MINHA CABECA, chriNOSSAstinNATUREZA a machado
MINHA CABECA, chriNOSSAstinNATUREZA a machado
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joana darc lima
minha cabeca, nossa natureza
Transgredir, porém, os meus próprios limites me fascinou de repente. E foi quando pensei em escrever sobre a realidade, já que esta me ultrapassa. Qualquer que seja o que quer dizer realidade.
clarice lispector, a hora da estrela, p. 17
Iniciar esta breve apresentação da exposição Minha Cabeça, Nossa Natureza, com esta epígrafe, visa estabelecer pontes entre a atitude transgressora da escritora e da artista Christina Machado. Não qualquer transgressão, como aponta Clarice Lispector, mas a que a fascinou de repente e a fez transgredir seus próprios limites. É isso que faz Christina Machado todo tempo em sua vida-obra. Ambas, escritora e artista plástica, trazem em suas obras a relação com a matéria do humano, com as fragilidades e ressonâncias das coisas de dentro e de fora. Talvez o real que nos escapa aos sentidos pertença ao mundo da criação, ficcional, portanto da arte. Christina Machado tem como foco de sua produção a “natureza humana”. Ao longo de sua trajetória de trabalho, a artista parte de sua intimidade — pele, corpo, vivências e experiências — para o outro. Nesse contexto é que chega ao Hospital Ulysses Pernambucano (Tamarineira), através de um convite da Semana de Artes Plásticas do Recife – SPA das Artes, em 2005; desde então, começa um enamoramento por meio de inúmeras vivências com pessoas com sofrimento psíquico dessa unidade institucional. Nesse processo tem como aliada a argila, a qual pesquisa há anos.
pp. 2 e 3
Meus Eus Técnica mista sobre papel, 2012
Cama Sem Pé Nem Cabeça Objeto, 2005
Ao topar o desafio de trabalhar com a sucata hospitalar na Tamarineira, a artista pesquisa, mexe, remexe e encontra objetos íntimos — restos de camas hospitalares. Constrói, então, um objeto intitulado Cama Sem Pé Nem Cabeça e disponibiliza o trabalho em uma intervenção com os usuários do Centro de Atenção Psicossocial – Caps. Essa ação consistiu no convite aos pacientes da Tamarineira para que eles inserissem um “coração” (da série Artérias) nos transeuntes da cidade, uma inversão de papéis, em que o “paciente” mobiliza um cidadão comum para nele introduzir um “coração”, com todo o significado que ele carrega. Esse gesto poético — simples — de inscrever, marcar, tatuar
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nos remete ao ato primeiro da cultura em que o homem se percebe como ser cultural. A história do interesse humano de reproduzir e representar sua própria imagem e aquelas que, de alguma forma, lhe são significativas remonta à pré-história. Ao decalcar sua própria mão na pedra, o homem estava também marcando ali a sua presença, embora já não mais presente, como num ato indiciário, o mesmo ato que caracteriza a fotografia, da qual a artista lança mão como materialidade das ações e performances realizadas no Ateliê Residência, na Tamarineira.
Artérias Sem Pé Nem Cabeça Vídeo do registro poético da ação, 2010 Imagens de Francisco Baccaro e edição de Christina Machado
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Em 2007, inicia dois projetos importantes no processo de envolvimento do outro em seus trabalhos. O Pé, Mão, Sensação, quando propõe uma escuta do outro ao solicitar ao público participante que produza partes do corpo com o barro; e o Artérias, ação performática, que, com o toque, um gesto, introduz simbolicamente a imagem de um “coração” no corpo das pessoas (participantes da ação) e no tecido nada liso da cidade. Esses dois trabalhos a fizeram chegar perto do público, interagindo e convidando-o a participar da construção do seu trabalho. Inicia-se uma experimentação sensorial e participativa, quando o público deixa de ser espectador e passa a participante da obra. Em 2009, retorna à Tamarineira com a proposta de manter semanalmente um Ateliê Residência. Inicia um novo diálogo com os pacientes dessa instituição. Um espaço aberto a experiências estéticas, sensoriais e afetivas. Usei a natureza da minha poética mais a intimidade e o conhecimento que tenho com a argila para interagir com esse público tão especial e ser um instrumento de realização desses mundos materializados através da cerâmica.
christina machado, 2011
De lá para cá, a artista construiu, para além das relações afetivas e de amizade, um trabalho singular com os usuários dessa instituição. Sem regras nem obrigatoriedades de frequência, os participantes chegam para vivenciar uma experiência estética usando o barro como suporte, matéria e materialização de suas expressões. A artista se coloca como uma mediadora, uma propositora das ações, uns permanecem mais tempo, outros menos, há entregas e resistências; por fim, sobram os objetos, os gestos, as marcas deixadas, como vestígios da passagem humana por aquele lugar. De 2009 até 2012, a artista guardou, armazenou, mais de 1.500 objetos feitos em argila pelos frequentadores do Ateliê Aberto. Ao tomar a matéria e sua materialização, as experiências, os gestos, as histórias e as memórias como repertório para a exposição Minha Cabeça, Nossa Natureza, a artista Christina Machado construiu uma obra aberta, um recorte ficcional dessas suas experiências e dos inúmeros rastros e vestígios do outro, um manto tecido à mão, composto por experiências e entregas, junções e diálogos que produziram narrativas escritas de maneiras muito diferenciadas, costuradas e cerzidas pelas mãos de Christina Machado. Nessa exposição, acolhida na Galeria Janete Costa, o público pôde ter contato com as seguintes séries: Da Matéria à Materialização I e II Da Matéria à Materialização I resultou dos muitos encontros com os usuários realizados no Ateliê Residência na Tamarineira: Seu Luiz, Rilda, Paulinho, Cristina,Milena, Luzia, Givaldo, Helena, Tacila, Genilda, Pacheco, Angélica, Chico, Ana, Francisco, Eliane, Gil, Anselmo, Denise, Ronaldo, entre tantos presentes nessa instalação. A vivência foi tecida por um fio de liberdade, do entrar e sair da sala sem a obrigatoriedade e o compromisso dos usuários com horário, frequência, continuidade. Para participar dos encontros,
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Artérias na Cidade 2012 Jardim do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano – Tamarineira Fotografia de Francisco Baccaro
bastava chegar para ser acolhido com afetividade e aceitar o convite para fazer algo com o barro. O desejo de estar no espaço e usar a argila bastavam e se configuravam como detonador da ação. A oferta era a argila, depois o diálogo. Tudo acontecia com base na disposição de cada um. “Experiência de vida para todos nós que estávamos ali, enriquecimento no meu trabalho e um momento de alívio para eles, esse é o meu sentimento” (Christina Machado). As várias formas de expressões, sentimentos, o toque na matéria e uma realidade sem fronteiras levaram a artista a fazer uma instalação rica em expressões e sentimentos, histórias de vida e intencionalidades. A instalação Da Matéria à Materialização I foi construída pela artista a partir dos procedimentos de guarda, armazenamento dos objetos feitos pelos integrantes da vivência, em seguida, a escolha, a seleção e o ordenamento desses pelo viés biográfico. Depois, os objetos foram organizados na parede da Galeria, compondo uma cartografia afetiva de homens e mulheres que, juntos ou isoladamente, partilharam dessa experiência coletiva. Um diálogo desencadeado entre as experiências dos pacientes materializadas em objetos feitos em argila e a intervenção cuidadosa, respeitosa e poética da artista Christina Machado. Uma montagem que cria narrativas e texturas visuais, como um livro aberto, um manto de imagens simbólicas que significam muitas histórias e dramas de pessoas como todos nós. Da Matéria à Materialização II se valeu igualmente dos objetos realizados pelos usuários nos encontros semanais no Ateliê Residência. Contudo, nesse caso, Christina Machado, com rigor estético e afetivo, selecionou pequenos objetos, independentemente de autoria, e os incrustou em uma placa de barro, reparando-os em alguns casos quando necessário, sinalizando ausências e inserindo pigmentação vitrificada.
Todas as peças foram queimadas, e os resultados, por vezes inesperados, compõem um grande painel visual, uma espécie de monumento vivo. Minha Cabeça, Nossa Natureza Um convite a fazer minha cabeça é o mote deste trabalho.
christina machado, 2009
O corpo da artista havia sido moldado em fôrma de gesso no ano de 2004 para a realização do videoarte Tempo de Carne e Osso. De maneira emblemática, a artista também desconstrói, nessa mesma ação, o molde de seu corpo nas águas do mar, numa ação sensível e generosa, devolvendo para as águas sua imagem. Anos depois, em 2009, pelo Spa das Artes, no Hospital da Tamarineira, disponibiliza para intervenção e diálogo com o público a reprodução de 60 cabeças de argila, da mesma fôrma anteriormente moldada em 2004. Trabalharam nelas pacientes do Hospital Ulysses Pernambucano, do Caps, alunos e amigos artistas, a exemplo de Dantas Suassuna, Gil Vicente, Fernando Peres, Frederico Fonseca, José Paulo, Lula Wanderley, Márcio Almeida, Renato Vale, Rinaldo todos no mesmo espaço, atuando, por vezes simultaneamente, no período de uma semana. A artista, que vivenciava a ação — ao mesmo tempo em que recolhia em memória, em imagem fotográfica e em vídeo as muitas maneiras de intervenções, gestualidades e apropriações que fizeram de sua imagem —, atualizava muitas questões sobre a relação entre arte e participação que podem ser vistas nessa instalação. A série de pinturas Meus Eus — pintura sobre papel, técnica mista —, de 2012, foi realizada nos últimos meses de produção que antecederam à mostra Minha Cabeça, Nossa Natureza. Sozinha em seu Ateliê Águas Belas (Recife), a artista retoma sua imagem não mais representada em barro, mas uma imagem fotográfica impressa sobre papel, e agora, diferentemente da oferta de sua cabeça ao público, a artista, em seu isolamento, intervém, por meio do procedimento de apagar e simultaneamente sublinhar traços que a definem no tempo de sua existência. A proximidade com sua imagem e o exercício de reconhecimento e estranhamento de si e do outro a fizeram potencializar o feminino e o masculino presentes em sua natureza e reféns dos pressupostos sociais, históricos, éticos e estéticos que acompanham essa temática. A série Estância, Sua Casa — 40 máscaras em argila —, de 2011, foi realizada na Praça Cara Nova, em Paracambi (RJ), durante o Projeto Cinema na Praça.
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A matéria-prima da arte de Chris Machado é seu próprio rosto e a maleabilidade do barro. Chris entrega ao participante de sua proposta um modelo de barro de seu próprio rosto para ser transformado. Quando colocados entre ela e o outro, o rosto e a maleabilidade passam a trazer em si a metáfora de uma questão central da vida contemporânea: a identidade.
gina ferreira e lula wanderley
Nesse caso, a artista disponibiliza apenas sua face, moldada em argila, para que os participantes da ação possam intervir. Disponibiliza também espelhos na tentativa de que seja estabelecida uma tensão entre sua própria imagem e a de quem é sujeito de sua modificação. Artérias sem Pé nem Cabeça são dois trabalhos, Cama Sem Pé nem Cabeça e Artérias, criados em épocas diferentes e que se unem para uma mesma ação no Spa das Artes, de 2010. Um objeto construído a partir de quatro camas cortadas ao meio e depois unidas, criado para dar a impressão de algo sem começo nem fim. E com a impressão do Artérias no lençol do hospital. “Instalando-as sobre carpete vermelho no centro do Pátio de São Pedro, simbolizo o hospital psiquiátrico, e se iniciam os trabalhos. A imagem dos lambe-lambes do Artérias aos arredores do bairro da Tamarineira e no hospital leva a cidade para esses locais” (Christina Machado). Como resdultado da ação foram construídos dois novos trabalhos: vídeo do registro poético da ação, Artérias sem Pé nem Cabeça"e o Artérias Viva que ocupa agora um espaço vivo, constituindo uma ponte, estreitando a relação entre razão e não razão. Fixa e põe em movimento essas imagens criadas, disponibilizando para os visitantes territórios simbólicos a serem praticados e decifrados: lidos. Esse trabalho, feito de muitas costuras e ajuntamentos, de pedaços de processos artísticos, poéticas, linguagens e autorias compartilhadas entre artistas, nos impõe silêncios, ruídos, estranhamentos, belezas, solidariedades e afetividades.
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Artérias na Cidade 2012 Entorno da Tamarineira Fotografia de Francisco Baccaro
A estética relacional é uma teoria elaborada na década de 1990 pelo crítico e curador francês Nicolas Bourriaud. Pode ser definida como plataforma estética e método crítico com base na detecção de certa sensibilidade compartilhada por alguns artistas contemporâneos. O foco desse movimento está predominantemente na preocupação com as relações humanas na arte, do artista com seu entorno e com seu público. Na arte relacional, as experiências e os repertórios individuais estão a serviço da construção de significados coletivos,
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Artérias Sem Pé Nem Cabeça Silkscreen e acrílica sobre lençol de algodão, 2005 Pintura coletiva após ação performática (detalhe)
o que faz com que a participação do público seja um fator-chave na ativação ou efetivação de tais propostas. Valorizam-se as relações que os trabalhos estabelecem em seu processo de realização e de exibição, com o envolvimento de artistas e do público. Insiro, nessa perspectiva analítica, os fazeres e as atitudes artísticos de Christina Machado. Sua interação e seu trabalho desenvolvido no Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, Recife/PE, vêm adquirindo reverberações poéticas e desdobramentos físicos para além dos muros da instituição. Sem Pé Nem Cabeça — instalação e ação com intervenção de usuários dos Caps. Hospital Ulysses Pernambucano (Tamarineira), Semana de Arte no Recife — me parece que é traço marcante na trajetória da artista. Representa o limiar entre razão e loucura. Como localizar e pontuar tal região ou fronteira? A artista entende que a loucura é o lugar que permeia pulsões e tensões, espaço de abertura para “receber sempre as múltiplas e inusitadas sensações”. Região que descortina mistérios, imagens, gestos, ruídos, traços e afetividades.
Joana D'Arc Lima Doutora em História pela Universidade Federal de Pernambuco, docente convidada no curso de especialização em Arte‑educação na Universidade Católica de Pernambuco e de História do Brasil no Centro Educacional Helena Lubienska. Desenvolve pesquisa sobre as artes visuais no Brasil com foco na História das Artes de Pernambuco. Coordena o grupo de pesquisa Coletivo Arte em Diálogo, do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães. É uma das articuladoras do Coletivo Parangolé, Arte, Cultura, Educação. Atualmente é diretora da Galeria de Arte Janete Costa no Recife.
O potencial da arte para transformar o espaço social e as relações humanas é também uma questão central na obra de Christina. Ela reúne, por meio de suas propostas, pacientes do hospital, artistas plásticos, músicos, estudantes, transeuntes da cidade, qualquer pessoa que queira ser tocada por sua poética. Qualquer um que tenha coragem, se lance numa experiência estética e atravesse fronteiras do estabelecido. Salve todos aqueles que em nome da arte propõem partilhas e fissuras, emendas e permanências, que insistem nos diálogos e fortalecem as mais diferentes e polissêmicas vozes. Eis a importância dessa artista para a arte internacional e brasileira.
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antonireo zpeanulode
o azul que nunca foi azul As histórias que falam do paraíso são desencontradas. Não faltam, porém, mitologias plenas de astúcias e de criações. A rebeldia possui lugar especial. Há sempre desejos de transformação, inconformismos com a ordem. As identidades se movem anunciando que o mundo não se realiza com a consagração da mesmice. Nem todos observam a importância da inquietude na construção da cultura. Ela não cessa, apesar das dominações violentas e das censuras permanentes. Somos animais sociais, convivemos com limites, pois somos passageiros da incompletude. A rebeldia ganha espaço, porém as regras não se afastam do cotidiano: cercam o nosso tapete mágico e impedem nossos voos. Contar a história é, portanto, mergulhar nas ambiguidades. Os registros mais primordiais são imprecisos, porém vagamos por entre dúvidas, apesar das utopias e dos sonhos fabulosos. O artista é fundador de mundos. Move sua sensibilidade captando ruídos e silêncios. Sua gramática rompe círculos fechados, inventa linguagens, penetra no mistério. Busca uma leitura do mundo que fuja do lugar-comum. Contempla o que passa com o tempo de quem desconfia e abraça. O óbvio estica-se para dialogar com o inusitado. O trabalho de Christina Machado não recusa as turbulências nem nega a complexidade. Olha com agudeza e ternura os malabarismos da vida social. Desliza, desloca-se, insere-se. A tragédia comunica-se com a incompletude, ela sabe disso. A finitude não é um acaso anêmico, mas uma acrobacia. A arte de Christina quebra tradições, porque não despreza o passado, não fica alheia aos preconceitos. Equilibra-se no tempo, sem a arrogância dos que o julgam linear e sempre progressivo. Sua matéria-prima é o descuido. Ela o traduz, o interpreta, o multiplica.
pp. 14–16 e 19
Da Matéria à Materialização I Instalação de cerâmica, 2009–2012 Produção coletiva
Somos animais sociais, contudo somos, muitas vezes, indiferentes aos outros. Tememos problemas, cultivamos egolatrias, nadamos no narcisismo. Christina escuta os conselhos anônimos da solidão, não se deixa consumir pelas aparências das coisas e das pessoas. Configura a comunhão e seus desacertos. Faz da argila um ponto de encontro que pode refazer formas e representar as idas e vindas do mundo. O inacabado é infinito, companheiro do desejo e adversário do juízo final.
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Sempre há o que inventar, como sair do labirinto e riscar os antigos espelhos.
Da Matéria à Materialização II Instalação de cerâmica, 2009–2012 Produção coletiva
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Antonio Paulo Rezende é professor do Departamento de História da UFPE. É canceriano, tem quatro filhos, três netos e torce pelo Santa Cruz. Fez mestrado em História na Unicamp e doutorado e pós-doutorado em História na USP. Trabalha com temas relacionados à Contemporaneidade, Cultura, Memória. Escreve no blog www.astuciadeulisses. com.br quatro vezes na semana, e seu último livro intitula-se Ruídos do Efêmero: Histórias de Dentro e de Fora, publicado pela Editora da UFPE.
O estar no mundo balança-se, não requer fixidez, exige conversas contínuas, dissonâncias longas, preguiças inesperadas. Se a arte só visualizar o instante, perde o mistério do primordial. Não é necessário explicá-lo. O oceano da interpretação joga com o sonho e alarga a possibilidade. O trabalho de Christina não possui vírgulas, mas interrogações constantes e afirmações que se entrelaçam com o mundo, com a força do inesperado. Cada peça narra sua história. Os narradores multiplicam-se, porque os olhares mudam e os sentimentos são gramáticas sinuosas. Entre a permanência e a mudança, as histórias circulam. As coisas nunca são as mesmas; circulam ansiosas buscando ressignificações. Não cabe ao artista encarcerar as concepções de mundo. As cores redefinem seus nomes, as loucuras, os seus delírios. O importante é que haja lembranças do que foi primordial. Apesar da velocidade que nos rouba o sossego, as leituras de cada ato merecem atenção e rascunham ousadias. Tudo tem o gosto do efêmero, porém ficam toques e imagens, muitas vezes involuntários. Christina arriscou, compreendeu que a cultura não se arquiteta sem os significados. A argila anuncia que a forma é inquieta e a verdade é curva. É preciso que a incompletude não se acanhe, mas se desloque. Os limites não decretam o fim. Eles atiçam, desenham as diferenças, entretecem as fragilidades. A arte, quando não silencia a vida, mistura-se com o que não tem nome. O azul nunca foi azul, porque a sensibilidade transcende o visível. Há um esconderijo em cada forma de inventar e retomar o humano. Christina não se intimidou. As chaves das portas são ornamentos, e não instrumentos indispensáveis para configurar o mundo.
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oe encontro p ossi v el quando somos uns juliacostcoutia nlihoma somos muitos Com a série Minha Cabeça, Nossa Natureza, Christina Machado se permite uma experiência de troca no seu sentido mais forte, e assim nos leva junto até essa possibilidade de abertura. Não se trata apenas de uma visita ao universo da loucura, ao seu cenário, aos caminhos e descaminhos das formas de cuidado e tratamento. O encontro e a troca, aqui, criam novas possibilidades, fazem surgir um novo acontecimento. As relações entre arte e loucura têm uma longa história, e seus atravessamentos vão ganhando contornos diferentes a partir das mudanças em cada tempo. Pode-se dizer até que essa relação foi emblemática na modernidade. E uma das linhas fortes no contato entre práticas artísticas e processos terapêuticos era o ideal da arte como expressão de si e de seu sofrimento. A arte revelaria a “verdade da loucura”, e a loucura, por sua vez, “deteria a verdade da arte”. Se com a contemporaneidade transformam-se o pensar e o fazer no campo da arte, também no campo da clínica e da atenção à loucura se engendram uma série de práticas em que as atividades artísticas vão ter espaço no processo de transformação das instituições psiquiátricas e no questionamento do lugar da loucura.
pp. 20 e 25
Minha Cabeça, Nossa Natureza Intervenções de convidados em objetos de cerâmica, 2009 pp. 22 e 24
Minha Cabeça, Nossa Natureza Intervenções de convidados em modelagem de argila, 2009
No processo trabalhado por Christina, as articulações entre arte, loucura e cuidado parecem se dar no plano da potencialização de cada eixo. A arte se expande e ganha potência no encontro com esse outro, sendo, cada vez menos, uma atividade individual e autônoma. A loucura pode encontrar vetores e espaços de saída, extrapolando o campo de uma patologia da interioridade. E o cuidado maximiza-se, transforma-se, saindo do domínio do puramente patológico e da instituição fechada. A força do encontro se dá pela mistura e porosidade que a artista se permite. Aqui não são um sujeito e um objeto como dois entes separados, em que um vai conceber ou esquadrinhar o outro. Longe de uma certa postura antropológica de encontro com o estranho “lá fora”. Também não se resume a um encontro com
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o estranho “aqui dentro de nós”, como se nos servíssemos da loucura da mesma forma que alguém se serve de um reflexo parado num espelho. A dinâmica e a beleza do processo estão no novo acontecimento, em suas reverberações e no que se gesta como cria disso tudo. As obras apresentadas em Minha Cabeça, Nossa Natureza são fruto desse processo, que se iniciou há mais de três anos, em que Christina disponibiliza sua presença, seu tempo, seu espaço, seu corpo, sua matéria para viver, junto com os pacientes que estão sendo acompanhados no Hospital Ulysses Pernambucano (ou Hospital da Tamarineira), uma experiência. Em um dos trabalhos, a artista leva o molde de sua cabeça em barro para que os pacientes intervenham. Ela permite o gesto do outro e aguarda, recebe. Ao mesmo tempo, oferece ao outro algo que é do plano da cultura, da experiência estética e criativa. A sua cabeça, que volta marcada e alterada pela ação dos pacientes, reverbera em Christina, que passa a experimentar em si a natureza que é deles e, agora, nossa. A proximidade e a porosidade nos limites entre eu-outro são vividas pela artista como uma espécie de simbiose. Acredito tratar-se mais de uma experiência de certa plasticidade do eu-outro que amplia as possibilidades para ambos. Essa ampliação dos limites se dá porque a experiência é vivida no plano de uma criação que termina sendo conjunta. O que se engendra nesse encontro não é mais só o resultado de Christina nem somente deles, é uma terceira coisa, uma produção intermediária-transicional, para a qual não se encontra resposta exata para as perguntas: Isso é meu ou seu? Quem começou? De quem é o olhar de águia desconfiada daquela cabeça? A quem pertence o espírito de guerreiro lutador daquela outra? Quem é esse homem? Quem é essa mulher? De que sofrem? Como gozam? O que querem?
Assim vão surgindo personagens e algumas histórias que esperam para ainda serem contadas. Christina se deixa afetar, recebendo o impacto de marcas, símbolos, inscrições, criações dos outros em si mesma, na sua cabeça, transformando-se e fazendo o trabalho “de volta” de assimilação ou reflexão das ressonâncias desse encontro. Nessa “volta” — momento fértil de abertura criativa —, a artista está só, mas está com a presença de todos esses outros que estiveram com ela. Nesse contexto, elabora a série de pinturas Meus Eus, em que sua cabeça aparece novamente como imagem-eixo para novas amarrações, para continuar tecendo o fio das histórias, dos personagens encontrados/criados. O que ela constrói agora é marcado por aspectos que não se davam a ver tão claramente antes, por isso que se deu a perceber através do outro: a natureza instintiva, animal, a força, o medo... E também reencontrando o que é comum a todos, o que é partilhado, os anseios de liberdade, os conflitos e as amarras que impedem a liberdade. Tão íntimo e tão do mundo. Nesses personagens aparecem as figuras da mulher e do homem. O exercício de abertura para o outro se intensifica nesse jogo em que encontra o masculino em si mesma. Já o feminino é mais próximo, mais próprio, mais trabalhado em outras produções suas, como Mulher de Ferro e Impressões sobre Minha Vagina, por exemplo. Uma vez que é possível tomar o masculino como nosso outro, fica o movimento de dar cara, cabeça, forma a esse outro que sou eu, mas também que não sou eu, no jogo entre semelhança e diferença. Assim ela cresce, expande seu eu a partir dessa abertura para o mundo, para o outro, a diferença. E eles, os pacientes internos do hospital? Podemos imaginar que eles ganham a possibilidade de viver essa experiência, sustentada pela presença constante da artista, mediada
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pela matéria, pelo barro. O barro, que é também elemento da nossa natureza e possibilita contato táctil primitivo, poro a poro, é matéria amorfa que resiste às nossas ações, que se deixa marcar por seus gestos, inscrições. Eles, no convite à criação com essa matéria que resiste, produzem algo que permanece e que vai se tornar outra coisa, que se materializa, ganha realidade, contorno, limite. Podemos imaginar que aí também se promove uma expansão do eu, um crescimento, partilha, ida ao mundo.
Meus Eus Técnica mista sobre papel, 2012
Nessa perspectiva, a prática artística vivida de modo articulado a essa modalidade de cuidado segue bem no caminho do que afirmam Elizabeth Lima e Peter Pelbart: Cada sujeito, ao construir um objeto, pintar uma tela, cantar uma música, faz algo mais que expor a si mesmo e o próprio sofrimento. Ele realiza um fato de cultura. Quanto aos sujeitos criadores — que produzem suas invenções em maior ou menor proximidade com os abismos da loucura —, eles continuam agarrados por um conjunto de impossibilidades, escavando saídas, criando possibilidades, buscando construir linhas de fuga que, por fim, servem para todos nós1. 1. Lima, E. & Pelbart, P. Arte, Clínica e Loucura: um Território em Mutação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 14, n. 3, jul.–set. 2007, p. 732.
Julia Coutinho Costa Lima é psicóloga, atualmente é sócia do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e realiza pesquisa como doutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco.
Essa questão da abertura para o mundo, da relação com a alteridade, que já vem sendo trazida por Christina em outros trabalhos, mas que esta exposição tão fortemente coloca, é vital para pensarmos nosso lugar e nossa posição em tempos difíceis de individualidade contemporânea, de intensificação de narcisismos e consumismo a expensas do tempo e da experiência propriamente humanos, visto que, enquanto humanos, nos constituímos a partir dessa relação com outros, num mundo que nos acolhe. Imersos no meio de outros, cuidadores, parceiros, pares, é que aprendemos a viver e a ser como somos. Com os outros é que nos reconhecemos e construímos. Assim, quando saímos um pouco fora de nós mesmos é que sentimos que vale a pena. Então vale muito a pena, porque Christina é uma e muitas; é ela e é o mundo nela, porque nós somos uns e somos muitos em nós.
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lulagina wafenrredeirlea ye
um rosto qualquer A matéria-prima da arte de Christina Machado é seu próprio rosto e a maleabilidade do barro. Chris entrega ao participante de sua proposta um modelo de barro de seu próprio rosto para ser transformado. Quando colocados entre ela e o outro, o rosto e a maleabilidade passam a trazer em si a metáfora de uma questão central da vida contemporânea: a identidade. Na última cena de Luzes da Cidade, Chaplin utiliza o close-up (técnica criada por D. W. Griffith) do rosto da atriz Virgínia Cherril para revelar uma sutil trama de emoções contraditórias: gratidão e decepção, amor e repulsa. E é através da imagem desse rosto maleável que Chaplin traz a modernidade para o cinema. Como um quadro pintado por Matisse, o rosto de Virgínia Cherril não é definido, não está pronto, organizado. As múltiplas emoções que se justapõem e que contrastam como cores não se organizam na espacialidade formada por olhos, boca, nariz, sobrancelhas. O rosto não é uma construção orgânica: é pura sensação.
pp. 28–30 e 35
Estância, Sua Casa Intervenções de convidados em objetos de cerâmica, 2011
Depoimento 1 — Observei Chris na Praça Cara Nova, em Paracambi (RJ), durante o Projeto Cinema na Praça, oferecer ao participante a possibilidade de viver a experiência de sua proposta artística em sua total radicalidade: a da máscara moldada no corpo físico, transformada em objeto vazio, sem poder, distante da percepção sensível que figura o rosto, passa para o toque das mãos sobre a superficialidade do objeto e lentamente o completa, reconhece como parte de sua experiência, de seu corpo, de sua verdade — processo que constrói como um olhar lânguido que busca no real o senso estético da vida. A proposta da artista me recorda uma frase que ouvi de um paciente com experiência psicótica. Durante o Carnaval, ele foi convidado para sair em um bloco de rua em Ipanema, olhava curioso para os rostos enfeitados, para os mascarados, para os casais se beijando e dizia que eram alegorias. No retorno para casa, ao entrarmos no ônibus urbano, deparou-se com uma adolescente belíssima, fez gesto de quem iria tocar o rosto dela, mas recuou e disse-me: “A beleza, quando é verdadeira, podemos tocar, porque ela não desmancha”.
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Quando olhamos pela primeira vez a multiplicação incessante do rosto de Christina na mesma máscara de barro maleável, sentimos um instante de estranhamento: a certeza, momentânea, de ter encontrado alguém que sabe que a coisa com a qual vive e expressa o tempo todo sua alma não está ali em sua arte. Christina exercita a mais extraordinária sensação de libertação: a realização do desejo de todo homem de se sentir liberado, momentaneamente, de sua da própria subjetividade.
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A imagem especular vazia e seriada torna-se um objeto aparentemente insignificante. Todavia, sua imobilidade não se confunde, como numa máscara mortuária, com solidez. Tem o frescor e a fertilidade da argila. O barro é o mais antigo material de trabalho do homem. Dócil, não oferecendo resistência ao toque das mãos, o barro é capaz de se oferecer, de maneira instantânea, à expressão da subjetividade humana. Da extração do barro ao preparo da argila, da construção do objeto ao cozimento que o solidifica, o toque do barro tem uma sensorialidade e expressão corporal que compõem sua poética. Com a maleabilidade do barro, o vazio da imagem especular seriada de Chris ganha uma dimensão de tempo e é entregue para ser trabalhada pela subjetividade do outro. O tema de um vazio primordial na relação dialética entre a ausência absoluta e a potencialidade total está subjacente à proposta de Chris, como também esteve sempre presente na arte brasileira a partir da metade do século passado, notadamente em Mira Shendel e Lygia Clark. A atitude de esvaziar/apagar/negar traz, em si mesma, a potencialidade de preencher/afirmar/criar. Chris, ao escolher um público para sua proposta, direciona esse tema do vazio a múltiplas questões: filosóficas, psicológicas e políticas.
Depoimento 2 — Quando Chris, numa sala do Hospital da Tamarineira, me ofereceu seu rosto em barro e insistiu para que eu me apropriasse daquele objeto e construísse algo, logo lembrei-me de Marcos. Alto e magro, tinha cerca de 70 anos quando o conheci. Estava sentado no batente de uma porta que nos levava ao Museu de Imagens do Inconsciente. Perguntei-lhe quem era, como se chamava. Indignado, respondeu: “Como não conhecer o homem que atravessou a Cordilheira dos Andes; que primeiro chegou ao Polo Norte; que percorreu toda a extensão do Amazonas?”. Perguntei-lhe, para provocá-lo, por que, sendo assim tão importante, estava internado em um hospício. Marcos, pausadamente, respondeu: “Vim oferecer meu rosto aos médicos para que o transformem com seus remédios e seus neurotransmissores. Não é isso que eles fazem?”.
Estância, Sua Casa Intervenções do público em modelagem na argila, 2011
O rosto maleável, pronto para a ação do outro, é a imagem que nos sugere a vivência da loucura quando aprisionada/ressignificada pela psiquiatria. A doença mental impele os seres a mergulharem nessas regiões onde o princípio de individuação deixa de existir. Eles não se confundem com o mundo porque com ele se assemelham, mas porque perderam a individuação. Experiência radical de alteridade que, como nos lembra Tânia Rivera, materializa a dolorosa afirmação de Arthur Rimbaud de que “eu é um outro”. Perigoso estado do ser, experimentado com estranheza ou angústia, em que o sonho, a poética liberdade, transforma-se em pesadelo e prisão. Cabe a nós esperar que os médicos, com seus rótulos, disciplinas, indústria farmacêutica, electrochoques, crença em genes — ou com qualquer coisa — imprimam um rosto nessa coisa inominável que é simultaneamente a face e seu apagar, aplacando assim a nossa angústia ao estabelecer definitivamente claras diferenças entre a sanidade/nós e a loucura/eles. Chris entrega aos loucos dos hospícios seu
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Gina Ferreira é psicóloga especialista em Psiquiatria Social – Escola Nacional de Saúde Pública, mestre em Psicologia Social pela UERJ, doutoranda em Psicologia Social na Universidade de Barcelona. Na década de 1980 coordenou a equipe técnica da Casa das Palmeiras a convite de Nise da Siveira no Rio de Janeiro. Trabalhou com Lygia Clark , especializando-se no método da Estruturação do Self. Participou do projeto para a organização do acervo de Lygia Clark (MAM/RJ), criando o glossário de casos clínicos dessa artista. Atuou com R. Laing na Comunidade para psicóticos/ Londres. Em 1996 coordenou a Saúde Mental – Angra e Paraty/RJ, quando obteve o prêmio internacional de maior originalidade em Programa em Saúde Mental. Trabalhou convidada pela Fundação
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Antonio Tápies na exposição sobre Lygia Clark – Barcelona, 2004. Participou como convida do evento cultural Berlin Intransit, monitorando laboratório de sensibilização com os artistas integrantes do evento. Lula Wanderley no Recife, colaborou como artista gráfico em jornais e revistas, fez experiência com poesia visual e participou da cena musical do Recife da década de 1970, colaborando com os grupos Nuvem 33 e Ave Sangria. No Rio, desde 1976, participou, a convite de Nise da Silveira e Mário Pedrosa, do projeto de reformulação do Museu de Imagens do Inconsciente. Colaborou com Lygia Clark na pesquisa sobre arte/corpo/psiquismo. Participou, a convite da Fundação Tápies de Barcelona, da retrospectiva europeia da obra de Lygia Clark, como curador de sua fase sensorial. Participou de várias mostras coletivas e individuais. Entre suas publicações, destaca-se Retratos: Todo Artista é Impostor, em 2011.
rosto maleável para expressarem a busca inadiável de suas semelhanças com o mundo. Se, diante de um espelho mágico, o homem pudesse apagar da face aquilo que não fosse característica genuína de sua raça, ficaria com o rosto vazio. As muitas etnias que hoje compõem nosso rosto não nos fragmentam: trazem uma multiplicidade de interações com a diferença. Descobrimos também, diante desse espelho, que, se de perto ninguém é normal, como nos lembra Caetano, de perto também ninguém é totalmente louco ou louco em todos os instantes. Em nosso rosto, a sanidade e a loucura não são opostos simétricos, quando muito formam polígonos de traços diversos. Chris, com o trabalho Minha Cabeça, Nossa Natureza, revela que esse espelho que apaga as diferenças e cria território livre para acolher corpos, afetos e linguagens é a arte.
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chrimacshatidnoa
relato de uma experiencia unica Contar esta história é como abrir uma caixinha onde tudo pode ter... sentido? Pois é, estou no meu Ateliê Residência, no Hospital da Tamarineira, e surge a oportunidade de fazer um trabalho com os pacientes no espaço público, com outros passantes da urbe recifense. Era só uma semana, e como fazer para criar um elo entre mundos tão distantes? Neste momento, não sei por que, pensei em usar minha cabeça como elemento condutor do trabalho, e se tornava claro que todos sabiam que se tratava de uma cabeça de argila, resgatada do trabalho Tempo de Carne e Osso, aquele em que desmancho todo o corpo no mar e fico só com a essência.
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Produzi sessenta cabeças e convidei pacientes, amigos artistas, alunos, usuários dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e o público em geral para fazerem minha cabeça, e assim foi. Durante a ação (em processo), começaram a surgir novos personagens, entendam, a partir da minha própria imagem. Fui me identificando com um olhar, com um semblante, e às vezes até me vendo neles (nas cabeças) ou me sentindo literalmente viva na própria ação do momento na modelagem, e as coisas foram ficando inesperadas. Passaram-se os anos, e chegou a oportunidade de expor tais objetos. Percebi que alguns personagens passaram a fazer parte da minha vida e foi nesse momento de continuidade da obra que criei a série dos autorretratos... Fácil seria só desenhar ou pintar, escolhendo algumas das sessenta cabeças. Contudo, ainda sentia falta de alguma coisa... Era como se essas máscaras não tivessem alma, não era suficiente para mim trabalhar só a releitura do
Meus Eus
pp. 36–37
Técnica mista sobre papel, 2012
Minha Cabeça, Nossa Natureza Intervenções de convidados em objetos de cerâmica, 2009
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objeto. Nesse instante de angústia, encontro na fotografia a solução, emprestando minha imagem para ocupar esse universo interior. Ótimo. Tratei as imagens e as transferi para o papel e vi que quatro cabeças eram realmente as escolhidas — duas tratavam de extintos animais, e as outras permeavam a intuição. Sei lá. Uma relação mais humana. Daí resolvi começar por elas, pois estavam mais próximas da minha realidade... Escolho uma cabeça masculina e outra feminina e, nesse jogo de identificações, lembrando de cenas vividas, percebo que eu não entrei nelas, mas foram elas que entraram em mim!
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Minha Cabeça, Nossa Natureza Vídeo do registro poético da ação, 2009 Imagens e edição de Fernando Peres
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nota biográfica Christina Machado, nascida em 1957 em Belém (Pará) e radicada no Recife (1961), é artista plástica desde de 1976, quando iniciou sua formação em ateliês de desenho e pintura. Formou-se em Educação Artística na Universidade Federal de Pernambuco — Licenciatura em Artes Plásticas (1979). Conhecendo a cerâmica na década de 1980 passa a dedicar-se exclusivamente ao desenvolvimento de técnicas de modelagem, desenho e pintura próprias dessa matéria, sendo marcado pela criação de objetos, esculturas e painéis para interiores e exteriores onde a cerâmica integra-se também a projetos arquitetônicos. Paralelamente à produção artística, conhecimentos adquiridos na licenciatura, junto à pesquisa com a cerâmica, fizeram com que a artista desenvolvesse, durante esses anos, formas alternativas de trabalhar com o público em oficinas e cursos. Desde 1998 realiza pesquisas experimentais com a argila e suas diversas possibilidades enquanto matéria estrutural da arte, enquanto 62
possibilidades do pigmento, como sua própria natureza (origens, texturas e tonalidades diversas), fazendo com que a argila participe como elemento essencial de todos os estágios de composição da obra, resultando em novas técnicas de uso, assim como novas experiências de trabalho no terreno da arte contemporânea. Em 2003, participa da Bolsa de Pesquisa do 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (grupo Corgo) viajando pelo interior de Pernambuco e conhecendo cidades, indústrias, olarias e pessoas que se relacionam com a produção de cerâmica em geral. A argila torna-se uma aliada na relação simbólica com acontecimentos da vida, abrindo fissuras para que outros materiais surjam como forma de expressão, passando a ser, a natureza humana, o foco principal de sua produção. Lança mão de novos suportes e propostas variadas para trabalhar temáticas ligadas ao corpo e ao universo feminino, problematiza a relação com sua própria intimidade e, num desdobramento de experiências, faz com que o público venha posteriormente participar também da obra.
principais exposições individuais e coletivas 2012 Tradição Tradução, coletiva; Matriz, painel cerâmico, Galeria de Artes Visuais do Centro de Artesanato de Pernambuco, Recife-PE; Minha Cabeça, Nossa Natureza, individual, Galeria Janete Costa, Parque D. Lindu, Recife-PE. 2011 Cinema na Praça/Intervenção na Cultura – Estância, Sua Casa, vivência com a intervenção do público em praça pública, instalação, Petrobras/Secretaria de Saúde da cidade do Recife, Paracambi-RJ. 2010 Artérias Vivas, video-instalação, sala Hélio Oiticica, Mamam, Recife-PE; Carlos Pena Filho – 50 Anos de Memória, coletiva; E Eu Fui Ficando Assim, um Arrecife, fotografia e instalação, Espaço Cultural Santander, Recife-PE; Artérias Sem Pé Nem Cabeça, intervenção urbana, instalação e ação com intervenção de usuários do Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano (Tamarineira), Pátio de São Pedro, Recife-PE. 2009 Loucos pela Diversidade, premiação do projeto Salões de Beleza, em parceria com o artista Luiz Santos, MinC, Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano (Tamarineira), Recife-PE; Minha Cabeça, Nossa Natureza, vivência com a intervenção de pacientes internos, dos Caps, artistas e público em geral, instalação, Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano (Tamarineira) – Semana de Arte no Recife (SPA-PE). 2008 Luciano Pinheiro, Christina Machado e Rinaldo Silva, coletiva, Galeria Dumaresq Recife-PE. 2007 Artérias, individual, objetos, fotografia, instalação, Museu Murilo La Greca, Semana de Arte no Recife (SPA-PE); 8º Bienal Naifs do
Brasil – Resistência, Inexistência, instalação, Piracicaba-SP. 2006 Artérias II, intervenção urbana e ação performática, Semana de Arte no Recife (SPA-PE); Artérias I, intervenção urbana e ação performática, Festival de Inverno de Garanhuns-PE. 2005–2006 Do Barro ao Barro, coletiva, ensaio fotográfico/instalação Mulheres são Sensuais Dentro e Fora de Casa, Pinacoteca do Museu do Estado, Recife/PE; Territórios Transitórios, coletiva, vídeo arte Tempo de Carne e Osso, Palais de La Porte Dorée, Paris, França. 2005 Projeto Engenho do Imaginário, coletiva, land art, Invocação, Eco Festival/ Serra Negra, Bezerros-PE (Fundarpe); Sem Pé Nem Cabeça, instalação e ação com intervenção de usuários dos Caps, Hospital Psquiátrico Ulysses Pernambucano (Tamarineira), Semana de Arte no Recife (SPAPE); A Pele É o Que Separa o Corpo do Mundo, individual, Galeria Amparo 60, Recife-PE; Resistência, Inexistência | Oficina do Ferro, coletiva, objetos, lei de incentivo municipal, Atelier Balneário de Água Fria, Recife-PE; 45º Salão de Artes Plásticas, coletiva, instalação e ensaio fotográfico, Mulheres são Sensuais Dentro e Fora de Casa, Museu de Arte Contemporânea (MAC),Olinda-PE. 2004 Tempo de Carne e Osso, individual, vídeo arte/instalação, Observatório Cultural Torre Malakoff, Recife-PE (Funcultura). 2002 Em Sete Tempos, coletiva, Seis Momentos de um Coração, pintura, Galeria Amparo 60, Recife-PE; Corgo – Cerâmica Contemporânea de Pernambuco, coletiva, Impressões Sobre Minha Vagina, instalação, Observatório Cultural Torre Malakoff, Recife-PE (Funcultura).
2001 Salão de Arte do Pará – Impressões Sobre Minha Vagina, instalação, Fundação Rômulo Maiorane, Belém-PA. 2000 Salão de Arte do Pará – pintura, Fundação Rômulo Maiorane, Belém-PA; Cerâmica Brasileira: A Construção de uma Linguagem – objeto, Centro Brasileiro Britânico (CBB), São Paulo-SP; Gambiarra – Sistema Móvel de Sensações Rústicas, coletiva, instalação, Galeria Amparo 60, Recife-PE; Gambiarra – Sistema Móvel de Sensações Rústicas, coletiva, instalação, Galeria Debret, Paris, França.
principais cursos ministrados, bolsas de pesquisa e publicações 2010 Lançamento do catálogo Fio do Tempo, 15 Anos de Trajetória, Mamam, Recife-PE. 2009 Expressão Através da Argila (curso de longa duração contínuo), Ateliê Christina Machado, Recife-PE; curso de Artes Plásticas – cadeira: Cerâmica I e II (contratação),Faculdade Integrada Barros de Melo (Aeso), Olinda-PE (2011); Ateliê Residência de Cerâmica (duração contínua) Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano (Tamarineira), Recife-PE. 2003 Bolsa de Pesquisa para o 45º Salão de Artes Plásticas de Pernambuco – Projeto Corgo, coletivo, Fundarpe, Recife-PE.
contatos christinalmachado@gmail.com christinamachado.blogspot.com http://issuu.com/zoludesign/docs/christina_machado
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Curadoria
Joana D'Arc de Souza Lima Criação
Christina Machado Produção
Christina Machado Diogo Todë organização do catálogo
Joana D'Arc de Souza Lima tex tos
Antonio Paulo Rezende, Gina Ferreira, Julia Coutinho e Lula Wanderley Fotografia
Dominique Berthé (exceto: pp. 22 e 24, Milena de Andrade; pp. 32 e 33, Christina Machado) tratamento de imagem
Aurélio Velho design gráfico
Zoludesign revisão de tex to
Consultexto Projeto expográfico, luz e cenografia
Diogo Todë Coordenação de Montagem
¨Trema! | Todë Equipe de montagem
Estevão Mendes e Ivan Amorim Assistente de montagem
Fábio Soares, Mozart Gomes e Artur Rocha Elaboração de projeto
Aurora 21
Agradecimentos
Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano – Tamarineira, Centro de Arte e Terapia da Tamarineira, Zoludesign, Funcultura, Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, Diogo Todë, Luiz Santos, Joana D'Arc, Julia Coutinho, Lilia Dobbin, Antonio Paulo Rezende, Gina Ferreira, Lula Wanderley, Cristina Mendonça e as estagiárias: Laura, Rebeca, Thais e Rafaela. Vicente Machado (Meu Eu), Marcelo Machado, Júlia Meira e Malu Machado. Aos amigos artistas que participaram desta aventura. "Se eu não te amasse, não estaria vivo" (Pacheco) – é esse meu sentimento, que pulsa, quando penso no processo que vivi junto a todos que fizeram parte desta experiência.
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