Voz Acadêmica - LIBERDADE DE EXPRESSÃO

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08/ ARTIGO

HOMOFOBIA - A LÍNGUA PRESA, A EXPRESSÃO VEDADA 10/ ARTIGO A ESCOLHA DO SENADO FEDERAL PELO VOTO DISTRITAL E SUAS CONSEQUÊNCIAS PARA A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA LGBT 04/ ENTREVISTA TATIANA LIONÇO: ATIVISTA E ACADÊMICA

Imagem: Elisa Riemer

JORNAL OFICIAL DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA


2 03 Editorial 04 Voz Entrevista TATIANA LIONÇO 07 Voz Artigo

SERIA MEU SONHO?

PARA ALÉM DO VERBETE: PALAVRA, DISCURSO E VIOLÊNCIA 08 Voz Artigo CAPA

DA HOMOFOBIA - A LÍNGUA PRESA, A EXPRESSÃO VEDADA 10 Voz Informa 11 Vozes Malditas 12 Voz Artigo

DA INEXISTÊNCIA DE INJÚRIA NO EXERCÍCIO DA CRÍTICA POLÍTICA 13 Voz Grupo de Estudos

DA IMPRECISÃO DAS PALAVRAS AO ÓDIO DO DISCURSO 16 Voz Indica

THE NEWSROOM E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO JORNALISMO

Bruna Batista e Raphael Christian O tempo passa, as eleições do CAAP se aproximam e o dejávu se repete, como nas cenas do filme Lagoa Azul, das saudosas tardes de ócio da Sessão da Tarde. E o filme já conhecido encontra-se na tal ‘’representatividade’. Os alunos da bela Faculdade de Direito não conseguem concordar sobre qual seria a função do Centro Acadêmico. É na já citada eleição para o CAAP que o clamor por “um CAAP que represente verdadeiramente os alunos” ganha mais força. E, mais rápido que a construção da parede ao redor do elevador dos professores, brotam nas cartas-proposta a belíssima frase: “nós vamos representar os alunos do curso de Direito da UFMG!”. Entretanto, a própria noção de representatividade tem diferentes interpretações e parece impossível que se chegue a um consenso. Você já se perguntou o que é de fato a representatividade? Nesse texto, partimos do pressuposto de que para sermos representados por algo ou alguém, precisamos conhecer as funções e os objetivos destes, no caso, o que faz um Centro Acadêmico- CAAP, bem como a sua trajetória. Se o CAAP esta aí para te representar, você deve saber onde ele está, o que está fazendo. Convidamos os pacientes leitores que chegaram até aqui para nos acompanhar em um

A VOZ DO LEITOR

SUA VOZ AQUI Envie suas críticas, dúvidas e sugestões para o VOZ ACADÊMICA pelo e-mail:

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breve passeio, com pouca densidade e muitas curiosidades: O CAAP é o centro acadêmico mais antigo do estado de Minas Gerais, participou de diversas lutas políticas e históricas, além de apoiar diversos movimentos sociais de relevante cunho político. O Centro Acadêmico exige trabalho (voluntário) e muita dedicação, muitas vezes através do sacrifício da vida pessoal e acadêmica, e um ano de gestão no CAAP fornece apenas 30 horas de ACG. Os membros do CAAP compõem a representação estudantil, participando de reuniões no Colegiado, Congregação, Departamentos e outros, bem como fiscalizando concursos de docentes.. Cada diretoria executa cerca de 3 ou 4 projetos simultaneamente. A execução de cada um deles toma muito mais tempo do que aparenta. O CAAP luta por pautas como o bandejão noturno, além de apoiar financeiramente e divulgar diversas iniciativas dos discentes. Isso sem falar no trabalho da executiva que, além de sempre auxiliar as diretorias nos seus projetos, tem que tomar conta da parte administrativa e financeira da gestão e do CAAP idiomas, (aconselho a você, caro leitor, perguntar a um ex-presidente do CAAP quanto do cabelo dele ou dela caiu durante a gestão). E ainda, muito de tudo que é planejado perde seu rumo por motivos que ninguém esperava, e a gestão não consegue cumprir tudo que foi prometido. E ninguém se sente mais frustrado com isso do que a própria gestão. Chegamos ao fim deste texto sem definir de fato o que é a representatividade. No entanto, após discorrer sobre as inúmeras atividades desenvolvidas pelo CAAP, temos uma certeza e esta reside em entender o CAAP como o principal órgão político de representação dos estudantes do curso de Direito da UFMG, exercendo importantes funções de caráter acadêmico e político, que perpassam os muros e os limites da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG.

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Moderador: Bruna Pereira Batista CAAP: Júlia Silva Vidal (CDH - UFMG) CACE: Vanilda Peres dos Santos CRT: Arthur Gandra Pós-Graduação: Lucas Costa dos Anjos (GNet - UFMG)

e André Costa F. de Belfort Teixeira

Graduação em Direito: Ana Luiza Nogueira de Abreu

e Andressa Freitas Martins (CDH - UFMG)

AAA: Filipe Macieira Ribeiro Diagramação: Ana Luiza Bongiovani Impressão: O Lutador


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EDITORIAL Liberdade e normalidade: um mito perigoso Rodrigo Ribeiro O senso comum da normalidade imposta é uma das mais eficientes formas de anular a real potência de nossas liberdades. Transitar nos estreitos limites das convenções nos garante a falsa sensação de concretização dos nossos direitos. Cortesia, bom senso, ponderação. Palavras tão comumente usadas para lastrear nosso espaço de fala, legitimadoras dos bons discursos democráticos. Bonitas, talvez, mas fatalmente enganosas. Não se pode ignorar que, assim como os demais direitos individuais e coletivos conquistados, a lógica do poder é determinante na efetivação do direito à liberdade de expressão. Mesmo se tratando de um dos chamados “direitos de primeira geração”, é ainda muito atual a reflexão sobre até onde nos é concedido o direito efetivo à capacidade transformadora da liberdade de expressão, especialmente se esbarrarmos nos quase sempre invisíveis, porém muito presentes, limites impostos. Aqui, é necessário dizer o óbvio. Todo e qualquer discurso só pode ser legitimado à medida que se adequa às margens pré-estabelecidas. Até mesmo as críticas precisam seguir a lógica reformista do sistema. Devem ser cuidadosamente escritas e enviadas “atenciosamente” aos seus alvos. Em um bom Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão dificilmente encontrará problemas enquanto permanecer subserviente aos poderes que, num primeiro momento, permitiram sua existência. Mas as lutas intrínsecas à dinâmica social fazem florescer a transgressão. Quando, de repente, a exortada liberdade de expressão põe em risco as autoridades, o status quo, quando cria reais oscilações na estrutura de poder, a resposta não é nada cortês. A desigualdade de forças entre o Estado-capital e os indivíduos é um dos maiores impeditivos da concretização do pleno direito à li-

vre expressão. Não é difícil perceber as violentas reações às manifestações que não podem ser assimiladas pela normalidade. Basta que uma parede se pinte com as vozes daqueles que deveriam ser mudos, que uma crítica vá “longe demais” ou que uma manifestação se atreva a ser um pouco mais que uma procissão bem-educada, para que toda desproporcionalidade fique evidente. O monopólio da força (e da Justiça), as polícias (e o Direito) e as prisões, são algumas das formas de contenção à capacidade transformadora de nossa liberdade de expressão. Afinal, como Rosa Luxemburgo magistralmente ilustrou: quem não se movimenta, não percebe as amarras que o prende. Só percebemos que algo significativo foi atingido, quando a violência da resposta fica evidente. A hipocrisia latente do discurso liberal é tão clara como próxima de nós. Nossos grandes mestres juristas são os primeiros a reagir violentamente (de cima de seus palquinhos) quando sua autoridade é perigosamente questionada. Mas basta abrir um livro escrito por qualquer um deles, para vermos a exibição orgulhosa desse direito-troféu chamado liberdade de expressão. A percepção de que o ser e o agir carregam, em si, grande potencial subversivo, nos permite entender a razão pela qual o direito à livre expressão, em suas mais variadas formas, está em constante e eterna disputa. Disputa essa que só pode ser vencida quando forem derrubados os privilégios e estabelecida a igualdade fática. Só aí há de se falar em discurso democrático. Até lá, que façamos os senhores se envergonharem com nossas palavras.


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ENTREVISTA

TATIANA LIONÇO Júlia Silva Vidal e Lucas Costa Anjos Voz: Tatiana, você poderia comentar brevemente sobre sua trajetória de militância e acadêmica? Tatiana: Antes de me assumir ativista, eu já me encontrava em uma trajetória acadêmica e comecei a trabalhar para o poder público, prestando consultoria para o Governo Federal. Comecei, então, a dialogar com movimentos sociais como parte das minhas atribuições. Hoje em dia, entendo o meu trabalho acadêmico como parte do meu ativismo político, apesar de que nem todo o ativismo que eu faço possui um viés acadêmico, pois me envolvo em diversas ações diretas e mobilização de protestos. Me entendo hoje como uma ativista feminista e, além de dialogar de perto com o movimento LGBT, milito pelos direitos sexuais, reprodutivos e direitos humanos no geral. Enquanto acadêmica, tenho 20 anos de estudo sobre sexualidade e gênero. Participei de diversos processos de construção de políticas públicas, como a articulação do processo transexualizador do SUS e a I Conferência Nacional LGBT. Desenvolvi pesquisas que permitiram certa análise crítica de políticas públicas, como é o caso de análise de material didático-pedagógico. Meus interesses acadêmicos se transformaram também. Por exemplo, esse meu trabalho de gênero e sexualidade com transexuais, no enfrentamento da homofobia, também me levou a pesquisar hoje o fundamentalismo religioso. Isso em razão do cenário político em que a gente vive atualmente. Na UnB (Universidade de Brasília) eu também participo de iniciativas institucionalizadas de enfrentamento da LGBTfobia. Foi criada uma comissão de gestão e monitoramento, que busca construir mecanismos de prevenção a processos de discriminação, por exemplo. Também se promove a criação de um canal de recebimento de denúncias. É um canal de referência na instituição para coibir os processos de homofobia, lesbofobia e transfobia, que podem ocorrer em todos os níveis acadêmicos, inclusive em sala de aula, por professores. V: Esse equilíbrio entre militância e docência exige discernimento do docente em sala de aula. A liberdade de cátedra pode tanto mascarar discursos opressivos, quanto garantir liberdades em sala de aula. Como você lida com isso?

T: Vários projetos de lei de cunho fundamentalista visam a coibir essa liberdade de consciência e de expressão no exercício da docência, como o Projeto escola sem Partido e o projeto que tipifica o crime de assédio ideológico. E isso pode se estender para o âmbito das universidades. Sou professora de psicologia na UnB e as disciplinas são muito voltadas para teorização. Temos pouco espaço nos currículos para discutir fenômenos contemporâneos. Por meio da pesquisa, nós temos muito mais autonomia para produzir discursos e estudar especificamente aquilo que nos é importante. Não é arbitrária a função da docência, nem o que se pode pensar na universidade. Pode-se pensar em tudo, mas sempre se estará sujeito à contra-argumentação. Isso é do contexto universitário. Com certa frequência eu me pego pensando em sala de aula se estou usando as palavras mais adequadas, se o que eu digo pode ser entendido de forma errada, que pode depois ser usado para me acusarem de alguma coisa. V: Depois de publicar suas músicas, o grupo Pagu Funk [grupo de pancadão feminista, que fala, entre outras coisas, em “cortar a pica” de quem “chega na favela com papo de machista”], sofreu xingamentos, ameaças de morte, de estupro, de agressões físicas, entre outras represálias. Como você interpreta a deturpação dos propósitos de protesto desse grupo? T: Eu interpreto como uma violência simbólica. E o que fizeram com o grupo, ao utilizar suas letras e vídeos para produzir exatamente o contrário do que ele se propôs, é inclusive cerceamento da liberdade de expressão. Eu passei por uma coisa muito parecida, por exemplo. Meu ativismo, minha produção acadêmica sobre direitos sexuais e enfrentamento da homofobia, bem como meus argumentos sobre sexualidade na infância foram deturpados [pelo deputado federal Jair Bolsonaro] para levarem a entender que eu defendia a pedofilia. Isso é uma violação moral gravíssima, já que você nega que a pessoa possa enunciar, nos seus próprios termos, qual é o sentido de sua luta política. O outro chega e deturpa e leva outros a entenderem que o sentido da sua luta política é o extremo oposto daquilo que você defende. No meu caso, recebi uma resposta da Procuradoria Geral da República dizendo que o deputado Bolsonaro estava amparado pela

imunidade parlamentar, que prevê a exclusão do ilícito nos casos em que a expressão é tipificada como crime. Mas o que alguns parlamentares têm feito desse dispositivo é o uso abusivo da imunidade parlamentar, já que a injúria, a calúnia, a difamação, o preconceito contra regionalidades e a própria intolerância religiosa não estão sendo usados para poder questionar leis existentes, e sim para imprimir discursos ofensivos. Isso não tem nenhuma função de reflexão sobre o processo democrático, nem sobre as questões sociais. Em nome da livre expressão, muitas pessoas têm defendido uma onda de ódio que tomou o debate público e o debate na internet. São atribuídos a outras pessoas argumentos que não são seus, e que violam moralmente as pessoas. O discurso de ódio pode até ficar meramente na esfera simbólica daquele que o enuncia, mas aquelas ideias elas podem sim respaldar passagens a atos concretos, como depredações de terreiro, estupros corretivo de lésbicas, aumento no número de homicídios e lesões corporais contra homossexuais, travestis e transexuais, entre outras coisas. V: Nos chama atenção, em sua fala, o fato de que o fundamentalismo religioso estaria bastante relacionado a processos legislativos e ao direito. Na FDCE da UFMG, aconteceram recentemente alguns episódios de deturpações e desenhos fálicos sobre cartazes feitos por mulheres, em relação ao dia do aborto. Estamos apenas começando a dar mais visibilidade a essas questões em nossa Faculdade. Ao mesmo tempo em que esses assuntos são pioneiros, há uma onda conservadora enorme, como a que fez essas intervenções nos cartazes. Você poderia comentar um pouco sobre isso? T: Por que esse debate sobre os direitos das mulheres atinge tanto esses sujeitos? Por que eles se sentem tão ameaçados a ponto de colocar um falo tão grande nesses cartazes? Qual a necessidade de ostentar sua masculinidade dessa forma, a “supremacia do macho”? Isso é feito por pessoas que se sentem ameaçadas em seu ser por essas discussões. Há também a construção de uma ideia deturpada sobre o que é o feminismo e a luta das mulheres, como se fosse o extremo oposto do machismo. Há toda uma geração entrando no processo político sem crítica alguma em relação aos


5 danos dessa lógica de negação do outro, de sectarismo, sem nenhum tipo de compromisso com a coletividade, é uma coisa muito auto-voltada. É como o cara que começa a odiar negros porque a mulher o abandonou por um negro. O feminismo não é contexto para a elaboração de conflitos internos. Para isso, você vai procurar seus processos de cura, como uma análise. Veja bem, eu também não sou daquelas que acha que os movimentos ativistas tenham que ser pacíficos não. Estou tentando falar de outra coisa, um tanto irracional, no modo de fazer política. Por exemplo, é possível argumentar o porquê de um movimento específico [como a oficina de Drag King, realizada na FAFICH na mesma semana da entrevista] ser um espaço só para mulheres, e não simplesmente recusar a participação masculina. Há uma coisa de força da resistência, esse vigor da luta, que é importante. Mas ele não pode se traduzir em legitimação da violência. Uma coisa é a potência, que às vezes tem que vir com força mesmo. Legitimar as opressões não é isso. V: Por falar em potência da militância, recentemente o Coletivo Coiote fez uma performance com a quebra de imagens de santos, de crucifixos e outros tipo de atos considerados “cho-

cantes”. Para algumas pessoas, foi um protesto potente. Para outras, foi ofensivo. Quais são os limites desse tipo de ato performático? Eles existem? T: Aquilo é uma performance. Se ela tivesse sido realizada em um espaço privado, não haveria nenhum ilícito. Mas eu defendo que inclusive algum tipo de desobediência da lei aconteça, desde que estrategicamente, por questões políticas. Quebrar santo não é, necessariamente, um ilícito em um ato performático. É um ilícito quando você invade uma igreja e quebra santos. Mas fazer isso aqui, na universidade, não é um ilícito. Acho que é muito falso moralismo a sociedade dizer que sua religião foi ofendida por causa disso. Eu acho que ofensivo é, na verdade, a notícia de um padre pedófilo, de que a Igreja financia a indústria bélica, entre outras coisas. Um ato performático como esse tem como função criticar a violência inerente à Igreja. Ele mostra a violência que está sendo silenciada, a relação entre sexo, violência e Igreja. Essa relação é apresentada, imposta pelo ato performático. Ele rompe com a representação hegemônica de que a Igreja é boa. É uma crítica social. Temos que defender a potência da livre expressão performática, porque isso é encenação. Aquilo representa coisas em analogia

com a vida social, não é a vida social. Aquilo é uma encenação. A gente tem uma representação da violência e da corrupção em toda a indústria cenográfica. Da mesma forma, podemos dizer que a retórica social machista vigente nos ofende. Isso pode ser representado e faz parte de nosso cotidiano. Por que outros processos de opressão não podem ser representados? Então, eu defendo que essa expressão seja mantida. Existem vários discursos que transitam no cotidiano que nos ofendem. Como é isso? A Igreja é tão intocável que ela não pode sofrer uma crítica pública? V: E a relação entre discurso de ódio e liberdade de expressão religiosa? Como ficam os limites de uns e as liberdades do discurso de outros? T: Essa questão do discurso de ódio, principalmente quando ele se próxima da fé religiosa, é um problema, já que se justifica a violência por meio de preceitos “supostamente” morais. Há um impasse entre liberdade de consciência e liberdade religiosa. A teologia neopentecostal inaugurou a teologia da prosperidade, que tem a ver com domínio. Eles criam uma teologia para justificar uma verdadeira cruzada de intolerância contra o satanás. Só que esse satanás se materializa em pessoas reais, em instituições concretas, em instrumentos localizáveis.

Cartazes para o dia latinoamericano e caribenho pela discriminalização do aborto e para o grupo de estudos “Gênero, Sexismo e Homofobia”, que estuda o Feminismo, foram cobertos por figuras fálicas na FDCE UFMG. Fotos: Júlia Vidal


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ENTREVISTA Aí se agenciam processos de intolerância contra pessoas que defendem os direitos humanos, por exemplo. Banaliza-se a violência. É um processo de desumanização. E essas pessoas alegam que isso é liberdade de consciência e liberdade religiosa. Pessoas como Silas Malafaia afirmam que homossexuais são pedófilos, que há um complô para a ruína da família, que a sociedade precisa estar alerta, etc. Esses discursos formam opinião, são tidos como verdade para muitas pessoas. No entanto, a liberdade de consciência e a liberdade de expressão são direitos modernos, que surgiram a partir da secularização, que é essa progressiva separação dos estados. A verdade religiosa não mais orienta as práticas de governo. O sujeito tem que ter direito de falar por si mesmo o sentido que ele atribui a si próprio, a suas práticas e ao que ele defende. Ainda assim, a gente não domina o campo das representações sociais, dos saberes míticos que se perpetuam. Então, muito curiosamente, o fundamentalismo religioso ganhou força no Brasil por meio do argumento da defesa da livre expressão. Eles defendem a liberdade de expressão ao mesmo tempo em que fazem projetos de lei para cercear essa liberdade, como a tipificação do assédio ideológico na educação, o estatuto da família. Suas estratégias são muito bem organizadas. Temos que associar a liberdade de expressão e de consciência ao princípio da dignidade da pessoa humana. A liberdade de consciência serve para evitar que as mulher sejam novamente queimadas em praça pública, sem direitos de falarem por conta própria no que elas acreditam em relação as suas práticas. Antes, o outro significou por ela, afirmou que sua prática era herege, feitiçaria. O limite da liberdade de expressão vai ser posto pelo mesmo princípio da dignidade, além de um compromisso com a coletividade. Por meio dessa agenda totalmente criminalizadora do fundamentalismo religioso, o que me leva a entender é que eles estão propondo uma homogeneização social. O que não cabe naquela lógica deles de pagar o dízimo, fingindo que é de Cristo porque são homem, mulher e filhos, será objeto de criminalização e de uma segregação contemporânea, estatal. É um retorno à Idade Média. É um retorno a processos históricos que lidavam com fenômenos sociais e com as diferenças entre formas de subjetivação por meio de práticas questionáveis: segregação dos loucos, dos imorais, dos vagabundos, dos sifilíticos, dos leprosos, etc. Nós já superamos isso! Mas parece que a história não nos ensinou nada. V: Recentemente, na FDCE, um professor, que também é desembargador, comentou em sala de aula o beijo lésbico de Fernanda Montenegro na novela,

por meio da seguinte frase: “graças a Deus ainda existe um pouco de heterossexualidade no Direito”. Tendo em vista sua experiência docente, você poderia comentar sobre o conteúdo dessa frase e sua relação com a liberdade de cátedra? Eu acho que esse professor tem que fazer um exercício de autorreflexão sobre quem estava falando ali. A docência, por mais que a gente tenha liberdade de cátedra, serve para sustentar posições justificáveis academicamente, não para sair falando qualquer coisa que vem à cabeça. Academicamente, ele teria que justificar a relação que faz entre Deus e o Direito. Do ponto de vista da Teoria do Direito, acho um pouco difícil que ele consiga justificar essa relação. Ele estava manifestando uma opinião claramente pessoal. Além disso, estaria ele dizendo que a garantia de direitos a homossexuais torna o direito homossexual? Isso é uma aberração até mesmo do ponto de vista da Teoria do Direito, porque o Direito não é heterossexual, nem homossexual. Apenas recentemente o Direito

assumiu novas formas de regulação do que é a família, do que é o registro civil das pessoas, etc. Foi um avanço começar a fazer uma autocrítica sobre o fato de que o Direito não estava contemplando a totalidade da sociedade. Como esse professor sustentaria, acadêmica e epistemologicamente essas afirmações que ele fez? E a única solução que ele vai ter é dizer: “gente, me desculpem, eu pensei alto um pensamento preconceituoso”. Foi preconceituoso em relação a tudo, em relação às lésbicas, em relação ao Direito, etc. Como um professor de Direito pode sustentar essa afirmação dentro de uma instituição acadêmica? A visão particular que ele tem sobre esse tema não cabe em sala de aula. Em sala de aula, você cumpre uma função. Mas há uma questão de lugares de poder na sociedade, não, é? Como ele é um desembargador e decide e define coisas, ele acha que está imune. É a imunidade moral dos juristas e desembargadores, como é a imunidade parlamentar. Que uso você faz disso?

Tatiana Lionço. Foto: Júlia Vidal


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PARA ALÉM DO VERBETE: PALAVRA, DISCURSO E VIOLÊNCIA Zilda Onofri Mulher: 1- Pessoa adulta do sexo feminino. 2- Cônjuge ou pessoa do sexo feminino com quem se mantém uma relação sentimental e/ou sexual. 3- mulher pública: meretriz. Homem: 1- Mamífero primata, bípede, com capacidade de fala, e que constitui o gênero humano. 2- Indivíduo masculino do gênero humano (depois da adolescência). 3- Humanidade, gênero humano. 4- Cônjuge ou pessoa do sexo masculino com quem se mantém uma relação sentimental e/ou sexual. 5- Pessoa do sexo masculino que demonstra força, coragem ou vigor. Fonte: Dicionário do Aurélio [http:// www.dicionariodoaurelio.com]. Último acesso em: 29/11/2015

Fonte: Dicionário Michaelis [http://michaelis. uol.com.br/] Último acesso em: 29/10/2015 Não se trata de neutralizar a linguagem em busca de eufemismos. Nem de apagar os duros significados impostos pela história da linguagem e da construção do indivíduo enquanto ser social. É necessário, contudo, reconhecer que a linguagem é uma importante forma de enunciar a realidade tátil das coisas, a forma como seres se desenvolvem no mundo, firmando convicções e pré-conceitos. Não se trata de apagar do dicionário as gritantes diferenças que a palavra homem e a palavra mulher possuem equiparando seus significados magicamente. É preciso, contudo, perder o medo de escancarar os pilares nos quais se sustentam os símbolos. O movimento feminista, o movimento negro, o movimento LGBT queer e as possíveis interseccionalidades dentre esses momentos sociais expõem a necessidade de resignificar os usos das palavras utilizadas historicamente para vocalizar discursos odiosos. O discurso conservador, muitas vezes, se faz mudo frente a essas reivindicações e esbarra nas próprias contradições. Muitos preferem se manter ignorantemente limitados ao conceito de palavra como um conjunto ordenado de letras estéreis. É diante disso que seguirei vadia, puta, meretriz, em disputa do significado naturalizado, do trivial, do cotidiano. Seguirei vadia enquanto o significado da palavra mulher se encontrar absconso nas linhas da história e representar as violentas trajetórias da nossa liberdade sexual.

Sam Brooke

A palavra mulher carrega como símbolo linguístico a definição de meretriz, coisa pública, disponível. A palavra homem carrega como símbolo linguístico a síntese do gênero humano, a demonstração de coragem e de vigor. A palavra não é oca: carrega o peso da história daqueles que a constroem, daqueles que a verbalizam, daqueles que a constituem enquanto símbolo eficiente: verbalizado e compreendido. Gadamer, autor tão importante para os pilares da hermenêutica filosófica e jurídica, já expunha a noção de pré-juízos e préconceitos ao traçar os horizontes constitutivos de um posicionamento. Nesse ensejo, a interpretação não seria um mero ato reprodutivo, mas um ato também produtivo permeado pela tradição, pela historicidade e pela linguagem. O discurso não é algo inerte. Produz significados. A partir disso, a hermenêutica jurídica e filosófica esboçou teorias diversas e sustentou de diferentes formas a possibilidade da tão almejada compreensão (Verstehen). Discute-se a possibilidade de uma universalidade do discurso por meio de uma razão comunicativa, como em Habermas, ou de uma fusão de horizontes discursivos como em Gadamer.

Dentre as divergências teóricas múltiplas sobre a constituição do discurso, a hermenêutica contemporânea reflete sobre a impossibilidade da palavra enquanto um símbolo amorfo, posto, indiferente. O discurso, portanto, é algo inserido na realidade social. Aquele que enuncia por portar pré-conceitos, noções prévias de realidade, interessa, então? Sendo mulher, coisa pública disponível, interessa-me saber quem enuncia a palavra mulher, pois me interessa saber os significados que a palavra é capaz de conter: para além do verbete de dicionário. Não é indiferente chamar um homem gay afeminado de “mulherzinha”, nem uma mulher trans de homem. O discurso é capaz de produzir diferenciações violentas, produzir identidades e negar a livre manifestação de identidades autoconstruídas e autoreferenciadas. Uma mulher trans que reivindica o uso da palavra mulher e assim o faz, resignifica e problematiza o símbolo linguístico. Um homem ao se referir a uma mulher trans utilizando a palavra homem impõe um significado a essa palavra, ancorado em significados biológicos, por exemplo: “Se tem pinto pra mim é homem a acabou”. De forma contraditória, o mesmo homem utiliza a palavra mulher para desqualificar o homem afeminado, embora a biologia ainda sustente nele uma genitália masculina. Escancara-se a contradição: o significado biológico aqui importa menos que a performance social do gay afeminado que subverte o que a tradição instituiu como vigor masculino.O discurso é o exercício e o manejo de símbolos historicamente alicerçados. Não há ingenuidade, há intencionalidade. A construção da palavra mulher para determinados grupos sociais, portanto, possui um impacto, uma significação. Exaltação, elogio, depreciação, xingamento, violência. Cada palavra possui uma cadeia de signos indissociáveis da forma como a sociedade se estrutura. Ser meretriz, por exemplo, não teria um significado ofensivo se fosse um trabalho reconhecido e prestigiado socialmente. É nessa perspectiva que autores como Bakhtin sustentavam o signo como uma arena, um campo de disputa, onde se desenvolve a luta de classes. M. do mundo, pej: prostituta. H. do mundo: frequentador da alta sociedade, da qual tira os hábitos e maneiras.


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ARTIGO CAPA

DA HOMOFOBIA – A LÍNGUA PRESA, A EXPRESSÃO VEDADA Davi Gomes Doutorando do programa de pós-graduação da FDCE. Professor Assistente do Departamento de Direito da UFLA

“Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade” (Chico Buarque e Gilberto Gil, Cálice) História e linguagem. Datar fenômenos históricos a partir do momento em que surgem novos termos – ou quando termos já existentes ganham novos sentidos – e, ligando-se a tais fenômenos, passam a constituirse como novos conceitos. Compreender conceitos como sintomas do tempo, e buscar na plurivocidade que lhes é imanente – seja pela referência de um mesmo conceito a ordens distintas de coisas no mundo, seja pela referência de conceitos distintos a uma mesma ordem de coisas no mundo – a pluralidade e a complexidade inextirpáveis da vida humana. Linguagem e política. Entender que conceitos não somente expressam sintomaticamente um mundo que lhes subjaz, mas que, ao mesmo tempo, constituem esse mundo. Assumir que sempre que se fala não apenas se fala, mas se faz algo ao se falar, e que, por isso, toda fala, todo canto e todo grito produzidos por relações humanas produzem, concomitantemente, aquilo que são as relações humanas. História, política, linguagem e desvio. Pois em toda palavra, para além da prisão semântica que sua transformação em conceito lhe impõe, permanecem sempre rastros de desvios, permanece sempre o próprio desvio como rastro, como rastro de uma outra coisa que se poderia ter dito – que se disse ou se teria dito, talvez, em outro tempo – e que passou a não ser mais dita quando o conceito se impôs e, não obstante sua polissemia inelutável, fechou-se internamente nessa aparente abertura, fazendo com que essa outra coisa que a palavra não pôde mais dizer seja não simplesmente o rastro de um outro sentido, mas seja o sentido da alteridade mesma, o rastro de uma diferença que resta, sobra e

transborda para além de qualquer identidade. Desvio, identidade e alteridade. Alteridade como desvio, como desvio da norma, como desvio daquilo que é normal, e, portanto nosso, normalmente nosso, normativamente tomado como normalidade nossa – “nossa” ou “nosso”, expressão de uma possessividade pronominal que une sob a rubrica de um todo intitulado como “nós”, lugar seguro que protege a fragilidade humana na Terra, que protege a fraqueza e o abandono de cada indivíduo deixado a si mesmo, oferecendo a ilusão de uma coletividade à qual pertencer, coletividade que, ao se fechar sobre si, organiza-se em normas que revelam o que ela é e que, na ânsia pela proteção frente ao desamparo e ao desespero, frente à covardia e ao medo de cada indivíduo que se nela se ancora para resguardar-se do mundo, concebe toda alteridade – todo desvio da norma – como ameaça, como risco que, ao tornar manifesta a ubiquidade do rastro, precisa ser combatido, deve ser eliminado. Nós e a linguagem. Afinal, em qual outro locus se terá jamais expressado com tamanha força e intensidade a possessividade pronominal daquilo que se diz como nosso – a proteção sufocante de uma coletividade qualquer – senão na linguagem, na língua mesma e na impossibilidade de saltar para fora dela. Nossa língua, língua que se define como nossa e que nos define como nós, normatividade primeira de onde derivam todas as outras e que, no entanto, é ela mesma porosa e infinita, fragmentada e diferida, insuficiente e insaturável, hiperbólica, enfim; que, mais do que palavra, é gesto e ação, cultura e corpo, finitude e transcendência, diplomacia e erotismo, erudição e sexualidade. Na primeira vez em que ouvi a palavra “homofobia”, no a essa altura longínquo ano de 2004, causou-me certo incômodo a relação entre ela e aquilo a que pretendia referirse: levando a sério o modo como os termos unidos naquela palavra foram depositados ao

longo da história na língua portuguesa, homofobia deveria referir-se a algo como medo ou aversão (fobia) ao igual (homo). Assim, referir-se com essa palavra a algum tipo de ódio a homossexuais parecia, quando menos, um equívoco etimológico. Mas, como transformações na linguagem – aquilo que constitui o torque mesmo da língua, ou o toque da língua mesma – não são aceitas ou feitas, não são previstas ou autorizadas, assumidas ou negadas, mas simplesmente acontecem – como lógica do mundo, como modus constitutivo do incessante desconstituir-se do mundo –, sem muito respeito pela gramática e suas regras formais a palavra foi, aos poucos, impondo-se como conceito – ou o conceito foi, aos poucos, impondo-se sobre a palavra. Fez-se carne, habitou entre nós. Ao impor-se, ele – o conceito –, derivado de relações postas de maneira difusa no mundo, foi, aos poucos, organizando essas relações, organizando esse mundo, dando certo sentido de unidade a um conjunto de práticas contra as quais aquela palavra e seu novo uso pareciam querer se voltar e assumindo com isso um teor crítico irrefreável. Ao mesmo tempo, por outro lado, o conceito foi também organizando aquilo contra o que ele parecia querer se voltar, oferecendo certo sentido de unidade também para aquelas pessoas que agora, de modo explícito ou implícito, assumido ou não reflexivamente, podiam identificar-se como homofóbicas. Exsurgindo do mundo, a palavra, como conceito, reorganizava o mundo, de um lado e do outro; constituía o mundo a seu modo, à medida que se ia desconstituindo ela mesma como palavra que pudera talvez ter significado algum dia a simples junção da “fobia” com o “homo”. De repente, não mais que de repente – isto é, depois de tantas mortes bárbaras de travestis, de tantos estupros corretivos de lésbicas, de tantos gays humilhados e espancados, de tanto sangue, de tanta dor, tanta luta e tanto luto – o conceito se institucionalizara.


9 mada como casa, não pode não ser também a casa de Francisco Campos e do auditório Francisco Campos, e de tantas outras salas e tantos outros bustos - de aço, de bronze ou de carne – comprometidos com a aversão à democracia e com a sustentação do autoritarismo na história do Brasil. Casa, espaço por excelência de manifestação daquilo que é privado, daquilo que pode manifestar-se sem ser necessário dar razões que o justifiquem. Espaço, portanto, em que nenhuma justificação racional e pública dos atos que se praticam pode ser exigida. Não por acaso, casa: espaço do armário e da cozinha, espaço ambiguamente ligado à senzala de ontem e aos modernos quartos de empregada de hoje. Espaço, por conseguinte, de ocultamento das discriminações, de encobrimento das violências, de ratificação autoritariamente silenciosa e silenciadora de uma variada gama de opressões: contra gays, lésbicas, trans, mulheres, negras, negros, pobres. E também contra alunas e alunos. Casa, em resumo: local privilegiado para as hierarquias, local quase que naturalmente determinado – pela própria necessidade transgeracional de sobrevivência da espécie e de consequente transmissão a cada nova geração do saber acumulado pelas gerações anteriores sobre a face da Terra – como locus da desigualdade, da inigualação necessária. Casa, portanto: local da aversão à igualdade. Casa, pois: local da homo-fobia, da aversão ao igual, seja ela ou ele gay, lésbica, trans, mulher, negra, negro, pobre, enfim. Porque o que une todas essas lutas, o que pode de algum modo uni-las, é o caráter homo-fóbico das opressões que recaem sobre todos esses grupos: o que todas essas minorias precisam enfrentar cotidianamente não é outra coisa que a homo-fobia, que a aversão à possibilidade de que, como diferentes, sejam tratadas como iguais. Não se trata, por um lado, de pretender para a luta contra a opressão afetivo-sexual a herança do posto outrora ocupado pela

luta contra a opressão de classe. Ao contrário: a base de todas essas opressões continua sendo, ainda que ofuscada por uma série de mediações históricas, a desigualdade material derivada da incessante luta da espécie humana contra a escassez de recursos de sobrevivência e a forma que tal luta assumiu no modo capitalista de produção. Também não se trata, por outro lado, de diluir a pauta de lutas especificamente voltadas para a questão afetivo-sexual no meio de uma série de outras pautas, sobretudo de fundo material, chamando todas elas de lutas contra a homo-fobia, de tal modo que a luta própria contra a homofobia acabe por perder a visibilidade que não pode deixar de ter. Pois se aquela base material continua sendo o obstáculo sem a derrubada do qual a emancipação humana não se perfaz, é preciso, não obstante, estar alerta para que a luta contra a opressão de classe não sufoque e represe novamente a luta contra todo um conjunto de outras opressões que, conquanto derivando dessa opressão material básica, ganharam ao longo da história relativa autonomia e constituem hoje gramáticas próprias a serem compreendidas e enfrentadas. Afinal, mesmo que um dia consigamos superar a escassez artificial que hoje se induz no mundo como forma de preservação da lógica de autovalorização do capital, mesmo que um dia a desigualdade material de base seja efetivamente superada, não se poderá chamar de emancipada uma sociedade em que, extinta a desigualdade material, permaneça a desigualdade em suas outras manifestações, permaneça a aversão ao igual, permaneça, assim, uma dinâmica homo-fóbica para além e ao lado de toda a almejada inexistência de classes. Trata-se, assim, nem tanto ao mar nem tanto à terra, simplesmente de insistir na inelutável transversalidade das lutas emancipatórias, na inafastável unidade de propósito que as congrega, por mais plurais que sejam: o simples e difícil propósito da democracia entre nós.

Luiza M

Transcendidas as barreiras dos guetos, era agora possível ouvir falar-se de homofobia nas ruas, nos pontos de ônibus, na grande mídia, nas mesas de cafés ou bares. Era possível reler o mundo à luz do novo conceito, da palavra renovada, reler um mundo ele mesmo reescrito pela palavra relida. E, nessa releitura, tornava-se possível compreender finalmente em toda sua agressividade homofóbica tantos gestos e tantas práticas há tanto tempo arraigados no cotidiano social, tantas piadas, tantas posturas, tantas falácias e tantos discursos proferidos em almoços de domingo, em reuniões de fins de expediente, em filas de supermercado, em aulas e mais aulas de etiqueta ou de direito. Mas, institucionalizado o conceito, estava presa a palavra. E presa a palavra, apenas como rastro o desvio poderia restar. De tudo, porém, o que importa é e será sempre exatamente apenas o rastro. Aquilo que permanece mesmo já não estando presente, aquilo cuja presença só existe como rememoração, como lembrança forçada pelo próprio esquecimento. Pois, por detrás de toda homofobia como ódio às e aos homossexuais, resta ainda aquele outro sentido, que se desvela para revelar o sentido mais profundo da homofobia ela mesma: não há nem jamais haverá homofobia que não seja, que não continue sendo, ao mesmo tempo, uma aversão ao igual. Uma aversão ao fato de que a igualdade humana somente se torna possível pela constatação de que ela mesma, a igualdade plena tomada em si, é sempre impossível, e de que por isso a igualdade só existe como reconhecimento de sua impossibilidade – logo, como reconhecimento de que o que nos iguala é a diferença irreprimível entre nós e de que, apesar de todas as diferenças e precisamente por causa delas, pode haver entre nós algo de comum. Não há aversão à homossexualidade que não seja primeiramente homofobia nesse sentido mais profundo, homofobia como homofobia, como negação – necessariamente frustrada, e, por isso, agressiva, impotente, desesperada e violenta em seu irremediável desespero – daquela constatação básica acerca da radical pluralidade humana. E, como essa pluralidade não é senão a conditio per quam da política, da república, da democracia enfim, não há homofobia que não seja – como homo-fobia, como aversão ao igual e à igualdade mesma – aversão à própria democracia. Se assim o é, não pode gerar surpresa alguma a manifestação dessa homofobia em uma instituição cuja autocompreensão difundida em seus espaços de sociabilidade e reforçada até mesmo em seus atos oficiais sintetiza-se de maneira exemplar na perífrase “Casa de Afonso Pena” – que, to-


10 INFORMA

Tudo que você sempre quis saber sobre liberdade de expressão A Clínica de Direitos Humanos da UFMG e o GNet realizaram, brilhantemente, na primeira semana de novembro um colóquio para discutir liberdade de expressão! O evento contou com palestrantes de diversas áreas que debateram questões como: imparcialidade e responsabilidade da mídia, direito ao esquecimento e direito à verdade, discursos de ódio, liberdade de expressão online, entre outros temas. Fotos: Lucas Anjos

Lançamento da Revista de Ciências do Estado “Para estimular a produção acadêmica das Ciências do Estado, surge um projeto colaborativo, inovador e audacioso: uma revista cuja forma, dinâmica e gestão serão realizadas por discentes, desde a escolha do nome até a composição do Conselho Editorial. Esta ideia coletiva encontra motivação na necessidade de prover espaços para o fomento à trajetória acadêmica e para a divulgação de trabalhos “em” e “de” Ciências do Estado. Outrossim, tem-se o sonho de contribuir para a história e a consolidação do curso por meio de uma revista científica que se propõe a romper barreiras e explorar o que cada cientista do Estado tem a oferecer para a comunidade científica e a sociedade, juntamente aos professores, pós-graduandos(ados), estagiários-docentes e funcionários técnico-administrativos da UFMG e de outras IES.” DEMOCRACIA E AUTORITARISMO NA FDCE Nos dias 20 e 21 de outubro, o Território Livre foi palco de diversos painéis de discussão sobre “Democracia e Autoritarismo na FDCE”, temática proposta por alunos do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Os debates foram motivados pela preocupação da representação discente em relação aos recentes episódios de autoritarismo na gestão de nossa unidade, de opressão de minorias, de discursos de ódio travestidos de liberdade de cátedra, entre outros.

Foto: Lucas Anjos


11 VOZES MALDITAS

“A leitura do trabalho pra mim foi fatigante e, até certo ponto, enfadonha” Membro da banca, Ainda sobre a tese (aprovada!!) para professor titular.

“O seu trabalho tem momentos que me deixaram perplexo (...), inclusive com erros de digitação”

“Querem criminalizar a homofobia, mas não falam em criminalizar a heterofobia”. Tereza Thibau, cinéfila de carteirinha

Ada Pellegrini comentando sobre a tese apresentada à egrégia congregação para título de professor titular.

Parentoni, preocupadíssimo com a questão urgente e real da heterofobia

“Na Roma Antiga era tudo arrumado, limpo... A gente ve nos filmes!”


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ARTIGO

DA INEXISTÊNCIA DE INJÚRIA NO EXERCÍCIO DA CRÍTICA POLÍTICA

Fernando Nogueira Doutorando pelo programa de pós-graduação da FDCE. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG A discussão acerca da liberdade de expressão nas democracias contemporâneas passa, dentre outros aspectos, pela forma como o dissenso é tratado, mormente aquele que, em alguma instância, envolve uma autoridade pública. Grosso modo, tal referência indica se a lógica que rege uma dada dinâmica social é a do Estado Policial ou, contrariamente, a do Estado Democrático de Direito. Daí que um dos elementos que indicam a forma policialesca e antidemocrática de gestão de conflitos é o uso corrente do sistema penal para “tratar” a discordância de ideias, especialmente as políticas. Quando a crítica e a contestação da autoridade pública são criminalizadas, muitos direitos humanos são, de pronto e drasticamente, violados. Instrumentos para a violação de direitos humanos relacionados à livre expressão existem aos montes no Brasil. Especialmente usados são alguns tipos penais constantes de nossa legislação, os quais, pela sua abertura autoritária, dão espaço a notícias-crime abusivas e lançam jovens, artistas, ativistas, etc. nas garras do vil processo de criminalização brasileiro. A Lei de Contravenções Penais (talhada nos idos do fascismo varguista), em especial no seu tipo penal alocado no art. 42 (“Perturbação do Sossego”) é um desses tipos “coringa”, sempre prontos a ajudar a autoridade e intimidar ou neutralizar o dissenso. Outro tipo é o famigerado “Desacato”, constante do art. 331 do Código Penal (também fruto do fascismo e Vargas e de seu lacaio, Francisco Campos); esse crime, a propósito, é típico de regimes autoritários, e viola frontalmente as mais claras normas protetivas de direitos humanos, conforme explana brilhantemente a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu Informe da Relatoria para a Liberdade de Expressão, datado de 2004.¹ Contudo, outro crime apto a reprimir a livre circulação de ideias e posições dissonantes é o de injúria – art. 140 do CP. Para que um tipo penal tenha ótimo rendimento para a repressão do dissenso (ou de qualquer outra diferença), ele deve ser bem aberto, vago, apto para ter seu conteúdo “construído” ao bel-prazer da autoridade. Eis que o tipo legal da injúria bem cumpre esse papel. In verbis: Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendolhe a dignidade ou o decoro:

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Deixando de lado as construções retóricas do que vem a ser “dignidade” e “decoro” para fins de repressão penal² , o que chama a atenção ao analista atento é o bem jurídico-penal tutelado pela tipificação. É o que se chama de “honra subjetiva” – que nada mais seria que “o sentimento que cada pessoa possui acerca de suas próprias qualidades físicas, morais e intelectuais. É o juízo que cada um faz de si mesmo (autoestima).” (MASSON, 2001, p. 165). Pois bem. Se a doxa acadêmica e profissional da área (sempre grandiloquente em suas posturas acerca da necessidade de não vulgarização do Direito Penal) realmente acreditasse que o Princípio da Intervenção Mínima3 é um princípio constitucional penal válido, deveria se arrepiar ao ver um tipo penal desse. A injúria, ao fim e ao cabo, tutela o que uma pessoa pensa de si mesma. É dizer, em bom português: temos, no art. 140 do CP, a tutela penal da baixa autoestima. O que deveria ser resolvido no divã de um psicanalista, ou no consultório de um psiquiatra – ou mesmo com uma saída para fazer novos amiguinhos – é levado ao sistema penal, para que polícia e juiz (e, muitas vezes, MP4), às vultosas custas do Erário, deem algum encaminhamento. É a banalização da persecução criminal no Brasil. Todavia, em se levando tal esdrúxula tipificação a sério, ainda assim tem-se que o mero dissenso político, o mero protesto, a mera crítica da postura da autoridade pública não enseja a configuração do crime de injúria. Isso porque tal crime exige não só o dolo, mas também o especial fim de agir no sentido atacar a honra de alguém (é o que na dogmática penal se chama animus injuriandi). É dizer, a crítica política, ainda que veemente e ferina, não configura injúria. Nos dizeres do mestre Cezar Roberto Bittencourt, em seu “Tratado de Direito Penal”, A lei não protege excessos de susceti-

bilidades, amor-próprio exacerbado, autoestima exagerada. É indispensável que seja lesado um mínimo daquela consideração e respeito a que todos têm direito. Por isso, não se deve a injúria com grosseria, incivilidade, reveladoras, somente, de falta de educação. (BITTENCOURT, 2012, p. 1082). Ainda, simples referências a adjetivos depreciativos, a utilização de palavras que encerram conceitos negativos, por si sós, são insuficientes para caracterizar o crime de injúria. (BITTENCOURT, 2012, p. 1087). Após todo o acima, torna-se cabal – e com a chancela de uma sumidade inconteste da dogmática penal brasileira (professor de gregos e troianos, progressistas e conservadores) que a discordância política, por mais “quente” e “incômoda” que seja, não caracteriza qualquer fato punível, por ausência do chamado animus injuriandi. Repetindo: não há crime algum na consecução de uma dada crítica política, por mais aguda e insolente que seja. É o que atesta também a jurisprudência dos Tribunais do país. É o abaixo: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - INJÚRIA - QUEIXA - REJEIÇÃO AUSÊNCIA DE ANIMUS INJURIANDI - ELEMENTO ESPECIAL DO TIPO DE INJUSTO. A decisão recorrida foi proferida pelo Juiz de Direito, circunstância que firma a competência da Unidade Francisco Sales do TJMG (Precedente da Corte Superior). O desabafo ou a crítica não caracterizam o propósito deliberado de ofender. Ausente o elemento subjetivo especial do tipo de injusto - o animus injuriandi - deve ser rejeitada a queixa-crime. (TJMG - Rec em Sentido Estrito 1.0145.05.223712-3/001, Relator(a): Des.(a) Alexandre Victor de Carvalho


13 , 5ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 05/09/2006, publicação da súmula em 29/09/2006) RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO MORAL - ALEGAÇÃO DE OFENSA À HONRA - CALÚNIA, INJÚRIA E DIFAMAÇÃO - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO - EXERCÍCIO REGULAR DO DIREITO DO SERVIDOR PÚBLICO (PROFESSORA) - OBSERVÂNCIA DOS LIMITES LEGAIS ANTE AUSÊNCIA DE CONDUTA ILÍCITA - INSTAURAÇÃO DE SINDICÂNCIA ADMINISTRATIVA CONTRA DIRETORA SOB ACUSAÇÃO DE COMETIMENTO DE IRREGULARIDADES. Para que haja ato ilícito, se faz necessária a conjugação dos seguintes fatores: a existência de uma ação; a violação da ordem jurídica; a imputabilidade; a penetração na esfera de outrem. Desse modo, deve haver um comportamento do agente positivo (ação) ou negativo(omissão), que desrespeitando a ordem jurídica, cause prejuízo a outrem, pela ofensa a bem ou a direito deste. Esse comportamento (comissivo ou omissivo) deve ser imputável à consciência do agente, por dolo (intenção) ou por culpa (negligência, imprudência, imperícia), contrariando seja um dever geral do ordenamento jurídico (delito civil), seja uma obrigação em concreto (inexecução da obrigação ou de contrato). A crítica ao servidor público é um postulado democrático social, eis que os órgãos governamentais, criados para servirem ao interesse de todos, devem ficar expostos à censura pública, além de sujeitarem-se a sindicância no intuito de se verificar e esclarecer

eventuais desvios do exercício da função pública. (TJMG - Apelação Cível 2.0000.00.357499-6/000, Relator(a): Des.(a) Alvimar de Ávila , Relator(a) para o acórdão: Des.(a) , julgamento em 17/04/2002, publicação da súmula em 27/04/2002) AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. IMPUTAÇÃO DO CRIME DE INJÚRIA. INOCORRÊNCIA DA CONFIGURAÇÃO DELITUOSA, POR AUSÊNCIAS DAS SUAS ELEMENTARES FACTUAIS. Hipótese em que restou demonstrado que, ao fazer uso da figura de linguagem inquinada de injuriosa, o Querelado não teve a intenção de ferir a honra ou a dignidade do Querelante, mas tão-somente fez uso do seu direito de indignar-se e fazer críticas a uma situação que afronta os mais comezinhos princípios da Administração Pública, qual seja, a de confiar ao candidato a elaboração do edital do concurso e permitir que este resolvesse as dúvidas atinentes ao certame. Configuração, in casu, das excludentes anímicas - animus consulendi, animus narrandi, animus criticandi - que descaracterizam o elemento subjetivo do tipo, ou seja, a intenção de injuriar o queixoso. Ademais, estando o Querelado no cumprimento do dever de ofício, afastada está a antijuridicidade do fato, a teor do disposto no art. 142, inciso III, do Código Penal. Queixa rejeitada. (STJ, Ação Penal 158/RO, Relator Min. José Arnaldo da Fonseca, julgamento em 04/10/2000) Encerremos, pois, afirmando que a consolidação da democracia brasileira passa necessariamente pelo entendimento de que o dissenso político, a crítica, o protesto são ínsitos

a qualquer sociedade plural. O conflito existe e é inafastável enquanto fenômeno (aliás, é muito proveitoso em vários momentos, digase). As virtudes democráticas surgem quando os cidadãos – principalmente aqueles que detêm alguma autoridade a título público – buscam gerir tais conflitos e discordâncias de maneiras dialógicas, respeitosas e da forma mais horizontal e participativa possível. Assim, garante-se a plena liberdade de expressão e encaminha-se qualificadamente o conflito para uma pactuação mais consistente entre contrários. Para tanto, inarredavelmente, devese abandonar de todo o uso do sistema penal para gerir discordâncias de caráter político-administrativo. Pois o Direito Penal não tem a capacidade de resolver tais problemas (quase sempre os agrava) e acaba por reforçar marcos autoritários e policialescos, forçando a todos um retorno a procedimentos autocráticos e (simbólica e concretamente) violentos que nós, após a draconiana ditadura civil-militar-empresarial de 1964-1985, não mais podemos tolerar. 1 Especificamente em seu Capítulo VI, onde se informa que tal crime viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (tomada no Brasil, como norma supralegal, é dizer, como norma acima de leis ordinárias como o Código Penal Brasileiro). Vide http://www.oas. org/es/cidh/expresion/docs/informes/anuales/Informe%20Anual%202004.pdf 2 Para a doutrina e jurisprudência: dignidade - qualidades morais do ofendido, decoro – qualidade físicas e intelectuais. Ou seja: construções lingüísticas arbitrárias, sem qualquer accountability científica ou mesmo racional. 3 Aquele que, com seus subprincípios da Fragmentariedade e da Subsidiariedade, preconiza que o Direito Penal deve tutela apenas lesões ou ameaças de lesão relevantes e substanciosas de alguns bens jurídicos apenas. 4 A injúria cometida contra autoridade (e.g. funcionário) pública, em razão de suas funções, é de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, chamando a intervenção do MP como titular da ação penal. Vide art. 145, p. único, 2ª parte, CP, e Súmula 714 do STF (para a legitimidade concorrente do MP e do ofendido para o oferecimento de ação penal).


14 GRUPO DE ESTUDOS

Da imprecisão das palavras ao ódio do discurso Clínica de Direitos Humanos da UFMG Andressa F. Martins, João Vítor S. Miranda, Júlia Silva Vidal e Lucas Parreira Álvares A temática da chamada de textos para a presente edição do jornal Voz Acadêmica, “Liberdade de Expressão”, se apresenta como consonante à atuação da Clínica de Direitos Humanos, programa de pesquisa e extensão vinculado à Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG. Diversas ações que circundaram a Clínica nesse ano de 2015 tiveram na Liberdade de Expressão sua referência, mas, sobretudo, em uma das ramificações possíveis que se pode extrair dessa tal liberdade: o discurso. Com o intuito de fomentar a reflexão sobre o tema, seguiremos em dois tempos: breve explicação dos termos “discurso de ódio” e “liberdade de expressão” e os contornos que estes assumem sob a ótica do instituto da liberdade de cátedra. Em uma explicação básica, podemos dizer que, para a linguística, o “discurso” é um conjunto de ideias organizadas por meio da linguagem de forma a influir no raciocínio ou nos sentimentos do leitor ou ouvinte, ou seja, o interlocutor. Um discurso pode apresentar diversas curvaturas, desde uma simples comunicação, um chamamento, um aviso, entre outras possibilidades. A que nos interessa, porém, diz respeito a uma faceta negativa dessa prática: o ódio. É evidente que o que chamamos hoje como “Discurso de Ódio” não é um fenômeno do tempo presente. Porém sua sistematização como um conceito faz-se fundamental na contemporaneidade. O jurista alemão Winfried Brugger1, nos propõe os primeiros passos para compreendermos esse termo, conceituando o Discurso de Ódio como “palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”. Mas ao tentar definir as possibilidades de searas ofensivas, esse conceito se fecha para outros tipos de ofensas discriminatórias possíveis, sendo adequado, porém insuficiente. Nesse ponto, acrescentamos um fator determinante para um conceito inicial de Discurso de Ódio: para se efetuar, tal prática deve atingir uma coletividade, não apenas um indivíduo específico. Assim, o proferimento público de um Discurso de Ódio a uma pessoa, por uma característica que pode ser compartilhada por um grupo,

se configura como uma agressão a toda sua comunidade. Disso, podemos extrair o óbvio: o fato de que a Liberdade de Expressão e o Discurso de Ódio são termos que estão perenemente em conflito. A absoluta Liberdade de Expressão poderia prever como seu componente o Discurso de Ódio como tal, porém verifica-se que, com esse – nos referenciando no conceito apresentado - há uma supressão do diálogo e um silenciamento do “outro” distinto, ou seja, pressupõe a própria limitação das possibilidades características da Liberdade de Expressão. Owen Fiss2 chama a atenção para o “efeito silenciador” do Discurso de Ódio, pois tal prática não apenas parte de um contexto presente de ofensa, e sim como um atentado a um pressuposto histórico compartilhado tanto pelo agressor quanto pela vítima. Dado esse conflito, torna-se necessário debater sobre qual é lugar do discurso de ódio no seio da nossa sociedade hoje, confrontando a ideia de um conjunto de falas que incitam o ódio com o bojo de princípios e direitos encobertos pela liberdade de expressão, individual ou coletiva. Dado a temporalidade adequada para se debater tal tema e a localidade também propícia, torna-se importante que concentremos nossa análise também nos casos que envolvem a Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG, público alvo desse jornal. A articulação entre referidas categorias supracitadas, quando analisadas no contexto universitário, emerge acompanhada do instituto da liberdade de cátedra, referendado na constituição brasileira nos termos do art. 206, inc. II. Alguns estudiosos sobre o tema compreendem que a “liberdade de cátedra é a denominação mais tradicional que se confere à liberdade de ensinar enquanto liberdade docente; pode-se inclusive dizer que regra geral se refere especificamente à liberdade do professor em sua atividade de ensino”3. A que nos interessa, fato é, que em nome da liberdade de cátedra - ou mascarado por ela – discursos de ódio estão sendo relativizados quando emitidos no contexto de ensino. Ora, não faz muito tempo que comentários proferidos por um professor, ao longo das aulas de Direito do Trabalho, diziam: “ago-

ra o preto favelado tá indo pra Savassi e leva a macaca pendurada no pescoço”; “lugar de mulher não é no Judiciário, mulher não tem capacidade para liderar e deve permanecer em casa”; ou até mesmo “a culpa do trabalho ser um castigo é das mulheres, porque Eva fez Adão pecar no paraíso”. Ainda mais recentemente, determinado professor, componente da “egrégia” Congregação, chegou a afirmar em tom jocoso “o que vocês chamam de assédio, eu chamo de paquera”. O evidente teor machista, misógino e racista das falas acima ganha um aspecto ainda mais alarmante quando nos deparamos com as inúmeras pesquisas sérias que demonstram o grau de vulnerabilidade e violência no qual mulheres, negros e moradores de áreas periféricas são submetidos na sociedade. Segundo dados do mapa da violência de 2015, a violência contra a mulher negra aumentou em 54%; e o Brasil passou a ocupar a posição de 4º país que mais violenta mulheres no mundo. Comentários que defendam a submissão feminina, ou, minimamente, forneçam alusão breve à pretensa inferioridade destas, bem como aqueles que instigam a discriminação em virtude de raça e cor, devem ser veementemente rebatidos e considerados enquanto discursos de ódio, pois reverberam na pele, em pessoas de carne e osso. Projetando esses preceitos sobre o exercício da liberdade de cátedra, entendemos que, em semelhança, a liberdade de ensinar do professor deve ser sopesada em relação aos princípios e direitos que podem ser violados em seu discurso. A dignidade da pessoa humana e a igualdade se tornam base de medida para uma manifestação que transita entre os limites do exercício da liberdade e a incitação ao ódio. Considerando que o espaço universitário contribui para a formação não somente profissional, como também social dos alunos, torna-se importante a primazia pelo caráter dialógico entre docentes e discentes, servidores e comunidade externa. A universidade deve assumir papel de instrumento de mudança social e é por isso que o saber difundido nesse espaço deve prezar pelo pluralismo ideológico e político, referendado pelo art 5º, inc. IX da Constituição Federal. Nesse sentido, resta a óbvia constatação


de que o discurso de ódio é danoso para o esquema dialógico esperado de uma Universidade. O referido “efeito silenciador”, citado anteriormente, é a nuance mais perversa de discursos que incitam ao ódio, pois afasta a própria permuta pretendida pela interlocução: a finalidade da manifestação odiosa é exatamente restringir o espaço – físico e simbólico – que é ou pode vir a ser ocupado pelo alvo do discurso. É o que defende Trindade da Rosa: Nesse sentido, cumpre referir à lição de Horácio Wanderlei Rodrigues, professor titular da UFSC: “a liberdade de ensinar não protege as manifestações valorativas, ideológicas e religiosas que desrespeitem a liberdade de aprender dos alunos e que não possuam correlação com a matéria ensinada, bem como aquelas que professem preconceitos e discriminações vedadas pela nossa ordem constitucional e legal” (2015) A liberdade de cátedra, portanto, não deve se confundir com o direito de expressar quaisquer opiniões, e principalmente não deve servir de prerrogativa para o fomento ao ódio e ao preconceito em virtude de raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo, religião, gênero ou em outras coletividades determinadas. Infere-se ainda. que a formação de um aluno em ambiente acadêmico não deve ser desvinculada de uma formação política – e o professor é parte fundamental nesse processo. Assim, o docente tem o papel de construir um ambiente plural e dialógico, sendo responsável e passível de responsabilização pela disseminação de opiniões baseadas no mero preconceito social enraizado.

NÃO DITO Marcus Vieira Há algo não vivo vivendo em meu peito Expulsando essas palavras pelos olhos Silencioso, calado e sem jeito Mirando de dentro desses dentes falhos Há algo não dito escrito em meus lábios Ouvindo esses versos pelos pêlos Gelado, vazio e mui inglório Soando veneno em veios anômalos É que quando vi o sol adormeci E quando vi a lua despertei Deitei c’as estrelas e sonhei Alto, voando cada vez mais alto E de repente num assalto Ousei respirar, emudeci.

Referências:

Ana Maria Sena

1. BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio? Algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Revista de Direito Público, 2009. 2. Consultor Jurídico. Discriminação e preconceito na sala de aula? No passarán! 2015. Disponível em < http://migre.me/s1QIo>. Acesso em 04 de novembro de 2015. 3. FISS. Owen M. A Ironia da Liberdade de Expressão: Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública. Trad. e Prefácio de Gustavo Binembojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2005. 3. LUNA, Nevita Maria Pessoa de Aquino Franca; SANTOS, Gustavo Ferreira. Liberdade de expressão e discurso do ódio no Brasil. Revista Direito e Liberdade, Natal, v. 16, n. 3, p. 227-255, set./dez. 2014. 4. RODRIGUES, Horácio Wanderlei; MAROCCO, Andréa de Almeida Leite. Liberdade de cátedra e a Constituição Federal de 1988: alcance e limites da autonomia docentes. In: CAÚLA, Bleine Queiroz et al. Diálogo ambiental, constitucional e internacional. Fortaleza: Premius, 2014. v. 2. p. 213-238


INDICA

The Newsroom e a liberdade de expressão no jornalismo Lucas Anjos e Vinícius Lacerda Para o escritor britânico Salman Rushdie, discutir liberdade de expressão continua tão urgente que, ao fazer o discurso inaugural da Feira do Livro de Frankfurt de 2015, a mais importante do mundo, ele afirmou que sem liberdade de expressão não existem direitos na sociedade. Além disso, completou dizendo que “a ficção é a narrativa que contesta o mundo”. De certa forma, foi o que a extinta série The Newsroom (2012-2014) fez ao retratar os dilemas de uma equipe de jornalistas ao lidar com a formatação, procedência e valor das notícias para o público. Ao mostrar os entraves éticos e políticos para publicação de notícias em um jornal televisivo com grande abrangência nos Estados Unidos, a série da HBO contestou - e, ao mesmo tempo, evidenciou - o papel da informação nos tempos atuais e as influências a que ela é submetida até chegar efetivamente às pessoas. Para ilustrar esse cenário descrito com veracidade, The Newsroom fez uso de fatos do mundo real, como o assassinato de Osama bin Laden e o vazamento de informações sobre os programas de espionagem da NSA (National Security Agency). Essa ponte entre o real e a ficção potencializou o valor da narrativa e estimulou o exercício interpretativo à medida que o espectador é levado a refletir sobre as escolhas do âncora do jornal (interpretado por Jeff Daniels) e sobre como elas têm o poder reverberar na sociedade, causando danos morais e até mesmo drásticas mudanças políticas, sociais e econômicas. É justamente esse o enredo da segunda temporada da série, que trata sobre um erro cometido pela equipe de jornalistas ao apurar uma história envolvendo tropas militares americanas no Oriente Médio e o uso de armas químicas. As consequências de uma reportagem manipulada para agradar a apelos midiáticos são justamente a perda de credibilidade do jornal, o questionamento da integridade profissional de seus profissionais e a desmoralização das próprias críticas à atuação militar norte-americana. Essas indagações, nesse contexto de crescente polarização dos meios de comunicação (online e offline) e de acirramento de disputas políticas nas redes sociais, servem como referência para problematizar questões caras à liberdade de expressão, tais como: “Até que

ponto o jornalismo atual se preocupa com a veracidade dos fatos e a integridade de suas fontes?”, “Qual o real papel do jornalismo como meio para estimular a formação da opinião das pessoas?”. E as ciências sociais aplicadas têm muito com o que se beneficiar de uma atuação ética e adequada dos profissionais do jornalismo. Entre outras coisas, isso significa que a função do jornalista para essas áreas do saber se estende desde uma fonte de informações sobre os principais temas que afligem a sociedade, até a verificação dos efeitos práticos de leis, de projetos e de políticas públicas. Além disso, o jornalista é o profissional que aproxima a população dos tomadores de decisão. No entanto, quando a mídia começa a abusar de seu próprio poder, há que se refletir sobre os efeitos negativos dessa atuação. Em menor escala, isso acontece quando uma cobertura jornalística de um crime trata acusados e suspeitos como efetivos condenados, incita-se violência e revolta contra pessoas que não necessariamente virão a ser consideradas culpadas. O mesmo pode ser dito em relação à cobertura de processos eleitorais,

cuja edição, curadoria de reportagens e concessão de maior espaço para um candidato em detrimento de outro podem efetivamente influenciar os rumos de uma eleição. Somado a isso, o jornalismo detém a confiança e guia as opiniões de grande parte da população. No Brasil, por exemplo, há uma tendência de as pessoas confiarem mais na imprensa escrita do que no Poder Judiciário. Foi isso que constatou uma pesquisa realizada pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Ela revelou que 30% das pessoas têm confiança no Poder Judiciário, enquanto 47% confiam no que leem em revistas e jornais. Essas situações e a série The Newsroom mostram como o jornalismo deve se preocupar mais do que nunca com a ética e com suas premissas básicas, como a qualidade da apuração dos fatos. É isso que o separa das demais informações compartilhadas pela internet. Somente assim a liberdade de expressão defendida por Rushdie, e ainda tão opaca em diversos lugares do mundo, atingirá sua integral relevância para os direitos humanos.


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