Antropologia da Arte e da Imagem

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UNIVERSIDADE F E D E R A L D O E S P Í R I TO S A N TO Núcleo de Educação Aberta e a Distância

Antropologia Visual

MIRIAM

DA

COSTA MANSO MOREIRA

Vitória 2010

DE

MENDONÇA


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Vice-Reitor Reinaldo Centoducatte

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Mendonça, Míriam da Costa Manso Moreira de. Antropologia visual / Míriam da Costa Manso Moreira de Mendonça. - Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e a Distância, 2010. 76 p. Inclui bibliografia. ISBN: 1. Etnologia. 2. Antropologia visual. I. Título. CDU: 572.9:7

LDI coordenação Heliana Pacheco, Hugo Cristo e José Otavio Lobo Name Gerência Isabela Avancini

Capa José Otavio Lobo Name Weberth Freitas Editoração Weberth Freitas Impressão Gráfica e Editora GSA

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Sumário Antropologia e Cultura: Antropologia: conceituação, objetivos e campos de estudo. Marcos históricos do pensamento antropológico. O pensamento antropológico contemporâneo. Cultura.

Transformações culturais do homem Origens da humanidade e seu passado cultural. Transformações da cultura – a descoberta e a invenção. A reconstrução da história cultural do homem.

A construção de universos materiais e simbólicos: organização social, econômica, política e religiosa A família e os sistemas de parentesco. A economia e as técnicas de sobrevivência. Organização da produção e propriedade. Elementos de organização política. Religião e magia.

A cultura material e as artes Habitações, alimentação, transporte e defesa. Indumentária, têxteis e objetos utilitários. Arte: significados e funções.


Apresentação Vamos começar, juntos, uma excursão. Vamos à caça das origens do homem no nosso planeta e das origens da sua cultura. Preparado? Temos que ir para muito longe... Até mais de 5.000.000 de anos atrás! É... Qualquer um se assusta com esse número de zeros... Uma viagem a cinco milhões de anos atrás para encontrar as origens do homem, quando acabamos de entrar no século XXI da nossa era e achamos que a humanidade já viveu muito por ter superado a marca dos 2.000 anos, parece uma coisa quase inacreditável! Mas é um fato! A descoberta de fósseis humanóides que puderam ser datados dessa época tão antiga não deixa

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dúvidas de que o homem inteligente evoluiu, a partir de então, de alguma forma inferior de vida, embora os pormenores não sejam completamente conhecidos. O estudo da evolução humana é um dos objetivos da Antropologia. Nesta disciplina faremos uma análise sobre o conhecimento do homem enquanto ser biológico, social e cultural. Refletiremos sobre as origens e evolução da cultura e também sobre os mecanismos de mudança, difusão e reconstrução cultural. Assim, pesquisaremos a variação das manifestações culturais e seus significados, além da arte e sua compreensão dentro do contexto cultural.

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Antropologia e Cultura

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Antropologia: conceituação, objetivos e campos de estudo Etimologicamente, o termo antropologia (anthropus = homem; logos = estudo) significa o estudo do homem. Seu objeto de estudo é, portanto, o homem como ser biológico, social e cultural e o de suas obras. Sendo a ciência da humanidade e da cultura, tem um campo de investigação muito abrangente: no espaço, refere-se a toda a terra habitada e, no tempo, a todas as populações socialmente organizadas há milhões de anos. Segundo Marconi e Presotto (1986), a antropologia acha-se dividida em dois grandes campos de estudos, com objetivos definidos e interesses teóricos próprios: a antropologia física ou biológica que, como o nome indica, estuda a natureza física do homem, investigando suas origens e evolução, sua anatomia e processos fisiológicos e as diferenças raciais características das populações humanas antigas e modernas. Este ramo da antropologia compreende: A paleonteologia humana (que estuda a origem e evolução do homem pelo conhecimento das formas fósseis intermediárias entre os primatas e o homem moderno); A somatologia (que descreve diferenças físicas individuais e sexuais, como tipos sangüíneos, metabolismos etc.); a raciologia (que se interessa pela história racial do homem); A antropometria (que usa técnicas de medição para fornecer as dimensões do corpo humano); E os estudos comparativos do crescimento (que procura conhecer as diferenças grupais relacionadas aos índices de crescimento) (Marconi e Presotto, 1986: 21-28). O segundo, e mais amplo campo da ciência antropológica refere-se à antropologia cultural, que estuda o homem como ser cultural, investigando as culturas humanas no tempo e no espaço, suas origens e desenvolvimento, suas semelhanças e diferenças, seus sistemas simbólicos, religião, comportamento. Seu terreno de investigação compreende: A arqueologia (cujo objetivo é estudar as culturas do passado, extintas, que em épocas remotas desenvolveram formas culturais representantes de fases da humanidade); A etnografia (que consiste na observação e análise de grupos hu13


manos considerados em sua particularidade para reconstituição tão fiel quanto possível da vida de cada um deles); A etnologia (que, por ser eminentemente comparativa, preocupase com a análise, interpretação e comparação entre as mais variadas culturas existentes); A lingüística (que estuda as linguagens como meio de comunicação e também instrumento do pensamento); O folclore (que se preocupa com fatos da cultura material e espiritual que permanecem no seio do povo com determinada função); A antropologia social (cujo interesse se encontra centrado nas sociedades e nas instituições); E as inter-relações entre cultura e personalidade (campo novo onde o indivíduo não é visto como simples receptor e portador de cultura mas como um agente de mudança cultural) (ibid). A antropologia, embora autônoma, enquanto ciência social mantém relações com outras ciências, como a Sociologia, a Psicologia, a Geografia, a História, a Economia e a Ciência Política, das quais recebe dados teóricos e metodológicos. Como ciência biológica ou natural, está ligada à Biologia, à Genética, à Anatomia, à Fisiologia, à Embriologia e à Medicina. Também a Geologia, a Zoologia, a Botânica, a Química e a Física oferecem suas contribuições para a compreensão de problemas comuns aos seus campos de estudo (ibid). O interesse em refletir sobre o homem e sua sociedade vem de tempos imemoriais e trabalhos sobre esse tema existiram tanto na Europa como na Ásia, África, América ou Oceania. Mas, conforme aponta Laplantine (2007), o projeto de fundar uma ciência do homem – uma antropologia – não é tão antigo assim. De fato, apenas no final do século X V I I I é que começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia (Laplantine, 2007: 13).

Isso foi um importante acontecimento na história do pensamento do homem sobre o homem, que tinha sido, até então, sujeito do conhecimento mitológico, artístico, filosófico ou teológico, mas nunca objeto da ciência. 14


Entretanto, foi somente na segunda metade do século

XIX

que esse novo sa-

ber começou a adquirir alguma legitimidade entre outras disciplinas científicas, quando a antropologia começou a se atribuir, como objetos de pesquisa, as sociedades então ditas primitivas, ou seja, exteriores às áreas de civilização européia ou americana, já que a ciência da época supunha uma dualidade radical entre o observador e o seu objeto. Assim, as sociedades estudadas pelos primeiros antropólogos deveriam ser sociedades longínquas, simples, com dimensões restritas, tecnologia rudimentar e poucos contatos com grupos vizinhos. Conforme ensinam Marconi e Presotto, a Antropologia sistematiza-se como ciência após Darwin ter trazido à luz a teoria evolucionista, com a publicação de suas duas obras: ‘Origem das espécies’ (1859) e ‘A descendência do homem (1871). A Antropologia Física tem, a partir daí, grande impulso e surgem os primeiros teóricos da nova ciência: Tylor, Morgan, Bachofen, Maine, Bastian (Marconi e Presotto, 1986: 31).

Mas, após ter firmado seus próprios métodos de pesquisa, no início século X X , a antropologia começa a perceber que o seu objeto de estudo está aos poucos desaparecendo, pois mesmo aqueles povos considerados selvagens não tinham sido poupados pelo processo de evolução social. O caminho que os antropólogos vêem para não aceitar a morte de sua ciência e serem levados a se voltar para o âmbito de outras ciências humanas, ou modificar a área de observação, foi afirmar a especificidade de sua prática não mais através de um objeto empírico constituído (o selvagem, o camponês), mas através de uma abordagem epistemológica constituinte (Laplantini, 2007: 16). Partindo desse ponto de vista, mostra Laplantine: A antropologia não é senão um certo olhar, um certo enfoque que consiste em: a) ‘o estudo do homem inteiro’; b) o estudo do homem em ‘todas’ as sociedades, sob ‘todas’ as latitudes em ‘todos’ os seus estados e em ‘todas’ as épocas (ibid)

Só pode ser considerada antropológica uma abordagem que se preocupe em não parcelar o homem, mas, ao contrário, tentar relacionar os campos de investigação freqüentemente separados. 15


A antropologia não se limita, também, ao estudo de tudo o que compõe uma determinada sociedade menos conhecida, mas abrange o estudo de todas as sociedades humanas, entre as quais está incluída a nossa. Se o seu campo de observação fosse circunscrito às sociedades preservadas do contato com o Ocidente, ela estaria, hoje, praticamente sem um objeto para analisar. Assim sendo, é possível afirmar que a antropologia é uma forma de conhecimento da diversidade cultural, uma busca de respostas para quem somos a partir das pistas fornecidas pelo “outro”. A contribuição dos antropólogos, no entanto, está especificamente ligada ao modo de conhecimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades ainda não ocidentalizadas, ou seja, um modo de observação direta, por impregnação lenta e contínua de grupos humanos minúsculos com os quais mantemos uma relação pessoal (Laplantini, 2007: 21). Além disso, apenas o distanciamento em relação à nossa própria sociedade torna possível descobrir que aquilo que considerávamos natural em nós mesmos é, na realidade, cultural, ou que aquilo que parecia evidente é, de fato, muito incerto e problemático. Daí a necessidade, na formação antropológica, de se “expatriar”, de certa forma, para reencontrar a perplexidade provocada pelo encontro de culturas menos conhecidas, cujo conhecimento vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo. A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) levanos a ‘ver’ aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar a nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos “evidente” (ibid:).

Pouco a pouco, começamos a notar que o menor de nossos gestos nada tem de natural, mas é o produto de escolhas culturais, e passamos a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos. O conhecimento de nossa própria cultura passa pelo conhecimento de outras e acabamos por reconhecer que somos uma cultura específica entre muitas, mas não a única. Isso implica em uma revolução do olhar, em uma ruptura com a idéia de que existe um centro do mundo e que habitamos esse centro. A humanidade é plural e isso leva a uma ampliação dos saberes e à descoberta da alteridade.

Marcos históricos do pensamento antropológico A construção do pensamento antropológico teve alguns marcos históricos: As grandes viagens realizadas no Renascimento e a conseqüente descoberta do 16


Novo Mundo são contemporâneas à reflexão antropológica. A exploração de espaços até então desconhecidos revela a existência dos povos que habitavam aqueles lugares. O impacto é grande e, em um primeiro momento, a pergunta que surge é se essas populações pertenceriam à humanidade: “o selvagem teria alma?”. No século X I V essa questão parece não ter sido, de forma alguma, solucionada, mas somente dois séculos mais tarde. Começam a se esboçar, então, duas ideologias concorrentes: a recusa do estranho ou a fascinação por ele. A grande diversidade existente entre as sociedades humanas raramente pareceu aos homens apenas um fato, mas um desvio da normalidade que exigia uma justificativa. Já na Antigüidade greco-romana, era classificado de bárbaro todo aquele que fosse estranho e essas civilizações. Mesmo o uso de calças, que aqueles povos adotavam, era considerado um costume não civilizado. Quando as tropas romanas que serviam nas regiões frias do Norte, por comodidade, começaram a fazer uso dessa peça de vestuário, os cidadãos a ela se referiam como feminalia (calções), termo que se remete a facilmente femina (mulher ou hermafrodita) ao invés de femorale (armadura das coxas de guerreiros). Até o século X V III , falava-se em “naturais” ou “selvagens” (ou seja, seres da natureza ou da selva) para designar os habitantes das terras desconhecidas e o século X I X fará a opção pelo termo “primitivos” para nomeálos. A esse respeito, nota Laplantini: Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto é, para a natureza todos aqueles que não participam da faixa de humanidade à qual pertencemos e com a qual nos identificamos, é, como lembra Lévi-Strauss, a mais comum a toda a humanidade, e, em especial, a mais característica dos “selvagens” (Laplantine, 2007: 40).

Entre os critérios usados a partir do século X I V pelos europeus para julgar se seria possível conferir aos índios um estatuto de ser humano destacavam-se observações sobre a aparência física deforme, os comportamentos alimentares aberrantes, com destaque para o canibalismo, e a inteligência incipiente, com ênfase no fato de que eles falavam uma língua ininteligível. Opiniões desse tipo eram comuns e, por incrível que pareça, muitas passaram aos nossos dias. Laplantine relata algumas delas, como a de Stanley que, no século X I X , compara os africanos a “macacos de um jardim zoológico”, a do pesquisador Cornelius De Pauw que, em trabalho publicado em 1774 sobre os índios da América do Norte, conclui que “deve existir, na organização dos americanos, uma causa qualquer 17


que embrutece sua sensibilidade e seu espírito”, ou a de Hegel que, em 1830, expõe seu horror frente ao estado de natureza que é o desses povos que jamais ascenderão à história e à consciência de si (Laplantine, 2007: 42-46). O século

XIX

é a época em que se constitui verdadeiramente a antropologia

como disciplina autônoma, estudando as sociedades primitivas em todas as suas dimensões. O século assiste a conquista colonial e a África, a Índia, a Austrália e a Nova Zelândia passam a receber um número expressivo de emigrantes europeus, que não mais se restringem a missionários, mas são, agora, administradores ocupados em instalar uma verdadeira rede de informações. Isso vai constituir um excelente material de reflexão para as primeiras grandes obras de antropologia, cujo objetivo ambiciona estabelecer um verdadeiro corpus etnográfico da humanidade. Há uma mudança radical de perspectiva: o indígena das sociedades distantes não é mais encarado como o “natural” ou o “selvagem” do século X V III . Agora, como já foi dito, é o primitivo, ou seja, o ancestral do civilizado. Assim sendo, a antropologia, cujo objeto é o estudo desse primitivo, fica indissoluvelmente ligada ao conhecimento de nossas origens. É uma antropologia que se qualifica como evolucionista. Ela admite que exista uma espécie humana idêntica, mas que se desenvolve em ritmos diferentes, passando por iguais etapas para chegar ao nível final de civilização. Hoje, esse pensamento evolucionista é visto com restrições, apesar de sua simplicidade, e sofre muitas críticas. No entanto, o período teve o mérito de ser marcado pela intensidade dos trabalhos realizados, com a criação de várias sociedades científicas e importantes museus como o que se tornou o atual Museu do Homem.

O pensamento antropológico contemporâneo Nas palavras de Laplantine, a etnografia propriamente dita só começa no momento em que se percebe que o pesquisador deve, ele mesmo, efetuar no campo de sua própria pesquisa um trabalho de observação direta como parte integrante da mesma (Laplantine, 2007: 75). A revolução que ocorre na disciplina no século

XX

põe fim à repartição de tarefas habitualmente divididas entre o

observador, enquanto provedor de informações, e o pesquisador erudito que recebe, analisa e interpreta esses dados. O pesquisador entende que deve deixar seu gabinete, para compartilhar da intimidade dos povos pesquisados, que devem ser considerados não mais como simples objetos de informação, mas como 18


anfitriões e mestres que transmitem os ensinamentos sobre sua cultura. Esse trabalho de campo é considerado como a própria fonte da pesquisa. Dois pesquisadores podem ser destacados pela importância de suas contribuições na elaboração da etnografia e da etnologia contemporâneas: Franz Boas e Bronislaw Malinowski. O primeiro (1858-1942) foi responsável por uma virada da prática antropológica. Era essencialmente um homem de campo e ensinava que ali tudo deveria ser anotado, até o detalhe do detalhe. Ele mostrou que um costume só tem significado dentro do contexto particular no qual se inscreve. A partir de Boas, compreendeu-se que para entender o lugar particular ocupado por esse costume não seria possível confiar apenas nos investigadores e naqueles que, em suas escrivaninhas, interpretam os dados fornecidos. O teórico e o observador devem estar reunidos na pessoa do antropólogo, capaz de elaborar uma monografia, isto é, dar conta cientificamente de uma microssociedade, apreendida em sua totalidade e considerada em sua autonomia teórica (ibid: 78). Boas foi um dos primeiros a postular a necessidade, para o etnólogo, do

acesso à língua da cultura na qual trabalha. Apesar de, por nunca ter escrito um livro destinado ao público erudito, limitando-se a textos e artigos dotados de um rigor ascético, ser praticamente desconhecido, a não ser entre os profissionais da área, ele permanece como o mestre incontestado da antropologia americana na primeira metade do século XX. Malinowski, pelo contrário, dominou a cena antropológica de 1922, ano da publicação de sua primeira obra: Os Argonautas do Pacífico Ocidental, até o ano de sua morte, em 1942 (ibid). Embora não tenha sido o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica, vivendo com as populações que estudava, radicalizou essa experiência, procurando romper liames com o mundo europeu. Boas procurava estabelecer repertórios exaustivos, definindo correlações entre o maior número possível de variáveis. Malinowski não compactuava com esse procedimento. Achava que a partir de um único costume ou, mesmo, de um único objeto, podia ser traçado o perfil do conjunto de uma sociedade. Considerava que uma microssociedade deveria ser estudada enquanto uma totalidade, analisada de forma intensiva e contínua, sem referir-se à sua história. Procurava saber o que seria dada sociedade em si mesma e o que a tornaria viável para seus membros, observando-a no presente através da interação dos aspectos que a constituem. Com Malinowski, a antropologia se torna uma “ciência” da alteridade que vira as costas ao empreendimento evolucionista de reconstituição das origens da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares características de 19


cada cultura, diz Laplantine (ibid: 81). Costumes profundamente diferentes dos nossos têm uma significação e uma coerência que os definem como sistemas lógicos perfeitamente elaborados. Hoje, todos os estudiosos parecem convencidos de que as sociedades diferentes da nossa são sociedades humanas tanto quanto a nossa, que seus membros são pessoas adultas, comportando-se apenas de modo diferente e não primitivos, atrasados ou pueris, que vivem presos a tradições estúpidas. Mas nos anos 20 isso foi, no mínimo, revolucionário. Sobre essas observações, Malinowski elaborou sua teoria, o funcionalismo (o indivíduo tem necessidades e cada cultura, à sua maneira, tem como função satisfazer essas necessidades). Preocupou-se, também, com a abertura das fronteiras disciplinares, entendendo que o homem deveria ser estudado por meio de uma articulação do social com o psicológico e o biológico. Procurou viver, nele próprio, os sentimentos dos outros, fazendo da observação participante uma participação psicológica do pesquisador, que passa a compreender e compartilhar esses sentimentos (ibid: 82). Pode-se dizer que com o trabalho desses pais fundadores da etnografia, e dos primeiros teóricos da nova ciência do social que, ainda que não fossem etnólogos de campo, mas filósofos e sociólogos como Durkheim e Mauss, forneceram o quadro teórico e os instrumentos que ainda faltavam à mesma, a antropologia atinge sua maturidade. Embora seja tarefa muito difícil fazer um balanço das tendências do pensamento antropológico contemporâneo, mesmo porque, partilhando a mesma época, falta-nos uma indispensável distância para uma visão mais completa, é possível destacar algumas tendências dominantes. Se levarmos em conta as condições históricas e sociais de produção do saber antropológico, veremos que existem características culturais distintas dessa produção nas várias sociedades em que ela vem sendo desenvolvida. Laplantine particulariza três delas: a antropologia americana, a britânica e a francesa (Laplantine, 2007: 97). Na primeira, representada pelos pesquisadores Boas, Kroeber e R. Benedict, aponta como área de investigação privilegiada o estudo das personalidades culturais e dos processos de difusões, contatos e trocas culturais. Os métodos teóricos utilizados são o modelo histórico (o evolucionismo e o neo-evolucionismo), o geográfico (o difusionismo) e o psicológico e psicanalítico (o culturalismo). Na antropologia britânica Laplantine coloca em destaque o estudo da organização dos sistemas sociais, a utilização do modelo sincrônico e funcionalista do estruturalismo inglês e os trabalhos de Malinowski e RadcliffeBrown como maiores contribuições. Já quanto à antropologia francesa, o autor alega estar praticamente ausente da cena da antropologia social e cultural da 20


segunda metade do século X I X , atraso este que não será recuperado no início do século

XX.

Mostra que será necessário esperar os anos 30 para que uma

verdadeira etnografia profissional comece a se constituir na França (ibid: 101). A partir desse momento, porém, as pesquisas foram prosseguindo e se aprofundando principalmente no estudo dos sistemas de representações, em um modelo teórico sociológico, estruturalista e marxista de tendência intelectual e filosófica. Foi, conforme suas palavras, um crescimento muito recente, mas apoiado em uma sólida tradição, da etnografia, da museografia e da etnologia da própria sociedade francesa, em suas diversidades e mutações (ibid: 102). Os principais teóricos apontados por sua influência no pensamento antropológico francês são Durkheim, Mauss e Griaule. Laplantine propõe, também, a divisão do pensamento antropológico contemporâneo em cinco pólos teóricos, ou seja, em cinco pontos de vista diferentes, sobre uma mesma realidade. Segundo o teórico, seriam eles: A antropologia simbólica, cujo objetivo é analisar a lógica precisa existente nos sistemas simbólicos expressos principalmente através das religiões, das mitologias e da percepção imaginária do cosmos. Os pesquisadores desse eixo de pensamento, ao invés de se interessarem pela compreensão das relações de poder existentes entre os membros da sociedade, preferem priorizar o estudo das produções simbólicas (artesanato), a literatura de tradição oral (mitos, contos, lendas, provérbios...) e dos instrumentos através dos quais essas produções se constituem (particularmente as línguas); o estudo das lógicas dos saberes (filosóficos, religiosos, artísticos, científicos) existentes num grupo (o que abre caminho para uma antropologia do conhecimento e para o que hoje qualificamos de “etnociências”)(Laplantine, 2007: 112). A antropologia social interessa-se pela organização interna dos grupos, a partir da qual podem ser estudados o pensamento, o conhecimento, a emoção, a linguagem. Destaca a coesão das instituições e o caráter integrativo da família, da moral e da religião. Se o interesse pelos sistemas de representações priorizados no pólo de pensamento teórico constituído pela antropologia simbólica permanece (mitologia, magia, religião...), é para mostrar seu lugar e função dentro de uma sociedade em estudo. Para muitos autores, não existe uma distinção clara entre a antropologia social e a sociologia. 21


A antropologia cultural é uma antropologia freqüentemente empírica que dedica atenção maior aos comportamentos dos indivíduos, enquanto reveladores da cultura à qual pertencem e não ao funcionamento das instituições. Segundo enumera Laplantine, ela apresenta alguns traços marcantes: Ela estuda os caracteres distintos das condutas dos seres humanos pertencentes a uma mesma cultura, salientando a originalidade de tudo o que se deve à sociedade a qual se pertence. Ela conduz a pesquisa por meio da observação direta dos comportamentos dos indivíduos e, enquanto procura compreender a natureza dos processos de aquisição e transmissão de uma determinada cultura, tem preocupações comuns às de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras. Assim, frequentemente utiliza os modelos conceituais e técnicas de investigação daqueles profissionais. Ela estuda o social em sua evolução, notadamente sob a luz dos processos de contato, difusão, interação e aculturação. A antropologia estrutural e sistêmica, que não se preocupa em estudar tal aspecto de uma sociedade em si, confrontando-o com conjunto das relações sociais (antropologia social) e nem uma cultura particular na lógica que lhe é própria (antropologia cultural e simbólica). Ela procura estudar a lógica da cultura em si, entendendo que o que dizem e inventam os homens deve ser interpretado como uma produção do espírito humano que se elabora sem que os indivíduos tenham consciência disso. A antropologia dinâmica, que procura analisar as relações de poder, fazendo indagações que não se situam longe do campo da sociologia. Os cinco pólos em torno dos quais se organiza a antropologia contemporânea não são excludentes. As tendências de pesquisa podem coexistir dentro de uma única escola de pensamento ou mesmo nos estudos de um único pesquisador. Parece mesmo natural que existam diferentes métodos de investigação em perfeita interação e harmonia, pois, se a antropologia pretende analisar a pluralidade, deve encontrar em seu próprio seio essa mesma pluralidade de perspectivas para a construção de modelos teóricos. 22


Cultura Para bem compreender a antropologia cultural, objeto de nosso estudo nesta disciplina, é necessário especificar o conceito de cultura. Não é fácil construir uma definição de cultura que seja absolutamente satisfatória. Conforme as observações de Marconi e Presotto, desde o final do século XIX

os antropólogos vêm elaborando inúmeras delas, mas, apesar da cifra ter

ultrapassado 160 definições, ainda não elegeram um consenso sobre o significado exato do termo (Marconi; Presotto, 1986: 42). Para alguns, cultura é um comportamento aprendido, enquanto que, para outros, seria uma abstração do comportamento ou consistiria em idéias. Há os que defendem que cultura se refere apenas a objetos imateriais e, ao contrário, os que entendem que ela diz respeito ao material. Além disso, existem aqueles que englobam, dentro do conceito, tanto as coisas materiais quanto as imateriais. Para Boas, cultura seria “a totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social” (Boas, 1964: 166). Malinowski define cultura como “o todo global consistente de implementos e bens de consumo, de cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais, de idéias e ofícios humanos, de crenças e costumes” (Malinowski, 1962, 43). Beals é partidário da conceituação de cultura como abstração do comportamento, que não deve ser confundida com os atos do comportamento ou artefatos materiais e Kroeber, um dos mestres da antropologia americana, refere-se, também, à cultura nesse sentido (Marconi; Presotto, 1986: 42). Laplantine, após comentar que este último autor, levantara mais de 50 definições, propõe a seguinte: A cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros (Laplantine, 2007: 120)

A cultura pode ser analisada, portanto, sob diversas perspectivas, como idéias, crenças, valores, normas, atitudes, padrões de conduta, abstração do comportamento, instituições, técnicas e artefatos (Marconi; Presotto, 1986: 44). Pode, também, ser classificada de várias maneiras. A cultura material, como o nome diz, consiste em coisas materiais, ou seja, instrumentos, artefatos e outros objetos criados pelo homem como resultado de uma tecnologia de23


senvolvida. A cultura imaterial, ao contrário, refere-se a elementos que não apresentam substância material, como crenças, conhecimentos, aptidões, hábitos, normas ou valores. Às vezes, é possível encontrar uma perfeita fusão da primeira com a segunda e um elemento cultural apresenta os dois aspectos. A cultura real é aquela em que todos os membros de uma sociedade praticam ou pensam concretamente em suas atividades cotidianas e a cultura ideal ou normativa, consiste em um conjunto de comportamentos que embora sejam considerados como bons para o grupo, nem sempre são praticados (Marconi; Presotto, 1986: 46-47). Já que, de um modo geral, a cultura se constitui em elementos como conhecimentos, crenças, valores, normas e símbolos, vamos fazer uma tradução de cada um destes conteúdos: Os conhecimentos geralmente são práticos. Qualquer cultura, independentemente de sua complexidade, possui um grande número desses conhecimentos a serem transmitidos às gerações futuras: como obter alimentação, moradia, transporte, proteção contra forças da natureza, etc., além dos saberes sobre a organização social, a família, as técnicas de trabalho e os usos e costumes em geral. Quanto às crenças, podem ser definidas como a aceitação como verdade de uma proposição que pode estar cientificamente comprovada ou não. É uma atitude mental que resulta em uma ação voluntária. Há crenças verdadeiras, cujo teor pode ser comprovado cientificamente, e crenças supersticiosas ou infundadas. Umas podem ser benéficas, quando contém, em seu bojo, algum ensinamento que traga proveito ao indivíduo e/ou ao grupo e outras podem ser maléficas, quando causam prejuízo a alguém. Os valores, por sua vez, promovem uma orientação do comportamento dos indivíduos no sentido de privilegiar objetos ou situações considerados desejáveis, importantes, ou que se traduzam em prestígio, poder, riqueza material ou moral, etc. As sociedades em geral possuem valores dominantes, como o direito à vida, liberdade de expressão ou de culto, e valores secundários, como ser cortês com convidados, ceder o lugar aos mais velhos ou oferecer um cartão de visitas. As normas são os parâmetros que regem o modo de agir dos indivíduos frente a determinadas situações. Toda sociedade possui suas regras que vão sendo passadas de geração em geração e, em geral, sofrendo aperfeiçoamentos. Finalmente, é possível descrever os símbolos como realidades físicas ou sensoriais às quais são atribuídos determinados valores e significados. Por meio deles são transmitidos conhecimentos que compõem a herança acumulada do passado para a perpetuação de uma dada cultura. A língua constitui um dos mais 24


importantes sistemas simbólicos de uma cultura, assim como a arte e a religião. Conforme já foi dito na introdução deste trabalho, consideramos a noção de cultura estritamente humana. Segundo sinalizou Morin, existem sociedades e formas de sociabilidade animais e o que distingue a sociedade humana daquelas não é a divisão hierárquica de posições, nem a capacidade de fabricar objetos ou de transmitir informações, mas aquilo que assinala a consciência de uma temporalidade aquém ou além do momento presente, na qual deve ser preservada a identidade dos indivíduos. Laplantini, por sua vez, ao afirmar que existe até mesmo o que hoje não se hesita mais em chamar de sociologia celular, mostra que, a seu ver, o que distingue a sociedade humana é essa forma de comunicação propriamente cultural que se dá através da troca não mais de signos e sim de símbolos, e por elaboração das atividades rituais aferentes a estes. (...) É a razão pela qual, se pode haver uma sociologia animal (e até, repetimo-lo, celular) a antropologia é por sua vez especificamente humana (Laplantine, 2007: 121). Se pretendemos estudar os caracteres distintivos das condutas dos indivíduos nas diferentes culturas, não é conveniente considerar como universal o que é relativo a cada uma delas. A compreensão da irrefutável diversidade de culturas é o alicerce sobre o qual se constrói a antropologia cultural. Em cada grupo social podem existir variações culturais, desde a forma de cumprimentar um companheiro até o comportamento adotado à mesa ou a divisão das tarefas entre os sexos. Diferenças significativas podem ser encontradas nos menores detalhes do comportamento, em função da cultura à qual pertence o indivíduo. Assim, expressões faciais que podem ser consideradas amáveis entre algumas sociedades, em outras são censuradas como desrespeitosas. Gestos que traduzem amizade em alguns grupos podem ser considerados abusivos em outros. Da mesma forma, a educação sexual também é extremamente diversificada entre as sociedades. A idéia de que os indivíduos são condicionados a um modo de vida específico por meio de um processo de mergulho em sua própria cultura, por meio do qual adquirem seus sistemas de valores e formam sua integridade cultural, é o fundamento da posição cultural relativista. Por isso o relativismo não concorda com a idéia de existirem normas e valores absolutos e defende a posição de que as avaliações devem ser sempre relativas à cultura de onde provém. Já o etnocentrismo tende a supervalorizar a própria cultura em detrimento das demais. É uma tendência natural julgar as outras culturas à luz da sua própria. Essa postura tem o aspecto positivo ao se mostrar um agente de valorização 25


do próprio grupo, desde que não descambe para atitudes de superioridade, discriminação, ou até mesmo de agressividade. O relativismo cultural tem sofrido duras críticas que apontam para conseqüências morais e intelectuais negativas dele decorrentes, entre as quais o subjetivismo, o niilismo, a incoerência e a cegueira ética ou estética. Mesmo entre os antropólogos surgem críticas contra essa postura, segundo a qual toda avaliação é relativa a algum padrão cultural. Na opinião de muitos ele pode levar a conseqüências censuráveis como a limitação da avaliação crítica das obras humanas. Geertz cita mesmo o autor Paul Johnson, cujo livro Modern Times, sobre a história do mundo depois de 1917, começa por um capítulo no qual ele descreve todo o desastre moderno, a começar por Lenin, Hitler, Amin e Mao até o estruturalismo, o holocausto, as duas guerras mundiais, a inflação e uma série de outras vicissitudes, como resultado de uma coisa chamada “a heresia relativista” (Geertz, 2001: 52-53). Diz-se, outras vezes, que o relativismo cultural, embora tenha sido acionado para combater as noções racistas em geral, acabou por perpetuar um espécie de racismo às avessas, ou seja, tornou-se um instrumento de crítica cultural com conseqüente depreciação da cultura ocidental e da mentalidade que ela produziu. Segundo Geertz, enquanto o relativismo condena um certo provincianismo, ou o perigo de que nossa percepção seja embotada, nosso intelecto seja encolhido e nossas simpatias sejam restringidas pela excessiva valorização da

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nossa própria sociedade (Geertz, 2001: 50), os anti-relativistas acusam os primeiros de assumir uma postura em que tudo é tão importante e, portanto, tão insignificante quanto todo o resto: vale tudo, a cada um o que é seu (...) tout comprendre, c’est tout pardonner (ibid). No entanto, o citado antropólogo afirma que a inclinação relativista está, de um certo modo, implícita no campo antropológico como tal e particularmente na antropologia cultural. Realmente, a existência de grande diversidade de culturas, parece testemunhar que há modos de vida que são aceitáveis e até louváveis entre um grupo, os quais jamais seriam aprovados em outro. Assim sendo, toda análise a respeito de povos que não fazem parte da cultura ocidental deve ser feita em termos de diversidade cultural e não na relação superioridade/inferioridade. Merece ser sublinhado, no entanto, que, como ensina Laplantine, o peso da cultura não se manifesta apenas nas formas diversificadas de comportamento, mas também nas estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas, constitutivas da própria personalidade (Laplantine, 2007: 125). Assim sendo, a antropologia cultural foi levada a retomar nos fundamentos de suas observações e análises, o que os folcloristas e escritores chamavam de “alma” ou “gênio” de um povo (ibid). Cada sociedade faz escolhas valorizando um aspecto do leque de elementos culturais. Cada indivíduo tem, em si mesmo, todas as possibilidades comportamentais, mas a cultura à qual pertence realiza uma seleção de valores, pretendendo que seus membros se conformem com isso.

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28


Transformaçþes Culturais do Homem

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Origens da humanidade e seu passado cultural Nossa aventura pela antropologia cultural está apenas começando... Mas lembrem-se que nas páginas que se seguem não vamos encontrar a verdade definitiva. Primeiro por que é muito difícil comprovar de modo absoluto algumas afirmações. Estamos tentando refazer um caminho de milhões e milhões de anos. São muitas a fontes teóricas e cada autor explica certos acontecimentos a seu modo. É normal que isso aconteça em um percurso tão longo e acidentado, cujos registros se restringem a poucos achados arqueológicos que provocam acalorados debates entre os cientistas. Assim, nessa vertiginosa viagem de regresso ao nosso passado cultural, temos que ter em mente que ela ocupa um período que não é medido em anos, mas em séculos ou até em milênios. Se hoje, para nós, um ano parece um longo tempo, acontecimentos que ocorreram a uma década podem ter sido esquecidos ou, se lembrados, podem se encontrar levemente distorcidos em nossa memória. Quanto mais o tempo passa, mais se esmaecem as imagens que temos do passado. Às vezes, não temos consciência de que coisas que nos parecem agora irrelevantes foram importantíssimas no momento em que ocorreram. Durante a nossa relativamente curta existência, somente alguns poucos fatos se encontram registrados como marcantes. E se nos transportarmos para cem ou duzentos anos atrás? Fica difícil aceitar que cada década, cada ano, cada momento foi recheado de acontecimentos importantes para aqueles que os presenciaram, não é mesmo? Em mais uma volta dessa montanha-russa que nos leva ao passado, veremos passar quinhentos, mil, cinco mil, um milhão de anos. Como será a nossa visão de um período em que nem ao menos há registros escritos, um tempo no qual as ferramentas eram feitas, a duras penas, de pedra, de ossos ou de madeira, sendo desconhecido o metal? Quando nos referimos ao Antigo Egito, Mesopotâmia ou Creta é com admiração e respeito que registramos o fato de que aquelas distantes populações nos deixaram um legado cultural apreciável, embora tendo vivido há mais de cinco mil anos atrás. Aprendemos a interpretar a sua história por meio dos palácios e túmulos gigantescos que erigiram, cujas paredes muitas vezes eram decoradas por notáveis obras de arte. Mas e o dia a dia do operário que ajudou a construir esses monumentos, como teria sido? Como era sua casa, como sua mulher a decorava, que objetos ornamentavam suas mesas e paredes? Que acontecimentos sociais ou políticos foram relevantes para a sua vida? Tudo isso parece perdido no tempo. No entanto, para o início da humanidade, nossa viagem será muito mais longa. 31


Teremos que nos acostumar a fazer contas em milhares de anos, separados entre si por poucos marcos históricos, sem perder de vista que cada dia, cada década, cada ano daquele período foi tão cheio de acontecimentos quanto a última semana que passou para nós, quanto o nosso ontem. É com a consciência das distorções que podem ser provocadas pelas escalas de tempo que devemos partir em busca das origens da humanidade. Estão prontos? Então me sigam. É difícil encontrar alguém que não seja curioso sobre aqueles que foram os seus antecessores no tempo. Como já demonstramos anteriormente, compreender tantos milênios em uma única unidade de estudo pode fazer parecer que o amanhecer da humanidade foi um episódio de pouca importância. Os antepassados dos seres humanos são chamados de hominídeos. Há três milhões de anos havia três ou mais espécies de hominídeos, que depois desapareceram e foram substituídas por hominídeos mais evoluídos. Um dos fatores determinantes da evolução da espécie humana primitiva foi a reestruturação de sua anatomia que se adaptou para andar sobre os dois pés (bipedação humana). As vértebras sofreram modificações para se adaptarem à posição ereta, a pelve alargou-se para sustentar a parte superior do tronco e as pernas se articularam de forma que se tornasse possível o andar. As conseqüências do processo de bipedação foram muito expressivas para o ser humano: suas mãos ficaram livres para a realização de novas tarefas, como carregar objetos, manipular materiais e construir utensílios. Da mesma forma a posição ereta determinou modificações na estrutura óssea facial e craniana. O caminhar em posição vertical, o incremento das habilidades manuais e o desenvolvimento do cérebro humano teriam contribuído de modo determinante para a evolução e sobrevivência da espécie. A primeira evidência concreta da existência humana na Terra é um esqueleto fossilizado quase completo encontrado em Afar, na Etiópia, que, de acordo com os estudos realizados, teria vivido há mais de 3 milhões de anos. Os ossos pertencem a uma fêmea adulta, baixa e robusta. O esqueleto está claramente adaptado para a locomoção ereta e seus dentes possuem algumas características humanas, embora seu cérebro seja pequeno. Essa primeira prova de nossas longínquas origens recebeu o nome carinhoso de Lucy. Suas características a localizam dentro de uma das mais antigas espécies de hominídeos conhecidas o Australopithecus Afarensis, que viveu entre 4 e 3,2 milhões de anos. Os Australopithecus, hominídeos bípedes, estão divididos em quatro espécies: o Australopithecus Afarensis, o Australopithecus Africanus, o Australopithecus Bisei e o Australopithecus Robustus. A mais antiga delas pode representar um antepassado das espécies mais primitivas do Homo precursor dos 32


homens atuais ou, em uma segunda hipótese, os Australopithecus e o Homo podem representar duas linhas evolutivas distintas, procedentes de um ancestral comum. Mas a evolução da História do homem em nosso planeta é uma longa e complicada sucessão de fatos que se estende por milhões de anos. Os elementos disponíveis para sua reconstrução são escassos e fragmentados. Existem apenas alguns restos fossilizados humanos dispersos descobertos em lugares geralmente muito afastados uns dos outros. O fato dos vestígios humanos mais antigos haverem sido descobertos no continente africano, parece sugerir que é nas matas tropicais da África que devemos buscar a origem da nossa espécie. No entanto, ainda hoje, sabe-se muito pouco sobre o primeiro fato que detonou a vida humana na Terra. Mesmo assim, calcula-se que há aproximadamente 4 milhões de anos os nossos mais antigos antepassados estavam definitivamente instalados no planeta. As provas concretas do desenvolvimento de sua cultura encontram-se no Pleistoceno (de 2.000.000 a 10.000 anos) ou no final do período anterior, o Piloceno (de 13.000.000 a 2.000.000 de anos). Embora, conforme alertamos anteriormente, as datações não sejam uma unanimidade nas obras de diferentes autores, procuramos elaborar um quadro aproximado de períodos correlacionados com o gênero Homo, para facilitar a compreensão de seu passado cultural. Épocas

Holoceno ou recente/ atual

Períodos climáticos

Idade

Pós-Glacial

10.000 anos

Pleistoceno Superior

Retirada do Gelo/Wurm III, II e I/

150.000 anos

(Quaternário)

3ª Interglacial

Pleistoceno Superior

Pleistoceno Superior

(Quaternário)

Pleistoceno Inferior (Quaternário)

150.000 anos

Homo

Moderno

Sapiens Erectus

(Quaternário)

Pleistoceno Inferior (Quaternário)

2.000.000 anos

Australopithecus/Habilis Usuários da pedra/caçadores coletores

Charles Darwin (1809-1882), autor da famosa Teoria da Evolução das Espécies, provou que ao longo de milhões de anos todas as espécies de seres vivos se transformaram, ou seja, evoluíram. Algumas espécies extinguiram-se e outras foram se modificando através de milhares e milhares de gerações. Há cerca de 7 milhões de anos os primatas, animais mamíferos com capacidade de segurar as coisas com as mãos, começaram a evoluir para duas espécies diferentes. Parte deles deu origem aos macacos e outra parte teve uma descendência que evoluiu até se transfor33


mar na espécie humana. Darwin nunca afirmou que os homens descendem dos macacos. Sua Teoria da Evolução mostra apenas que somos parentes deles, porque ambas as espécies descendem de um ancestral comum, o primata primitivo. Em 1961, foram descobertos na África Oriental, na garganta de Olduvai, restos fósseis bem diferentes daqueles dos Australopithecus. O crânio apresentava um volume maior, de 650 a 700 centímetros cúbicos e dentes muito semelhantes aos dos humanos. Os artefatos encontrados ao lado do esqueleto, muito simples mas em grande quantidade, indicam uma elevada atividade cultural naquele que foi chamado Homo Habilis. Entretanto, segundo salientam Marconi e Presotto, algumas autoridades acreditam que esse hominídeo seja uma variante do Australopithecus, mas não tão avançado para ser incluído no gênero Homo (Marconi e Presotto, 1986:76). Acreditava-se que o Homo Habilis precedera o Homo Erectus na escala de evolução dos hominídeos, mas recentemente os meios de comunicação divulgaram recentes descobertas arqueológicas que parecem indicar que ambos coexistiram no mesmo período por pelo menos 500.000 anos. O Homo Erectus viveu entre um milhão e cem mil anos antes da nossa época e situa-se entre o Australopithecus e o Homo Sapiens na escala da evolução humana. O Homo Erectus e o Autralopithecos teriam vivido em uma mesma época em territórios diferentes. Os fósseis foram encontrados na Ásia, África e Europa permitindo a classificação em cinco subespécies: o homem de Java (Homo Erectus Erectus), o homem de Pequim Homo Erectus Pekinensis), o Homo Erectus Mauritanicus, Homo Erectus Leakryl e Homo Erectus Heidelberguensis. Essa espécie (Homo Erectus) possui cérebro grande, de 900 a 1.200 centímetros cúbicos, é bípede e tem a altura aproximada de 1,60m a 1,70m para o sexo masculino e cerca de 1,52m para o sexo feminino. Apresenta redução dos molares, caninos menores, menor prognatismo das mandíbulas e uma certa humanização da estrutura facial embora permaneça a protuberância supraórbita. Teria um rosto curto, nariz achatado, arcos superciliares bem marcados e abóbada craniana mais alta e larga. A modificação da pélvis lhe permitia caminhadas mais longas. A quantidade de artefatos cortantes encontrada junto aos restos desse nosso ancestral parece indicar que ele caçava e matava animais de pequeno e grande porte, servindo-se de objetos de pedra, armas e talvez de tochas de fogo e armadilhas. O Homo Sapiens primitivo, ou pré-sapiens viveu no Pleistoceno Médio (500. mil anos) e Superior (150 mil anos) e seus fósseis foram encontrados em diversas regiões. Assim, temos o Homem de Vertesszollos (encontrado perto de 34


Budapeste, na Hungria), o Homem de Swanscombe (descoberto na margem sul do Rio Tâmisa, na Gtã-Bretanha) e o Homem de Steinheim (oriundo de uma cova perto de Stutgart, na Alemanha). Dá-se o nome de Homo Sapiens de Neandertal a um grupo de indivíduos cujos esqueletos possuem conformações semelhantes. O neandertalense é relativamente baixo, medindo de 1,55m a 1,70m e tem um cérebro volumoso (1,540 centímetros cúbico para os homens e 1.200 centímetros cúbicos para as mulheres aproximadamente). Seu rosto parece ter sido proeminente com nariz largo, queixo marcado por mandíbula robusta e órbitas grandes e redondas encimadas por enormes superciliares. Os dentes e ossos dos membros são semelhantes aos dos humanos. O grupo final de homens fósseis é chamado de Cro-Magnon, ou Homo Sapiens Sapiens, e viveu no Pleistoceno Superior, de 35 a 10 mil anos antes de nossa época. Esteve presente na Europa, Ásia, África e chegou à Austrália e à América. Deve ter coexistido com o Homem de Neandertal, mas nada se sabe sobre possíveis relações entre as duas espécies. Sua altura oscilava entre 1.72m e 1.86m, seu rosto era reto, com nariz desenvolvido mas afilado, testa larga e mandíbula bem desenvolvida. Sua caixa craniana era volumosa, medindo de 1200 a 1600 centímetros cúbicos e o esqueleto era robusto e bem construído.

O Homo Sapiens Sapiens possuía uma tecnologia material relativamente avançada, uma cultura bastante criativa e notabilizou-se pelas pinturas rupestres, baixo-relevos, gravuras em ossos ou madeira, esculturas e modelagens. O aumento do tamanho do cérebro parece ter sido fundamental no êxito dos hominídeos em sua fixação no planeta e no desenvolvimento do homem moderno. A espécie Homo foi a primeira a conseguir sobrepor o domínio da habilidade mental sobre a força física. Isso permitiu que o homem se comunicasse, aprendesse, se organizasse em sociedade, se adaptasse a condições climáticas e criasse. Muitas espécies eram maiores, mais fortes e mais ágeis do que a raça humana, mas ela prevaleceu. Uma prova inequívoca do uso da inteligência contra a força bruta foi o desenvolvimento de utensílios e armas que garantissem a sua sobrevivência em solo terrestre. Como podemos observar, as transformações pelas quais passou a espécie humana ocorreram muito lentamente, demorando dezenas e até centenas de milhares de anos para acontecerem. Fica até difícil imaginar quantas gerações de indivíduos foram necessárias para preencher todo esse lapso de tempo! O seu desenvolvimento cultural é atestado pela presença, entre os restos arqueológicos, de artefatos rudimentares manufaturados. A fabricação de utensílios, resultado de uma transformação intencional e não acidental da matéria-prima (pedra, osso, madeira) em objetos é um marco distintivo da humanização da 35


espécie. O desenvolvimento cultural do homem está associado à sua evolução psicológica que lhe permitiu essas conquistas e, principalmente, lhe forneceu a capacidade de criar, acumular experiências e partilhá-las socialmente. As evidências palpáveis do desenvolvimento da cultura anterior à escrita compõem a Pré-História da humanidade. Ela está dividida em vários períodos:

PA L E OL Í T IC O INF ERIOR E O PA L E OL Í T IC O S UP ERIOR O Período Paleolítico compreende duas divisões: O Paleolítico Inferior e o Paleolítico Superior. Há os que inserem entre estas duas o Paleolítico Médio.

PA L E O L Í T IC O ou Idade da pedra lascada

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Um espaço de tempo delimitado entre o

utensílios e ferramentas feitos a partir de pe-

aparecimento dos primeiros hominídeos até

daços de ossos, madeira ou pedra e prova-

aproximadamente 10.000 a.C. Nessa época o

velmente os bens eram de uso e propriedade

homem era nômade e vivia da caça de ani-

coletivos. Ao que se deduz, nessa época, os

mais de pequeno, médio e grande porte, da

seres humanos usavam para se comunicar

pesca e da coleta de frutos e raízes. Habitava

uma linguagem pouco desenvolvida, com um

cavernas ou abrigos precários entre as árvo-

número escasso de sons. Mas ainda nesse

res e, muitas vezes tinha que disputar esse

período tão afastado da contemporaneidade

tipo de habitação com animais selvagens. No

o homem foi capaz de transmitir idéias e de-

momento em que acabavam os alimentos da

monstrar sentimentos e aspirações por meio

região em que vivia era obrigado a migrar,

de obras de arte que são dignas de admira-

com o grupo, para um outro lugar. Usavam

ção até nos nossos dias.

O Paleolítico Inferior, que vai aproximada-

cavernas. Com o controle do fogo eles pu-

mente de 5.000.000 a 150.000 anos, assistiu os

deram descobrir que era possível conseguir

primeiros hominídeos a fazerem uso de ins-

aquecimento nas épocas mais frias, cozinhar

trumentos de pedra lascada, madeira ou ossos

alguns alimentos e afugentar os predadores

e a controlarem o fogo. Os instrumentos são

que o ameaçavam. Alguns estudiosos apon-

representados pelos seixos partidos, bifaceta-

tam a existência de um período intermediário

dos e lascados, artefatos denticulados e ou-

ao qual chamam de Paleolítico Médio (entre

tros, trabalhados pelo Australopithecus, pelo

150.000 a 40.000 anos) diferenciando-o do

Homo Habilis e pelo Homo Erectus, que foram

anterior apenas pelo fato dos utensílios de

encontrados nos leitos dos rios, em jazigos ou

pedra terem sido feitos pelo Homo Sapiens.


O Paleolítico Superior que se insere entre

obras do pintor-caçador do Paleolítico é a de

40.000 a 12.000 a.C. viu o homem representar,

que elas faziam parte de um processo mágico

nos tetos e paredes das cavernas que lhe da-

pelo qual ele procurava inferir a si a captura

vam abrigo, cenas de caça ou de celebrações

dos animais representados. Ou seja, pela pos-

rituais. A principal característica desses dese-

se da imagem acreditava garantir o seu poder

nhos rupestres é o seu naturalismo. O artista,

sobre a presa. Além disso, o período é carac-

usando pigmentos extraídos da natureza, pin-

terizado pela indústria mais aprimorada do

tava os seres do modo como o seu olhar os

Homo Sapiens ou Cro-Magnon, reconhecido

captava. A explicação mais aceita para essas

por alguns teóricos como Sapiens Sapiens.

MESOLÍTICO (de 12.000 a 10.000 anos)

Intermediário, o homem deu grandes passos

zação, pois era necessária uma habitação fixa

rumo ao seu desenvolvimento e sobrevivência

para permitir o cultivo agrícola. Assim sendo,

na Terra. Esse período, que nem mesmo aconte-

possivelmente nesse período ocorreu a divisão

ce em todas as regiões, é caracterizado pelo uso

do trabalho entre os sexos, ficando o homem

conjunto de duas formas de trabalhar a pedra:

responsável pela proteção e sustento da famí-

lascando-a ou polindo-a. Dois grandes avanços

lia e a mulher pela manutenção da habitação

que se verificaram foram o desenvolvimento da

e cuidado dos filhos. As provas materiais do

agricultura e a domesticação de animais, o que

avanço cultural humano são evidenciadas pela

resultou na diminuição da dependência da boa

presença de arpões, propulsores e, principal-

vontade da natureza e incentivou a sedentari-

mente, do arco e pontas de lanças ou flechas.

NEOLÍTICO ou Idade da Pedra Nova ou Polida

Tem início por volta de 10.000 a. C. Nesta época

também, a ocorrência da cerâmica. A armazena-

o homem atingiu um importante nível de de-

gem de excedentes agrícolas garantiu o alimen-

senvolvimento e estabilidade. Com a agricultu-

to para os momentos de seca ou inundações.

ra e criação de animais em plena evolução, as

Em decorrência da maior fartura as comunida-

comunidades sedentarizadas puderam avançar

des foram crescendo e passaram a fazer trocas

em direção ao desenvolvimento da metalurgia,

com outros grupos, promovendo um intenso in-

criando lanças, ferramentas e machados. Isso lhe

tercâmbio entre suas pequenas aldeias. A divisão

possibilitou caçar com mais eficiência e produzir

do trabalho dentro dessa comunidades ampliou-

utensílios com mais rapidez e qualidade. Nota-se,

se e passou a existir o trabalhador especializado. 37


Transformações e mudança da cultura A descoberta e a invenção Conforme ensina Herskovits, as mudanças culturais podem ser incluídas em duas categorias distintas: a primeira abrange toda mudança proveniente das inovações originadas dentro de uma sociedade e a segunda, de mudanças que vêm do exterior. Na primeira categoria se inserem os processos de descoberta e invenção (Herskovits, 1973: 305). Como pudemos constatar na Unidade de Estudo anterior, onde não existem registros, só serão possíveis conjecturas sobre como surgiu determinada técnica ou sobre como fatores pessoais contribuíram para sua aceitação e difusão. Além disso, as conclusões não poderão ser aceitas sem as devidas reservas, pois não podemos perder de vista a diferença que existe entre uma verdade histórica, comprovada por inscrições ou anotações, e uma probabilidade histórica, por mais lógicas que pareçam as deduções resultantes da observação dos fatos. Uma das maiores dificuldade que se apresentam para o estudo dos processos de invenção e descoberta, ou dos fatores que contribuíram para sua aceitação e difusão, reside no fato de que muito raramente é possível fazer observações no próprio lugar e tempo em que se introduzem novos elementos numa cultura. É bastante difícil traçar linhas de distinção entre os conceitos de descoberta e invenção. Vários autores têm tentado construir suas definições, mas acabam convergindo para a mesma zona nebulosa que envolve as fronteiras entre os dois termos. Alguns afirmam que a descoberta encontra-se na raiz de todas as atividades materiais do homem. Assim, as descobertas dos métodos que resultam no desenvolvimento de um corpo de atividades, como, por exemplo, as referentes à agricultura ou domesticação de animais, estimulariam a invenção de artefatos ou utensílios. Não negam, no entanto, que existiriam dificuldades para estabelecer distinções mesmo nesses termos. Outros argumentam que a descoberta deveria se limitar ao achado não premeditado de algo novo, enquanto a invenção seria intencional. Reconhecem, porém, que as duas terminologias se interpenetram de maneira imperceptível. Para Herskovits, estas análises colocam certo número de questões: Sentimos, por um lado, a necessidade de reexaminar o uso da palavra’invenção’. Sua referência quase exclusiva, na conversação comum, não menos que nos estudos citados, à fabricação de novos objetos materiais levanta uma questão de suma importância. Harri38


son que estuda a cultura material, restringe-a explicitamente a esse campo. Por outro lado, Dixon reconhece um significado mais amplo: ‘Não se deve esquecer que ambas, descoberta e invenção, podem ter resultados materiais tanto como não materiais, pois se pode dar com uma nova idéia ou inventar uma nova filosofia’. E, no entanto, (...) para ele , a invenção tem, com efeito, a mesma significação restrita que para a amior parte da gente euro-americana o fato de idear algum objeto novo, ou algo até então desconhecido (Herskovits, 1973: 309).

Segundo o autor citado, será preciso uma transformação completa da mentalidade euro-americana para considerar que o processo da invenção atua sobre a totalidade da cultura e não apenas em seus elementos tangíveis. As idéias são tão poderosas quanto as coisas na formação da vida do homem. A tendência a se centrar nos objetos materiais quando se estuda a introdução de novos traços em determinada cultura, além de ser um reflexo dessa mentalidade, deve-se ao fato de ser extremamente difícil, metodologicamente, apresentar elementos culturais imateriais de culturas ágrafas. O fator necessidade, ao qual se atribui papel preponderante tanto em descobertas quanto em invenções, parece, também, ter maior relevo quando se tratam de elementos culturais materiais. É fácil argumentar, depois do fato acontecido, que havia necessidade de tal ferramenta, arma ou técnica, para garantir o modo de vida de determinado povo. Entretanto, mesmo no caso de um benefício material, invenções ou descobertas que pareceram tão importantes e urgentes para uma sociedade em particular, podem ser consideradas irrelevantes para outra. Necessidade é um conceito relativo, cuja precisão reside apenas no âmbito circunscrito a determinada cultura. Nas palavras de Herskovits, o provérbio por toda parte citado de que “A necessidade é a mãe da invenção” não é, portanto, mesmo nos aspectos materiais da cultura senão uma verdade parcial (Herskovits, 1973: 311). Quando nos transportamos para os aspectos intangíveis da cultura, então, essa afirmação se torna, mesmo, inaplicável. Realmente, qual seria a necessidade que ditaria a invenção de uma nova forma de se expressar artisticamente? Por outro lado, basta pensar em invenções que são descartadas como irrelevantes, para reconhecer que aquilo que parece ser a solução de uma necessidade para um inventor, pode ser considerado uma inutilidade para os membros do grupo ao qual pertence. Outra questão que recebe muita atenção na teoria antropológica diz respeito à invenção independente face à difusão. Quando se encontra em culturas inde39


pendentes uma série de artefatos semelhantes, a tendência é concluir que eles foram inventados uma única vez, sendo difundidos pelas demais regiões. No que diz respeito à maior parte das culturas, pouca dúvida parece haver de que elementos tomados de empréstimo predominam sobre os que tiveram origem no interior do grupo. O homem parece ser uma criatura que acha mais fácil se aproveitar de algo inventado por outrem do que procurar, por si mesmo, as soluções dos seus problemas. Mas em culturas muito afastadas geograficamente, como se daria essa difusão? Se pensarmos nas ferramentas de pedra com formas semelhantes que surgiram na Pré-História, em uma mesma época, tanto na Europa quanto no Extremo Oriente, como explicar uma tão larga difusão? Por outro lado, a descoberta de que as pedras podiam ser utilizadas de várias formas, como ferramentas, é de natureza tão geral e pouco complexa que fica difícil presumir uma só origem para seu emprego. De acordo com Herskovits, surge, assim, uma terceira possibilidade para explicar as inovações culturais, em um mecanismo denominado convergência, cujo conceito foi, em tempos passados, objeto de considerável discussão. Foi empregado por vários antropólogos, entre os quais Franz Boas e Paul Ehrenreich, mas ficou associado a A. A. Goldenweiser. Esse teórico o utilizou para classificar o totemismo como uma tendência das unidades sociais para se associarem com objetos e símbolos de valor emocional, procurando demonstrar que essa relação, existente em tantas formas diferentes e em vários lugares da Terra, é suficientemente geral para ter sido inventada com inteira independência. Goldenweiser, empregando o conceito de convergência, desenvolveu o princípio acessório de possibilidades limitadas que restringiria a variedade no desenvolvimento de uma dada forma cultural. Como exemplifica Herskovits para explicar esse princípio, não existem mais que três possíveis maneiras de contar descendência: bilateral, patrilinear e matrilinear. Seria temerário atribuir uma só origem a cada um desses sistemas, especialmente quando nos deparamos com o fato de que numa área relativamente restrita, como na África Ocidental, mais de um povo patrilinear tem como vizinho um grupo matrilinear (Herskovits, 1973: 315).

A convergência oferece uma alternativa para a escolha entre a difusão e a invenção independente, levando em conta as semelhanças entre as culturas. Mesmo assim, traz apenas uma resposta parcial, pois a maior parte dos exem40


plos não se acha fundamentada em documentação precisa, não passando de probabilidades históricas. Persiste a pergunta sobre a natureza do processo pelo qual os seres humanos passam a dar valor intrínseco a um determinado elemento novo, agregando-o ao conhecimento anteriormente existente, para incorporá-lo ao acervo cultural de um povo. Os desenvolvimentos de uma cultura, resultantes de transformações introduzidas a partir da descoberta e da invenção, são conseguidos por meio da acumulação de pequenas mudanças em elementos pré-existentes, com a contribuição de muitos indivíduos do grupo. Seria perigoso, como se faz freqüentemente, reservar a palavra invenção somente para algum desenvolvimento estrondoso. A capacidade inventiva do homem atua sobre o conjunto de sua cultura, umas vezes produzindo uma profunda novidade, outras mudando meramente algum detalhe da prática aceita (Herskovits, 1973: 317). A complexidade dos processos de invenção, descoberta e subseqüente mudança, ressalta a criatividade do homem no dinamismo da cultura, já que a soma de transformações, grandes e pequenas, advindas de inovações internas, é muito extensa, mesmo quando comparada com o que se tomou emprestado do exterior. Mas seja em resultado da descoberta e da invenção, seja em decorrência de empréstimos vindos de fora, é da incessante manipulação de todos os aspectos de seu modo de vida que se origina o processo de mudança da cultura de um povo.

A Reconstrução da História Cultural do Homem A investigação sistemática dos problemas da transmissão ou empréstimo cultural data do princípio do século

XX,

já que anteriormente dominava a teoria

da evolução cultural. Três linhas de pensamento basearam-se na difusão para estudar os problemas da história da cultura ou da dinâmica cultural. Segundo Herskovits, pode ser citado, em primeiro lugar o grupo inglês, composto por Elliot Smith, W. J. Perry e seus adeptos, compondo o que se costuma chamar escola pan-egípcia ou heliolítica. O segundo é denominado escola históricocultural austríaco-alemã e foi fundado por F. Graebner e E. Foy, sendo continuado por estudiosos que publicaram seus achados no jornal austríaco Anthropos. Converteu-se numa das mais importantes escolas do pensamento antropológico no continente europeu, sem, no entanto ter aceitação entre os antropólogos de língua inglesa. O terceiro grupo, que pode ser denominado de norte-americano, é histórico em seus métodos e dá importância à investigação de campo 41


e reconstruções restritas da história, com base em estudos comparados. Está associado em sua maior parte a F. Boas e seguidores como Kroeber, Lowie e outros. Sua posição diferia-se só ligeiramente dos difusionistas ingleses. Mas não é possível dar por completo nenhum estudo sobre a difusão sem observar a posição da escola funcionalista, da qual já tratamos anteriormente, identificada ao nome de Malinowski, que se interessou por compreender como cada aspecto de determinada cultura está relacionado com outros aspectos, de modo a satisfazer as necessidades humanas. Para Malinowski o fator tempo não assumia maior importância e suas maiores críticas dirigiam-se contra o estudo da difusão, exatamente como os difusionistas dirigiram as suas contra os evolucionistas. A escola difusionista inglesa ou heliolítica teve um curto percurso. Seu fundador, Elliot Smith, não era a princípio um antropólogo cultural, mas um anatomista que, ao empreender o estudo dos cérebros das múmias egípcias, ficou impressionado com a superior qualidade dessa civilização. Assim, começou a anotar como a cultura do Antigo Egito continha elementos que pareciam encontrar paralelo em culturas de outros povos. A mais elaborada exposição da teoria heliolítica foi feita por Perry e o elemento por ele selecionado, para ilustrar suas posições, foi a crença egípcia de que o governante supremo descendia do Sol, mostrando que essa crença acha-se difundida por toda parte. Elliot e seus adeptos fizeram do empréstimo quase que a única maneira de mudança na cultura. A inventiva humana fica, nesta teoria, extremamente reduzida, quase que inexistente. Mas seria a construção de um templo em forma de pirâmide (como os existentes no México) um fato cultural idêntico à construção de um túmulo piramidal para um faraó? E, embora se aceite como verdadeiro o mecanismo do empréstimo, isso não quer dizer que deva ser considerado como o único a efetuar a mudança cultural. Na visão de Herskovits, foi o descaso com que se encarou a faculdade inventiva do homem, assim como o fato de não reconhecer os fatores de tempo e espaço ao determinar a difusão da cultura egípcia por todo o mundo, o que provocou a rejeição definitiva da posição heliolítica difusionista (Herskovits, 1973: 325). Não podemos, naturalmente, argumentar que não poderia ter havido contato entre povos distantes. Os polinésios, por exemplo, alcançaram o Hawai e a ilha de Páscoa, e é possível que alguns barcos errassem a rota e atingissem a América viajando para leste. Mas somente cavando um grande abismo entre a “civilização” de alguns e a “rudeza” de costumes de outros seria possível admitir que a cultura de recém-chegados muito pouco numerosos fosse, de imediato, assimilada por todo um povo. E, nesse ponto, a teoria difusionista extrema se torna extremamente vulnerável. 42


A segunda escola difusionista, a histórico-cultural austríaco-alemã é mais sofisticada, tendo elaborado critérios cuidadosamente redigidos para julgar o valor de supostos empréstimos, coletado uma rica documentação e insistido sobre a cautela necessária no uso desses materiais. O grupo assemelha-se à escola inglesa ao planejar suas linhas de difusão por extensas áreas e reconstruindo pressupostos contatos entre culturas. A causalidade cultural é dividida em causalidade externa e interna, consistindo, a primeira, em forças que agem de fora sobre o homem e a segunda nas que ele próprio exerce sobre si. O sistema dessa escola está essencialmente baseado num modo místico de encarar a natureza da vida e da experiência humanas e isso invade o seu processo metodológico. Os matizes de misticismo não estavam presentes nos escritos de Graebner, fundador da escola, cuja principal contribuição foi a de aguçar e dar expressão objetiva aos critérios usados ao estimar a pressuposta difusão de elementos culturais de um povo a outro. Quanto maior o número de semelhanças maiores serão as probabilidades de ter havido empréstimos. O mesmo acontece com relação à complexidade de determinado elemento que apareça em duas culturas. No entanto, Graebner parece não ter levado em conta as exigências que o bom senso dita em relação a lugar e tempo para que se efetuem os empréstimos. O terceiro modo de estudo do problema do empréstimo cultural, o do grupo norte-americano, baseado nos estudos de Boas, reconhece que a questão fundamental para a qual se deve voltar o estudo da cultura não seria tanto o contato entre os povos, mas seus efeitos dinâmicos na mudança cultural. Logicamente, é muito mais fácil provar a disseminação do que acompanhar os desenvolvimentos ocasionados por forças internas e as dificuldades metodológicas constituem a razão pela qual o estudo desse desenvolvimento não foi priorizado. Boas sustenta que os mecanismos de desenvolvimento interno, ou seja, os processos dinâmicos da cultura, podem ser observados em todo fenômeno de aculturação, no qual se remodelam elementos externos de acordo os padrões já existentes. Assim, a introdução de novas idéias não deve, de forma alguma, ser considerada como resultado de adições ao padrão cultural, mas como estímulo a novos desenvolvimentos internos. A mudança é uma constante na cultura humana mas raramente afeta o corpo total de costumes de um povo. Como vimos, pode provir de fora de uma sociedade ou emanar de seu próprio interior, resultando da descoberta ou da invenção, cujos mecanismos são um tanto obscuros, devendo, em alguns casos, ser atribuídos à pura casualidade e, em outros, a uma busca decorrente da necessidade de resolver uma carência. As mudanças vindas do exterior são 43


resultados de um processo de empréstimo ou transmissão cultural. Este foi tão amplamente estabelecido que deixaram de ter importância maior as controvérsias sobre a difusão, exceto quanto aos modos específicos de empréstimos efetuados pelos povos ágrafos, em virtude da falta de registros. Para Herskovits, o importante a ser sublinhado na reconstrução da história cultural do homem é que os estudos da transmissão da cultura demonstraram que o empréstimo nunca está desprovido de discriminação, sendo, pelo contrário, seletivo. Em algumas situações de contato, os elementos podem ser tomados em massa; noutras, a resistência a qualquer empréstimo pode ser muito forte (Herskovits, 1973: 325). Além disso, é importante notar que novos elementos culturais são adquiridos na medida em que estão de acordo com padrões pré-existentes, embora sofram modificações para se adaptarem à sua nova situação cultural (ibid). A cultura, em análise geral, compreende as coisas que a gente tem, faz e pensa. É o mecanismo pelo qual o homem se ajusta a seu meio e adquire meios de expressão criadora. O processo de endoculturação abrange todo esse aspecto de adaptação do indivíduo recém-nascido ao grupo, a começar pela família e, mais tarde, a agregados de toda natureza. Esse processo é importante por prepará-lo para ser um membro plenamente atuante dentro da sociedade. Toda cultura funciona de modo importante ao satisfazer as necessidades físicas e psicológicas dos que vivem de acordo com ela. Mas, embora seja o instrumento pelo qual o homem se adapta à sua situação total, não reduz o indivíduo a um ser inerte ou passivo nesse processo. Recorda Herskovits: Em realidade, o processo de adaptação é circular e infinito: é um processo de integração entre o indivíduo e seu grupo em termos de sua endoculturação a seus padrões preexistentes. Esse ajustamento é favorecido pela faculdade criadora, que, como expressão fundamental da inquietação do indivíduo ao enfrentar os modos de comportamento de seu grupo, permite-lhe exercer vários modos de auto-expressão e estender, assim, o campo de ação de sua cultura sem deitar por terra suas orientações básicas (Herskovits, 1973: 477).

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A construção de universos materiais e simbólicos: organização social, econômica, política e religiosa

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A família e sistemas de parentesco Em todo e qualquer grupo humano existe alguma forma de família. Ela é o fundamento básico e universal das sociedades. Com o tempo, passou a existir uma regulamentação de bases conjugais, regidas por preceitos contratuais, religiosos e morais. De um modo geral, é o casamento, entendido em sentido amplo, que estabelece os fundamentos legais da família. As sociedades apresentam diferenças no modo de organizarem seus grupos familiares no tempo e no espaço. A família pode ser: elementar, extensa, composta, conjugada-fraterna e fantasma. Entre as várias funções da família, que têm variado através dos tempos, existem quatro básicas e outras tantas subsidiárias. As básicas, ou fundamentais, encontradas em todos os grupos humanos, resumem-se em: sexual, de reprodução, econômica e educacional. As subsidiárias são: zelar pelos aspectos religiosos, jurídicos, políticos e recreativos necessários à formação do indivíduo. Cuidar dos membros idosos ou inválidos também é encargo universal da família, assim como a proteção dos interesses familiares contra estranhos. Em geral, a união e o casamento são duas formas de relações entre os sexos que existem nas sociedades. O casamento ou matrimônio torna o casal membro de uma família diferente daquela na qual nasceu. Dessa forma, cada cônjuge passa a pertencer a duas famílias nucleares. Existem algumas regras que as sociedades estabelecem para o casamento, permitindo alguns deles e proibindo ou restringindo outros. Em relação ao número de cônjuges, os casamentos podem ser monogâmicos ou poligâmicos. Quanto às formas de casamento, as regras que proíbem certas pessoas de se tornarem cônjuges, podem ser acompanhadas por outras que designam determinados indivíduos como elegíveis para tal. As formas de obter uma esposa variam de sociedade para sociedade. As regras de residência, nas sociedades onde a descendência é o mais relevante princípio de agrupamento social, podem ter muita importância. No que diz respeito à dissolução do matrimônio, muitas vezes o vínculo é frágil, principalmente entre sociedades tribais, onde não existem sanções religiosas ou legais. Os fatores mais comuns para as dissoluções são o adultério, a esterilidade, os maus tratos, a incapacidade sexual, a repugnância, a negligência com a família, o abandono do lar, certas doenças, o desinteresse e a preguiça. Estudando as mais variadas populações os antropólogos puderam descobrir diferentes maneiras de classificar o parentesco e suas complexas posições de relações. A família nuclear é o ponto de partida para a análise do parentesco, cuja origem está no fato do indivíduo poder pertencer, ao mesmo tempo, a 47


duas famílias nucleares: a de orientação (onde nasceu) e a de procriação (que constituiu). Pertencendo às duas, ele estabelece um elo de ligação entre os membros de ambas. Os diagramas ou gráficos utilizados pelos antropólogos na esquematização dos laços de parentesco podem facilitar sua compreensão. Descendência é uma regra que filia o indivíduo, desde seu nascimento, a um grupo de parentes. A investigação dos sistemas de parentesco permite o estabelecimento de correlações com outras estruturas sociais, como a política, a religiosa, a econômica, etc.

A economia e técnicas de sobrevivência A organização econômica faz parte da organização social de qualquer sociedade humana, mesmo a mais simples. Entretanto, os aspectos da produção e consumo variam muito de uma cultura para outra no tempo e no espaço. Segundo a teoria evolucionista de Morgan, o primeiro a tratar sistematicamente os dados registrados pelos cronistas sobre a atividade econômica das culturas primitivas, a vida econômica teria passado por três estágios: bandos coletores e caçadores (propriedade comum), aldeias fixas, com agricultura e pastoreio (propriedades familiares ou clãs) e unidade política com tecnologia avançada (propriedade privadas ou estatais). As conclusões a que chegou Morgan, porém, deixaram de ser aceitas, pois informações coletadas posteriormente por um grande número de pesquisadores de campo sobre economias primitivas e rurais, mostraram uma enorme variedade de sistemas econômicos que não podiam ser enquadrados nos referidos estágios. Além disso, a idéia de estágios de evolução não explicaria o atual processo de transformação econômica. Pode-se conceituar a atividade econômica nas pequenas sociedades como as práticas humanas que dizem respeito à produção, uso, troca e consumo de bens. A obtenção de alimentos conta com técnicas muito variadas utilizadas por diversas populações em diferentes períodos. Podem, no entanto, ser agrupadas em alguns tipos básicos: coleta, caça e pesca, forragem intensiva, agricultura incipiente, pastoreio e agricultura intensiva.

Organização da produção e propriedade Os sistemas econômicos primitivos e agrícolas apresentam uma incipiente divisão de trabalho e uma rudimentar organização da produção. Os produtos são 48


usados diretamente pelas pessoas, embora possam ocorrer algumas permutas. Existe um sentimento de valorização da terra e daqueles bens que possam ser úteis para garantia da sobrevivência do grupo, o que determina o controle da riqueza e do capital, baseado em diversos tipos de relações sociais. A divisão do trabalho tem origem nos primeiros agrupamentos humanos estáveis e perdura até a atualidade. Para essa divisão, são obedecidos alguns critérios relevantes, que englobam o sexo, a idade, o status social e a aptidão do indivíduo. Mesmo nas sociedades complexas, porém, nem todos os indivíduos possuem aptidões especiais. Assim sendo, a organização do trabalho deve somar a técnica de especialistas à mão de obra não especializada. O recrutamento dessa força de trabalho depende das relações sociais mais do que das vantagens materiais oferecidas, mas estas últimas podem determinar quem vai trabalhar para alguém e quando. As recompensas oferecidas pelos serviços prestados podem ser maiores e menores, fixas ou impessoais, em forma de alimentos, presentes, serviços, etc. Não existe preocupação quanto a equivalência entre a ajuda recebida e a recompensa. Em sociedades primitivas ou ágrafas, as relações econômicas costumam ser, ao mesmo tempo, relações sociais e, em muitas delas, os elos de parentesco constituem a base de seu ordenamento. Ligações territoriais e filiações políticas podem, também, ser mecanismos de constituição de unidades de produção. A organização econômica faz parte, dessa forma, de uma rede de relações entre indivíduos e grupos, sendo influenciada por padrões de comportamento, valores, crenças e normas de conduta. As sociedades primitivas, pequenas e isoladas, com recursos tecnológicos limitados, apresentam uma economia de subsistência, na qual os produtos se destinam especificamente ao uso dos componentes do grupo. Podem, entretanto, ocorrer algumas trocas do excedente da produção, visando complementar recursos, favorecer o processo de produção, valorizar relações sociais, compensar perdas, etc.. Os mecanismos de troca surgem em razão da divisão do trabalho e do direito de propriedade, ou seja, do fato de alguns possuírem produtos valorizados por outros, que não os possuem. A riqueza e o capital, nas sociedades simples, significam todos os bens amealhados, incluindo ferramentas, equipamentos de produção, comida, roupas, adornos, animais, casas, etc. Quando existe algum sistema de moeda, ainda que incipiente, ele permite a poupança e a troca de mercadorias por moedas que podem gerar novas transações. Em geral, as economias simples são pobres em capital fixo, pois a baixa tecnologia limita a quantidade, qualidade, durabilidade, eficiência e serventia dos bens. 49


A repartição dos bens ou produtos é um elo de ligação entre produção e consumo. Geralmente, todos os membros do grupo recebem o suficiente para seu sustento e sobrevivência. Mas há os que recebem mais, sendo possível notar uma graduação entre estes e os que recebem menos, em razão do status, relações de parentesco, cargos, prestígio, etc. A acumulação de excedentes pode ter como razão o provimento das necessidades do grupo em períodos de escassez ou situações emergenciais, mas pode, também, visar a exibição de poder e a aquisição de propriedades. O conceito de propriedade abrange tanto coisas palpáveis, concretas, como terras, colheitas, animais, habitação, roupas, quanto coisas intangíveis como nomes, canções, poesias, títulos. Existem regras sobre a posse, o manejo e a disposição da propriedade em todas as sociedades. A propriedade pode ser fixa ou imóvel, referente a bens imóveis, como terra, habitação, estradas, poços, e móvel, que diz respeito a bens móveis, como gado, armas, instrumentos, ferramentas, equipamentos e implementos agrícolas, os dois últimos relacionados com a divisão do trabalho.

Elementos de organização política A organização política de um povo refere-se ao conjunto de instituições por meio das quais são dirigidas as suas atividades em direção ao cumprimento das metas impostas pelo bem comum. Essas instituições regulam e controlam a vida da sociedade para fornecer aos seus membros um sistema de governo organizado, defesa e proteção contra inimigos externos por meio da organização militar e a garantia de direitos individuais, ao mesmo tempo em que exige deles o cumprimento de suas obrigações. A organização política, cuja característica essencial é o exercício do poder, é um aspecto da cultura que está presente em todas as sociedades, sejam elas simples ou complexas. Para a existência de uma organização política é necessário que haja grupos e sub-grupos cujas relações exijam controle social, sejam essas formações estruturadas em parentesco, sexo, religião ou em outras associações. Três elementos são fundamentais na constituição da organização política das sociedades ágrafas: o parentesco, a religião e a economia. Com o crescimento das populações, tornou-se necessário o planejamento de ações necessárias à manutenção da ordem e promoção do bem-estar e integridade do grupo. Aos poucos, surgiu nas antigas sociedades um tipo de instituição que se destinava a cumprir essas tarefas de controle da população e 50


administração dos projetos públicos, que recebeu a denominação de “Estado”. O Estado é a nação politicamente organizada e deve ser compreendido em termos de território, população e governo. A História nos mostra que, ao longo do tempo, surgiram vários tipos de Estado, como os Estados tribais, as CidadesEstado da Antigüidade, os Estados Teocráticos, os Imperiais e numerosas outras formas estatais, algumas já desaparecidas, tendo a maioria se transformou em Estados modernos. O Estado Nacional, característico das sociedades contemporâneas, é a forma dominante, adaptada à diferentes ideologias, como a democrática, a socialista e a comunista. O Governo é o complexo de órgãos administrativos incumbidos da direção do Estado, a autoridade individual ou grupal que controla seu território, atuando por meio de arranjos políticos e procedimentos legais e judiciais. Sua característica principal é a concentração do poder nas mãos da autoridade central. As formas de governo são várias. A mais elementar é encontrada nos bandos ou hordas, constituídos por poucas famílias nucleares nômades, geralmente aparentadas, com economia de subsistência. Entre as populações sedentárias, no aldeamento, a vida política se torna mais complexa e os líderes passam a ser responsáveis pelo controle social e pela preservação da lei e da ordem. A organização sócio-cultural das tribos e nações apresenta um nível tribal mais complexo que o do bando, embora conservando algumas de suas características. Existem, também, as chefaturas, representadas por um tipo de organização, ainda não estatal, mas já apresentando certa autonomia política com condições de passar a Estado. Enquanto as sociedades sem Estado o governo é informal, com relações sociais ligadas ao parentesco, à linhagem, a grupos de faixa etária, a conselhos de aldeias e associações ou a liderança de determinados indivíduos, nas sociedades de Estado a autoridade é exercida por chefes, reis, conselhos ou associações de caráter apolítico, abrangendo toda a sociedade.

Religião e Magia Se analisarmos qualquer povo, veremos que sua população possui um conjunto de crenças em poderes sobrenaturais de alguma espécie e frequentemente desenvolve normas de conduta destinadas a protegê-la de forças desconhecidas e ameaçadoras. Os mais antigos registros arqueológicos sobre religião estão associados ao homem de Neandertal, no Paleolítico Superior, que enterrava seus mortos cer51


cados de oferendas, demonstrando dessa maneira uma crença no sobrenatural. Todo esse cerimonial testemunha a atividade do pensamento humano que, face ao fato aterrorizador da morte, com as emoções abaladas pela sua destruição, foi levado à forma imaginativa. Não se conformavam com a cessação da vida terrena, imaginando obscuramente alguma forma de continuidade na sepultura. Esses nossos ancestrais praticavam um ato de fé e isso é o que distingue a operação mágica da experiência científica: o julgamento objetivo dá lugar à esperança e ao medo. Também Morin abraça essa teoria. Mostrando o surgir de uma nova consciência no homem, demonstra que a morte não é só reconhecida como um fato, como o fazem os animais, mas concebida como uma transformação de um estado em outro. Muitos teóricos concordam que, de um modo geral, a religião é formada por um sistema de crenças e práticas e que todas as sociedades possuem sua própria visão do universo. A crença e o ritual são os dois elementos constitutivos da religião. A crença consiste em um sentimento de respeito, reverência e até mesmo temor em relação ao sobrenatural. A fé não exige compreensão, aceita o mistério sem prova tangível. A crença pressupõe a submissão a algo sobrenatural, superior ao entendimento humano. Já o ritual é a exteriorização da crença por meio de ações, em que todos seguem um padrão de comportamento para cultuar um ou vários deuses, espíritos ou forças sobrenaturais. As práticas rituais assumem relevante importância em toda sociedade ágrafa ou de tecnologia simples. O culto é uma série de atos organizados para a veneração ou interação com os seres sobrenaturais. Envolve crenças e rituais, associados a objetos, que podem ser imagens representativas da divindade cultuada, utensílios, trajes, máscaras, lugares sagrados, oficiantes e fiéis. As formas de rituais variam de acordo com o culto. A religião, de modo geral reforça e mantém os valores culturais de um povo. Muitos de seus preceitos estão ligados à ética e à moral, incutindo nos indivíduos padrões de comportamento culturalmente aprovados e exercendo, quase sempre, um papel coercitivo sobre os fiéis. A magia, como a religião deriva da crença na existência de poderes sobrenaturais. Não faz, porém, apelos aos espíritos. Refere-se a um tipo de técnica para invocar, por fórmulas verbais especiais, ações ou objetos mágicos, determinados poderes capazes de manipular as forças sobrenaturais, tornando-as propícias aos objetivos procurados. Na realidade, a distinção não é muito acentuada, pois a maioria dos rituais visa coagir ou seduzir os deuses, com oferendas, refeições ou sacrifícios e conseguir, assim, um resultado mágico. 52


A cultura material e as artes

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Habitação, alimentação, transporte e defesa A cultura material, como vimos anteriormente, refere-se a coisas palpáveis, objetos materiais, tais como edificações, ferramentas, utensílios, armas, estatuetas, adornos e muitos outros artefatos, feitos de diversas matérias-primas e resultantes de inúmeras técnicas, que são frutos da criatividade humana. Todos os aspectos da cultura material de um grupo têm importância intrínseca, por sua utilização, e também extrínseca, pelas informações que encerram a respeito do seu modo de vida. É importante observar a forma e função desses artefatos. Quando o clima glacial melhorou um pouco, por certo tempo, os registros arqueológicos da Europa, África do Norte e Ásia Menor mostram que surgiu o homem da nossa espécie, pela primeira vez. O homem de Neandertal desaparece subitamente e é substituído pelos homens modernos, cujas conformações não se diferem das nossas. Os produtos desses homens, denominados indústrias do Paleolítico Superior, mostram que eles eram mais bem equipados para enfrentar o ambiente do que qualquer grupo anterior. As habitações variam muito, tanto no tempo como no espaço, pois se relacionam com o clima, a localidade, os materiais encontrados e a tecnologia empregada. Também o modo de vida, o tipo de economia, a maior ou menor necessidade de proteção e a organização social de um povo influem na edificação de suas casas. Os primeiros indícios de habitações encontrados se remetem ao Paleolítico. Supõe-se que as cavernas e abrigos rochosos da Ásia, África e Europa teriam servido a esse fim, desde o Paleolítico Médio. Ainda hoje, algumas populações, como as da Cashemira e certos grupos do Afeganistão, residem em grutas e cavernas. Mas parece que a espécie humana preferiu construir seus abrigos e casas em campo aberto. As maiores evidências dessa atividade do homem encontram-se no Neolítico, com a presença de palafitas, plataformas, casas de ossos ou de paredes de pedras amontoadas, além dos abrigos semi-subterrâneos. Os grupos nômades de caçadores e coletores construíam anteparos com uma armação provisória e estrutura frágil feita de ramos entrelaçados, cascas e lascas de árvores, recobertas de folhas ou palha, em forma semicircular, que servia de abrigo contra as intempéries. Como precisavam se deslocar constantemente, suas habitações precisavam ser de construção rápida ou de fácil transporte. As tendas, construções de forma cônica, com armação de varas amarradas na parte superior e cobertas de peles ou cascas de árvores, conforme a região em que são levantadas, também estão relacionadas com esses grupos. Atualmente, vêem-se tendas com tetos retangulares, mas isso não era comum nos primeiros tempos. 55


Os abrigos semi-subterrâneos datam do Paleolítico Superior. São fossos de aproximadamente meio metro de profundidade, retangulares ou circulares, e com um diâmetro que pode chegar a 20 metros, de onde são levantados postes que suportam a cobertura feita geralmente com ramos entrelaçados. Às vezes, esses abrigos apresentam uma estrutura de madeira e de ossos de baleias, com cobertura de couro ou fibras vegetais forradas com terra. As cabanas são habitações construídas em diversos formatos, tamanhos e materiais, que predominam entre os povos sedentários. Podem ser feitas de madeira, junco, argila, cortiça, com tetos planos, cônicos, oblongos, etc. Algumas são edificadas sobre estacas em zonas lacustres e recebem o nome de palafitas. Outras, com forma semi-esférica, construídas com blocos de gelo, são chamadas de iglus. O mobiliário das habitações varia conformo o uso a que se destinam, como dormitórios, casas de reuniões, oficinas, templos, etc. e o mesmo é válido quanto à sua disposição no terreno, podendo ter formação circular, semicircular, em forma de ferradura, retangular ou outras, geralmente com uma praça central. Assim, como mostra Childe, a vida sedentária deu oportunidade ao aperfeiçoamento das instalações residenciais e abriu caminho para a arquitetura (Childe, 1981: 116). Os mais antigos agricultores egípcios se contentaram com simples proteções contra o vento, feitas de junco revestido com barro e os proto-sumerianos moravam em casas semelhantes a túneis, de juncos em crescimento, ou sob esteiras penduradas nos juncos, mas dentro de pouco tempo apareceram habitações feitas de barro ou terra pisada. Antes do ano 3000 a.C. o tijolo foi inventado na Síria e na Mesopotâmia (ibid). Como a cerâmica, o tijolo deu liberdade ao homem para usar sem limites de forma ou tamanho a sua criatividade, inclusive em escala monumental. As primeiras construções em tijolos seguiram de perto as antigas estruturas. Ao copiar, com o novo material, os tetos em forma de túnel das cabanas de junco, os habitantes da Suméria ou Assíria descobrem o princípio do arco verdadeiro e aplicam suas complicadas leis de tensão e resistência, muito milênios antes de terem sido formalmente formuladas. Por outro lado, as edificações em grande escala, que se tornaram possíveis, deixaram de ser trabalho individual para se transformarem em produto coletivo de várias mãos. Quanto aos meios de transporte, entre as sociedades simples ou ágrafas, eles obedecem a duas categorias: terrestres e aquáticos. Não existem registros concretos que se refiram aos meios de transporte usados no Paleolítico. O primeiro vestígio aparece no Mesolítico, com um tipo de canoa escandinava e, mesmo 56


no Neolítico, as provas resumem-se a transportes aquáticos como canoas e pirogas. A Idade do Cobre acrescenta alguns transportes terrestres e barcos maiores ao conjunto (Marconi e Presotto, 1986, 182-184). A maneira mais simples de transporte tem como base a força dos braços, mãos, ombros, costas, cabeças e pernas do próprio homem, que carregava e arrastava seus bens quando necessitava deslocá-los. Depois foram usados animais domesticados para fazer essas tarefas. Essa forma de transporte propiciou o desenvolvimento de certos artefatos, como peças de vestuário para a proteção das pernas e pés: os sapatos de couro ou entrecascas, sem forma definida, amarrados aos tornozelos e as sandálias, cujas solas ofereciam conforto durante as caminhadas, as botas para as cavalgadas, as raquetas de neve, de forma ovalada para deslocamentos na neve e mesmo os esquis. Entre os veículos utilizados para o transporte, o trenó, originado de um tronco escavado, em forma de barco, prancha, ou outras, parece ter sido o primeiro deles, tendo sido registrado seu uso no Mesolítico Finlandês e também nas planícies do Oriente Próximo, por volta de 4000 a.C.. O uso do carro de duas e quatro rodas veio a seguir e se estendeu da Europa à China antes de 3000 a.C.. Existem outros tipos de transporte rudimentar, como o travois, encontrado em duas configurações: uma, na forma de duas varas montadas em V e presas de cada lado de um cão, com a carga amarrada sobre elas para ser puxada pelo animal; outra para ser puxada por cavalos, no mesmo formato, a exceção de algumas traves colocadas na parte traseira, juntamente com um suporte para amparar a carga (ibid). A invenção da roda, ocorrida na Mesopotâmia em período anterior a 3000 a.C., sem sombra de dúvida, foi o maior avanço para os transportes terrestres. Como forma de transporte aquático, o homem usou, primeiramente, troncos, cabaças e peles preparadas e infladas para flutuar sobre as águas, recursos esses que, ainda hoje, são utilizados por alguns povos. Depois vieram as embarcações propriamente ditas desde as mais simples e rústicas, como canoas, pirogas, balsas e jangadas, até sua evolução para as mais sofisticadas, principalmente transportes marítimos, que demandavam técnicas cada vez mais complicadas e conhecimentos sobre ventos, regime de marés, astronomia e o uso de instrumentos específicos. Os materiais utilizados para a sua confecção foram os mais variados, como madeira, bambu, junco e hastes de plantas, cascas de árvores, cortiça ou couro. O tamanho, a resistência, o formato e as técnicas de construção diferiam bastante conforme a região e o uso a que se destinavam. Os barcos a vela revolucionaram a forma de transporte aquático da mesma forma que a roda o fez em relação aos terrestres. 57


Os alimentos também fazem parte da cultura material de um povo, em suas duas espécies, ou seja, os de origem animal e os de origem vegetal. Cada povo encontra sua forma de alimentação no balanceamento entre um número básico deles. Uma alimentação restrita a somente uma espécie de alimentos é rara, mas alguns grupos e cultos proíbem a ingestão de alguns deles. Além de darem subsistência ao organismo, os alimentos podem assumir importância em outros aspectos da cultura, relacionando-se com a religião, a magia, a idade, o sexo e até mesmo com os vivos e os mortos, a política, a arte e o lazer. Muitas culturas colocam em posição de relevância os alimentos cerimoniais, oferecidos aos deuses, aos mortos e, em determinadas ocasiões, à crianças ou aos idosos, entre muitas outras práticas desse gênero. Na maioria dos grupos, o preparo dos alimentos é tarefa que incumbe às mulheres, embora em alguns casos, como por ocasião das caçadas, pecaria e deslocamentos, os homens possam assumir preferencialmente essas funções. O modo de preparo dos alimentos, os condimentos usados e a forma pela qual é servido, variam de uma cultura para outra. A ingestão de líquidos é fundamental para a vida humana e os diferentes povos fazem uso de várias bebidas, a começar pelo leite materno. Alem dele, costumam beber leite de diversos animais, como vacas, cabras, éguas e outros mamíferos, da mesma forma que água, chás, café, chocolate, sucos de frutas, entre outros. As bebidas podem ser, também, fermentadas e destiladas. Surgem, assim, as cervejas, feitas de cevada, trigo, milho, arroz e outros grãos, os vinhos, de uva, e licores resultantes de muitas frutas, além de outros álcoois. Da destilação, processo mais moderno de obter álcool, vêm o uísque, do malte, o rum, da cana-de-açúcar, o conhaque, da uva, a vodca, do centeio e da batata, a tequila, de uma espécie de cactos, a cachaça, da cana-de-açúcar, etc. A espécie humana faz também uso de estimulantes e narcóticos, entre os quais tem destaque o fumo, originário das Américas e amplamente difundido pelas demais regiões, tendo assumido, entre alguns povos, significação social e religiosa. Vários utensílios foram retirados da natureza pelas sociedades ágrafas ou simples para armazenar e servir seus alimentos, como cabaças, cocos, segmentos de bambu, cascas, conchas, chifres ou pedras. Entretanto, foi, também, confeccionada uma grande variedade de objetos com esse fim, em diferentes materiais. Os principais tipos de ferramentas simples são classificados em objetos de bater e cravar (martelo, malho e maça, flecha e propulsor); de cortar e partir (faca, machado, serra, enxó, acha, cunha, enxada); de esfregar (raspador, ralador, buril, cinzel, plaina, lima, grosa); de furar (faca, sovela, verruma); de prender (tenaz, 58


alicate, etc.) (Marconi; Presotto, 1986: 190). Cada ferramenta tem uma história nas diferentes regiões e entre populações diversas. São feitas de vários materiais, tamanhos, formatos e funções. A diferença entre armas e instrumentos úteis era quase insignificante nas sociedades primitivas. As primeiras armas defensivas eram porretes, machados e peças de arremesso bem simples. Depois foram surgindo armas mais eficazes, como as lanças e o arco e a flecha, que parece ter sido adotado em todas as populações do mundo. Para a proteção contra essas armas que podiam alcançar longas distâncias, escudos e armaduras foram sendo desenvolvidos como armas de defesa. Segundo as observações de Childe, desde a época em que os esqueletos do Homo Sapiens surgem no registro geológico, talvez há 25.000 anos, a evolução do corpo humano praticamente parou. Em contrapartida, seu progresso cultural estava começando. A diferença entre os homens das culturas aurignaciana e magdaleana e o homem de hoje são desprezíveis, ao passo que a diferença cultural é imensurável. Conclui o teórico que o progresso na cultura substituiu, realmente, novas evoluções orgânicas na família do homem (Childe, 1981: 48). Realmente, uma ferramenta bem acabada para conseguir alimento, uma arma eficaz para sua defesa, o aperfeiçoamento técnico, a acumulação de conhecimentos, a criatividade, podem ter garantido a existência humana na terra, substituindo possíveis adaptações físicas para tanto.

Indumentária, têxteis e objetos utilitários Embora os conhecimentos sobre a pré-história da espécie humana, apesar dos atuais avanços técnicos e científicos, sejam ainda de certa forma limitados, obrigando-nos a uma certa reserva quando se trata de retratar esse nebuloso período, admite-se que, por incontáveis séculos, o Homo caminhou pelas matas tropicais das planícies africanas seguindo em direção ao Norte no encalço dos rastros das grandes manadas de animais. Cruzou, então, pontes de terra que o levaram às margens do Mediterrâneo e ao Sul da França, atingindo, depois, a Europa Setentrional e Oriental, até parte da Ásia. Ali deixou as marcas de sua presença em obras pintadas, gravadas e esculpidas nos abrigos subterrâneos, ou grutas habitadas no fim do Paleolítico. A origem do vestuário parece estar ligada a essa importante época cultural e vale lembrar que, assim como o desenvolvimento das civilizações pré-históricas foi influenciado pelo clima e situação geográfica dos continentes, as roupas desses povos também sofreram variações em virtude desses fatores. 59


No início, o clima enfrentado pelo homem era constantemente tropical ou subtropical, comparável ao do continente africano nos dias atuais, onde proliferavam espécies animais como o elefante, o hipopótamo e o rinoceronte. Somente após a Era do Gelo as temperaturas do Hemisfério Norte sofreram sensível declínio, o que determinou mutações na fauna e na flora da região. Tudo isso, como é de se imaginar, teve influência sobre o vestuário dos povos primitivos. O modo de vida desses primeiros habitantes do nosso planeta também se modificou de acordo com as variações climáticas, já que nas regiões tropicais eles viviam sob as árvores de florestas ou em rudimentares abrigos nos campos, enquanto os sediados em regiões frias procuravam a proteção de grutas ou cavernas. O primeiro traje, provavelmente, foi semelhante a um poncho com orifícios cortados com o auxílio de pedras ou ossos. Em época posterior, devem ter sido acrescentadas peças laçadas com tendões, cerdas ou cabelos. Calcula-se que a agulha, instrumento rudimentar fabricado com ossos ou chifres, tenha surgido há quarenta mil anos (Kemper, 1979: 18). Cortar e costurar tornava a roupa mais eficiente, mas era um processo difícil e trabalhoso. Dessa forma, a vestimenta paleolítica confeccionada de peles com quatro membros, parecida com o traje dos esquimós, era reservada aos homens que necessitavam ir à caça, enquanto as mulheres, que ficavam nos abrigos com as crianças, cobriam-se com longos xales. Para fabricar as roupas, procuravam tornar o couro mais maleável com a fricção de óleos e a constante maceração, até que a descoberta do tanino, substância extraída de cascas de árvores, permitiu conseguir peles mais macias e, também, impermeáveis. Na Ásia Central, região onde se desenvolvia a atividade de pastoreio, era conhecido o feltro e, em áreas tropicais, usava-se a parte interna e macia da casca de certas árvores para fabricar uma espécie de sarong que era enrolado ao corpo. No final do período Paleolítico e início do Neolítico, começou-se a trançar cestos e fazer nós. O advento do tear permitiu a produção de tecidos que, pouco a pouco, com a adição ao instrumento de barras que moviam a urdidura em várias combinações, foram ficando mais elaborados, com a composição de diferentes padrões. O que teria levado esses primeiros habitantes de nosso planeta ao uso da roupa, é uma indagação constante no campo de investigação dos estudiosos do assunto. Psicólogos e antropólogos têm concluído que o vestir proporcionou a satisfação de instintos básicos, ou de específicos desejos e necessidades humanas. Onde existe o homem, existem formas de vestir ou valorizar o corpo. A roupa faz parte da cultura de qualquer povo, em todos os tempos. Várias teorias, historicamente, procuram explicar a origem e o desenvolvimento do vestuário, embora, individualmente, cada uma delas não seja conclusiva. No 60


entanto, existe praticamente uma concordância geral entre todos os que tratam do assunto, sobre o fato das roupas servirem a três finalidades principais: proteção, pudor e adorno. Costuma haver, porém, discordância a respeito de qual das motivações deva ter primazia e ser considerada como a mais premente. A primeira teoria que, enganosamente, parece ser a mais simples e prática, defende a hipótese de que as roupas surgiram da necessidade de proteção física contra as intempéries e o meio ambiente. No Paleolítico Superior a presença humana é comprovada, não só por manifestações artísticas em modelagem, pintura ou escultura, como por uma indústria mais aprimorada, tendo em vista os artefatos correspondentes ao período, incluindo agulhas e botões de osso, ou a já anteriormente existente raspadeira. Uma parte da aludida época foi extremamente fria, levando os defensores da Teoria da Proteção a concluir que o homem primitivo preocupou-se em se proteger contra o clima rigoroso ao qual estava exposto. Mamutes, bisontes, renas e cavalos selvagens constituíam caça abundante, como testemunham os registros artísticos deixados por esses homens e, logo, os primitivos caçadores aprenderam a utilizar as peles dos animais, além de folhas e cascas de árvores enroladas ao corpo, para proporcionar calor e isolamento. Cascas ou peles, envolvendo os pés, também podiam tornar o caminhar mais confortável e passaram a fazer parte de sua indumentária. O uso de conchas, penas ou outros objetos com nenhum potencial defensivo sobre o corpo, é explicado como fazendo parte da construção de uma armadura psicológica contra os maus espíritos, demônios e forças negativas da natureza que povoavam as mentes na época. Dessa forma, as tensões interiores de sua cultura passaram a ser expressas na arte ornamental e nas pinturas com que decoravam seus corpos. Alguns acreditam que essa finalidade mágica precedeu até o objetivo ornamental e, portanto, constitui o motivo real dos primórdios da roupa. Essa opinião corrobora o ponto de vista, difundido ultimamente entre os antropólogos, de que as formas mais primitivas da arte tinham finalidade utilitária ou mágica, mais do que puramente estética. Talvez esse modo de pensar possa vir a ser comprovado, já que não é desconhecida a existência de numerosos detalhes de vestuário, hoje puramente ornamentais, que já tiveram função utilitária no passado. Muitas roupas e acessórios foram criadas ao longo dos séculos com o objetivo de proteção, como armaduras, capas de chuva, máscaras, macacões para trabalhadores, trajes acolchoados para desportistas, capacetes e uma inumerável série de outros itens. Vestígios desses trajes que ainda persistem nos uniformes 61


militares, como elmos, esporas e espadas, guardam na atualidade tão somente uma função distintiva e ornamental. Outros tipos de vestuário destinam-se à proteção do ser humano contra acidentes em trabalhos e esportes perigosos, a exemplo de capacetes para equitação ou ciclismo, trajes de borracha usados em esportes aquáticos, armaduras de esgrima, lado a lado com os macacões de amianto de bombeiros, luvas e máscaras cirúrgicas, vestes providas de telas para apicultores, ou os trajes pressurizados dos astronautas, além de tantos outros que o engenho humano inventa ou aperfeiçoa, contra perigos e inconvenientes físicos. A mais óbvia forma de proteção proporcionada pelas roupas vem a ser aquela que elas oferecem contra o frio e, em climas rigorosos, com invernos cruéis, existe grande possibilidade de ser, mesmo, a única. Mas teria um fenômeno tão expressivo e importante uma origem simplesmente utilitária? O pudor é invocado como outra importante motivação para o surgimento das roupas. A vergonha é o conceito básico que estrutura essa teoria, apoiada em duas linhas de pensamento, a primeira defendendo a idéia de que a modéstia seria um sentimento inato nas pessoas e a segunda afirmando que os homens aprenderam a se envergonhar de comportamentos considerados inadequados e reprovados pela sociedade. Nenhuma evidência, pois, dá suporte à afirmação de que os humanos sejam instintivamente envergonhados do seu corpo. O pudor, no sentido de cobrir determinadas partes do corpo, varia grandemente, não só de uma sociedade para outra ou em diferentes épocas, mas também entre as várias camadas sociais ou, dentro de um mesmo grupo, em distintas ocasiões. Sendo mais um impulso negativo do que positivo e consistindo essencialmente em uma inibição de tendências primitivas de auto-exibição, parece ser algo secundário, que resulta de uma reação a uma inclinação primordial. As manifestações de pudor, tendo caráter muito flutuante e variável, possivelmente devem-se mais a uma questão de hábito ou convenção. Nas sociedades primitivas havia uma correspondência entre a hierarquia social e a quantidade de roupa e isso, segundo se afigura, perdurou até os nossos dias, tendo em vista o aparato das vestes usadas por monarcas e outros dignitários nas cerimônias oficiais. Estranhamente, no entanto, dentro do limite dos padrões de cada época, os trajes das elites sociais sempre foram mais ousados do que os da plebe do mesmo período. As roupas aparecem em maior número, são mais opulentas, fartas e ornamentadas, porém, os decotes femininos são mais atrevidos e a exposição do corpo mais acentuada, rivalizando-se apenas com a forma de vestir de mulheres de conduta reprovável. 62


As teorias da Proteção e do Pudor não conseguem explicar a preocupação com o embelezamento e o adorno do próprio corpo. Mais importante que essas motivações, a sedução figura com lugar de destaque na história dos trajes. Curiosamente foi o homem, antes da mulher, quem usou as roupas ou adornos mais bonitos e vistosos. A ele, a princípio, eram reservadas as mais belas peles, as mais valiosas plumas e demais troféus conquistados do mundo animal ou vegetal. Dessa forma procurava demonstrar sua superioridade de macho. Com o decorrer do tempo, também foi ele a exibir as mais caras jóias, os mais elegantes tecidos e até os mais refinados perfumes, reafirmando sua hierarquia sobre o sexo oposto, numa demonstração de seu poder, status ou riqueza. Às mulheres restava, como única arma, sua inerente sedução. Os que defendem a Teoria da Ornamentação, sublinham que essa inquietação parece ter sido sempre compulsiva à espécie humana, pois, mesmo antes de traduzir seus trajes por alguma forma de roupa, o homem já procurava fazer uso de decorações sobre o corpo, enaltecendo seu próprio conceito e imagem, possivelmente para atender aos apelos de outros dois princípios básicos à sua natureza: o da sedução e o da hierarquia. Os dados antropológicos demonstram principalmente o fato de que entre as raças mais primitivas existem povos sem roupa, mas não sem enfeites. A exigência em adornar-se sempre fez parte da vida do homem. Muitas características decorativas das roupas foram ligadas originalmente ao uso de troféus. O caçador ou o guerreiro, após sua façanha, recolhia uma parte da presa que lhe parecesse útil ou decorativa, para guardar como recordação perene de sua vitória. Assim chifres, peles, escalpelos, colares de dentes, braceletes feitos dos ossos do maxilar, mãos ou falos decepados dos adversários abatidos, começaram a fazer parte da indumentária desses indivíduos. O simbolismo fálico representou papel importante mostrando o poder do vencedor sobre o inimigo através de sua castração. O uso desses tipos de troféus incutia nos oponentes justificado terror e talvez fosse esse o seu maior objetivo, do mesmo modo que objetivavam assustar, as pinturas de guerra e as máscaras aterradoras. A maior parte dos simpatizantes da Teoria do Adorno ou Ornamentação, encontra explicação para o surgimento das roupas no desejo de realçar os atrativos sexuais do indivíduo, atraindo a atenção para seus órgãos reprodutores. Realmente, entre os povos primitivos, adornos e formas rudimentares de vestimentas aparecem de preferência nas regiões genitais e, por suas diminutas dimensões, seu emprego não poderia ser explicado em razão do pudor ou da proteção. Também entre os civilizados, os motivos para o uso do vestuário ligados à sexualidade são por demais óbvios para serem ignorados. Chamar a 63


atenção sobre si e seus predicados, satisfazendo motivações conscientes ou não do próprio ego, parece ter sido uma poderosa motivação para o uso das roupas. Detalhes do vestuário freqüentemente têm a função de demonstrar poder e ascendência dentro de um grupo social, como ocorre nos uniformes militares onde os galões, estrelas, listras e outros distintivos multiplicam-se em função das patentes alcançadas. Até mesmo entre os selvagens pode se verificar a importância dada a essa demonstração de superioridade de classe, ficando reservados os grandes e vistosos cocares e os adornos mais valiosos e raros apenas para os chefes, enquanto os demais guerreiros da tribo contentam-se com uma ou duas penas em suas cabeças e outros modestos adereços. No que refere-se à ornamentação do corpo podemos citar o atavio corporal, que consiste em moldar ou manipular o próprio corpo através de tatuagens, cicatrizações, mutilações e outros métodos que não implicam em adornos externos ou na adição de roupas e outros objetos ornamentais ao corpo. Como já foi dito, os povos primitivos empregaram largamente esses métodos de decoração do próprio físico.. Quanto à pintura, ela é largamente empregada em diferentes grupos sociais, desde a pintura ritual, até formas de decoração corporal contemporâneas. As deformações também não são privativas das civilizações incultas, já que a moldagem artificial de cinturas e pés foram largamente utilizadas, em diversos períodos da história, entre povos ditos civilizados que, por outro lado, não se limitaram a essas duas maneiras de alterar as formas naturais de seus corpos, recorrendo modernamente a operações plásticas, colocação de próteses de compostos industrializados de silicone, implantes de cabelos e quaisquer outras formas de manipulação do próprio físico, em nome da beleza corporal. De certa maneira, pudor e enfeite são motivações opostas, pois enquanto a primeira conduz a uma atitude de recato, preocupada em disfarçar, os detalhes corporais, evitando assim focar a atenção sobre o indivíduo, a segunda procura colocar em óbvia evidência os predicados naturais do corpo, realçando-os e valorizando a aparência física, de modo a atrair olhares admiradores, com clara exacerbação do amor próprio. Procurando explicar a origem das roupas, cada teoria encontra fartas justificativas a seu favor, porém nenhuma delas é completa e irrefutável. Isso acontece, certamente, porque a necessidade do vestuário não pode ser encarada sob uma única dimensão, uma vez que surge da harmonização entre várias motivações. Elaborou-se, assim, a Teoria das Necessidades Combinadas, que foi abraçada por diversos partidários. 64


A primeira dessas necessidades seria, naturalmente, a de abrigo e segurança, o que teria levado o homem à busca de roupas protetoras. Mas, concomitantemente, a procriação e perpetuação da espécie era vital, surgindo a idéia da incorporação ao vestuário de formas e ornatos que tornassem os trajes mais atraentes. Depois dessas necessidades básicas, apareceriam outras, como o desejo de pertencer a um grupo e de ser socialmente aceito e, nesse momento, o temor de não ter um comportamento adequado na conduta, no falar ou no vestir, levariam o ser humano ao pudor e modéstia. Após esse estágio de integração social, porém, viria o desejo de sobressair-se e o homem passaria, então, a procurar personalizar sua aparência por meio de adornos que enaltecessem sua auto-estima, na busca de prestígio pessoal, buscando atingir a maximização de sua habilidade de criação e auto expressão. Ao expandirmos essa teoria, incluindo sensações, crenças, atitudes e costumes das pessoas entre as razões para o uso das roupas, podemos concluir que estas podem traduzir tudo o que o indivíduo possui de inerente ou adquirido na formação de sua personalidade, vindo a tornar-se uma verdadeira extensão daquilo que ele é ou pensa sobre si mesmo. O homem sempre buscou dotar de algum sentido os objetos que o rodeiam. Não deixaria, portanto, de emprestar à sua forma de vestir uma relevante significância. A indumentária é, portanto, um importante registro cultural que se aprofunda muito mais do que possamos pensar à primeira vista. Diferentes matérias-primas foram utilizadas na confecção de roupas ao longo do tempo: peles, folhas, colmos, cascas, feltro ou tecido. Elas podem ser cortadas e costuradas para se amoldarem ao corpo, ou soltas como os ponchos, as togas e os mantos. Mas, em geral, as vestimentas requerem material macio e maleável para a sua confecção. De todos eles, o tecido necessita de um processo de preparação mais longo, que vai desde a obtenção das fibras, sua fiação, tingimento e tecelagem, até a confecção da roupa propriamente dita. Os tecidos têm grande importância no equipamento cultural dos povos. Segundo Childe, entre os restos das mais antigas aldeias neolíticas do Egito e Ásia Menor, foram encontrados os primeiros indícios de uma indústria têxtil (Childe, 1981: 101). Roupas manufaturadas, tecidos com linha e mais tarde lã, começam

a concorrer com roupas feitas de peles ou saias de folhas. Foi necessário todo um complexo de descobertas e invenções, para ser encontrado um material adequado, uma substância fibrosa que permitisse a confecção de fios longos. Aldeões neolíticos já usavam o linho, que deve ter sido selecionado entre outras plantas. Outros materiais devem ter sido testados e o algodão era certamente 65


plantado no vale do Indo pouco depois de 3000 a.C.. A lã era usada na Mesopotâmia aproximadamente na mesma época (ibid). Entre as invenções necessárias merece destaque o método de fiar. Pequenos discos de pedra ou cerâmica que serviam para dar peso à extremidade de um fuso, assim como pequenos volantes, são praticamente as únicas provas palpáveis da existência de uma indústria têxtil em época tão remota. Dos implementos de madeira usados na confecção dos tecidos o mais essencial é o tear, que remonta à época do Neolítico. É uma máquina bastante complicada, cujo uso também não é simples. A invenção do tear foi um dos grandes triunfos da engenhosidade humana (ibid: 102). Todas as indústrias anteriores eram artesanatos domésticos. Outro importante item do vestuário é o calçado, embora boa parte da humanidade não se sirva dele. Além disso, os adornos constituem um aspecto presente em todas as culturas. Podem ser usados na cabeça, no tronco e nos membros, com vários significados: podem indicar estado civil, status social, idade, ocupação ou pertencimento a determinados grupos. Alguns deles são usados apenas como enfeite e a outros é atribuído um caráter mágico. Podem existir culturas que dispensam o uso de roupas ou calçados, mas não é conhecida uma que não faça uso de qualquer espécie de adorno. O homem não se limitou a tecer suas roupas, mas procurou cercar-se de objetos utilitários, construídos com as técnicas das quais podia lançar mão. Os mais antigos trabalhos de cerâmica e cestaria são datados do Neolítico. No trabalho de cestaria, no qual se incluem não só os cestos, mas também as esteiras, os cercados e os trançados decorativos, são empregados diversos materiais, conforme a região de ocorrência, como o junco, o vime, o bambu, a taquara, folhas de palmeiras, palha, cipós, raízes, etc. Trabalho manual, praticamente sem a necessidade de instrumentos, além da habilidade manual, conta com três técnicas básicas: tecido, torcedura e entrecruzamento em espiral. Essas técnicas estão subdivididas em muitas outras. Geralmente é um trabalho feminino. Os cestos podem ter diferentes formatos e tamanhos. Há os redondos, os ovalados, os quadrados, os retangulares, os esféricos, os afunilados, com ou sem alças e tampas, podendo ser simples ou decorados com belos desenhos em material contrastante ou rendilhados. Quando impermeabilizada, pode conter líquidos. As esteiras têm, também, importante papel entre as culturas. A cerâmica, por sua vez, parece ter sido um substituto da cestaria e dos recipientes de pedra. O trabalho de cerâmica exige determinados materiais, basicamente a argila contendo minerais, como ferro, sílica, óxido de alumínio e ferro, e técnicas complexas, com ou sem o uso do torno. É praticamente conhecido em 66


todo o mundo a partir do Neolítico, e sua utilização é bastante diversificada entre as populações, tanto na cerâmica utilitária quanto na decorativa. Não existe comprovação de que o trabalho inicial de ceramista tenha sido prioritariamente feminino ou masculino. Os potes e vasos de cerâmica assumem os mais diversos tamanhos, formatos e decorações e o acabamento é feito com técnicas de polimento, esfumaçamento, pintura, vitrificação e outras. Como ensina Childe, o caráter construtivo da arte da cerâmica reagiu sobre o pensamento humano. Fazer um pote era um exemplo supremo da criação pelo homem (Childe, 1981: 100). Como vimos, os povos primitivos, no início, usavam ferramentas simples, conseguidas na natureza e, com pequenas adaptações, elas serviam para cortar, raspar, bater. Conchas, pedras, dentes e ossos de animais serviam aos mais diferentes fins. Depois, os nossos antepassados humanos passaram a trabalhar a pedra, a madeira e os ossos e, em um momento seguinte, passaram dessas incipientes ferramentas para os instrumentos mais bem acabados, polidos e eficientes do Neolítico. Seguiram-se as produções de instrumentos mais elaborados, como os arados e teares. Marconi e Presotto (1986, p. 190) afirmam que o aperfeiçoamento das máquinas de madeira, o emprego de metais, os métodos de precisão das usinas constituíram a base da indústria moderna.

Arte: significados e funções A definição de arte não é simples e o reconhecimento de uma produção artística não deve ficar restrito às obras que povoam os espaços dos museus. Conforme alerta Gombrich, nada existe no mundo que possa ser realmente chamado de Arte, com A maiúsculo, existindo apenas artistas (Gombrich, 1985:.4). Completa essa afirmação Read, ao declarar não ser possível esquecer que um artista é não só um homem que pinta quadros mas igualmente um homem que faz música, poesia, ou móveis - até mesmo sapatos e vestidos (Read, 1958: 29). Não há, pois, prejuízo algum em se classificar como arte um universo ampliado de atividades, desde que se conserve em mente que tal palavra pode significar coisas muito diversas, em tempos e lugares diferentes (Gombrich, 1985: 4). Raramente foi possível aos estudiosos do assunto apresentar uma sistematização satisfatória sobre as intrincadas implicações do problema acima descrito. Isso porque a arte está presente em tudo o que é criado com o objetivo de expressar emoções e de obter respostas dos sentidos. Todas as vertentes da arte apresentam, como elemento comum, a forma, ou seja, uma configuração 67


particular observada e construída, seja em uma escultura, em uma pintura, em um edifício, em um objeto ou, ainda, em uma produção literária ou musical (Mendonça, 2006). Para Faure (1990, p. 29), o homem copiou a forma de suas ferramentas de bicos, dentes, garras de animais e emprestou a forma de frutos para fazer os seus primeiros vasos. Suas agulhas, no princípio, foram espinhas. Das lâminas, articulações e encaixes dos ossos teve idéia das construções, junturas e alavancas de seus objetos. A arma, a ferramenta, o vaso e, nos climas rudes, uma grosseira roupa de pele, são as primeiras formas que nossos ancestrais moldam. A arte é, em primeiro lugar, uma ferramenta de utilidade imediata e não pode ser ainda um instrumento de generalização filosófica. À ferramenta e à arma, o silex fragmentado que usa para fins utilitários ou defesa, o homem acrescenta o ornamento, que seduz ou atemoriza: plumas de aves nos cabelos, colares de garras ou dentes, cabos de ferramentas entalhados, tatuagens, cores vivas enfeitando a sua pele. Os grupos de humanos mais antigos habitavam as grutas da Dordogne, mas proliferaram colônias ao longo das margens de rios como o Lot, o Garonne, o Arège, até as duas vertentes dos Pirineus e das Cévennes. Os bosques estavam repletos de cavalos, bois, bisões, cabras monteses e auroques. Nas orlas das planícies viviam renas, mamutes, rinocerontes, hipopótamos e leões. A aparência do homem era quase igual à de hoje, as pernas eretas, os braços já mais curtos, a testa perpendicular, o queixo retraído, o crânio volumoso e redondo. Essa harmonia que começava a reinar à sua volta, iria introduzi-lo, pelo espírito, num mundo imaginário que se tornaria, pouco a pouco, sua verdadeira realidade e sua razão de agir (F AU RE , p. 1990, p.33). A transformação das concepções artísticas do homem é profundamente obscura. O Período Paleolítico terminou com a idade quaternária, o que corresponde a pelo menos 12.000 anos de recuo na História. Pode-se dizer, porém, que a arte, nessa época tão distante, já tinha atingido o apogeu de sua curva. As transformações culturais são passos vacilantes. O grande número de machadinhas encontrado nas cavernas e leitos dos rios, os muitos desenhos gravados em ossos e em chifres de renas, os cabos esculpidos, as pinturas nas paredes das grutas, representavam, evidentemente, a produção de uma longuíssima série de séculos. A arte desses povos desenvolveu-se com uma lógica e inteligência crescentes, já que as variações das imagens encontradas não podem ser explicadas unicamente por diferenças de temperamentos individuais. O fato é que o artista paleolítico pertencia a uma civilização já muito antiga e que 68


procurava refletir em seu espírito, interpretando os aspectos do meio em que estava destinada a viver, a própria lei desse meio (F AU RE , 1990, p. 33). Como observa Childe, os grupos do Paleolítico Superior eram melhor equipados para enfrentar o ambiente do que quaisquer grupos anteriores: Aprenderam a fazer várias ferramentas adaptadas a usos particulares; chegaram mesmo, a idealizar ferramentas para fazer ferramentas. Trabalham o osso e o marfim com a mesma habilidade com que se ocupam da pederneira; inventaram recursos mecânicos simples, como o arco e o lançador de flechas, para complementar a força muscular humana no lançamento de armas. E essas ferramentas novas indicam não só mais habilidade técnica como também maior acumulação de conhecimentos e aplicações mais amplas da ciência (Childe, 1981: 68-69)

O aspecto mais surpreendente nas culturas do Paleolítico, entretanto, é atividade artística de seus caçadores, representada pelas estatuetas entalhadas na pedra e no marfim, figuras modeladas em argila, decoração de suas armas com gravações e desenhos, baixos-relevos e pinturas que executaram nas paredes e tetos das cavernas que habitavam. Críticos de arte e artistas da nossa época admiram essas obras, não como curiosidade, mas como obras-primas, por seu elevado mérito artístico. As representações mais antigas são perfis desenhados com os dedos no barro ou esboçados a carvão, sem qualquer preocupação com a perspectiva ou o detalhamento da figura. No magdaleano o artista pré-histórico já faz uso do sombreado e consegue dar alguma noção de profundidade e perspectiva. Hoje as técnicas de representação nas superfícies bidimensionais, para dar uma ilusão de profundidade ao desenho, são repassadas por professores aos seus alunos. Mas aqueles nossos ancestrais tiveram que descobrir por conta própria essas técnicas e, a partir daí, repassa-las por tradição. Essas representações não parecem ter sido resultado de um mero impulso artístico. Elas existem em recessos profundos de cavernas onde não penetra a luz. Certamente os grupos não viviam nesses lugares de difícil acesso. Alem disso, pela localização das pinturas e relevos, é possível depreender que, muitas vezes, o artista tinha que ficar em posições incômodas para executá-las, em locais apertados e sufocantes, com a iluminação artificial de rudimentares tochas. Os desenhos são muito realísticos, representando os animais que caçavam. Isso mostra que a arte da caverna tinha um objetivo. 69


Na visão de Childe, A produção artística é, no final das contas, um ato de criação. O artista risca a parede nua e nela surge um bisão onde antes nada havia! Para a lógica das mentes pré-científicas, tal criação devia ter uma contrapartida no mundo exterior, que podia ser tocada e vista. Tão certamente como o artista retratava o bisão na caverna sombria, assim também deveria haver um bisão vivo nas estepes, que podia ser abatido e comido. Para garantir o êxito, o artista ocasionalmente (mas raramente) desenhava o bisão atravessado por uma lança, tal como desejava vê-lo (Childe, 1981: 68-69)

Ao que parece, a arte dessas populações tinha, portanto, finalidade prática. Era um rito mágico visando a abundância da caça de que a tribo necessitava para a sua alimentação. De uma forma ou de outra, os artistas devem ter sido especialistas. Existem, mesmo, alguns seixos desenhados, com correções sobre os esboços, que parecem ter sido feitas pela mão do mestre. Demonstraria esse cuidado que os artistas-mágicos eram treinados para sua tarefa? Outros produtos da arte paleolítica também parecem ter tido cunho mágico, como as pequenas estatuetas femininas feitas em pedra ou marfim, com corpos muito gordos e características sexuais em grande evidência. O que seria mais importante para a sobrevivência da espécie e sua fixação no planeta do que a garantia de descendência, dependente da fertilidade da mulher? Sob qualquer forma que assuma, a arte do Paleolítico é importante por testemunhar o grau de observação que esses povos tinham do mundo que os cercava. Sua arte e seu repertório de ferramentas progrediram, desde sua origem na indústria mais humilde até os emocionantes afrescos de La Vézère e Altamira, indo da imitação ingênua do motivo até a sua interpretação convencional. Analisa Faure: Primeiro é a escultura, o objeto representado de todos os seus perfis, tendo como que uma segunda existência real; depois o baixo-relevo, que perde consistência e se retrai até se tornar gravura; enfim, a grande convenção pictórica, o objeto projetado numa parede (Faure, 1990: 34).

Na visão do autor, a arte do caçador de renas não é a arte impossível da infância da humanidade, mas a arte necessária da juventude do homem. A intuição

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sintética dessa arte converge para as generalizações dos grandes gênios nas épocas mais civilizadas (Faure, 1990: 38 ). Onde mais poderia obter os elementos dessa primeira síntese senão em sua própria vida? Sua vida é a caça e a pesca e ele as caracteriza através de toda a sua arte, na escultura, no baixo-relevo, na gravura, no afresco: por toda parte, animais selvagens, peixes, mamutes com as quatro patas unidas, renas, cabritos, cabeças esfoladas ou vivas. Às vezes, a forma da mulher, da fêmea com ancas amplas, cujo ventre avolumado lhe garantiria a descendência. O Neolítico (Idade da Pedra Polida) estende-se de 10.000 a 6.000 a.C., no Norte da África, na Europa, na Rússia Setentrional, etc. Nesse período o homem parece ter mais consciência de si, mas continua inseguro ante a natureza. A arte caminha para o figurativo estilizado, onde o homem é retratado de forma esquemática, isolado ou em grupos, muitas vezes armado. As representações são possivelmente cenas rituais e as figuras humanas estão, às vezes, superpostas ou entrelaçadas. Surgem perfis de homens em movimento, trabalhando ou viajando em canoas, enfim, o registro do seu dia-a-dia. A partir de 4.000 a.C. é de se notar, na confecção de cerâmica pintada ou gravada com motivos geométricos rudimentares, a ocorrência de um elemento de grande importância para os povos sedentários que, embora provavelmente feita com fins utilitários, não deixa de ser, também, uma forma de expressão artística. Quanto às manifestações arquitetônicas, as primeiras registradas na Europa surgem entre o terceiro e segundo milênio a.C. A arquitetura megalítica (pedra grande) aparece em várias partes da Terra, como Alemanha, Itália, Escandinávia, com destaque nas regiões da França e Inglaterra, e parece estar associada ao culto dos mortos. São blocos de pedra erguidos verticalmente, podendo chegar, cada um deles até a 25 m. de altura. Suas principais formas são o menir, blocos verticais isolados, o dólmen, conjunto de pedras encimadas por pedras horizontais, com o aspecto de portal ou mesa, e o cromlech, cujas pedras são colocadas em círculo, sendo o mais notável o de Stonehenge, no sul da Inglaterra. Não se sabe exatamente quais as finalidades dessas construções e não existe nenhuma hipótese comprovada sobre a maneira como foram erigidas, pois suas grandes dimensões e volume exigiriam soluções acima das possibilidades das populações que viveram no período. Faure (1990) registra que com as últimas ereções megalíticas termina a pré-história no mundo ocidental. Dir-se-ia que o conhecimento e até mesmo o desenvolvimento da aventura humana estão vinculados à existência das obras de arte.

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Considerações finais e Referências bibliográficas

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Considerações finais Estudar o homem e sua cultura é uma tarefa cuja amplidão não pode ser pedida de vista. É praticamente impossível fugir das tensões que resultam da oposição entre a universalidade e as diferenças, o nosso olhar face o olhar do outro, o simesmo e a alteridade. Nessa contraposição já se delineia um problema, pois o si-mesmo pode significar a cultura européia (entendida em sentido amplo, com a norte-americana incluída) e a alteridade pode ser entendida como a totalidade dos outros povos, principalmente aqueles que se acham fora da corrente histórica. Uma segunda questão que se impõe, diz respeito ao fato de serem tantos os povos a serem estudados que foi necessário aos antropólogos limitar esse campo. Concentrou-se, então, no estudo das populações ágrafas como objetos especiais de investigação. Hoje, a suposição de que estudando essas populações seria possível reconstituir a história de nosso próprio desenvolvimento, não se sustenta. O homem ágrafo não é antepassado do homem contemporâneo. Ele tem seu próprio lugar na História, em paralelo aos povos que desenvolveram a escrita e a tecnologia industrial. Seu caminho foi diferente, mas não se situa em um nível inferior ao dos demais. De qualquer modo, a conclusão a que se chega é a de que seria impossível observar a diversidade das culturas sem estar atento a um ritmo orquestrado em dois tempos: o primeiro representado pela aprendizagem por meio de um convívio assíduo e uma verdadeira impregnação do objeto de estudo, e o segundo por um distanciamento capaz de proporcionar a inteligibilidade de lógicas que poderiam escapar aos atores sociais envolvidos. Como alerta Laplantine, o risco do primeiro momento (habitualmente designado pela expressão “compreensão por dentro”) seria, ao familiarizar-se com o que de início parecia estranho, surgir a tendência a supervalorizar o discurso do outro, isto é, abandonar um modelo de pensamento por outro. O risco inverso pode surgir no segundo momento (a “compreensão de fora”). Quando o discurso sobre o outro tende a dominar o discurso do outro, degenera-se em um discurso à revelia do outro (Laplantine, 2007: 184-185). Mostra muito bem o autor que, embora a profissão de etnólogo exija que se comece qualquer pesquisa pela aprendizagem da modéstia, por uma ruptura ou até por uma conversão cultural, deixando-se ensinar e aculturar docilmente, as produções eruditas desses profissionais terminam quase sempre analisando os outros grupos conforme a inteligibilidade que organiza a sua própria sociedade. 75


Assim, Laplantime (2007, p. 186), ensina: Fazer antropologia é segurar as duas extremidades da cadeia e afirmar com a mesma força: Existe, como escreve Mauss, uma “unidade do gêneto humano”; Tal costume, tal instituição, tal comportamento, estranhos à minha sociedade, são realmente diferentes (ibid: 186)

São as diferentes combinações entre uma compreensão “por dentro” e uma compreensão “por fora”, entre a alteridade e a identidade, a diferença e a unidade, a subjetividade e a objetividade que comandam o pluralismo antropológico.

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