais divertida da pré-produção: escolha do tema anual e montagem da programação.

"Assim como outros meios de comunicação, o cinema serve, entre outras coisas, para trazer o mundo até nós, para nos mostrar o mundo" (BAPTISTA, 2010, p. 1). O pensamento desde o início se fixou em apresentar por meio do Cineclube um panorama histórico do cinema mundial, passando por diferentes países e continentes para que, quem acompanhasse, pudesse ter uma base mínima de comparação com o nosso cinema tupiniquim. Obviamente, o cinema brasileiro é imprescindível para se conhecer por completo a história mundial da sétima arte, mas apresentar primeiramente os outros expoentes internacionais é um incentivo à pesquisa e a curiosidade dos estudantes, a fim de extinguir os pré-conceitos direcionados ao âmbito cinematográfico nacional que a juventude atual geralmente possui. Na escrita próxima as intenções ficarão mais claras ao mencionarmos os debates após cada sessão. Ao mesmo tempo em que a programação focava em apresentar clássicos, modernos e contemporâneos que marcaram as telonas e debater após as sessões a importância de cada país nesta grande história da sétima arte, procurei remover ainda que temporariamente a influência estadunidense da programação. Nossas salas comerciais já possuem tanto volume de produções hollywoodianas que apresentar mais obras similares, ainda que clássicos, não era nosso propósito no momento. A busca era pelo que não era comum a todos, não era usual, com a intenção de criar estranhamento e através dele o interesse.

O início - cinema francês

Após o sucesso de público de alguns filmes como “Azul é a Cor Mais Quente”, “Bela e Jovem”, “Ferrugem e Osso”, “O Pequeno Príncipe” e “Busca Implacável 3”, o cinema francês cresceu 44% em um ano de público no Brasil. De 3,7 milhões de ingressos vendidos em 2014, passou-se a 5,3 milhões de ingressos em 2015, segundo pesquisa da Unifrance. Com o resultado, o Brasil superou a Itália e tornou-se o quarto mercado mais importante para o cinema francês, atrás apenas da China (14,7 milhões de ingressos em 2015), EUA e Canadá (14,4 milhões) e México (5,3 milhões). O interessante é que alguns desses filmes foram exibidos até mesmo no circuito popular de cinema, e mesmo os que foram exibidos no circuito mais reservado (principalmente nos cinemas Estação), tiveram um público considerável e interessado.

Além de todos esses dados, o que mais ficou evidente é que com o sucesso vieram algumas polêmicas. O filme “Azul é a Cor Mais Quente” conta uma linda história de amor homossexual entre uma estudante de Ensino Médio e uma artista plástica de cabelo azul. A paixão presente e a carga emocional fazem qualquer pessoa ficar emocionada com o desenrolar da trama. Porém, dois eram os motivos para o julgamento precipitado: cenas de sexo explícito e apenas o fato dessas cenas serem de homossexuais. Este pequeno fato causou revolta na “família tradicional brasileira” e uma repercussão enorme nas redes sociais, sendo extremamente útil para a disseminação (por incrível que pareça) do cinema francês como contestador dos valores tradicionais e apoiador da liberdade de gênero e expressão. Era fundamental abordar a França naquele momento, tão imprescindível que se tornou ponto de partida para a programação anual. O desafio era questionar aos que recentemente se tornaram interessados no cinema deste país se tinham noção da inspiração e do passado desta rica história. A premissa básica era: cada semana, um filme. Com um dia de reprise para os “atrasildos”, até porque estamos em um âmbito acadêmico e por mais que cinema seja altamente educativo, não se pode deixar de frequentar as aulas. Então foi assim:

SEMANA 1 – La Règle du jeu ou “A Regra do Jogo” de Jean Renoir (1939)

O aviador André Jurieux bateu recordes de vôo, mas só consegue pensar em sua amada Christine, mulher do aristocrata Robert de la Cheyniest. Jurieux consegue com um amigo um convite para a casa de campo em que o casal está dando uma grande festa de caça. Os sorrisos cordiais dos convidados escondem, porém, segredos e sentimentos, e o resultado disso é um assassinato (Sinopse do filme pelo site “Filmow”, especializado em avaliação e crítica cinematográfica). O filme de Renoir é hoje amplamente reconhecido como um dos maiores filmes de todos os tempos, sendo uma montagem farsesca que se transforma em uma tragédia no ato final e caracterizado por elementos temáticos comuns à maioria dos trabalhos de Renoir, como o relativismo moral demonstrado pelos personagens ou uma aborrecida morte sem sentido.

O filme de 1939 pede uma contextualização para o espectador atual. Em seu lançamento, foi alvo de duras críticas, inclusive chegando a ser proibida sua exibição na França (pois era tido como imoral e degradante). Na versão em DVD lançada no Brasil, o filme abre com um aviso que sobra ironia: "Esta diversão (divertissement) não é um estudo de costumes". Com "A Regra do Jogo", Jean Renoir fazia uma crítica à sociedade francesa em geral, sem distinguir classes. Tecnicamente, Jean Renoir inovou com um uso significativo e dramático da profundidade de campo, dando destaque às personagens que se encontravam no fundo do quadro e em diferentes posições sociais. Do humor negro ao pastelão, "A Regra do Jogo" exibe pessoas que riem e se divertem levianamente, que falam de amor, mas usam umas às outras como objetos descartáveis, e que não sabem o que fazer com a própria vida. Um jogo fútil e destrutivo, numa constante troca de alianças, um painel social em que há muito brilho e pouca densidade. A naturalidade do filme é o pilar para o entendimento do contexto da época e a influência no contexto social e cinematográfico atual. "Ouça, Christine, vivemos numa época em que todos mentem: Os farmacêuticos, os políticos, o rádio, o cinema, os jornais. Então por que nós, simples cidadãos, não iríamos mentir?" (Personagem Octave, interpretado pelo próprio diretor Jean Renoir). Retrato da sociedade burguesa pré-guerra, são nítidas as influências em alguns filmes atuais. Em época de vanguarda, “A Regra do Jogo” foi ponto de partida para os movimentos seguintes do cinema francês, quebrando paradigmas de sua época ao representar cruamente a sociedade burguesa e desmascarar a hipocrisia, acontecimento pouco visto até então. A naturalidade da trama complexa, o desenvolvimento de personagens imprevisíveis, o foco na trivialidade humana e outros tantos elementos guiaram o cinema francês por muitas décadas após esse filme, por tal motivo o nomeiam em diversas listas de melhores da história. Existiam riscos óbvios ao exibir esta obra às 13 horas de uma quinta-feira no Instituto Federal para majoritariamente alunos de 15 a 18 anos do Ensino Técnico em Química. O desinteresse era um destes riscos: se trazê-los foi fácil (por ser a reestreia do Cineclube, alguns professores levaram seus alunos para assistir), manter o foco no filme e não em conversas paralelas era uma tarefa árdua.

Porém, no final das contas o resultado foi favorável. Pude notar as risadas de alguns e os comentários pertinentes paralelos, o olhar para a telona e não para a telinha do celular, a “zoação” de personagens caricatos do filme, todo o processo foi enriquecedor. Houveram algumas saídas de alunos durante a exibição, mas nada que atrapalhasse o andar da carruagem. A discussão pós-filme foi instigante e curiosa, apesar de nada técnica. Um dos alunos do Ensino Técnico que estava mais próximo da projeção indagou: “– Nossa, pra essa época até que eles são bem safados.” O riso no auditório foi instantâneo, todos caíram na gargalhada concordando assiduamente com o menino. E até mesmo eu não pude conter o riso, era uma reação natural à imagem que temos guardada da época da ditadura e anterior a ela. O jovem brasileiro tende a achar que “o que é velho é careta” sempre. Ouvi mais alguns comentários na mesma direção antes de indagar: “– Será que são mesmo? O que chamou despertou isso em vocês e chamou atenção por ser diferente da nossa realidade aqui no Brasil de antigamente?”. Silêncio e cabeças pensantes. Meu olhar passou pela turma de trás que ria baixinho com seus celulares na mão, pelo senhor da EJA que parecia não entender nem sequer uma palavra, mas ainda sim focava seus óculos na direção da tela sem pausas, pelo menino que conhecia de Nouvelle Vague, mas na entrada do auditório me confessou que nunca havia visto um filme tão antigo e pousou novamente sobre a tela de projeção. “– Pensem vocês: será que tudo que a gente presencia no nosso dia-a-dia é representado na ficção? Um direito básico de todo ser humano é poder se relacionar com o gênero de sua livre escolha, ainda sim há não apenas o preconceito, mas também a intolerância e violência contra os homossexuais apenas por se comportarem da mesma maneira que qualquer outro casal de qualquer orientação sexual. Quantos filmes ou novelas com um alcance nacional que tratam sobre esse assunto? Será mesmo que tudo que vocês acabaram de ver neste filme já não acontecia muito tempo antes da produção dele?”. Concordância e relutância em falar muito sobre o tema pairou o auditório, até mesmo algumas pessoas deixaram o recinto se desculpando e dizendo que o horário de aula estava próximo. Concordei e assimilei

que havia falado muito e escutado pouco, um erro de principiante, mas as melhores descobertas acontecem após os erros mais simples.

SEMANA 2 – Les quatre cents coup ou “Os Incompreendidos” de François Truffaut (1959)

Os Incompreendidos (Les quatre cents coups) é um filme francês de 1959, do gênero drama, dirigido por François Truffaut. O filme narra a história do jovem parisiense Antoine Doinel, um garoto de 14 anos que se rebela contra o autoritarismo na escola e o desprezo dos pais Gilberte e Julien Doinel. Rejeitado, Doinel passa a faltar as aulas para freqüentar cinemas ou brincar com os amigos, principalmente René. Com o passar do tempo, as censuras o direcionarão, vivenciará descobertas e cometerá delitos em busca de atenção (Sinopse do filme pelo site “Filmow”, especializado em avaliação e crítica cinematográfica). É interessante pensar como o filme retrata a infância e adolescência do final dos anos 1950, e que esses garotos viriam a ser a juventude revolucionária do final da década de 1960. Percebe-se claramente como a educação autoritária e a falta de liberdade pessoal dessa faixa etária influência nos atos posteriores de uma geração. O filme mostra como a negligência, intolerância, e o constante reforço negativo contribuem pra um crescimento problemático. Antoine, um filho indesejado e um aluno perseguido por um professor intransigente, infeliz em casa e na escola, só quer achar um lugar onde possa se ver livre de toda essa repreensão familiar e educacional. Com isso, vemos uma infância sendo perdida através da opressão e da busca dele mesmo em se encaixar, de alguma forma, na sociedade em que vive. Tratada de maneira caricata, a educação autoritária e a falta de interesse da Instituição Escolar para o aluno é completamente “desmascarada” nesta obra, evidenciada de maneira visceral e pessoal. Entre os motivos desta abordagem está a própria experiência pessoal do diretor: Truffaut utiliza seu alter ego Antoine para contar sua própria história. O filme autobiográfico foi o primeiro da bem-sucedida carreira do diretor que abandonou a escola aos catorze anos, após a perda de sua avó que lhe mostrou o mundo das artes e o convívio perturbado com a mãe. A vida guardou bons momentos para Truffaut, que certo tempo depois conheceu Andre Bazin, um dos maiores críticos de cinema da história, e daí em diante se aprofundou no mundo do cinema através de sua própria dedicação.

Porém, ainda que muitos procurem se dedicar, nem sempre as oportunidades e pessoas dispostas a ajudar surgem para todos. Algumas questões sobre a educação e a relação escola-pais-alunos foram abordadas há 67 anos nesta magnífica obra e ainda permeiam na sociedade atual. Os pais “empurram” a responsabilidade da educação para a escola e a escola para os pais, mas e se nenhum dos dois lados fizer nada pela pequena mente ainda em desenvolvimento, o que teremos? Não precisamos ir longe para obtermos resposta, basta olharmos para o reflexo da educação falha tanto em casa quanto na escola e a como consequência o desenvolvimento de mentes conturbadas e intelectos fragilizados. Na exibição deste filme no Cineclube contamos com a presença de alguns estudantes do Ensino Técnico, poucos da EJA e majoritariamente público das graduações, muitos eram monitores do próprio Instituto. Sem muitos alardes durante a exibição, a projeção foi silenciosa e desenvolta. Pude sentir na parte final do filme alguns olhares melancólicos e reações acometidas de carga emocional forte. No clássico “O que vocês acharam do filme?” No início do batepapo pós-exibição me surpreendi com algumas respostas. “– Muito pesado. Parece com aqui no Brasil, mas sem a parte bonitinha de ser francês”. “– ‘Pô’ cara, não entendi muito bem o que vai acontecer com o menino depois, mas isso me lembra mesmo vários filmes aqui do Brasil de educação ruim”. “– Fiquei com pena do menino não ter tido escolha, ele apanhou de um lado, apanhou de outro e quando quis revidar na vida apanhou dela também. É engraçado, mas bem triste também”. Após escutar e refletir bastante sobre a comoção deles, percebemos que ninguém havia feito uma conexão clara entre esta situação global da educação precária e a situação pessoal dos presentes ali no auditório. Acometido por tal pensamento, procurei me manter sucinto e concordar mais que discordar. Afinal, toda manifestação é válida, e todas faziam um sentido enorme de acordo com a própria experiência pessoal deles.

SEMANA 3 – Pierrot le fou ou “O Demônio das Onze Horas” de Jean-Luc Godard (1965)

Casado com uma italiana e entediado com sua vida na alta sociedade, o professor espanhol Ferdinand foge em direção ao sul com Marianne, após um cadáver ser encontrado na casa dela. Eles caem na estrada e deixa um rastro de roubos por onde passam (Sinopse do filme pelo site “Filmow”, especializado em avaliação e crítica cinematográfica). O profundo anseio pelo desejo de liberdade de Ferdinand e Marianne converte-se em uma constante fuga da realidade que os cercam, evidenciando a cada capítulo da fugaz e incandescente viagem deles atrás dessa liberdade que se criou devido rotina vazia da burguesia. Neste filme, Godard traça uma crítica entrelinhas sobre o cinema americano e sua estrutura vazia, à classe burguesa e propõe uma forma mais libertária de se fazer cinema e arte. Planos sequência cada vez maiores, utilização de tons coloridos em demasia, diálogos em forma de poesia e frases marcadas por serem tão desconexas quanto a trama em si. O Demônio das Onze Horas é uma aula de cinema para quem se desafia a aprender. Ícone mais brilhante da Nouvelle Vague e inspiração para muitos diretores atuais. Dialoga de maneira sutil com o filme da exibição anterior e também o da primeira semana. Em geral, a característica mais marcante do cinema francês em toda sua história talvez seja o fator psicológico dos seus filmes. Pessoalmente, traço um paralelo de crítica ao modelo vigente (econômico, educacional etc) da sociedade de ambas as épocas, de resgate de personagens conturbados e controversos e a utilizações deles para guiar a trama da maneira mais irreverente possível. Por um lado, O Demônio das Onze Horas apresenta inicialmente uma crítica muito eloquente e atual à alta sociedade e sua pobreza intelectual e consumista. Por outro, o filme demonstra o processo dramático em relação às escolhas diante da vida e suas dificuldades resultantes. Para finalizar análise do filme, parafraseio Daniel Batista que em seu blog biográfico de Godard diz assim:

Em 1965, Jean-Luc Godard e suas não-linearidades trocaram as coisas de lugar, recitaram poesia, mudaram os conceitos temporais, as dinâmicas sonoras e, principalmente, os objetivos dos filmes franceses que se fariam dali para frente. Não desmerecendo um Resnais ou Truffaut, é claro, é preciso destacar, porém, o cinema

que este outro francês compôs. O detalhismo e o concretismo são intenções latentes no longa ‘O Demônio das Onze Horas’, que discorre sobre o descompasso de um casal de criminosos. Com imersões absurdas na psiquê dos dois, o filme dialoga com campos da filosofia, da psicanálise e até da antropologia, esmiuçando à exaustão aspectos aleatórios de uma história que, mesmo estraçalhada pela modernidade, soa completa. Com o público bem similar ao da última projeção, foi excitante perceber o início da formação de público. O interesse foi o mesmo da última sessão, um pouco mais de risadas e interação durante o filme já que o roteiro é ainda mais dinâmico. Pude notar alguns suspiros apaixonados por Jean-Paul Belmondo recitando poesias e fumando dentro de sua banheira. Mas, ao que interessa... O debate pós-exibição foi mais complexo e estruturado. O menino que era fã de Nouvelle Vague havia voltado e participou ativamente dando opiniões e instigando seus colegas a contribuir. Foram tantas opiniões que ao invés de separar falas específicas, prefiro comentar sobre o andamento da discussão de uma maneira geral. Muitos comentaram sobre a presença forte das cores, inclusive em uma cena específica onde cada diálogo durante uma festa era guiado por um tom primário de cor. Foi concordado por alguns e explicado para outros que este era o início da Eastmancolor no circuito global. Já haviam sido produzidos diversos filmes utilizando-se desta técnica, mas o pontapé inicial mais aclamado foi durante a efervescência da época da Nouvelle Vague. Outro comentário reproduzido mais de uma vez fez referência à construção dos diálogos: quase sempre em estrofes poéticas e para alguns presentes na exibição “arrastados demais”. Deixei que discutissem entre si a diferença do cinema estadunidense e o europeu e deliciei-me com várias citações de filmes (segundo alguns) “menos chatos”, e olha que até “Minha Mãe é Uma Peça” (filme brasileiro) entrou no meio da discussão! Em certo momento da discussão de se “falar com biquinho” do cinema francês e “falar que nem macho” do cinema americano, instintivamente fizemos uma introspecção e pesamos na balança o quanto deveria ser complicado estar na pele do educador, do responsável por ensinar até um ponto em comum sem que ignorasse a cultura de cada ser humano ali presente. Enquanto pensava, a discussão acalorada teve um capítulo inesperado.

- Gente, não faz sentido a gente ficar discutindo isso. Pra quem gostou do filme, legal. Pra quem não gostou, vem na próxima vez e vê se gosta de outro. Eu quero falar sobre esse filme e queria que o Daniel me explicasse melhor porque esse filme tem umas coisas tão doidas e uma acontece atrás da outra. Sei lá, as vezes eu me perco porque uma hora eles estão bem, conversando e na outra estão em alta velocidade no carro fugindo da polícia.

Obviamente não pude segurar o riso, uma das meninas mais quietas durante as exibições (ela havia marcado presença na anterior também) simplesmente interrompeu uma discussão de dez minutos e colocou todos em uma direção mais correta. Primeiramente respondi a dicotomia entre os cinemas, contando um pouco a história da juventude francesa daquela época e as condições que os filmes eram produzidos, em contraponto à indústria gigantesca que Hollywood já havia consolidado mundialmente. Logo depois citei o filme exibido na semana anterior, onde havíamos conversado sobre a questão psicológica da Nouvelle Vague e também sobre os recursos. Enquanto Hollywood podia contar com os melhores estúdios de filmagem e todos os recursos mais avançados para a época, estes franceses muitas vezes realizavam todas as etapas de produção com pouquíssima ou nenhuma ajuda. Então, em uma produção com menos recursos, os objetivos devem ser maximizar os potenciais chamarizes do produto: roteiro, diálogos, atuações, enquadramento, planos. Tudo que é possível de fazer da melhor maneira possível sem ter que gastar um caminhão de dinheiro. Ao final indiquei mais alguns filmes da Nouvelle Vague para serem assistidos em casa e solicitei a presença de todos na semana seguinte onde pularíamos um pouco na linha do tempo da história do cinema francês.

SEMANA 4 – Le fabuleux destin d'Amélie Poulain ou “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” de Jean-Pierre Jeunet (2001)

Após deixar a vida de subúrbio que levava com a família, a inocente Amélie (Audrey Tautou) muda-se para o bairro parisiense de Montmartre, onde começa a trabalhar como garçonete. Certo dia encontra uma caixa escondida no banheiro de sua casa e, pensando que pertencesse ao antigo morador, decide procurá-lo e é assim que encontra Dominique (Maurice Bénichou). Ao ver que ele chora de alegria ao reaver o seu objeto, a moça fica impressionada e adquire uma nova visão do mundo. Então, a partir de pequenos gestos, ela passa a ajudar

as pessoas que a rodeiam, vendo nisto um novo sentido para sua existência. Contudo, ainda sente falta de um grande amor.” (Sinopse do filme pelo site “Filmow”, especializado em avaliação e crítica cinematográfica). Reconheço que há diversas críticas sobre a obra de Jeunet, até mesmo por seu passado cinematográfico pautado em ficção científica e filmes mais obscuros. É certo que este filme criou a impressão icônica de um cinema francês “bonitinho”, “arrastado” e cheio de planos visualmente interessantes. Muitos que não conheciam sequer uma obra cinematográfica francesa se basearam na então revelação pop do início dos anos 2000 para julgar a veracidade dos elogios dos críticos ao cinema francês durante sua história. Ato falho, porém não de todo mal. Digo isso, pois observo que a popularização de Amélie Poulain foi uma maneira efetiva de chamar novamente a atenção para uma potência cinematográfica que durante os anos 90 esteve em estado de sonolência (apesar de existirem ótimas obras datadas desta década). Uma crítica ferrenha ao filme de Jeunet é a de Felipe Bragança do site Contracampo, especializado em crítica de filmes. Ele diz assim:

Um cinema bem acabadinho. Bonitinho. Em que tudo dá certo, em que tudo é feito para agradar aos olhos do espectador. Uma visão que ignora o cotidiano vivente das pessoas, que atropela a opinião alheia, que serve como alienação de mundo. Uma visão que nunca se coloca como a possibilidade de uma abertura para o diálogo. Amélie toma a vida dos outros para si e, totalmente apoiada pelo filme, os faz felizes seguindo as interpretações que ela mesma faz de suas vidas.

Ainda assim, vejo um potencial enorme nesta obra. Mercadologicamente, fez frente às animações norte-americanas entre o top 10 filmes “bonitinhos” da década. Trata de mudança de vida e boas ações de maneira irreverente, utilizando-se do elemento poético dos clássicos da Nouvelle Vague e abusando do charme inocente da atriz Audrey Tautou, consagrada internacionalmente depois desta atuação. Durante a exibição na última semana do mês, era de se esperar que o público fosse maior e mais disperso. Os riscos de exibir um filme mais “apelativo” se equiparavam aos benefícios. O tal “público consumidor” que citei anteriormente fez presença e também fez a minha alegria, pois poderia seguir a linha de raciocínio dos debates passados sem medo. Também fizeram presença alunos da graduação na média de 18/20 anos e muitos adolescentes do técnico.

De início preciso confessar que foi uma algazarra: alguns dos interessados se incomodaram com outros presentes que em nada contribuíam, ao contrário. Depois de certo tempo fiz a função de “lanterninha”: passei nos corredores com a lanterna do celular acesa pedindo que falassem um pouco mais baixo e que guardassem os celulares. Penso que poderia ter sido mais maleável, visto que a educação deve ser de acesso a todos, mesmo sem interesse latente... Mais um erro de principiante. Porém, minha felicidade teve um capítulo extra, ao perceber que todos ainda permaneciam no recinto e respeitando a concentração dos demais. Muitos comentários, risadas, olhares aflitos e gemidos de felicidade permearam a exibição, sendo notório que em grupo as pessoas se deixam levar pela empolgação e não se limitam. Ao acender das luzes, minha profecia foi cumprida: muitos deixaram o auditório antes do início do debate. Porém, consegui convencer algumas “cabeças” a mais, além do grupo usual. Inicialmente, a dinâmica foi a mesma. Ouvi algumas impressões e opiniões, procurando estimular a participação de todos. O grande destaque foi a estética e o apelo visual do filme. Além de diversos “foi o filme da minha vida”. Percebi que não houve uma continuação de discurso referente à exibição anterior, então tratei de traçar um paralelo e mostrar a influência e a continuidade dos movimentos cinematográficos franceses, deixando claro que inspiração não é cópia.

Cinema Russo

Haveria um gap entre a segunda semana do mês de exibição do cinema russo e o mês seguinte, ou seja, teríamos apenas duas sessões naquele mês. Por motivos profissionais e oportunidades únicas, decidi que aquelas seriam minhas últimas participações no Cineclube. Porém, deixei uma programação inteira pronta, que contava ainda com os cinemas italiano, espanhol, inglês, alemão, argentino, cubano, africano e asiático (estes dois últimos abreviados em exibição continental unicamente por possuírem menos obras consagradas na crítica cinematográfica mundial).

O cinema russo (ou soviético) teve seu auge não muito após seu início, com as obras extremamente politizadas de Sergei Eisenstein. Relacionado ao movimento de arte de vanguarda russa, participou ativamente da Revolução de 1917 e contribui infinitamente para a consolidação do cinema como expressão artística e, consequentemente, arte. Com muitos percalços no caminho (apesar da fama rápida), Eisenstein deixou alguns clássicos e muitas influências. Uma de suas mais bem-sucedidas influências foi o diretor Nikita Mikhalkov, reconhecido mundialmente com algumas de suas obras, tendo até mesmo sendo indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional duas vezes. Nikita é o líder da Russian Cinematographers' Union, associação cinematográfica criada para assegurar os direitos dos profissionais legalizados do audiovisual no país. Nikita teria destaque em nosso “mês russo”, visto que foi solicitado pela coordenadora do projeto a exibição de filmes “mais atuais”, após algumas reclamações da estética das películas mais antigas. Uma notícia que me abateu foi dada por um dos participantes assíduos, informando que o grupo que eu carinhosamente apelidava de “público consumidor” não poderia mais comparecer à nenhuma das exibições, pois tanto no horário principal, quanto na reprise, eles estariam em aula. Aliás, o tal gap na verdade era o término do período, significando que as semanas de exibições seriam as semanas de prova. Era cristalino que o alcance do Cineclube naquele mês específico seria reduzido drasticamente, porém acreditei em um número mínimo de participantes e firmei minha vontade em prosseguir com as exibições.

SEMANA 5 – Urga ou “Urga - Uma Paixão no Fim do Mundo” de Nikita Mikhalkov (1991)

Fazendeiro mongol que vive com a esposa numa tenda tem sua vida mudada quando faz amizade com motorista cujo caminhão quebra nas cercanias. Na cidade grande, se metem em confusões e o fazendeiro ajuda seu amigo a sair da cadeia. (Sinopse do filme pelo site “Filmow”, especializado em avaliação e crítica cinematográfica). Urga utiliza uma abordagem antropológica no relato do choque entre as culturas mongol e russa. De maneira peculiar e dinâmica, aborda o conceito de cultura de maneira sutil e introduz o elemento da surpresa no espectador. Um diálogo marcante aconteceu quando,

após um homem mongol salvar um homem russo que estava perdido e correndo risco de vida, este o leva para a “cidade grande”:

- Você viu o homem? Viu seu dinheiro? - E daí? - Vamos lhe arrancar um pouco, hein? - O que você está falando? Sem ele eu teria assado na estepe até agora! - Vamos mostrar Lenin a ele, hein? - Recebeu-me como um ser humano! - Qual o nome dele? - Gombo! Gombo! Gombo! - Mas entende o que ele está falando? Você entende? Ele não entende nada, e você derrama sua alma sobre ele! O que eles entendem sobre nossa alma? - Alma? Que alma? Nossa alma, aqui! Aqui está a nossa alma, viu? Dois yuans cada, uma alma por dois yuans! Aqui a nossa alma, é isso! Nossa alma, nossa alma... Merda.

O filme possui belas paisagens e cenas que misturam o real com o imaginário, com diversas simbologias visuais retratando a ausência de fronteiras quando se trata de cultura. Além disso, o filme também possui forte teor político, evidenciando com certo eufemismo os pré-conceitos e a rigidez da sociedade russa. No que se refere à exibição, o público foi limitado e apareceram exatamente três pessoas, entre elas um funcionário do setor responsável pela manutenção do auditório. Ainda assim, procurei observar as reações dos presentes. Na totalidade, a projeção não foi tão frutífera quanto as anteriores. As impressões foram bastante rasas, limitandose à vestimenta mongol e piadas sobre a própria palavra “mongol”. Procurei insistir e “lançar” alguns questionamentos: não era interessante o fato de duas culturas completamente diferentes encontrarem similaridades entre si? Não seria ainda mais interessante a família mongol aceitar muito mais rapidamente a presença de homem russo em sua casa do que os russos da cidade aceitarem a presença de um mongol andando por suas ruas?

- É verdade, mas é que nem os pobres e os ricos aqui no Brasil. Se rico um dia passa necessidade e precisa de ajuda, não tem pobre que negue. Agora vai ver se algum rico gosta de ter pobre perturbando o juízo? Nenhum!

Aprovei mentalmente a conexão com a própria vida daquele senhor da EJA, até mesmo comentei que havia achado a colocação bastante interessante e que gostar cinema era exatamente isso, analisar minuciosamente e encontrar elementos úteis para a nossa caminhada diária. Não que fosse necessário tirar lição de vida de filme algum, apenas tornar útil o conteúdo enorme que absorvemos através do cinema, da maneira mais conveniente para cada um.

SEMANA 6 – Utomlionnie Solntsem ou “O Sol Enganador” de Nikita Mikhalkov (1993)

Num dia de verão em 1936, coronel reformado que vive no campo com esposa Maroussia e a filha, recebe a visita do misterioso e atraente Dimitri que, além de apaixonado por sua mulher, é oficial da polícia política de Stalin. (Sinopse do filme pelo site “Filmow”, especializado em avaliação e crítica cinematográfica). Dito por muitos como um filme para refletir o estalinismo e a destruição política aos bolcheviques, O Sol Enganador é um filme diverso, como o anterior de Mikhalkov, trata de culturas diferentes, ainda que pertencentes a um mesmo país. É um filme altamente envolvente com personagens curiosos e icônicos. Devido a esse envolvimento, vários momentos são agoniantes. A leitura feita combina muito bem elementos de contradições morais (remetendo ao conceito de idealismo), romance e crítica política, tudo muito bem construído em um drama excepcional. Conta a história de um herói da revolução Russa, com uma vida familiar em um ambiente tranquilo (contrastando com a rigidez do período Stalinista). O filme foi vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1995. Novamente não tivemos um público extenso, mas algumas almas perambulantes brotaram no auditório. Interessados, e pelo que pude entender em nosso debate final, eles já estavam aprovados em todas as suas matérias. Haviam comparecido ao Instituto apenas para saber de suas notas finais e esbarraram com a divulgação do “filme russo estranhão”, segundo suas próprias palavras. A projeção foi extremamente tranquila, e ao final as questões levantadas fizeram menção aos fatos históricos. Um dos presentes conhecia um pouco da história da Revolução Russa e discutimos sobre a cruel liderança insana de Stalin, assim como a “birutice” dos militares russos, relacionando-os até mesmo com os brasileiros em alguns aspectos.

Disse até logo. Ao final do mês já havia passado o pequeno modelo de divulgação das datas de exibição e emprestado meus DVD’s com os filmes da programação anual completa para o próximo que assumiria em meu lugar. Foi uma experiência enriquecedora, talvez muito mais para mim do que realmente para quem se propôs a participar.

Conclusão

A cultura cinematográfica independe de intermédios para fazer parte da vida de alguém. Em um mundo absolutamente interconectado, há tanta informação a ser descoberta que muitas são deixadas de lado em uma espécie de “interesse seletivo”. A internet, por exemplo, facilita o acesso aos filmes e ao mesmo tempo o acesso ao ilimitado conteúdo. Assim sendo, não se pode dizer que é maioria a parcela da população que se interessa por cinema, e menos ainda a parcela que se interessa por sua história. Ao direcionarmos um Cineclube eclético, mas que possui um tema pré-definido anualmente, aos estudantes de um Instituto Federal, somos os intermediários desta descoberta. É uma bênção e absolutamente uma maldição: não sou um educador, quiçá tenho alguma formação em cinema, e ainda sim, em minhas mãos estava a responsabilidade de transmitir uma primeira impressão de clássicas obras à meninos e meninas que nunca sequer pesquisaram sobre elas. Como disse anteriormente, o projeto foi de valia sobretudo para mim mesmo. Posto sem discussão no papel do intermediário, procurei minimamente analisar a contribuição cultural que cada indivíduo trouxe para aquele recinto e o impacto da junção destes diferentes perfis culturais para que pudesse transferir meus pensamentos para palavras nesta escrita. Não cabe a ninguém o pré-julgamento e a definição prévia do gosto peculiar de outros, cabe a nós facilitar o acesso e despertar o interesse pela cultura que o cinema nos traz.

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