Voz Eleiçõs 2012

Page 1

Comemorativo 120 anos da Faculdade de Direito Texto publicado no Voz Acadêmica do mês de outubro de 2009 e não passou por revisão ortográfica antes de ser publicado novamente.

O agora é o lugar da utopia

Luis Philipe de Caux Grupo de Estudos FLANAR – Direito, Utopia e Democracia Lá se vão, ao completarem em novembro, vinte anos desde o anúncio definitivo do fim das utopias, soterradas pelos escombros do Muro de Berlim. A vitória do capitalismo foi compreendida como o fim da história, a síntese última da configuração ideológica mundial, o advento de uma era eterna de prosperidade e liberdade para os povos. A palavra Utopia , no mundo pós-89, ou perdeu o sentido de existir ou foi lançada ao descrédito. Não é mais um projeto necessário para aqueles que acreditam, de fato, que a nossa geração é a vanguarda do tempo, a ponta de um progresso implacável e em aceleração. Para estes, o mundo só não é o melhor dos mundos possíveis porque o mundo de amanhã, certamente e independentemente de nenhum esforço, será ainda melhor, embora muito pouco diferente. Ora, falar de Utopia não faz sentido nesse mundo: ela deixa de ser um ideal para ser um fato. Se a Utopia, do grego ou + topos , lugar de nenhum lugar é posta em algum lugar, não pode mais ser utopia, mas realidade. Para outros, Utopia não é mais um projeto desejável: é uma ingenuidade e um equívoco. Estes fazem remontar a Utopia a Platão e sua República, e daí, em um passo, até o Estalinismo. Em razão da leitura literal de que fazem da obra A Utopia, de Thomas More, veem o termo como a exigência material de uma de uma organização social perfeita, ou perfeitamente igualitária, o que seria impossível e, se tentado, levaria ao autoritarismo. Ressuscitar a Utopia seria apenas o primeiro passo para reerguer os muros que tanto custaram a cair. Assim, a Utopia, do grego eu + topos , lugar bom , lugar da felicidade , já provou na história que só pode conduzir ao totalitarismo. Utopia é, então, uma coisa do passado? Soterrada, virou assunto de arqueólogos? À primeira pergunta, apenas em um sentido pode-se dizer que sim: dele se tratará mais tarde. No sentido induzido pela primeira perguntar, só se pode replicar um enfático não . Qual é, afinal, o lugar da Utopia, no fim da primeira década do séc. XXI? Seria preciso perguntar, talvez, a um homem do século XVI. Thomas More, o cunhador do termo, foi um grande humanista e um astucioso homem de letras. O neologismo de More condensa três sentidos:: outopia, udetopia e eutopia, respectivamente, lugar de lugar nenhum , lugar de nenhum tempo e lugar da felicidade . Com efeito, toda a obra A Utopia é um grande jogo de escrita

16

oblíqua, que, através de contradições e pistas deixadas de propósito, ora confunde, ora previne o leitor a não levar o texto ao pé da letra. Basta se atentar para o nome do narrador, Rafael Hitlodeu. Hitlodeu , mais uma das artimanhas literárias de More, é traduzível, do grego, por narrador de fábulas . A Utopia não é um projeto de sociedade, um modelo ou plano de constituição, como dar-se-ia a entender com quem lesse apenas seu Livro II. De acordo com Abensour, é o livro I d A Utopia e seus demais paratextos que servem de chave de interpretação ao conjunto da obra. Abensour argumenta que:

Se consentimos em trilhar os arcanos do caminho moriano, A Utopia, na sua própria textura, não cessa de trabalhar no sentido de persuadir o leitor de que o verdadeiro livro de ouro não é nem um plano, nem um modelo. Daí decorre, desde o início, um equívoco: o crítico precipitasse sobre teses ou proposições doutrinais que pretende extrair diretamente do texto […] sem perceber que A Utopia é o fruto de um dispositivo textual propositadamente complexo, armadilha que brinca com a vontade do leitor, expondo-o permanentemente a um logro. Jogo sábio, sutil, erudito, jogo aéreo de um humanista simples como uma pomba porém sábio como uma serpente. (ABENSOUR, 1990, p. 77) Daí, por não ter a mesma paciência e a mesma formação humanística daqueles a quem More dirigiu sua obra, o homem do século XX e XXI não sabe mais ler o A Utopia

e consequentemente, tampouco o pensamento utópico. Vencer o jogo de ambiguidades d A Utopia de More não é encontrar sua solução: nem More a tinha. É preciso entrar no jogo e ser capaz de imaginar por conta própria novas ideias para uma sociedade política mais livre e justa. Essa sim é a proposta de More: Uma vez estimulada pelo aprendizado, a mente dos utopienses é maravilhosamente rápida em buscar as várias artes que tornam a vida mais agradável e conveniente (MORE, 2003, p. 76, tradução minha) Dito em que sentido Utopia não é um projeto ingênuo e fadado à tirania, resta dizer por que também não é um projeto descartável e por que ainda faz sentido falar disso. Somente uma concepção empobrecida da temporalidade e da história poderia sustentar a crença de que o presente atual da humanidade é o cume do progresso humano. Como afirma Boaventura Santos, a compreensão do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder social tem muito que ver com as concepções do tempo e da temporalidade (SANTOS, 2002, p. 239). A compreensão que o mundo ocidental tem hoje de si e de seu tempo é empobrecida porque é manifestação de um pensamento do mesmo, da repetição, da continuidade, de um futuro que teria perdido a capacidade de inovar. Além de obstruir o futuro, esse pensamento indolente , como o determinou Boaventura Santos (2002), ainda oblitera a alteridade que lhe é contemporânea. Aos postular-se como a locomotiva do trem do tempo, o Ocidente impõe, a contrário, o que não é o Ocidente

e não compartilha seus valores e modo de vida é, portanto, anacrônico. É a ideia de um tempo puramente cronológico, homogêneo e vazio , nas palavras Walter Benjamin em Sobre o conceito de história , que subjaz a esse pensamento indolente. Dirá Benjamin que a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras (BENJAMIN, 1985, p. 229). É no agora , esse tempo de oportunidade, da liberdade humana que confere a seus portadores a capacidade inovar, rompendo uma continuidade, é aí que está a chave para fazer saltar pelos ares o continuum da história (BENJAMIN, 1985, p. 231). Daí, de uma concepção cairológica do tempo é que emerge a Utopia em toda sua força. O agora é o lugar do não-tempo , a se tomar o tempo em seu sentido cronológico. É o oposto da razão indolente, que deixa passar as oportunidades por se achar maior que elas. É preciso, portanto, expandir o presente e contrair o futuro (SANTOS, 2002, p. 239), seja dando visibilidade às alternativas que já existem, mas que são produzidas como inexistentes, seja fazendo emergir as possibilidades de mudança já inscritas na realidade social. Só assim o futuro deixará de ser visto como um tempo vazio para voltar a ser o tempo do imprevisível, do possível, do plural. É no presente que podem vir à tona as esperanças não cumpridas do homens que passaram pela Terra, e é nesse sentido que a Utopia é assunto do passado. É porque suas esperanças ainda são, em grande parte, as nossas que se faz necessário reacender o pensamento utópico. Não porque acreditemos que o mundo perfeito virá, mas por que, como More, Benjamin e Boaventura Santos, rejeitamos a indolência conformista que crê que tal coisa exista. Enquanto o mundo não aprender a reconhecer a si próprio em sua alteridade, ainda haverá Utopia: ainda haverá muros a serem derrubados.

“EDIÇÃO ESPECIAL ELEIÇÕES 2012”

Voz Histórica:

Debate na Vetusta P. 03

Entrevista com os candidatos a prefeitura de BH P. 10, 11, 12 e 13

Voto Nulo P. 15

¹Kairós é uma das palavras para designar o tempo. Enquanto chronos diz respeito ao tempo enquanto fluxo linear e contínuo, kairós designa o tempo singular de uma iluminação, o momento oportuno para agir.

Referência Bibliográficas: ABENSOUR, Miguel. O Novo espírito utópico. Campinas: UNICAMP, 1990. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. MORE, Thomas. Utopia. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências . Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro de 2002. pp. 237-280.

ÓRGÃO OFICIAL DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA – Entidade Representativa dos Alunos de Direito da UFMG


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.