Revispa 2011

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mãe  Meu filho, o que você espera da cidade no futuro? filho  Como assim futuro? mãe  Theo... Daqui a alguns anos, quando você estiver mais perto da minha idade, quando for adulto... filho  Eu não vou esperar, vai ter e pronto! mãe  E pensa em alguma solução para o futuro da sua cidade? filho  Eu queria construir uma nave espacial que passasse em cima dos carros, mas que fosse uma nave-casa, onde a gente pudesse dormir.

* O filho é Theo Acioli, de 6 anos. Apaixonado por ventiladores e por Beth Carvalho. A mãe é Dani Acioli, 36 anos. Jornalista e artista plástica, coruja dos filhos Theo e Nuno.



Como serรก o futuro daqui a 10 anos?




realização



Em uma década, o cenário da arte contemporânea no Brasil se metamorfoseou: surgiram novos espaços expositivos, abriram-se novas discussões a partir de reflexões já antigas e novos artistas apareceram, assim como novos modos de pensar e olhar para o que se produz hoje no País. O horizonte de 2011, portanto, não é o mesmo de 2002. Imbuída do espírito da constante reinvenção, e ciente da necessidade do intercâmbio para adubar qualquer ação circunscrita em uma política pública de cultura consolidada como referência nacional, a Prefeitura do Recife chega à 10ª edição do SPA das Artes — Semana de Artes Visuais do Recife com diversas razões para celebrar. Em sete dias de exposições, performances, mostras e debates, a Secretaria de Cultura e a Fundação de Cultura Cidade do Recife apostam no diálogo entre as várias linguagens das artes visuais. Equipamentos municipais, como os museus, os memoriais e os centros de formação, e o próprio traçado urbano da cidade recebem artistas de vários estados e intervenções de

grife local, criando uma cartografia na qual o Recife sobressai como convergência dos signos — idealização, consumo, fruição — a partir dos quais a arte se erige. Trata-se, pois, de um período que, ao revisitar os conceitos que fecundaram as experiências acalentadas ao longo de dez anos, atribui outro matiz ao circuito nacional da arte contemporânea. E nesse contexto em que a memória acumulada pelo SPA das Artes se adiciona às perspectivas de inquietações vindouras, os cidadãos e as cidadãs recifenses podem desfrutar de uma semana gratuita, plural e criativa, em consonância com as diretrizes de descentralização e democratização do acesso que demarcam a gestão do prefeito João da Costa. Festejemos, então, a 10ª edição do SPA das Artes, com a certeza de que a capital pernambucana acolherá experimentações, trocas e questionamentos e com a ratificação do Recife, mais uma vez, como epicentro da criação e do vigor artísticos.

renato l ecretário de Cultura da Prefeitura S do Recife

luciana félix residente da Fundação de Cultura P Cidade do Recife


Apresentação

beth da matta Artista visual Coordenadora geral do SPA iretora do Mamam – D Museu de arte Moderna Aloisio Magalhães

Em 2002, os artistas Rinaldo Silva, José Paulo e Maurício Castro, integrantes da nossa geração 80, foram os principais responsáveis pela criação da Semana de Artes Visuais do Recife, que depois passou a ser chamada de SPA das Artes, como é conhecida até hoje. Começou ali, em uma relação de afeto e vontade, mapeada a partir da identificação da necessidade de um encontro que congregasse artistas, público, críticos e curadores. O objetivo era contribuir para a formação e a circulação de um novo circuito de arte na cidade.

apto a participar das escolhas dos projetos artísticos, sendo os mais votados convidados a tomar parte do júri da premiação. Desta forma, acreditamos contribuir para tornar mais justo e colaborativo o processo de escolha dos artistas participantes, que recebem um prêmio para suas criações.

Esse grande encontro foi importante para estabelecer a relação e a participação dos artistas com a instituição. É só reparar no grande número de artistas/gestores que a cidade abriga atualmente. Desde então, vários encontros foram realizados a cada ano, a fim de atender às necessidades identificadas em avaliações da edição anterior, geralmente feitas de forma aberta e colaborativa entre os participantes do SPA e a própria Prefeitura do Recife, responsável pelo evento desde o início. A ideia sempre foi buscar um modelo que fizesse jus à expectativa de um público que se renova e que também apostasse na novidade e no respiro que a iniciativa deseja manter.

Ativadores de experiências 1

Claro que podemos passar horas falando sobre dificuldades que ainda encontramos na gestão de um evento que vem procurando se recriar ao longo dos anos. Porém, em tempos de comemoração, prefiro flertar com a utopia, lançando a ideia de pensar (n)o futuro de 2021, para reivindicar um presente estendido. É assim que enxergo, mesmo que por reflexos desse flerte, a 10ª edição do SPA das Artes.

1.  Termo utilizado pela pesquisadora Suely Rolnik, para definir toda a ação que provoca a experiência do público com a obra de arte.

Neste ano, usamos a internet para ampliar e garantir maior difusão e agilidade na seleção dos artistas. Evidenciamos ainda o pioneirismo da construção de uma comissão de seleção mais democrática. Cada artista, no ato da inscrição do seu projeto no edital do evento, indicou dois outros artistas visuais brasileiros que julgasse

É importante falar que o SPA mantém a sua veia experimental, a partir da chancela da Secretaria de Cultura e da Fundação de Cultura Cidade do Recife, realizadores do evento.

O projeto educativo, somado a escolhas de centralização das ações em três espaços culturais da cidade (Museu Murillo La Greca e os complexos do Pátio de São Pedro e Parque Dona Lindu), me pareceu uma saída para a mediação entre arte e público. Para tanto, foi desenvolvida uma iniciativa específica com setores de arte educação de cada um dos espaços envolvidos, além de vans que circularão acompanhadas de mediadores. A ideia do SPA em 2011 é garantir um melhor entendimento das ações propostas pelos artistas e pelas instituições, além de uma maior circulação de pessoas, que poderão acompanhar as atividades em pontos diferentes do Recife. Para comemorar a sua 10ª edição, a ReviSPA busca o encontro utópico de um presente estendido, vislumbrando um futuro daqui a dez anos. O presente estendido é aqui visto como uma projeção das ações do hoje readequadas às necessidades futuras e como o que ousamos escrever na história. Em cada nova edição, o SPA tende a extrapolar suas bordas quando lança novas propostas para buscar encontrar o momento da reinvenção. E assim seguiremos. Oxalá 2021!


Editorial

Projetar o futuro não é uma tarefa nova. Se andarmos pela Oficina Francisco Brennand, na Várzea, ou vasculharmos alguma biblioteca, vamos nos deparar com uma frase que parece, de alguma forma, evidenciar isso: “O futuro tem um coração antigo” — título de um livro do escritor italiano Carlo Levi (1902-1975). Embora secular, talvez esse coração não seja tão antigo assim, se considerarmos que pensar no amanhã é um exercício tipicamente moderno, próprio de uma sociedade que tomou para si o significado de progresso e evolução; de passado, presente e futuro. Mas se esta não é uma tarefa nova, ainda continua sendo do nosso tempo e principalmente relevante para refletirmos não só sobre o sentido deste, mas ainda sobre o que imaginamos e desenhamos desde agora (ou de antes) para o que vem depois. Aproveitando o momento de celebração pelas dez edições do SPA das Artes, realizado pela Prefeitura do Recife, a ReviSPA 2011 — edição especial SPA 10 anos também lança seu desafio, propondo se arriscar numa difícil tarefa: articular uma década passada e avançar mais uma no futuro. Não somente rumo ao destino do evento que a abriga, mas dos meios (a cidade, por

exemplo) e das linguagens com os quais dialoga, atribuindo-lhes outros significados através das manifestações artísticas e do pensamento crítico. E chegamos, então, a... 2021! Que configuração espacial teremos nesse tempo, não tão distante assim? Que Recife queremos ou teremos, mesmo se não quisermos, daqui até lá? Que formas de arte e de instituições estarão em pauta, nas ruas e nas redes? Como será o espaço urbano com o qual os artistas poderão tecer relações? Que sentido terá a palavra sustentabilidade, tão em moda agora? E o SPA das Artes? Essas perguntas estão na ordem do dia, como se diz. São muitas as indagações e múltiplas, as suas respostas. Realistas, otimistas, pessimistas, criativas, anárquicas, científicas, mirabolantes, imaginativas, fantasiosas... Todos podem vislumbrar um pouco o futuro e a arte abre caminho para muitas dessas especulações. As colaborações para esta edição apresentam alguns caminhos possíveis ou impossíveis, em interpretações artísticas, ensaísticas, jornalísticas ou simplesmente verbais, com a boca no trombone... Elas também deixam muitas


questões em aberto, para que o leitor, a partir de suas próprias experiências e vivências do presente, imagine futuros possíveis para a sua cidade, para as artes, para as relações que estabelecemos com os outros, com o que nos cerca. Será que teremos mais bicicletas do que carros atravessando pontes? Ou seremos São Paulo? Continuaremos acreditando no poder de grandes prédios e largas avenidas? A maconha será legalizada? Faremos arte somente via web, com ajuda de avatares? Dançaremos em tempo real com um robô de Miami? A internet vai ser uma second life? Os softwares serão todos livres? Os livros vão ter capas como esta da ReviSPA, feita com embalagem de pasta de dente reaproveitada? Valorização ou degradação? Não sabemos. O que sabemos é que não estamos aqui para fazer futurologia. Queremos atiçar o debate e soltar a imaginação, a partir do que já ocorre hoje. Construir um espaço onde diversos desejos, projetos, expectativas com relação a este futuro desconhecido se encontrem e possam dialogar. Não queremos só ficar na retrospectiva. Queremos olhar adiante de forma criativa, para que nosso rumo seja interessante logo mais. Desde já.

Ao lermos ou vermos os textos, as imagens, os depoimentos e as indagações desta revista, podemos até não chegar a lugar algum. Mas só de abrir o túnel, nos damos conta de que pensar o futuro é, sem dúvida, um exercício e tanto para refletirmos também sobre o presente e o passado. Como imaginávamos que seríamos hoje, quando estávamos em 2001? Nos anos 1960, Os Jetsons nos deslocaram até um mundo futurista, repleto de naves e robôs, que, por fim, eram apenas embalagens novas para um modelo norte-americano de vida bem datado, com “papai-trabalhador” e “mamãe-consumista”. É engraçado olhar para o passado futurista. O que descobrimos é que o nosso olhar é sempre histórico. Desafiamos, então, você a abrir estas páginas em 2021 e perceber o quão longe conseguimos ir com elas em 2011. Boa viagem, boas surpresas, boa imaginação!

as editoras, grupo pia + olívia mindêlo Recife | set | 2011


Como será viver no Recife em 2021? Jeims Duarte  16 e 26 Tomás Lapa  18 Simone Jubert  20 Samarone Lima  22 Simone Mendes  4 e 56

+ outras previsões

#celebraSPA 10 anos  28

Theo e Dani  1

Heraldo Souto Maior  23

Bate-papo com os criadores do SPA das Artes José Paulo, Maurício Castro e Rinaldo Silva

Cristiana Tejo  45

+ Galeria para recordar

Tony Vasconcelos  15

Lia Letícia  49 Bertrand Sampaio  58 Isabel Queiroz  59 Aslan Cabral  63 Beatriz Ribas  64 Marlene Pessoa  65


Sobre pesquisa, arte, Recife e como tudo isso pode se juntar  46 Grupo Pia

O futuro #FdE  66 Circuito Fora do Eixo e Coletivo Lumo

A instituição profética  50 Jacqueline Medeiros

Percepções contemporâneas. Corpos sensíveis na dança digital  70 Ivani Santana

Até onde vai a arte?  52 Olívia Mindêlo

A utopiaquentupiatuapia  76 Flávio Emanuel

Para virar o jogo  60 Tatiana Diniz


Como serรก viver no Recife em 2021?


Acredito que o Recife vá ficar mais bonito do que hoje. O setor da construção civil trabalha para desenvolver cada vez mais produtos sofisticados, com soluções mais criativas. Então, a aparência da cidade vai ficar mais moderna. Isso porque os investimentos mais modernizados só devem ficar prontos nos próximos 10 anos. O shopping Rio Mar, com as três torres de um complexo empresarial, é um deles. Vamos ter o maior shopping com o maior complexo empresarial. Acredito que a cartografia da cidade vá melhorar muito. O Cais José Estelita, que hoje é um espaço vazio, por exemplo, vai passar por uma transformação. O projeto já está todo pronto. Mas o futuro de uma cidade se faz com várias coisas. Espero que o Recife tenha melhor mobilidade, rearborização e sistema de transportes mais eficiente.

tony vasconcelos, 40 anos Superintendente comercial da construtora Moura Dubeux




por tomás de albuquerque lapa thlapa@hotmail.com

Os problemas do Recife não são específicos desta cidade. Estão fortemente relacionados ao modelo de criação de riqueza e distribuição de renda do País. Portanto, repetem-se, com características semelhantes, nas grandes cidades brasileiras. Contudo, para efeito dessas reflexões, limitemo-nos ao caso do Recife, pois onde está nosso coração, ali está nosso tesouro.

tomás lapa é professor titular do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele é autor do livro Grandes cidades constroem-se com edifícios grandes?

Tome-se o exemplo da circulação. Hoje, flui-se lentamente pelas vias do Recife. Fala-se em abrir vias, criar grandes eixos de escoamento ou alargar as vias existentes para melhorar a fluidez da circulação. Porém, não há coerência na relação entre o número de vagas reservadas para automóveis nos edifícios e a capacidade de circulação do sistema viário. Enquanto a política nacional for de apoiar as montadoras na produção de automóveis e incentivar a população a adquirir o automóvel particular, descuidando o aperfeiçoamento da gestão, concessão e operação dos transportes públicos, a luta para compatibilizar a capacidade do sistema viário com o número crescente de automóveis circulando nas ruas será em vão. O que dizer, então, daqui a dez anos? Exemplo de situação crítica já temos em São Paulo, onde os engarrafamentos travam a circulação por horas. Chegaremos lá? A continuar a tendência ao adensamento e à verticalização da cidade, nosso consolo será o de realizar parte das atividades, que exigiriam deslocamento, através dos meios virtuais. O Recife não está só congestionado. O abastecimento d’água dos arranha-céus, que a cada dia despontam no horizonte da cidade, é realizado massivamente através de poços artesianos. Esse fato coloca

em risco a saúde da população, diante do perigo de contaminação dos lençóis freáticos, sem falar das probabilidades de salinização das águas subterrâneas, dada a proximidade do oceano. Existiria solução para todos esses problemas? Na década de 1950, foi necessário instalar a indústria automobilística no País para assegurar a circulação da produção, assim como o deslocamento de passageiros nas cidades e ao longo do território nacional. Bem ou mal, o desafio foi vencido. Em seguida, a partir da década de 1970, deuse sequência à iniciativa de fazer crescer o País, traduzida pela intensificação da construção civil, em vários setores. Nesse sentido, o avanço das tecnologias e a capacidade empreendedora do empresariado permitiram a realização de grandes obras e, sobretudo, a verticalização e o adensamento urbano. No entanto, os centros urbanos chegaram a um ponto de saturação que o aumento do número de empregos e da arrecadação de impostos não são mais suficientes para justificar as ‘deseconomias’ engendradas pelo processo de adensamento urbano. Haveria alguma forma de desfazer o que está feito? Não se trata disso. Vencidos tais desafios, será necessário diversificar os investimentos, de modo que os novos empreendimentos reforcem a capacidade produtiva sem comprometer a qualidade da vida nas cidades. O arranha-céu é um fato que faz parte de nossa cultura contemporânea e não se pode negá-lo. Porém, limites são necessários, tanto do ponto de vista prático, no que diz respeito ao estrangulamento da capacidade útil de determinados serviços urbanos,


quanto do ponto de vista ético. É essencial que o que é vantajoso não o seja unicamente para camadas restritas da sociedade. O Recife, como outras cidades brasileiras, atingiu o grau de hostilidade que conhecemos apoiado na interpretação das leis que assim o permitiram. Ao interpretarmos fielmente a legislação urbanística, que tem contribuído para exacerbar a segregação social, a insegurança nos lugares públicos e, em alguns casos, até mesmo no seio do habitat, estaremos acreditando que o congestionamento da cidade, a precariedade dos serviços públicos e a violência urbana são fatalidades das quais não podemos escapar. Se o que construímos no Recife, até hoje, foi com o apoio das leis, é preciso que repensemos essas leis. Antes de tudo, temos que acreditar que é possível desacelerar o processo de adensamento urbano, revitalizando as áreas centrais, dotadas de infraestruturas e serviços, porém que estão condenadas ao esquecimento. Em lugar de continuar subindo com arranha-céus, é necessário revalorizar milhares e milhares de metros quadrados, atualmente em estado de abandono nas áreas centrais. Será uma forma não só de atenuar o déficit habitacional, atendendo à demanda das classes de renda média e baixa, como também de destacar o patrimônio construído, reavivando a memória e reforçando os traços de nossa identidade cultural. Não podemos nem devemos perder a imagem de uma cidade amena, com vistas para as águas dos rios e do mar. Temos que resgatar um princípio simples, que é o das relações de vizinhança. A concentração do uso habitacional, seja em condomínios

verticais, seja em condomínios horizontais e privês, é a forma de negarmos a cidade com sua diversidade e riqueza e, dessa forma, negar nossa própria identidade cultural. Ao promovermos a mistura de usos, práticas e atividades estaremos estimulando a caminhada a pé. Não teremos mais que tomar o carro para levar as crianças à escola, ir à farmácia ou à loja de conveniências. Não serão somente os ‘passeadores de cães’ que terão o privilégio de comunicar-se entre si nas calçadas e praças. Tornaremos a encontrar os amigos na esquina da padaria e travaremos novas amizades. As ruas e as praças serão novamente marcadas pela presença das pessoas, que serão os guardiões de seu próprio território. Viver no Recife em 2021 será, então, um prazer.


por simone jubert simone.jubert@gmail.com

Em seu livro História da arte como história da cidade, Giulio Carlo Argan1, historiador e teórico de arte, afirma que ‘está em andamento um fenômeno de rejeição da história pelo pragmatismo que caracteriza o mundo moderno’. Podemos observar algumas das manifestações deste pragmatismo na forma como a cidade do Recife vem sendo organizada e como seu espaço vem sendo ocupado e produzido.

simone jubert é doutoranda em Comunicação — Mídia e Estética, pela UFPE, e mestre em Comunicação — Mídia e Cultura pela mesma instituição (2006). Também é jornalista e produtora do festival Janela Internacional de Cinema do Recife. Além de produzir filmes, pesquisa e escreve roteiros para cinema.

1.  ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Para citar alguns exemplos, é só lembrarmos a construção das torres gêmeas da Moura Dubeux no bairro histórico de São José; a demolição da antiga Casa de Saúde São José para a construção de um supermercado da rede Carrefour no Poço da Panela2; o projeto em andamento da demolição dos armazéns do Cais José Estelita para a construção de um paredão de arranha céus; bem como da forte verticalização facilmente observada na paisagem urbana, em bairros como Torre, Madalena, Parnamirim, Casa Forte, Aflitos, Graças, Espinheiro, Encruzilhada, Boa Viagem, Pina, Setúbal. Sobre este último caso citado, temos um dado revelador. Segundo matéria da jornalista Juliana Colares3, entre 1980 e 1990 a oferta de imóveis de prédios com mais de 30 andares era de 0,7%. Já de 2001 a 2008, o percentual era de 22%. Outro dado importante: atualmente, o Recife ocupa o 21º lugar no ranking de cidades com mais prédios de grande porte no planeta.

2.  A Casa de Saúde funcionava como hospital de atendimento psiquiátrico e se situava num casarão, erguido em 1949, todo decorado em azulejo português, onde fora construído nos anos 50 mais dois pavilhões com vitrais decorativos.

3.  No jornal Diário de Pernambuco, do dia 7 de agosto de 2011.

Nessas modificações ocorridas na cidade, podemos perceber que a historicidade imbricada nos lugares e a importância das edificações não são argumentos suficientes para contrapor a atual lógica de ‘urbanização’ do Recife, que vem sendo promovida tanto pelo poder público quanto pelas empresas privadas. Argan (1992, p. 86-87) diria que o que acontece é:

(...) a desambientação do ambiente, ou seja, sua degradação voluntária, ainda que, por vezes, ela venha a ser enganosamente apresentada como valorização ou adaptação às exigências da vida moderna. A presença de obras de arte é sempre caracterizadora de um contexto cuja historicidade manifesta. Uma vez que é o contexto que determina as idéias de espaço e de tempo, estabelecendo uma relação positiva entre indivíduo e ambiente, descaracterizar o ambiente destituindo-o das suas presenças artísticas tradicionais, é uma maneira de favorecer as neuroses coletivas, que se exprimem, mais tarde, em atos de vandalismo e banditismo organizado até os fenômenos macroscópicos de violência e de terrorismo — e todos sabem que este é o preço a ser pago pelo não desejado triunfo da sociedade de consumo.

Atualmente, é a partir desta colocação de Argan que venho fundamentando meu olhar para o futuro em relação ao urbano. Tentar enxergar o Recife daqui a dez anos pode se tornar uma tarefa não só árdua, como também um tanto quanto melancólica. Enxergo, sim, a cidade como um organismo vivo, pulsante, de natureza adaptável, um conjunto de potencialidades esperando serem descobertas e exploradas, mas o cenário que vem se apresentando como consequência das formas de alimentação e manutenção desse organismo é desestimulante para qualquer um que goste da cidade, de andar por ela, com ela e através dela relacionar-se. Acredito que a cidade é um dos componentes que influenciam na sensibilidade dos que dela usufruem, inclusive, na sensibilidade estética. Aquilo que a cidade propicia ou não, a convivência em seus espaços, a relação empática estabelecida entre o habitante e o habitat, e mesmo entre os que nela estão apenas en passant contribuem na forma como o indivíduo enxerga, sente e reage ao mundo.


Na modernidade, a cidade foi feita para ser efêmera, cidade de trânsito. No Recife, e de maneira geral nas cidades da América do Sul, a herança dessa concepção moderna, aliada à herança colonialista de exploração e utilização predatória dos espaços, são obstáculos para a compreensão, eleição e preservação do que é importante dentro do centro urbano e daquilo que deve ser cultivado e reconhecido como tal por seus habitantes. Essa impossibilidade de reconhecimento acaba gerando uma completa indiferença ou mesmo violência contra a cidade. Demolir um prédio de valor arquitetônico para a construção de um grande supermercado (local onde se pode consumir cada vez mais). Inserir na paisagem de um bairro histórico edificações que destoam do seu entorno, descaracterizando um sítio de potencial turístico. Destruir os últimos quintais da cidade — que garantem, com suas árvores, maior circulação de ventos, abrandando o calor, favorecendo tráfegos menos pesados e evitando possíveis complicações nas redes de esgoto. Tudo isso, voltado para a construção de arranha-céus padronizados com suas cerâmicas e azulejos nos bairros já implodidos pela especulação imobiliária, é algo considerado normal e até mesmo ‘melhor para a cidade’. Fora os processos de ‘desambientação’ e de ‘desistorização’ que vêm ocorrendo no Recife, podemos também perceber um desejo de elitização da cidade. Em minha opinião, o maior problema não está nem nas construções em si, nem no ‘desenvolvimento’ e nas mudanças que elas pretendem provocar, mas, sim, na priorização do privado e na falta de contrapartidas para o público, na segregação que se cria dentro do espaço urbano e que dita, de forma silenciosa, mas muito clara, quem circula e por onde. Na observância desses fatos, me parece, claramente, haver duas cidades. Uma cidade ‘shoppinficada’, protegida por seus muros

— para proteger quem não precisa depender do poder público — e uma segunda cidade, sitiada pelos limites desses muros, que depende das iniciativas governamentais para se sustentar e que, por esse mesmo motivo, carece de organização, segurança, transporte de qualidade, infra-estrutura de saneamento e moradias salubres. A compreensão deste contexto atual nos dá margens e bases para pensar o Recife em 2021. E mais do que isso: imaginar não só a cidade que está sendo construída como também o tipo de sensibilidade que ela pode provocar em seus habitantes. Sabemos que toda uma sistemática de relações entre homem e espaço vai sendo modificada de acordo com as demandas da roda de consumo em voga; demandas que, na maioria das vezes, não favorecem, em longo prazo, as comunidades que habitam o espaço da cidade. Pode parecer uma constatação óbvia em termos de encadeamento lógico, mas é aterrador imaginar um Recife (ainda mais) descaracterizado, esvaziado e excludente. As neuroses coletivas, como foram colocadas por Argan, nascem dessa ‘desistorização’ da cidade a qual estamos acompanhando e, por que não dizer, de uma espécie de ‘desistorização’ do homem em relação à sua cidade, aos seus locais de afeto, às suas relações com o outro? O que vemos é uma sistemática onde a relação humana com o espaço e com outros homens é menos importante que as relações de poder implicadas na apropriação e no uso desses espaços. Como será Recife em 2021, não há exatamente como saber. O que sei é que acredito na máxima de Alexander Mitscherlich: ‘A maneira como damos forma ao ambiente que nos cerca é uma expressão do que somos internamente’.


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Onze destinos e uma cidade

por samarone lima samalima@gmail.com

samarone lima é jornalista, escritor e autor dos livros Zé, Clamor, Estuário e Viagem ao crepúsculo. No final do mês, publica seu primeiro livro de poesias, paixão literária mais antiga. É natural do Crato (CE), mas adotou a dupla nacionalidade, graças ao Recife, onde felizmente vive.

A exposição terminou festiva, após a performance de Maurício, que recitou alguns poemas sem nexo e terminou com um grito selvagem, que assustou um garçom e arrancou o choro convulso de uma criança, que dormia nos braços do pai. Pouco antes, em um buraco escavado desde o dia anterior, Mau-Mau tinha lacrado 11 urnas, feitas de argila, e enterrado numa cerimônia estranha, onde invocara o futuro e sua rebeldia, com vertentes xamânicas, músicas do candomblé e lembranças da “Cabala sertaneja da Última Vertente”, que só ele entendia, embora parecesse mais coisa inventada na hora.

“Se os judeus saíram daqui para fundar Nova York, como alardeiam por aí, essas lembranças e projeções serão lembradas daqui a 20 anos, quando o Recife estiver já submerso ou finalmente libertado de seu espírito de província”, disse, arrancando urros de apoio, ao jogar areia em cima das urnas. Os que urravam estavam todos bêbados.

A casa escolhida ficava ao lado da Sinagoga, na Rua do Bom Jesus.

Meses depois da exposição, ele ganhou uma bolsa para morar na França um ano. Apostamos que ele não ficaria sequer seis meses, tal era sua paixão pelo Recife. Todos perdemos. Ele casou com uma holandesa que era marchand, teve três filhos e, depois de mandar cartas semanais, repletas de desenhos, pinturas, poesias e textos selvagens, que ele denominava de “Visceralismo Exilado Autônomo”, foi perdendo o fogo vital. Menos de dois anos depois, dedicou-se ao silêncio, alegando que falar do Recife, estando longe, o fazia sofrer.

Cada urna tinha uma espécie de herança do passado de pessoas que escolhera sigilosamente. Elas deveriam ficar lacradas durante 20 anos. A exposição, intitulada Recife 2030, causou rebuliço, ganhou enormes matérias nos jornais, principalmente pelas afirmações apocalípticas do nosso amigo. Ele dizia que a cidade iria acabar em 20 anos, por causa das ondas gigantes e da indigência estética, e afirmava que os moradores de Boa Viagem já estavam se mudando silenciosamente para o Sertão, onde escapariam da fúria das águas e ergueriam novos prédios, formando um novo feudo. Fui um dos convidados por Mau-Mau. Os outros dez eram pessoas de nossa convivência, mas de artista plástico ele chamou apenas dois, “para não macular a essência do grupo e não criar picuinhas estéticas”. Ele adorava essas coisas. No fundo, era o que o tornava diferente, original e surpreendente.

Naquela época, Mau-Mau tinha muitos cabelos e todos éramos magros. Logo após seu pedido, houve um esmero na preparação do que iria ser colocado na urna, como se os 20 anos fossem uma eternidade.

jjj Um telefonema, no final da manhã, me assombrou. “Divino, cheguei ontem da França. Amanhã, vou abrir as urnas. São 20 anos, lembra? Estou chamando todos da Dinastia, os que sobreviveram”. Ele sempre me chamou de Divino. Recusavase a chamar os amigos pelo nome original.


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1102 apsiver

Fiquei em silêncio. “Nosso bar ainda existe? Duvido. Os bares do Recife morrem sempre antes dos boêmios envelhecerem. Onde nos encontramos?” Nosso bar não existia mais, nem seu dono, nem alguns dos companheiros de copo. Nos encontramos à tardinha, em sua casa, no Poço da Panela. Mesmo vivendo há duas décadas no interior da França, jamais permitiu que a casinha fosse vendida. Alugava sempre a gente conhecida. O grupo fez uma grande festa. Dos 11, éramos oito os vivos.

“Ora ora, vamos ver o que o Divino, nosso profeta de estimação, o observador desnaturado, cúmplice da metafísica de costumes, o estandarte da alegoria, nos reservou, para 20 anos depois...” Ficamos em silêncio. Havia fotos, cartas, poemas, algumas canetas prediletas, tinta, coisas que eu achava que iriam desaparecer. “Ah, temos aqui uma carta. Vamos ler”, disse Mau-Mau, abrindo o envelope. “Vamos ver as previsões do nosso Divino, feitas há 20 anos.” Ele começou a ler, teatral como sempre.

Ele estava calvo, com a barriga saliente e com um olhar cansado, um olhar de quem tinha vivido muitas coisas boas e ruins, mas também um olhar que pedia compaixão dos amigos e de sua cidade. Saímos na manhã seguinte para a casa, onde ele fizera a cerimônia dos “Onze destinos”. Não sei como, já tinha conseguido uma cópia da chave. O local de sua performance, em 2010, já fora uma galeria de arte, um café cultural e depois tornara-se uma agência de banco, até ser comprada por um artista plástico famoso, que vivia mais em Miami do que no Recife. “A primeira urna que vou abrir será a tua, Divino.” Dois pedreiros abriram, pelas laterais, o enorme buraco. Depois foram desenterrando as urnas, num ritual estranho, como uma exumação de algo que eu julgara morto. Na minha urna, vi o nome: “Dorival”. Senti um tremor. Ali, eu tinha 30 anos. Estava agora com 50.

“Recife, julho de 2010. Previsões mediúnicas sobre a cidade, por Dorival Carlos. Mau-Mau, contrariando todas as previsões, daqui a 20 anos, o Recife será uma cidade das artes. Este bairro do Recife, agora em ruínas, vai se tornar um ponto de encontro de boêmios, repleto de escultores, pintores, poetas, romancistas, palhaços e anjos de bicicleta. Não sei como, nem onde, mas haverá a Grande Confluência, que nenhum sismógrafo conseguirá detectar. Gente de todos os lugares do mundo virá ao Recife, em busca de algo que ainda não sei o nome, apenas pressinto. Aos poucos, e sem ruídos, ocuparemos sobrados, casas, mezaninos, corredores. Não sei se estaremos todos vivos. Mas a cidade não será engolida pelas águas, como tens alardeado. Já sei o que dirás após ler esta carta: ‘Grande merda. Espero estar vivo para escutar isso’.” “Grande Merda!”, gritou Mau-Mau. E passamos à segunda urna. v



Recife 2021! Não é dado ao sociólogo o dom da previsão, mas gostaria de ver o Recife dentro de 10 anos sem os problemas de hoje. Sem o Capibaribe poluído e devidamente dragado. Sem o trânsito infernal que está nos levando a emparelhar com São Paulo. A verticalização tem muito a ver com isso, assim como o crescimento populacional. Também o não cumprimento dos planos diretores e a falta de investimento em bom transporte coletivo. Nos jornais da semana, os investidores estão entusiasmados com o crescimento da indústria da construção. O lucro acima de tudo. Não sei quanto a Via Mangue vai contribuir para isso. Gostaria era de ver a cidade com mais parques e praças bem cuidadas, jardins nas casas e a recuperação do verde das ruas, dos condomínios e dos conjuntos habitacionais.

Sem o centro degradado e calçadas entupidas, mas as pessoas sem a necessidade de inventar trabalho para sobreviver. Com os grandes intérpretes da grande música em nossos teatros e não apenas nos do Rio, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, como já foi, faz algum tempo. São tantas coisas!... Recife com todas as boas coisas que as grandes cidades oferecem e sem a maioria dos males que possuem. Não apenas o Recife do passado, mas conservando suas melhores tradições. Não posso imaginar o que vai acontecer e o quanto. É uma utopia muito geral e incompleta. Espero que estejamos melhores do que hoje e do que ontem.

heraldo souto maior, 82 anos ociólogo e professor do Programa de Pós-Graduação S em Sociologia da UFPE




#celebraSPA 10 anos

Bate-papo com os criadores do evento

Aniversário do SPA: comemoração e reflexão Numa tarde de sábado, nos reunimos* no Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), na Rua da Aurora, para uma conversa amistosa com os artistas Maurício Castro, José Paulo e Rinaldo Silva. Por estar morando em Brasília, Rinaldo participou da roda do bate-papo via internet, numa transmissão com vídeo pelo Skype. O assunto era ele mesmo: o SPA das Artes, quase uma década depois. Este ano, o SPA comemora dez edições, que acabaram ficando marcadas por um diálogo intenso dos artistas com o espaço urbano do Recife. Maurício, José Paulo e Rinaldo foram alguns dos principais responsáveis pelo início do evento, em 2002, época em que ele ainda não tinha uma “cara”, como diz Maurício. Nesse tempo, o artista tinha assumido a Diretoria de Artes Plásticas (o que equivale atualmente à Gerência de Artes Visuais) da Prefeitura do Recife, que adotou o SPA desde o começo e segue até hoje à frente da iniciativa. Os três artistas não participam mais da organização do evento, mas foram convidados novamente a discuti-lo. Desta vez, não mais sob a perspectiva da sua elaboração ou da criação. Mas, sim, sob um ponto de vista reflexivo de retrospectiva. O exercício da conversa foi olhar para o início do processo e ver como o evento cresceu e mudou durante esse tempo. Foi observar essas mudanças e pensar para que sentido apontam. Ao longo da conversa, memórias da época da criação do SPA e anseios quanto ao futuro, não só dele, mas também da política cultural recifense, foram compartilhados. Nas lembranças, o engajamento político e o forte desejo de provocar mudanças são marcantes. E nas preocupações, o que se destaca é o desejo de ver transformações mais ousadas serem concretizadas. Um olhar crítico sobre a cria que ajudaram a colocar no mundo marca este bate-papo. Se a proposta da ReviSPA é olhar para frente, para os próximos dez anos da cidade, das instituições e da própria arte, aqui os artistas nos presenteiam com um debate que procura costurar uma visão sobre o passado, o presente e o que pode vir, a partir das ações que estão se dando no terreno das artes visuais pernambucanas desde já, com o enfoque no papel que o SPA das Artes desempenhou na última década.

*Participaram da conversa as editoras da ReviSPA 2011 e os artistas convidados, no dia 30/7/11.


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ReviSPA  Vocês imaginavam que o SPA das Artes chegaria aos 10 anos?

1. Performance Molusco Lama. 2. Palestra Júlio Castro. 3. Varal de imagens do Canal 03.

Rinaldo Silva  Tínhamos a intenção de que o evento fosse significativo para a cidade e suas pessoas. O desdobramento posterior foi muito importante. Fico orgulhoso em ter participado desse gérmen. Desde o início, com Zé Paulo, Maurício Castro, Fernando Duarte, Fernando Augusto e vários outros colegas... Depois que a gente vê que se passaram 10 anos e a gente ainda se reencontra! É um momento de extrema felicidade. Fico muito feliz, até emocionado, em estar desse outro lado, próximo de vocês. ReviSPA  E você, Maurício, quando ajudou a criar o SPA, imaginava que ia chegar a uma década? Maurício Castro  Não. Na verdade, não pensava na durabilidade da coisa. A gente criou o evento em um momento de organização de políticas culturais muito forte na Prefeitura (do Recife), que rompia um pouco com práticas de clientelismo. O SPA se criou dentro de um anseio existente. Uma lei tinha sido aprovada na Câmara de Vereadores para a criação de um Salão Municipal de Artes e havia na Prefeitura a necessidade de criar um salão. Só que existia a falência dos modelos de salão e, então, a gente montou um grupo de discussão, que tinha

justamente Zé Paulo, Rinaldo, Fernando Duarte, Fernando Augusto, para procurar criar algo mais dinâmico. Não tinha esse aspecto de longevidade pensado. Tinha uma característica de transformação. E agora o evento chega aos 10 anos menos transformado do que pensávamos. ReviSPA  Como? Maurício  Se renovando, com propostas novas. Talvez seja até certa utopia da nossa parte achar que algo criado dentro de uma prefeitura possa guardar essa capacidade de renovação tão grande. Foi muito importante para a cidade, porque abriu espaço para manifestações que até então não tinham espaço. Mas, por exemplo, a princípio não tinham as bolsas. A partir do momento em que se criam as bolsas, cria-se uma estrutura fixa, sabe? ReviSPA  Institucional, é isso? Maurício  A coisa na instituição tende a se cristalizar e permanecer, e às vezes freia um pouco essa capacidade transformadora. O evento durou 10 anos e pode ser até que dure mais, mas existe a necessidade de ir se modificando, no meu entender. José Paulo  Concordo com muitas coisas que Maurício coloca. Como Rinaldo disse, é uma


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1. Papo de Artista (à direita. o artista Izidório Cavalcanti com seu porquinho. 2. Show da banda Testículos de Mary. 3. Performance Monga no Atelier Submarino.

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surpresa. A gente nunca imaginaria, há 10 anos, estar aqui falando sobre um evento criado por um grupo de pessoas que pensava cultura naquela época. Sempre colocamos a necessidade do SPA se transformar, ter autocrítica. Em determinadas situações, isso aconteceu, em outras não. Acho que existia a ideia de que poderíamos conseguir uma dinâmica, dentro da instituição pública, e essa dinâmica não era real. A própria estrutura do poder público, seja ela qual for, tem uma forma de funcionamento própria que dificulta o processo de autocrítica e transformação, na velocidade em que a gente estava ansioso pra ver. É preciso lembrar que viemos de um período em que as questões relacionadas às artes visuais no Recife, pelo menos nos nossos 20 e poucos anos, eram muito limitadas. A gente não tinha tanta oferta na cadeia de artes visuais como hoje. Então, realmente, tentava desenvolver dentro da cidade, com os limites que a gente tinha. Tentava agitar, fazer as coisas, chamar os amigos... ReviSPA  Nos anos 1990, não é? José Paulo  Isso. Existia uma carência muito grande da cidade em oferecer situações que pudessem enriquecer o cenário das artes visuais naquele momento. Então, quando Maurício foi convidado para ocupar o que seria hoje a Gerência de Artes Visuais (antiga Diretoria de

Artes Plásticas) viu que tinha a possibilidade, uma brecha, que era essa lei para o salão municipal. Ele disse: “Vamos aproveitar essa brecha pra gente implementar o que a gente acredita”. Já vinham acontecendo as discussões no Coletivo 13, um grupo que se reunia frequentemente durante a época de campanha para criar um documento de diretrizes culturais para a Secretaria de Cultura. Isso foi interessante, porque foi uma mobilização política, coletiva. Várias questões desse documento fazem parte hoje de uma visão mais ampla de política cultural. Que era diversidade, acesso, várias questões, hoje, conquistadas. Através desse documento, conseguimos convencer de transformar. A partir daí, fomos idealizar um evento que pudesse ocupar várias lacunas que a cidade não oferecia. Desde espaço para divulgação, oficinas e palestras a intercâmbios. Agora o SPA já não é iniciante, é estabelecido. Então, aconteceram várias coisas que fazem com que a gente entenda a importância do evento, mas também a importância do questionamento ao engessamento institucional que vem contra a motivação inicial. ReviSPA  Como vocês comparam as primeiras edições com o que vem acontecendo atualmente? José Paulo  Não, olhe, comparar eu não tenho nem assim... Participei dos três ou quatro


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primeiros anos. Depois, de certa forma, fui me afastando. Não tenho como fazer uma avaliação profunda e nem dados para poder comparar. O que eu vejo é que o evento foi cooptado pelo Estado, pela instituição. O que antes tinha uma dinâmica, uma participação, foi se limitando a ousar, a fazer diferente.

1. Beije-me, ação do Assentamento. 2. Drama, performance de Marcelo Ghandi.

Maurício  Depois que saí da organização, participei várias vezes do SPA como artista. Acho o seguinte: no início, você tem uma liberdade maior, porque não tem o peso da tradição dos 10 anos e as pessoas não esperam nada do evento. A coisa não tinha cara. Quando começa a ter — “Ah! É um evento de intervenção urbana” ­—, o próprio SPA se limita. Então, quando chega aos 10 anos, parece que já criou uma rodagem que começa a prejudicar a capacidade da pessoa pensar em algo totalmente diferente para inscrever no SPA.

3. Multirão de grafite na Rua do Estudante.

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Rinaldo  Lembro que no início tivemos, além de muita dificuldade para a implantação, dificuldade de relação com os órgãos da Prefeitura. Muitas vezes, queríamos que a Emlurb (Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana) ou outra divisão da Prefeitura participasse e eles achavam muito estranho. Acredito que hoje isso deva estar mais fácil, pela própria dinâmica do evento ao longo dos anos. Hoje, deve ser

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mais natural para quem está fazendo a gestão cultural disso. Agora, queria acrescentar o seguinte: estou morando em Brasília, onde tem um evento chamado Fora do Eixo. Ele é completamente influenciado pelo SPA das Artes. Já está no terceiro ano, me parece. Participei de dois ou três e é muito interessante vermos que depois de certo tempo, o formato que a gente pensou também vai gerando sedução para outros espaços, outras cidades. Acho curioso o que Maurício falou que, realmente, um evento dessa magnitude, já em níveis nacionais, vai se cristalizando. Lembro que na época que criamos o SPA, tinha o salão de artes plásticas da Bahia, que dava um prêmio alto de R$ 15 mil. A gente ficava pensando: “Não tem como dar tudo isso, não vai rolar”. Então, pensamos em várias bolsas de um valor menor para que elas pudessem ser pulverizadas entre as RPAs (Regiões Político-Administrativas do Recife) da cidade e os seus bairros. Nesse sentido, cristalizar essa ação, diversificada e pulverizada entre a população, é muito bom. Agora, no sentido criador, como Maurício falou, concordo com a dinâmica de pensar coisas diferenciadas para a cidade e o evento... Fica difícil para os novos gestores fazerem essa colocação ou relação com ideias diferentes. Mas tem que botar a cabeça pra pensar! Tem que haver uma consulta anterior à realização do evento, uma ouvidoria com os artistas.


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1. Prédio do Assentamento (Pátio de São Pedro). 2. Ação organizada por Daniel Santiago. 3. Intervenção de Aslan Cabral. 4. Palestra na Fundação Joaquim Nabuco. 5. Amanda Melo se preparando para a performance Isolante. 6. Varal, de Lourival Cuquinha.

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da área. O público é muito pequeno e não sei, realmente, como sair dessa... Mas seria um dos componentes que me levaria a repensar que tipo de evento poderia ser mais palatável para o público em geral.

ReviSPA  Se vocês fossem criar o SPA hoje, considerando o contexto da arte recifense, bem mais institucionalizado, que evento criariam? José Paulo  Acho que as diretrizes que pensamos há 10 anos ainda se mantêm. Uma coisa que tínhamos muito clara era a liberdade de criar uma dinâmica de discussão para se formatar o evento, uma forma de contribuir para o cenário de artes visuais, de fazer uma coisa diferente, com movimento, aberta. Mas o que apontar não sei... Teria que, realmente, criar uma discussão. O que sei é que o SPA tem que ser um evento que enxergue sempre para frente, não criando conforto, ou porque já tem as rubricas aprovadas ou a política municipal quer que aconteça. Não. Quando pensamos o SPA, era isso: um evento feito pela instituição pública, mas que abria espaço para a participação da coletividade.

1. Intervenção M2, de Bruno Faria 2. Intervenção Vende-se este rio, de Marcos Costa. 3. Campanha 4 graus, intervenção de Alexandre Vogler.

ReviSPA  Mas ia continuar tendo essa cara de arte urbana? José Paulo  Isso aconteceu no processo. O primeiro SPA não tinha essa configuração. Isso foi se colocando no terceiro ou quarto ano. É uma discussão a ser feita. O que é a arte urbana no Recife? O Recife é uma cidade que tem características de expressões de arte urbana? Onde é que você encontra isso? Qual é o público? São questões que têm que ser avaliadas. Maurício  Terminou tendo essa cara. Mas a gente não criou pra ser um evento de arte urbana. Acho que terminou tendo essa cara por conta do Mapa (das Artes). Ao se gerar um mapa, a pessoa poderia fazer (o trabalho) em qualquer lugar. O mapa é uma representação da cidade... Ou talvez, por conta da falta de espaço as pessoas aproveitaram o evento pra colocar intervenção urbana, performance e outras coisas que não eram contempladas dentro da cadeia de artes plásticas daqui.

Maurício  Não sei como seria. Mas acho que de 10 anos pra cá se ampliaram muito os espaços, através de salas de exposição, de editais de artes plásticas. No entanto, uma coisa que não cresceu é o público. As artes plásticas continuam tendo um público diminuto. Mesmo na rua. Na rua muita gente vê, mas olha aquilo e não processa de uma forma como um espectador 1 2

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1. Roda de break dance. 2. Coletivo Media Sana. 3. Palestra de Tom Zé na Livraria Cultura. 4. Fila, do GIA (Grupo de Intervenção Ambiental). 5. Escultura de Augusto Ferrer. 6. SPA Tamarineira. 7. Christina Machado na sua ação Resistência, inexistência com pacientes do Hospital Ulysses Pernambucano (SPA Tamarineira). 8. Marcelo Coutinho no SPA Tamarineira. 9. Intervenção de Maurício Castro.


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ReviSPA  Vocês enxergam isso como cumprimento do edital ou como uma resposta a uma identidade que se constituiu de forma espontânea? Maurício  Acho que se constituiu de forma espontânea. Não conheço o edital atualmente, mas, a rigor, mesmo que existam certos direcionamentos, eles existem para ser burlados. Em um evento desse tipo, a pessoa tem que enganar. Dizer que é arte urbana e depois não é: é uma exposição de pintura a óleo. Mas esses editais existem, porque é um evento da Prefeitura do Recife e há a necessidade de ter um edital. Mas por parte dos artistas, eles têm mais é que inscrever propostas diversas e, se possível, burlar. Existe hoje em dia uma imensa formatação. O cara faz uma coisa pra um determinado edital, aí faz um tipo de trabalho pro SPA. E isso é ruim para o momento criador dos artistas em geral.

1.  Rinaldo participou desta conversa via internet, por Skype.

Rinaldo  Gostaria de acrescentar uma coisa, sobre se a gente fosse fazer o SPA hoje. Acho que essa parte virtual, da qual estou participando agora1, tem muito a crescer. Isso pode ser feito através de uma parceria com grandes órgãos, como a gente se juntar ao Porto Digital ou a ONGs das RPAs que são atuantes, sabe? Esse tipo de ponte entre as instituições ainda é muito falha. Isso poderia ter se potencializado bastante num evento como o SPA das Artes.

José Paulo  Em relação a essa característica de arte urbana, eu tenderia a deixar o SPA mais aberto, democrático. No momento em que você deixa as pessoas mais livres para se colocarem, pode ser até que se descubram outras coisas. Com essa história de arte urbana você está, de certa forma, impossibilitando que ideias novas apareçam. Não vejo essa característica de arte urbana tão forte na cidade, pelo contrário. Passaram-se 10 anos, tiveram modificações, mas no geral a gente vive as mesmas carências de antes. ReviSPA  Quais, por exemplo? José Paulo  Acesso da Região Metropolitana aos equipamentos, uma dinâmica maior de eventos, relacionada a exposições, e dos espaços. Pela dimensão da cidade, é muito pouco, ainda. A gente vê pessoas se esforçando de maneira incrível pra que as coisas aconteçam, mas as definições político-administrativas dentro do campo da cultura são extremamente obtusas, limitadas. Não se dá um valor real à política cultural como se deveria dar na cidade do Recife. O que a gente vê? Gastar uma fortuna em Carnaval, torrar o dinheiro do ano todo numa ação... A gente ainda vive os mesmos problemas, um entendimento da esfera cultural muito limitado.


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2.  Esta performance foi realizada no SPA de 2002, no ateliê do artista Maurício Castro, o Submarino.

ReviSPA  Mas falem um pouco mais da história do SPA, do início, do Ateliê Submarino...

Rinaldo  É interessante o que Zé Paulo está falando com relação aos grandes eventos que acontecem aí, que são milionários mesmo. Provavelmente, o SPA, em relação à questão orçamentária, não deve ter crescido muito. E isso também demonstra ausência de interesse da própria Prefeitura. Agora, o evento rende porque as pessoas têm essa identidade, têm essa particularidade, principalmente os artistas, de querer fazer com que aconteça. A gente vê que cresceu, mas é bom que cresça dentro da cidade. É bom que cresça, particularmente, dentro das RPAs, cresça nos bairros. O eco no Recife é muito pequeno. Uma cidade tida como o baluarte da cultura do País precisa demonstrar mais isso. É pra ter arte brotando de todos os cantos. E isso não se pode esperar que caia de cima pra baixo. Tem que partir das pessoas, dos transeuntes também. Pode ser que esse tipo de análise, de retrospectiva traga uma nova luz. É importante fazer uma enquete, uma pesquisa no sentido de ver o que o transeunte acha do SPA das Artes. A gente tem que perguntar aos outros... Quem são esses outros? Os cidadãos. A identidade tem que ser construída não só no gueto artístico, mas com o povo da cidade.

Maurício  O Submarino era o meu ateliê na época. A relação com ele foi a partir do design gráfico feito por Renata Faccenda e Daniela, que tinham escritório lá. E a gente inscreveu como artista, no mapa das artes, a performance da Monga2. Era uma performance coletiva, feita no ateliê, mas que se localizava só dentro do Mapa das Artes. Não era da programação oficial. Foi maravilhoso! Foi um processo totalmente coletivo. Todos do Submarino se envolveram e a gente construiu, fez trilha sonora, gravou, ensaiou, foi uma performance bem... Rinaldo  Marcante! Maurício  Marcante, bem feita. Foi um negócio muito bem feito, bom danado... Rinaldo  O que a gente tinha como ideia para gerar o SPA das Artes era justamente esse legado de intervenção e de relação que a gente fazia entre os nossos ateliês. Tinha o Quarta Zona de Arte, onde aconteciam muitas coisas antes do Bairro do Recife ser revitalizado. Não tinha nada no bairro e o Quarta Zona de Arte tinha exposições, cursos, intervenções que a gente fazia ali com show e tudo. E os meninos participavam da Brigada Henfil e eu da Brigada Portinari.

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Então, a nossa relação com a política sempre existiu. Culminou com a gente entrando, por um momento, na Prefeitura e tendo que pensar um evento diferenciado. Acredito que isso aconteceu por essa experiência anterior que tivemos nas campanhas políticas e nos ateliês. ReviSPA  Como vocês avaliam a contribuição do SPA para a inserção da arte contemporânea no circuito do Recife?

1. Artistas franceses na UFPE. 2. Performance Neutralidade, do RE:Combo. 3. Resultado da oficina da fotógrafa Bárbara Wagner. 4. Intervenção Solidão pública, de Daniel Aragão. 5. Performance Experimentos gramíneos 1, de Maicyra Leão. 6. Performance Sagrado coração de Izidório.

3.  Trabalho de Marcos Costa, Vende-se este rio, realizado no SPA de 2004. Uma banca de camelô vendia água do Rio Capibaribe em saquinhos plásticos. Na placa da barraca, estava escrito: “Vende-se este rio”.

José Paulo  Acho que, no momento em que você faz um evento anual, em que durante uma semana você convida e seleciona vários profissionais, daqui e de todo Brasil, pra discutir e vivenciar artes visuais, está contribuindo pra discussão da arte contemporânea, com certeza. Maurício  Acho que contribuiu muito também para a viabilização de projetos individuais de muita gente, principalmente depois que foi implementada a bolsa. A pessoa tinha a ideia de fazer uma performance, mas não tinha recurso. Então a bolsa possibilitou muita gente dizer: “Eita! Vou realizar esse trabalho no SPA”. Agora, sobre a questão da arte contemporânea, ela iria (emergir) com ou sem SPA. A arte contemporânea está aí, ela é a tendência oficial da arte, todas as instituições querem arte contemporânea e estaria acontecendo com ou sem SPA.

Rinaldo  Acho que contribuiu de diversas formas. Indiscutivelmente contribuiu com um pouco de grana pra pessoas que não tinham nunca participado. Isso foi muito bom. E a gente fez um edital que foi muito criterioso. É um edital pra muitos, com pouco dinheiro. Aí isso fez com que pessoas também de fora, que estavam dispostas, dissessem: “Ah eu vou! Eu pago a passagem ou vou de ônibus mesmo, mas vou”. Isso demonstrou que o que foi pensado pode ser inserido rapidamente dentro das propostas contemporâneas. Eu me lembro de uma intervenção3 que foi maravilhosa. O artista vendeu o rio. Jogava um balde em plena ponte, aí puxava o baldinho e enchia uns “plasticozinhos”. E tinha lá uma placa no camelô: “Vende-se este rio”. Parou a Ponte Duarte Coelho. Os ônibus paravam, a turma comprava, era uma festa. Pensar essas ações, que são simples e que tem uma intervenção direta nas pessoas, isso é muito bom. Acho que contribuiu muito e ainda vai contribuir muito mais, nesse sentido. José Paulo  Isso é uma questão importante. Mas tem que se entender que quando a gente lançou as primeiras bolsas, tinha consciência de que eram com valor muito limitado. Mas dentro da situação do Recife, naquele momento, a gente sabia que aquilo ali era importante. Agora, não achamos que bolsa de R$ 500 é o ideal. Mas essas coisas têm que ser reavaliadas.


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1. Banho público, do grupo A Firma da Irmã de Irma 2. Crystallus capillus, de João Manuel Feliciano. 3. Performance de Daniela Mattos no Mamam no Pátio. 4. Intervenção Bandaid sticker, de Alberto Lins. 5. Performance de Gargamel. 6. Performance de Maurício Silva.

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ReviSPA  Vocês acham que o evento abriu caminho para novos artistas entrarem no circuito, diferente do trilhado nos anos 1980 e 1990? José Paulo  Eu acho que somou com outras ações que já acontecem no Brasil. Quando a gente tinha 20 anos, as oportunidades, no sentido de intercâmbio, de participação de exposições, de eventos, eram muito limitadas. Praticamente, vivíamos ilhados aqui no Recife. Acho que isso é uma pergunta que vocês devem fazer a esses artistas que tiveram essa projeção. Amanda Melo, foi uma. Cristiano Lenhardt, que veio por causa do SPA e ficou, fez residência aqui no Recife. Tem vários nomes que podem ser citados, que tiveram essa contribuição do momento do evento, pra poder reforçar e contribuir no seu portfólio e na construção de sua trajetória. Acho indiscutível.

1. Performance Indigo, de Bárbara Rodrigues. 2. Ação Vitrines, de Marina Rocha. 3. Exposição Vizi, no Museu Murillo La Greca (Gisel Carriconde, Krishna Passos e Maicyra Leão/Projeto Amplificadores).

Rinaldo  E desde o início a gente teve uma preocupação com a documentação — as ReviSPAs. E que essa documentação fosse um instrumento gráfico que pudesse fazer com que todos que tinham participado aparecessem, da forma mais democrática possível. Então, nós fizemos história e vocês estão fazendo história. E essa história precisa ter documento. Esse documento faz parte do conceito de intervenção. 1 2 3

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ReviSPA  A Prefeitura do Recife é um suporte para o evento acontecer e, ao mesmo tempo, ela também limita as ações. Como vocês analisam essa relação? O evento deveria ser independente da Prefeitura ou não? Maurício  Como Rinaldo acaba de falar, já começa a ser histórico. Histórico é como se fosse tradição. Com dez anos, o SPA já começa a ter uma cara e já assume a necessidade de romper com essa cara e propor alguma coisa nova. E assim caminham as coisas. Agora, sair da tutela da Prefeitura... Poderia ser através de editais. Mas isso é um evento da Prefeitura. Cabe à administração e à organização do SPA, bem como à comunidade dos artistas dialogar e ver como eles resolvem esse tipo de questão de transformação ou permanência mesmo. Essa é a questão. José Paulo  Talvez ele (o SPA) tenha sido criado com características que não se relacionam de forma muito fluida com a estrutura da Prefeitura. Será que o formato do SPA é condizente com a administração pública? É isso que eu me questiono hoje. Então, talvez fosse até uma utopia achar que a dinâmica que estava sendo proposta pudesse se desenvolver de uma maneira tranquila dentro de uma instituição. Mas, ao mesmo tempo, o que eu sinto é que, se não houver pressão, se não houver uma movimen-


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1. Exposição descentralizada do articulador Jacaré. 2. Movimentos para atravessar a multidão, de Maíra Vaz Valente. 3. As noivas do Dom Gatão, de Daniel Santiago. 4. Debate com Paulo Bruscky. 5. Corpoemlixo, do Coletivo Eu Não Somo.

4.  O SPA das Artes passou a ocupar o Hospital Ulisses Pernambucano a partir de 2005, realizando ações com os usuários.

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tação do meio, em função dos seus desejos e das suas necessidades, se não tiver uma pessoa bacana sentada no posto, a coisa simplesmente vai fluir de acordo com a necessidade da Prefeitura. Então tem que haver uma constante pressão externa, como tem que acontecer com qualquer outra pasta — de educação, de saúde, transporte, turismo. E uma aproximação e um diálogo constante com o meio. Se não, vai ficar um evento como outro. Rinaldo  Acho que ele foi criado dentro do universo da gestão pública e permanece dentro desse universo. É interessante que continue. Agora, a gestão pública tem, sim, de crescer. O órgão público é, muitas vezes, inapto diante da necessidade de certos eventos, certas características culturais — seja no Recife ou em qualquer lugar. A dinâmica da arte, a dinâmica das linguagens, é maior do que a capacidade pública de gestão. Então eles têm, sim, que se adaptar. Eles têm, sim, que procurar novos caminhos de relação entre os órgãos e entre as secretarias. O SPA sempre tem um momento que é dentro da gestão. O caso do hospital da Tamarineira4 foi uma coisa completamente inovadora e interessante pra gente. A gente tem que forçar

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esses órgãos a fazer cada vez mais esse tipo de relação entre as secretarias da Prefeitura. ReviSPA  Como vocês imaginam o SPA daqui a 10 anos? O SPA e o Recife. Rinaldo  Imagino o SPA com no mínimo R$ 1 milhão... E ele sendo um evento planetário. O Recife vai estar lindo e maravilhoso. Vai estar completamente despoluído. A gente vai fazer passeio de barco, vai ter táxi pela água, um transporte que seja fluvial. Eu penso sempre de uma forma positiva. Eu acho que é possível. Devemos, não só nós, que de certo modo demos vida a essa história toda aí, mas também quem está junto, pensar pra frente mesmo. Ousadamente, senão não rola. José Paulo  Eu acho que eu vou estar do lado de lá, entrevistando vocês e perguntando como foi o SPA nesses próximos 10 anos. Maurício  Eu acho que vai ser um inferno o Recife. Existe um projeto de desenvolvimento aqui que é totalmente caótico. José Paulo  A tendência é piorar...


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2009 1. Spátio. Mostra de Videoarte. 2. Intervenção Inventário, de Cris Soares. 3. Intervenção de Clarissa Campelo. 4. Na aba do meu chapéu, de Carolina Santos. 5. Spátio com Fernando Peres. 6. Brinde, de Wolder Wallace.

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5 1. Pertença, de Júnior Pimenta. 2. Dois pontos (Projeto Amplificadores/ Museu Murillo La Greca). 3. Farol, de Leo Antunes. 4. Lambe-lambe curativo, do Coletivo Una. 5. Reserva, de Marília Furman. 6. O ovo e a bacia, do Coletivo Tuia de Artifícios. 7. Apresentação da Intrépida Trupe na abertura do SPA. 8. Miragem, de Dominique Berthé. 9. Oficina de João Lins. 10. Náusea, de José Rufino. 11. Resíduos urbanos, do Coletivo Ubaia e Captain Borderline. 12. Práticas para corpos performáticos, de Fabíola Sales Mariano.

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ReviSPA  Vocês imaginam que as artes vão crescer daqui a 10 anos ou não? Vocês têm esperanças pro futuro? Maurício  Tenho, tenho esperança. Mas é muito difícil de avaliar do ponto de vista cultural. Se esse evento durou 10 anos, ele vai continuar por mais 10? Pode ser que se crie outra coisa. Na verdade, a gente vive gestões que são continuadas. De repente, pode entrar um outro partido e mudar tudo, toda política cultural e fazer outra coisa completamente diferente. Não existe nenhum compromisso de manter o SPA. Poderia, talvez, se tornar independente. Não existe, por exemplo, um plano diretor de 20 anos de projeto cultural. Não existe pra nada dentro das nossas administrações. José Paulo  Pode até ter no papel, mas na prática qualquer outro governo pode vir e mudar. Eu acho que houve modificações sim. Hoje em dia está bem melhor, principalmente pra quem está começando. Não digo a cidade, a cidade está pior, falo da questão das artes visuais. A cultura aqui vibra, tanto a cultura popular, como a música; vários tipos de manifestações que acontecem de uma maneira muito intensa. Agora, essa ques-

tão do acesso, de você criar instrumentos, de você facilitar, isso é complicado. Qual é o equipamento novo em 30 anos? Quais são as ações que em 30 anos aconteceram? Se for pontuar isso, é uma cidade com uma velocidade muito lenta. Rinaldo  Aumentou, mas não aumentou com a mesma velocidade que a população. José Paulo  É, os museus são praticamente os mesmos, os acervos são praticamente os mesmos. Existem melhoras, mas ainda muito limitadas. Queria ver como Rinaldo diz: daqui a dez anos, museus sendo criados, RPAs com equipamentos culturais construídos. E você sabe que tem situações que podem ser resolvidas, é só uma questão de política mesmo. Acho que, principalmente a geração de vocês, bem disposta, como a gente era na época do primeiro SPA (risos) deve tensionar pra acontecer essas transformações. Porque, realmente, a cidade está pedindo essas melhorias. Está se chegando a uma situação caótica. Mas Rinaldo vai chegar de barco, de aquajet, no Capibaribe, triunfante! v



Recife, setembro de 2021 — A cidade se prepara para mais um SPA das Artes, evento bastante rotineiro no calendário artístico da cidade. Mais por costume do que propriamente por merecimento. Assim como outros projetos institucionais que ajudaram a solidificar uma cena artística contemporânea pujante, seu tempo glorioso ficou no passado. Sem investimento público e sem ser um projeto de Estado e sim de governo, o SPA das Artes, como outras instâncias fomentadoras das artes plásticas de Pernambuco — tais como bolsas de pesquisa, espaços experimentais e de envergadura nacional com recursos para

propor exposições e projetos, incentivo a produtores independentes — padece com as descontinuidades e perde o fôlego. A história já é por demais conhecida: no momento em que Pernambuco passou a ser importante economicamente, pouco foi feito para solidificar profissionalmente o setor das Artes. Sem grandes projetos de alcance nacional e internacional na última década, a capital pernambucana foi se contentando em novamente viver do passado. Os que quiseram continuar crescendo, migraram para os grandes centros, tal qual seus antepassados em busca do ‘Sul maravilha’.

cristiana tejo, 35 anos oordenadora geral de Capacitação e Difusão CientíficoC Cultural da Fundação Joaquim Nabuco e curadora de arte contemporânea


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Sobre pesquisa, arte, Recife e como tudo isso pode se juntar

o grupo pia – pesquisas e interações artísticas existe desde 2010. É formado por Cris Cavalcanti (graduanda em ciências sociais – UFPE); Laura Sousa (bacharel em história – UFPE); Raíza Cavalcanti (mestre em sociologia e jornalista – UFPE) e Raquel Borges (mestranda em história – UFPE). Atualmente, o grupo trabalha em parceria com o Mamam e integra o GEHA (Grupo de Estudos em História da Arte – UFRPE). Em parceria com a jornalista Olívia Mindêlo, trabalhou na edição da ReviSPA 2011.

1.  Exposição com curadoria de Clarissa Diniz e Maria do Carmo Nino, que ocupou parte do térreo do Mamam em sua reabertura. Ao longo de quase todo o ano de 2010, a mostra foi apresentada em três recortes.

Nos anos de 1960 e 1970, os artistas passaram a adotar ações e disciplinas que diversificaram sua posição no campo da arte. O artista crítico, o artista curador e o artista sociólogo foram alguns dos agentes identificados em espaços fechados ou nas ruas que faziam do debate, do posicionamento político, uma experiência artística e vice-versa. Essas práticas romperam com discursos institucionalizadores da arte e demandaram sua revisão. Neste sentido, foi exigido um novo tipo de posicionamento perante a circulação da arte, sua exibição e sua vivência. Diante destas novas falas, ou melhor, do encontro delas, o museu deveria deixar de ser somente o lugar do enquadramento e, até mesmo, o lugar de um entendimento linear do passado. Partindo da análise dessa nova condição de organização dos museus e de seus acervos, da relação do público com as obras e das múltiplas funções que passam a ser experimentadas pelos artistas dentro de um circuito de arte, podemos apontar para a complexidade e a multiplicidade deste processo dinâmico envolvendo as instituições de arte e de seus agentes hoje no Brasil e, em especial, na cidade do Recife. Esta dinâmica múltipla, que envolve as mais diferentes participações e contribuições de uma instituição que se questiona, de um artista que se reinventa e de um público que vivencia e dá significado às obras, aponta, em nosso entender, para a necessidade de constituição de outro processo, extremamente importante nos circuitos de arte: a formação e a atuação de grupos de pesquisa. Grupos que possam refletir criticamente sobre este processo, qualificando o trabalho das institui-

pelo grupo pia grupoindependentepia@gmail.com

ções e contribuindo para o fortalecimento do campo artístico, de forma sistemática. Porém, emerge a questão: como as instituições do Recife estão dialogando com o campo artístico, abrigando suas complexidades e essas novas necessidades? No começo de 2010, a reabertura do Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), após um período de reformas, marcou o retorno à cena de uma das instituições de arte mais importantes da cidade. Essa volta se deu com uma exposição que pôs em questão a própria condição do museu, do seu acervo e de suas políticas: a mostra Contidonãocontido1. Após uma década de funcionamento, o Mamam expôs uma fratura ao público. Abriu seu acervo, apresentando o que estava lá e o que não estava, e colocou em discussão o seu lugar como instituição. O público foi convidado a pesquisar o acervo do Mamam e a descobrir suas ausências, na tentativa de preenchê-las. Além disso, foi instaurado um debate no interior do museu: a necessidade de pesquisadores para descobrir o acervo, trabalhar com ele, pensá-lo e abri-lo para a cidade. No esforço de atender a essas novas necessidades, as instituições de arte do Recife vêm, aos poucos, recepcionando grupos de pesquisa em seu interior, apoiando algumas iniciativas independentes. No Mamam mesmo, o grupo organizado pela historiadora Joana D’Arc de Souza Lima tem como proposta produzir pesquisa a partir do acervo do museu. Isso, em si, já é uma evidência bastante importante de abertura crítica da própria


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instituição, que começa a negociar espaços entre os saberes acadêmicos e artísticos. “Acho fundamental que os museus e as instituições culturais públicas que abrigam os acervos de arte organizem um departamento de pesquisa. Qualquer instituição que zela pela construção dos saberes, pela difusão e pela formação dos mais diversos públicos possui um departamento de pesquisa. (...) O CAD (Coletivo Acervo em Diálogo) configura-se como um coletivo independente e elegeu como lócus de sua pesquisa o acervo de obras e o acervo documental do Mamam. Objetiva, no horizonte maior de sua abrangência, pesquisar o processo de formação do acervo de obras; refletir sobre quais os caminhos percorridos e quais as práticas foram adotadas na construção de uma política de formação de acervo para a instituição. (...) Tenho uma intuição de que ao longo de nossa organização e trabalho, forjaremos uma necessidade para a própria instituição: a de criar em seu organismo um setor que possa atuar organicamente”, aponta Joana D’Arc2.

2.  Entrevista realizada em 17 de agosto de 2011. 3.  Entrevista realizada em 29 de julho de 2011. 4.  Em 2007, surgiu a primeira tentativa de um grupo de estudos lá no Mamam, coordenado por Cristiana Tejo, Natália Barros e Carolina Ruoso. Hoje, na direção de Beth da Matta, o Mamam abriga o grupo coordenado por Joana D’Arc, além de apoiar o Grupo PIA.

Porém, tais dinâmicas isoladas não são suficientes para indicar uma mudança política das instituições, no sentido de abertura para a pesquisa. Ainda existem muitas dificuldades e limitações a serem superadas. Assim destaca Natália Barros3, historiadora da arte, também com experiência em instituição pública voltada para a cultura, as artes e o saber científico. Natália aponta ainda para o crescimento do interesse pelas artes no Recife, partindo de jovens pesquisadores, e para a consequente necessidade de formação desses grupos de discussão e pesquisa em arte, a fim de que possam dinamizar os debates e as produções intelectuais no campo.

“Tenho percebido, nos últimos anos4, que o objetivo era essa qualificação do acervo do museu. (...) Entender que, para trabalhar com mediação, com educação em arte, era necessário esse estudo. (...) Acho que essa produção crítica mais sistemática começa a ganhar força, inclusive com pessoas muito jovens e que estavam nos cursos de arte, de história, de sociologia. A Fundação (Joaquim Nabuco), desde os anos 1990, oferecia cursos de formação em história da arte. Isso é uma coisa. A outra são pessoas, a partir de 2003, que começam a se interessar, elas próprias, a fazer pesquisas para entenderem essa história da arte na cidade do Recife. Só que tudo isso é de forma muito dispersa. A verdade é essa: existe um interesse muito forte das pessoas, uma vontade, mas está faltando profissionalizar a pesquisa em arte aqui. Como assim, profissionalizar? Institucionalizar, criar mecanismos de financiamentos contínuos, pra que essas pesquisas sejam aproveitadas”, observa a historiadora. Vendo dessa forma, percebemos que o problema não é a falta de agentes, de pessoas que pretendem movimentar a pesquisa em arte. A questão vai além, alcança as instituições que ainda não abraçam essas iniciativas individuais e não asseguram sua continuidade. O problema é de falta de políticas sistemáticas para a área da cultura que permitam aos museus da cidade uma estruturação de ações e espaços, de forma concreta e, principalmente, consolidada. Dentro de um contexto de muitas incertezas, os projetos institucionais revelam mais as intenções de seus gestores do que a estruturação dos museus e centros de arte a partir de políticas públicas contínuas. Os diretores, atuais e passados, se esforçam no apoio


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às iniciativas dos pesquisadores, mas, eles sozinhos, também não conseguem garantir a continuidade e a sistematização dessas ações. “Daqui a 10 anos o que é que eu estou vendo? Sou muito otimista. Acho que a gente tem a faca e o queijo na mão. E a fome. A fome é o principal. Você pode ter a faca e o queijo, mas sem a fome você não faz nada. Estou vendo no Recife uma fome muito grande, embora dispersa, de gerar pesquisa, estudos, de profissionalizar o campo da história da arte. Existem trabalhos a serem feitos. Na universidade, professores que mostrem aos alunos a necessidade de eles circularem e criarem uma formação fora das grades; um papel das instituições de disponibilizarem os acervos, de criarem seus catálogos; os artistas, também, de acolherem esses pesquisadores (...). Ao mesmo tempo, é importante que os gestores criem mecanismos de financiamento para essas pesquisas”, defende Natália.

Nós do Grupo PIA, identificamos uma necessidade recente, cada vez maior, de construção de outros modelos de narrativa histórica, a partir das pesquisas sobre a arte pernambucana. O que nos leva, igualmente, a defender uma efetiva circulação dos jovens pesquisadores pelos espaços das artes. Assim como o maior interesse dos artistas, dos estudantes de arte e dos gestores culturais em dialogar com o pensamento desenvolvido nas universidades. Enxergamos também a urgência pela busca de uma formação que abranja várias disciplinas e trabalhamos para a utilização dos museus e centros de arte e cultura para a realização, sobretudo, de encontros.

Percebemos, nos últimos anos, ações que atendem a essas demandas. Contudo, a comunicação entre a produção acadêmica e a artística não se desenvolveu a ponto de resultar em uma multiplicação dessas possibilidades. Ou, pelo menos, os frutos já constatados não cresceram no mesmo ritmo de renovação do meio de arte. Um dos nossos maiores objetivos é participar dessa estruturação institucional para a pesquisa sobre arte no Recife, de forma independente e sempre buscando parcerias. E tudo isso antes mesmo de a próxima década acabar! v


Essa é fácil. Aqui na cidade você chuta uma pedra, pulam 10 artistas… Portanto, segundo meus cálculos, o Recife será a Capital Brasileira do Artista Plástico do Norte-Nordeste. Prepare-te!

lia letícia, nascida em 10 de setembro de 1911, segundo consta no seu Facebook Artista plástica gaúcha picada pelo “mosquito” do Recife


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A instituição profética

por jacqueline medeiros jacque.rochalima@gmail.com

jacqueline medeiros é coordenadora de Artes Visuais do Centro Cultural Banco do Nordeste e mestranda em história e crítica no Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

1.  Agambem, Giorgio. Criação e salvação. In AGAMBEM, Giorgio. Nudez. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Ed. Relógio Dágua, 2010. 2.  Idem, p. 13.

As dificuldades de profetizar o que será uma instituição 10 anos à frente do meu tempo permeiam vários caminhos. Um deles é ver-me na posição de um profeta. Como saída, tomo como base de reflexão o texto Criação e salvação1, do filósofo italiano Giorgio Agambem (2010), cuja definição de profeta me possibilita ter uma clareza maior do papel real de uma instituição, pelo menos nos dias de hoje.

outra. A instituição de 2021 terá essa questão muito clara e poderá possibilitar o exercício dessas tensões.

Para Agambem, os profetas servem de mediadores na afirmação da salvação. Os profetas poderiam ter desaparecido cedo da história do Ocidente. O judaísmo, com a tradição rabínica, tende a encerrar o profetismo num passado ideal, que se conclui com a primeira destruição do Templo, em 587 aC. No cristianismo, com a vinda do messias à Terra, o profeta já não tem razão de ser. Ou ainda, como na teologia cristã, em que as duas obras divinas, o Pai e o Filho, o primeiro é o criador onipotente e o segundo, o filho redentor da obra do Pai, logo partiu do mundo terreno. Mas o profeta nem por isso desapareceu. Sob disfarces de várias espécies, continua discretamente o seu trabalho.

o crítico, que perdeu a obra da criação, vinga-se sobre esta pretendendo julgá-la; o poeta já não sabe julgar sua obra. Os dois poderes continuam secretamente juntos. Hoje os críticos, transformados em tutores, tomam sem cautela o lugar dos artistas e simulam a obra da criação que estes deixaram cair, se dedicam com zelo a uma obra de redenção no qual já não há obra alguma pra salvar. Criação e salvação já não deixam gravadas uma na outra as marcas do seu obstinado conflito amoroso.2

No sistema da arte contemporânea, não basta o artista criar a sua obra de arte. É necessário saber “salvar” o que faz, como se a única legitimação de criar e produzir fosse a capacidade de redimir o que se fez e produziu. Nesse sentido, torna visível o entrelaçamento silencioso entre a criação e a salvação da obra de arte. Vemos o poder da criação e, adiante, o poder do profeta, que igualmente incansável retoma, desfaz e detém o progresso da criação. Desse modo, o curador, o crítico, o mercado e a instituição consomem e redimem a criação. O interessante é que entre criação e salvação permanece, de certo modo, uma tensão que as mantém estranhas uma da

Afirma Agambem que, na cultura moderna, a filosofia e a crítica herdaram a obra profética da salvação, onde, outrora, o poeta sabia dar conta da sua poesia e o crítico também era poeta. Assim, para ele,

E então esquecem que o que pode e deve salvar uma obra é o que resulta e provém dela. Essas são razões suficientes para que, em termos gerais, eu não me sinta inclinada a reivindicar a posição de profeta da instituição. No entanto, me parece possível colocar os pontos que mais tenho presenciado e discutido com artistas e gestores culturais nesses últimos tempos. Embora alguns setores da produção artística invistam contra as instituições, eu acredito, ao contrário, que se deve procurar fortalecer o que ainda não se consolidou, como as instituições culturais brasileiras. Assim, a instituição de 2021 será o resultado da atuação de esforços conjuntos de artistas, curadores, instituições, críticos e mercado por manter horizontes abertos para uma atuação norteada pela produção dos artistas. Afinal,


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já disse Nelson Leirner3, sobre os curadores, os galeristas e as instituições, que “estamos juntos, há uma sociedade onde metade é do artista e a outra metade é de quem dá sentido à obra de arte”. De uma forma conjunta, superamos problemas de várias naturezas para chegarmos a orçamento mais próximo do ideal; a não descontinuidade das políticas culturais; a composição dos staffs por critérios técnicos, antes políticos; a gestores que passam a ser avaliados não mais pela boa vontade; e a um novo modelo de gestão com papéis definidos e interligados entre curador, gestor e museólogo, com a instituição passando a ser um lugar onde a crítica possa refletir sobre a própria crítica. Apesar de sabermos que é muito mais fácil estar “amarrado” e querer “explodir”, “atirar” e ir contra algo do que ser livre,

ser um louco sem ter que ir ao hospício será a marca da instituição: permitir que o artista seja livre, mesmo sabendo que é muito difícil ser livre de verdade.

3.  Em entrevista concedida a Ana Maria Brambilla e a Flávia Gil. Edição de Cida Golin. Jornal do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), n. 81, julho de 2002. 4.  Idem, pag. 17.

Imaginar uma instituição ideal para 2021 é fazer um lugar para não se ter o que ser contra? É dizer pro artista “faça o que você quer”? O que hoje sabemos que queremos para o presente e o futuro somente quando chegarmos lá é que saberemos se é o que deveríamos ter querido e trabalhado. Como diz Agambem (2010), “o conhecimento supremo é o que chega tarde demais, quando já não serve”4. v


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Até onde vai a arte?

por olívia mindêlo omindelo@gmail.com

olívia mindêlo é jornalista cultural e mestre em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Trabalhou de 2004 a 2009 no Caderno C, do Jornal do Commercio, e colabora esporadicamente com a revista Continente e outros veículos especializados em arte e cultura. Com a ajuda do Grupo Pia, editou a revista que está nas suas mãos agora.

1.  Intitulada A arte não exclui, só inclui: a relação do público com a arte contemporânea na 29ª Bienal de São Paulo. O trabalho foi defendido no dia 29/6/11, pelo Programa de PósGraduação em Sociologia da UFPE, sob orientação do professor doutor Paulo Marcondes Soares. 2.  Leia nesta edição.

Um dos maiores medos de quem lida com instituição de arte é não conseguir atrair público, principalmente se a iniciativa for ligada a artes visuais. Geralmente, a preocupação se mostra muito mais de ordem quantitativa do que qualitativa. Sejamos honestos: os números credibilizam exposições e chancelam a continuidade de eventos. Embora não tenha sido meu foco, esta foi uma das questões que levaram a me posicionar diante desta “ponta” do campo artístico, ou melhor, do olhar do público, através de uma pesquisa sobre a sua relação com a arte contemporânea. Continuo achando que estamos diante de um tema ainda pouco estudado com a atenção que merece. Mas não estou aqui para chorar minhas pitangas. Estou, porque confesso que, depois de mergulhar nesse processo investigativo, capaz de me render uma dissertação de mestrado1, fiquei intrigada com a frase que ouvi recentemente do artista plástico Maurício Castro. E sendo assim, aqui estou para refletirmos um pouco sobre o assunto, procurando retirar algumas camadas de aflição que cobrem o meio artístico com desentendimentos e expectativas. Espero, dessa forma, poder ajudar, para que daqui em diante — nos próximos 10, 15 ou 20 anos — possamos olhar com mais cuidado em relação ao público, de preferência por meio de muita pesquisa, pé no chão e juízo em alerta. O depoimento de Maurício foi dado justamente à ReviSPA, na ocasião do bate-papo retrospectivo sobre os dez anos do SPA das Artes2, que ele ajudou a criar, na Prefeitura do Recife. Ele nos disse o seguinte: “Acho que de 10 anos pra cá se ampliaram muito os espaços, através de salas de exposição, de editais de artes plásticas. No entanto, uma coisa que não cresceu foi o público. As artes plásticas continuam tendo um público diminuto”.

Vemos aí, primeiramente, uma das preocupações mais comuns do campo, a que me referi lá em cima: a de ordem numérica. No caso do SPA, esse anseio não deixa de ser uma questão um tanto complicada para se pensar um evento cuja programação, em grande parte realizada no espaço urbano, vem lidando mais com transeuntes que, a priori, não se configuram público de arte. Não em sua maioria. Não nos moldes tradicionais. E tampouco no perfil espontâneo daqueles que saem de casa para satisfazer uma “necessidade cultural”, estando obstinados a ver uma exposição, uma performance ou uma intervenção sobre as quais leram a respeito ou ouviram falar. Sendo assim, o que Maurício chama de público? Como poderíamos contar e analisar a “plateia” de um evento realizado prioritariamente na rua? Deixemos, por ora, essas perguntas de molho. Na mesma conversa, ele seguiu com uma reflexão que parece nos indicar melhor a sua preocupação e nos levar ao ponto central do problema que pretendo explorar um pouco aqui. Para o artista, o público de artes visuais é diminuto mesmo na rua. Como seria isso? “Na rua, muita gente vê, mas olha aquilo e não processa de uma forma como um espectador da área. O público é muito pequeno e não sei, realmente, como sair dessa... Mas seria um dos componentes que me levaria a repensar que tipo de evento poderia ser mais palatável para o público em geral”, continua ele. Neste testemunho, nos damos conta de que a angústia de Maurício não é somente de viés quantitativo, como pareceu na fala anterior. Embora haja entre suas palavras um certo desconforto em afirmar um ponto de vista, a sua aflição é evidente: querer ver no SPA não apenas um público mais numeroso e, sim, também capaz de reconhecer suas empreitadas como arte, contaminando-se por elas dessa manei-


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ra. No franzir da sua testa, há uma angústia de que o evento atraia uma audiência mais “qualificada” ou pelo menos mais preparada para processar e reprocessar os trabalhos de uma maneira esperada para um público de arte — ou o que ele chama de “espectador da área”. E ainda que não afirme isso com todas as letras, parece haver uma incompreensão dos motivos para isso acontecer mesmo na rua, onde a princípio existiria um livre acesso à arte, sem distinção. Ou seja, não haveria no espaço público barreiras institucionais cultivadas pelas paredes do cubo branco de uma instituição convencional, como o museu. Seria este, então, um problema do SPA das Artes? Veremos. Existe uma vertente de especialistas, geralmente capitaneada por curadores e críticos de arte contemporânea, que tenta defender a relação com as obras de forma mais abrangente, diria até que mais “livre” ou destituída da obrigatoriedade de códigos “decifradores”. Pregam em seus discursos que a arte não precisa ser vista necessariamente sob este status. Se ela for capaz de alterar os passos da população desavisada e desviar seu olhar de afazeres cotidianos, já terá cumprido a sua função como arte, mesmo que não seja reconhecida como tal.

3.  Refiro-me à performance Isolante, realizada por Amanda Melo, no SPA das Artes de 2003. 4.  BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. Tradução de Guilherme J. F. Teixeira. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2007.

Ora, mas aí qualquer desfile de escola de samba na Avenida Conde da Boa Vista ou vendedor de cacareco gritando “Ai, titia!” poderia fazê-lo. É verdade. No fim das contas, essa história de que para os especialistas, a arte não precisa ser reconhecida de maneira distinta de objetos e acontecimentos comuns não cola lá muito bem. Nas entrelinhas, existe um desejo patente de que a percepção do potencial da arte seja mantida tal qual ela “deve” ser. E o campo artístico contemporâneo não parece querer abdicar disso, mesmo que um grupo de críticos e curadores defenda verbalmente o contrário. Não é à toa que os organizadores do SPA das Artes têm andado cabreiros com o fato de o pessoal do Centro do Recife, por onde muito artista já passou, ficar achando que as intervenções artísticas

do evento são pegadinhas (como as que vão ao ar no Domingão do Faustão). No fundo, ninguém do meio quer isso. Mas como é que você vai convencer uma pessoa que está comprando coentro no Mercado de São José de que uma mulher enrolada da cabeça aos pés com fita isolante3, passando na frente dela, está fazendo arte? Não é querer muito de quem não pediu para ver aquilo? Não é exigir um olhar de quem possivelmente ignora qualquer porta de entrada de museu, porque esta se fez para suas retinas praticamente invisível? É como disseram Alain Darbel e Pierre Bourdieu4: isso seria o equivalente a acreditar que ao falar alto com um estrangeiro, seríamos compreendidos. Uma vez ri de me acabar com meu amigo José Teles. Ele me disse que estava num bar em Boa Viagem tomando uma quando rolou um tiro e ele ficou achando que pudesse ser coisa do SPA das Artes (não era). E olhe que este crítico de música é do tipo que na vida se deu ao trabalho de ir a uma exposição de arte contemporânea somente nas ocasiões em que o Cometa Halley pôde ser visto passar pela órbita terrestre. Ou seja, chance quase zero. Por isso, sou obrigada a dizer que o buraco é mais embaixo. Mas ele está bem embaixo do nosso nariz. De antemão, penso que devemos procurar admitir determinados processos inerentes ao sistema de arte, ao qual o público e o “não-público” estão sujeitos. Eles são amargos, porque quase sempre excludentes. Reconhecer isso já seria um grande passo para querermos mudar algo, procurando entender que determinados esforços e preocupações são simplesmente inúteis. É no mínimo paradoxal, para não dizer esquizofrênico, querer expandir as fronteiras da arte para além do espaço físico da instituição e achar que isso vai abalar Bangu. Existe uma tendência do campo em perpetuar uma crença gigantesca de que a arte pode muito. Pode transformar, mudar, transcender,


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melhorar, alargar horizontes e até salvar a vida das pessoas. É assim que há um bom tempo os atores costumam voltar seus esforços para legitimá-la. Mais ou menos como religiosos em busca de seu rebanho. Mesmo que em algum momento tenha procurado romper com ranços seculares, a arte contemporânea também acabou herdando isso — entre artistas, críticos, curadores, produtores, gestores ou mesmo entre uma parcela do público. Continuamos acreditando nesse poder e desejando que os demais também o façam. Basta prestar atenção no discurso que se replica por aí. Por isso, é muito compreensível que artistas como Maurício Castro — tantas vezes empenhado em mudar a rotina de pessoas que por força própria provavelmente jamais iriam a uma exposição — queiram ser vistos à altura da importância da sua arte. Mais ainda: da força que ela tem de mudar nossas visões de mundo ou ao menos de sacudi-las. Ele está certo e não há nada mais legítimo. Foi assim que aprendeu a fazer e a ver a arte. Eu e provavelmente você também nos identificamos com essa crença. Mas se quisermos olhar criticamente para a nossa fé, precisamos desapegar de aparatos ilusórios e agarrar em outros pontos, procurando ao menos entender o que pode vir a fundamentá-los.

5.  Tendência apontada a partir de uma amostra composta por 100 respondentes do público espontâneo da exposição (que não foi em visita agendada nem era estrangeiro), alternados segundo sexo, dias e turnos diferentes da mostra, que recebeu cerca de 250 mil visitas espontâneas entre setembro e dezembro de 2010.

A questão é que nem todo mundo é como Maurício. Nem como os demais artistas ou “gatos pingados” que realmente se importam com o SPA ou com qualquer iniciativa de artes visuais. Aliás, pouquíssimas pessoas nesta cidade ou neste País tiveram o privilégio (ou não) de ver a produção artística como ela “deve” ser vista. Em outras palavras, como uma área de conhecimento que reclama, sim, uma forma própria de entendimento. E para “entrar no jogo”, é preciso dominá-la, ao menos minimamente. Mesmo que existam inúmeras interpretações subjetivas das obras, como se diz, esse olhar existe e demanda seus códigos, como qualquer forma de linguagem. O próprio Maurício deixa isso transpa-

recer quando coloca que sente falta de que as pessoas da rua olhem para performances e intervenções como “espectadores da área”. Também existe uma certa ilusão de que a arte pode, porque está, a princípio, ao alcance de todos. Sinto decepcionar, mas ela não está. E não está sobretudo nas artes visuais. Não da forma que os especialistas lutam para que ela esteja, seja de maneira quantitativa ou qualitativa. E isso não tem necessariamente a ver com mercado e aquisição de obra de arte. É uma questão muito mais simbólica. E é mais por essa razão que o público das artes visuais tende a ser “diminuto”, como observa Maurício. Ou seria por acaso que a maior parte dos visitantes das exposições de arte seja de universitários ou graduados? Pesquisas realizadas com o público de arte na Europa (Pierre Bourdieu e Alain Darbel), no México (Néstor Garcia Canclini) e no Brasil (Cristina Freire) já apontaram que o perfil dos espectadores de artes visuais é majoritariamente de instruídos. Na minha vivência de campo na última Bienal de São Paulo, cheguei a constatações semelhantes. Entre os pesquisados5, 86% estavam na graduação ou acima deste nível de escolaridade. Acham isso pouco? O fato de a bienal ter entrada franca ou a arte ir até os cidadãos “comuns” na rua não é garantia de tornar tudo mais acessível. Isso pode ajudar, mas não vai quebrar muros invisíveis que fazem com que a arte seja um privilégio de poucos. E isso parece valer mais ainda para a produção visual contemporânea, incluindo as performances e as intervenções urbanas do SPA. Trata-se de uma questão de educação, antes de tudo. Mas uma educação que não cabe somente a arte educadores. Estes têm uma tarefa importante, principalmente de ajudar a legitimar o potencial artístico no qual acreditamos, procurando facilitar a relação do público com os trabalhos. Contudo, ações educativas institucionais não são suficientes nem duradouras, se não houver uma predisposição para tal. Ao menos que estejamos


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diante de um público jovem, em formação. Mas isso também não é garantia. O que precisamos entender é que nada tende a ser mais influente do que a educação prévia que recebemos até chegarmos a um museu, uma galeria ou mesmo a um evento “aberto” como o SPA. E essa educação costuma ser muito mais tributária de um processo de socialização tácito e gradual do que de uma educação feita no “calor dos acontecimentos” — ou mesmo através de ações isoladas e especializadas. Não se pode “salvar” o mundo da noite para o dia. O principal processo de aprendizado na arte deve principalmente à escola e ao círculo restrito de convívio social, sobretudo familiar, a que tivemos a chance de ter acesso ao longo de nossas vidas. É isso o que costuma, em geral, mover nossos pés, olhos e cabeça em direção à arte. E como toda motivação resultante de um processo educacional, ela pressupõe processos segregadores mesmo. Por isso, poder “ver” nesse meio é diferente de conseguir “enxergar”. Gostar tende a ser o oposto do deixar de gostar, no sentido da privação dos que nunca puderam ter um “real” acesso a esse gostar. Não é uma questão de simplesmente “gostar” ou “não gostar”, como se fosse algo a ser resolvido nos pormenores de cada um. Por isso que Maurício fala que “na rua, muita gente vê, mas olha aquilo e não processa de uma forma como um espectador da área”. Não há culpa no desinteresse — nem do público, nem do SPA. Ao menos que o evento queira recorrer a apelos de “grandezas” não propriamente artísticas. Ao menos que acredite que a arte rime com a política do “pão e circo”. O que existe diante disso tudo, portanto, são algumas razões possíveis. É estupidez não querermos enxergar que infelizmente a arte não pode ser “decifrada” por todo mundo do mesmo jeito que um texto não pode ser lido da mesma forma por todos. Ou seriam obras do acaso os problemas que muita gente tem para interpretar simples enunciações escritas por aí afora?

O buraco está aí, diante de nós. Mas não somos super-heróis. O que alguns artistas, gestores ou curadores poderiam começar a fazer é perguntar coisas como: até onde podemos ir realmente? Até onde vai, de fato, o alcance da arte? O que queremos com a arte que produzimos e divulgamos? Ela pode mesmo tanto assim? A rua se mostra um espaço excelente para testar o potencial da arte, mas ela é, antes de tudo, um espaço experimental. E não é só na linguagem dos trabalhos; é também na relação que estes promovem com seu entorno. Daí a necessidade de abarcarmos as reações de forma mais generosa e mais aberta mesmo. É preciso saber que na outra “ponta”, na do público (que talvez nem possa ser chamado assim), existem disparidades. Até maiores do que as vistas entre paredes institucionais, que no mais não deixam de existir quando a arte rompe suas fronteiras físicas. É preciso reconhecer que nem todo mundo tem o desprendimento de distinguir arte urbana de pegadinha. Ou aceitamos isso, ou aceitamos mesmo que o lugar da arte é no templo seguro dos museus e das galerias, para onde geralmente vai quem já está “enturmado”. Se admitirmos essas limitações, vamos olhar menos para os números e mais para as possibilidades que a arte tem dentro das barreiras sociais que lhe foram postas no decorrer da história. Vamos olhar mais para continuidades do que para holofotes passageiros. E assim vamos para as ruas, desde que aprendendo a enxergá-la como tal. Ou se assumem riscos ou iremos continuar enxugando gelo, ralando para prestar contas daquilo que não somos. E não podemos, infelizmente, ser. Arte contemporânea não é desfile de Galo da Madrugada. Estimular acesso, sim, mas vender o impossível, não. E isso vai além de estratégias educativas ou de formatos ousados a cada edição. O buraco é fundo, mas não adianta cavar pelas beiradas. Caso contrário, vamos continuar como Maurício: sem conseguir “sair” dessa. v




Tenho uma visão pessimista em relação ao futuro do Recife. O que mais me preocupa é a qualidade de vida da população. A cidade tem uma infra-estrutura urbana insuficiente e precária. Há poucos espaços de lazer e nossa capacidade ambiental deveria ser respeitada. O Recife é uma cidade histórica, com muitos rios e uma orla ocupada. Nossa área é pequena, são 226 km2 que sofrem uma forte pressão dos municípios da Região Metropolitana e até de outros estados. Está sendo ocupada de forma desordenada. Atualmente é o “Deus Mercado”, como afirmava Milton Santos, quem dita esse

crescimento. Não só o imobiliário, mas o de serviços e o comercial. A cidade passa, então, a ser o centro regional de interesses particulares. Olhá-la daqui a 10 anos é imaginar os espaços que ainda vão ser ocupados. Isso indica um quadro complexo, uma falta de planejamento para o conjunto maior da população. O Recife é a 21ª cidade mais verticalizada do mundo. O problema será para quem vive nela, não para quem ganha dinheiro, que mora fora. Acho que, neste contexto, as coisas irão piorar. A cidade não está se construindo para os cidadãos, mas para o grande capital.

bertrand sampaio de alencar, 51 anos Doutor em desenvolvimento urbano, ambientalista e especialista em gestão de resíduos sólidos


Vejo que desde 2009, o Recife vem trabalhando muito a questão do empreendedorismo social. Os projetos sociais de muitas empresas não são mais pura filantropia; são projetos permanentes. Além de promoverem a inclusão social, se engajam e discutem diversas soluções para o desenvolvimento comunitário. O que percebo são grandes mudanças na filosofia e nos modelos de gestão de ONGs. Vejo iniciativas inovadoras para se trabalhar com o público beneficiado, abordando não somente o puro assistencialismo, mas também a participação das pessoas, ensinando, aprendendo, conhecendo melhor a realidade de cada um e assim contribuindo para uma quebra de paradigmas e preconceitos. O novo setor 2.5 ou setor dos negócios sociais e economia criativa promete contribuir

— e muito — para a qualidade de vida de pessoas de baixa renda na nossa cidade, seja promovendo qualificação profissional através de consciência ambiental — trabalhando o artesanato e a cultura como formas de valorização de sua identidade — seja oferecendo microcrédito para que cada um tenha a liberdade de criar o seu próprio negócio de maneira independente ou coletivamente. Esses novos conceitos, apesar de ainda incipientes, já começam a fazer a diferença em comunidades como Alto José do Pinho, Bomba do Hemetério, Caranguejo Tabaiares e ainda no interior de Pernambuco. É valorizando as qualidades de cada um que podemos criar espaços mais participativos no Recife.

isabel queiroz Jornalista, pós-graduanda em direitos humanos e coordenadora de comunicação do Projeto Reciclados/ Movimento Preservar


Para virar o jogo

por tatiana diniz tatdiniz@gmail.com

Sustentabilidade. No final do ano passado, a serviço da academia britânica, eu me dedicava à tarefa de compilar significados dessa mimosa palavra, quando esbarrei com uma cena hilária descrita por Xico Sá. A moça desfilava suas curvas sob o sol escaldante da Avenida Paulista, quando foi atingida pelo comentário inflamado: “Isso é o que eu chamo de sustentabilidade!”

tatiana diniz é jornalista e pesquisadora em desenvolvimento sustentável e cidadania global. Doutoranda pela University of Wales e mestra em Educação para Sustentabilidade pela London South Bank University. Atualmente, lidera o projeto internacional de pesquisa Futuro é Já, que passou pelo Brasil, pelo Reino Unido, pela Nova Zelândia, pelo Canadá e pela Estônia.

Encomendei a Paulinho do Amparo, desenhista fino de Olinda, um quadrinho que ilustra essa cena. E incorporei a pérola ao arsenal com o qual tenho viajado o mundo tentando discutir sustentabilidade. O que defendo é que o termo seja mais interpretado como premissa de ação, e menos como viagem ou verniz. A moral da história da cantada é que, em 2011, a palavra sustentabilidade já pode significar qualquer coisa. Cacoete esse que se dá no mundo todo, diga-se de passagem. Há quatro anos, por exemplo, morei num conjunto habitacional em Londres em que a passagem para o status de “comunidade sustentável” significava, em primeiro lugar, uma ação muito organizada de despejo em massa. Ali, o primeiro passo rumo ao tal “desenvolvimento sustentável” era tanger todo mundo

que vivia às custas do já quase falido estado do bem-estar social inglês. “Gentrificação”, resumiu a artista paulistana Graziela Kunsch, numa passagem por lá. Das curvas inflamáveis da Paulista ao despejo da ralé em Londres, tudo pode ser “sustentável”. Nossa conversa aqui, porém, será sobre o Recife e seus possíveis rumos em relação à sustentabilidade, tentando imaginar a cidade em 2021. Mais ainda, sobre as potenciais interfaces entre o desenhar dessa sustentabilidade e o realizar artístico. Ui! Se fosse numa mesa do Central, não acabava mais nunca. Mas vamos lá. Reza a lenda que em 2050 o Brasil será o quinto país mais rico do mundo. Tu acreditas? Eu gosto de acreditar. Portanto, 2021 significa mais ou menos meio caminho andado daqui para lá. Segundo os videntes da economia, o Nordeste é a região que mais se desenvolverá nesse período. E embora seja Fortaleza a candidata ao maior crescimento, eu, olindense, duvido que o Recife deixe de se portar como a rainha do maracatu por essas bandas. A grande pergunta é: que escolhas virão com esse crescimento econômico e de que forma vamos crescer?


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Crescimento econômico, aliás, é outro bicho cabeludo de a pessoa entender. Tradicionalmente medido pelo Produto Interno Bruto, vulgo PIB, esse deus dos engravatados, justificador de uma das frases mais loucas do mundo corporativo: “It is just business.” Oh, yeah! PIB, o deus, costuma ser meio cego para umas coisinhas como desenvolvimento humano, desigualdade, exclusão, distribuição de renda, bem-estar, felicidade, conhecimento tradicional e limites de recursos naturais, só para encurtar a lista. Agora tumultua teu raciocínio e visualiza um mar bem azul, uma mancha de sangue bem vermelha e um surfista berrando. Pois é. Quando eu era criança, todo mundo podia tomar banho em Boa Viagem. Em Casa Caiada “Beach”, seu Jaime, meu vizinho pescador, de vez em quando voltava do mar com um tubarão que virava a atração da pirralhada. A brincadeira era contar os dentes. Os tubarões estavam ali, desde sempre, mas os ataques a gente via no cinema. Aí veio o Porto de Suape, um sonho grandioso para o bem do nosso PIB. Com supercomplexos planos de engenharia que incluíram aterro de mangues, desvio de rios, despejos e outras proezas. Para gerar mais empregos. Para bombar o nosso desenvolvimento. Certo. O resto da história a gente conhece. Suape e os tubarões sinalizam a roubada ambiental que pode vir junto ao inevitável desenvolvimentismo que o Recife vai liderar nos próximos anos. Mas são várias as possibilidades de roubada. Será que vamos conseguir usar esse crescimento para reduzir o abismo social que existe entre a Ilha do Rato e as novíssimas mansões da Praia do Paiva? Ou vamos remediar com mais seguranças armados? Até que ponto vamos, como os admi-

nistradores londrinos, tanger comunidades inteiras para atrair os investidores estrangeiros e seus resorts que não gostam de pobre na praia? O que danado a gente vai fazer com essa epidemia de crack que se espalhou da Zona Norte à Zona Sul, e do Sertão ao Litoral? Mais um salto na cabeça, pousando no fazer artístico como catalisador de transformação. A arte, essencialmente, debateu e debate paradigmas de diversas épocas. Assume um posicionamento estratégico, genuinamente ligado à liberdade de ação. Está, até certo ponto, desprendida das amarras do mercado; é capaz de transitar entre as esferas sociais; questiona as leis abertamente; e ainda tem um potencial gigantesco de interface com a educação. Numa cidade como o Recife, em que arte sempre foi referência, a produção contemporânea vai pôr na roda debates muito importantes ligados às opções do nosso “desenvolvimento”. De acordo com o professor doutor Adilson Siqueira, da Universidade Federal de São João del-Rei, o paradigma da sustentabilidade gera uma nova fronteira para a arte, proporcionando o desenvolvimento de novas linguagens artístico-estéticas e teórico-práticas. Vem aí mais fruição? Fruição, tome outra palavrinha cabulosa. Essa serve para explicar o que acontece entre arte e público. Para mim, um contato seguido da formulação de um significado. A construção de significado dispara posicionamento e o posicionamento traz em si a oportunidade de interação. A habilidade de ir do estímulo à ação será cada vez mais importante para o reconhecimento da influência mútua entre seres humanos e seu entorno. E exercitá-la é fundamental para 2021 e para a construção de um futuro sustentável.


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revispa 2011

A ação é resposta a um estímulo compartilhado por outras abordagens transformativas. No Recife, por três anos, um painel contador de homicídios expôs à sociedade uma guerra enfrentada principalmente pelos moradores da periferia. O projeto PEbodycount foi concebido e implementado por um grupo de repórteres policiais atuantes na imprensa recifense. Nos locais das mortes, o grupo pintava no chão a marca de um corpo, documentando a ação e alimentando um blog com as discussões geradas. O projeto foi financiado pela Secretaria de Segurança Pública e chegou ao fim com a suspensão do investimento.

Ciborgue de Jonathan Tippett

Faíscas de transformação serão demandadas por todo o caminho entre hoje e 2021. E esses lampejos criativos gerarão sistemas de influência diversos. Neles, o que hoje é chamado de arte contemporânea muitas vezes se confundirá com impulsos que não necessariamente receberão essa denominação. Encontros entre linguagens antes pouco misturadas, como arte e tecnologia, ou arte e engenharia, já estão somando novas perspectivas. Mondo spider

Quem sabe até 2021 passe por Recife o qua­ drúpede vestível de cinco metros de altura que o engenheiro Jonathan Tippett está construindo no laboratório eatART em Vancouver, no Canadá? Prosthesis é um ciborgue alimentado por uma usina de energia híbrida, controlado a partir de um exoesqueleto suspenso no meio da máquina. “É uma metáfora de como a tecnologia pode ampliar a atividade humana e do quanto o controle é importante”, diz Tippett. Antes, com Charlie Brinson, Leigh Christie e Alex Mossman, ele havia criado Mondo spider, uma aranha gigantesca que é meio de transporte e não emite gases poluentes. “Ao fazer arte usando engenharia, capturamos a imaginação do público para iniciar uma discussão em que não precisamos pregar”, comenta.

O PEbodycount não é arte contemporânea. Nem a ação tomada pelos moradores da favela vizinha ao Shopping Tacaruna quando, há uns dois anos, abriram buracos no muro que dividia as duas realidades e escreveram: “A paz não é muro, é ponte.” Mas em 2021, a fronteira entre arte e ação estará mais diluída e o alcance do circuito, expandido. Múltiplas formas de interação transformativa existirão no Recife de 2021. E a arte contemporânea se potencializará, alinhada a um impulso disseminador de mudança. Novos formatos surgirão, muitos a partir de estímulos colhidos da geração atual de artistas. E outra intensidade vai impregnar o circuito. A sensação vai ser de segundo tempo, jogando para virar, com mais pressão. Para que em 2050 o Recife tenha conseguido escolher um modelo mais sustentável de desenvolvimento. O maior desenvolvimento sustentável da América Latina. Em linha reta. v


Eu bem gostaria que, daqui a uns 10 anos, as bases desta cidade estivessem à altura da sua tradição e importância. Mas, infelizmente, com base no que vivencio e acompanho em 2011... o Recife não estará muito agradável. O transporte estará caótico (mais ainda, acreditem!). Os esgotos terão explodido lama e dejetos por todos os bairros e as nossas crianças continuarão crescendo sem a educação devida. O pessimismo dessa declaração é, na verdade, uma convocatória, para que todos coloquem a boca no trombone e exijam das autoridades que sejam criados e realizados projetos para sanar os problemas que podem, quando solucionados, trazer mudanças significativamente positivas para o Recife.

aslan cabral, 31 anos artista plástico


Daqui a 10 anos, o Recife não vai ter espaço mais nem pra um mosquito, com o intenso crescimento, que causa a vinda de muitas pessoas para cá. Daqui a pouco, o trânsito irá tomar conta da cidade, os moradores irão viver estressados, ou seja, o Recife vai virar uma São Paulo. Se nem São Paulo tem espaço para tanto crescimento, imagine o Recife! Portanto, nossa cidade não tem para onde se expandir e os moradores irão sofrer as consequências. Essas são: poluição, doenças, estresse, entre outras.

beatriz ribas, 14 anos estudante


Eu acho que precisa de mais transporte, mais limpeza nas ruas. Os problemas de sempre: pela manhã, os ônibus são muito cheios e se espera muito por eles. Pode ser que o metrô atenda melhor as pessoas com o tempo. Fora do Centro da cidade, nada acontece, nada cresce. As pessoas moram em barracos e perto do lixo, porque é onde podem viver. Melhorando onde elas vivem, elas vão melhorar também.

marlene pessoa, 53 anos doméstica


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O futuro #FdE

pelo circuito fora do eixo

e coletivo lumo2

@foradoeixo

@lumocoletivo

1

No começo, procurávamos o que deveríamos fazer pelo resto de nossas vidas. Hoje, sabemos ser impossível prever aonde vamos chegar, pois descobrimos quão prazeroso pode ser não lidar com simples limites. O Circuito Fora do Eixo (FdE) é uma rede de coletivos que, cada vez mais, representa um movimento capaz de unir, em todo o Brasil, e mais recentemente em outros países da América Latina, pessoas pré-dispostas a formular novas conexões e diálogos. Ele é reflexo de um momento em que é evidente a insuficiência dos sonhos da juventude brasileira serem sustentados apenas como hobbies ou desejos, precisando se materializar.

1.  Vai lá no Twitter. 2.  Autores: Ney Hugo, Tatiana Oliveira e Alejandro Vargas.

Formado há cinco anos, o Fora do Eixo se criou através da união de jovens produtores culturais de quatro Estados brasileiros: Mato Grosso, Acre, Paraná e Minas Gerais. A princípio, ele tratava de descentralizar apenas a cadeia produtiva musical. Entretanto, ao se encontrar em um contexto de luta para (re) descobrir os espaços de concretização de seus próprios sonhos, o circuito se consolidou como uma rede de

# O futuro em 140 caracteres (tuítes)

trabalhos colaborativos, que — como o homem — cresce, se renova e amadurece dia a dia. Atualmente, esta rede conta com mais de 90 pontos em todo o País, além de inúmeros parceiros e, por que não dizer, “simpatizantes”. Seus agentes acreditam que, se antes vivíamos em um mundo de grandes distâncias, fossem elas geográficas, econômicas, ideológicas ou culturais, hoje é possível enxergar um futuro de inúmeras possibilidades e encontros horizontais, plurais, multimidiáticos e dinâmicos. Por ser contemporâneo, o Fora do Eixo abriga uma nova consciência que vai se tornando real a cada dia. E devido à necessidade de autocompreensão como uma rede ampla e democrática, tornou-se transversal às mais diversas áreas, dialogando através de suas frentes mediadoras com temáticas referentes à música, às artes cênicas (Palco FdE), ao audiovisual (Clube de Cinema), ao software livre, às artes plásticas (Poéticas Visuais), ao meio ambiente e a práticas sustentáveis (Nós Ambiente), à política (PCult), ao conhecimento (UniFDE) e à literatura (FEL — Fora do Eixo Letras).

@Callado67  O que você

@evelynlobo  Viver daquilo que

espera de seu futuro? Será

gosta, viver daquilo que acredita.

que o melhor a fazer não é ir

Esse é o futuro presente. O

de encontro a ele, em vez de

futuro que eu quero. #FuturoFdE

esperá-lo? #FuturoFdE @ilustres_web  Futuro da @alejandrovl  Basta a gente

criação livre, composição

acreditar para realizar nossos

e integração dos elementos.

sonhos. Não dependemos mais

A música que não se distingue,

da aprovação de um mundo que

se sente. #FuturoFdE

desistiu de sonhar #FuturoFdE


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@alantremere  #FuturoFdE

@Callado67  Pense diferente,

@coletivo77  O futuro será

@MarielleRamires  Todo

seremos consultados pela

saia da inércia intelectual com

um mundo com mais arte e

mundo velhinho em #CAFEs

expertise em construção de

a qual tentam nos seduzir.

desenvolvimento #FuturoFdE

bombando e com a felicidade

conhecimento colaborativa.

Palavras como segurança, consumo, conforto… #FuturoFdE

interna bruta bombando! @AraujoEduardo  Eu sei que

#FuturoFdE

tudo que faço hoje influencia no

@lumocoletivo  “O futuro das organizações — e nações —

@DriadeAguiar  Amanhã será

dependerá cada vez mais de

maior! #FuturoFdE

amanhã #FuturoFdE

@cortielha  A rede já terá ultrapassado a cadeia

sua capacidade de aprender

produtiva da cultura e estará

coletivamente” (Peter Senge)

se consolidando cadeia da

#FuturoFdE

educação! #FuturoFdE


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O trabalho do Fora do Eixo tem como base a economia solidária e as trocas de serviços, sendo reflexo dos avanços nas discussões sobre o assunto em um país que, nos últimos anos, passou pela criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), no Ministério do Trabalho, além de novas moedas complementares criadas em várias localidades do Brasil. Dessa forma, o FdE se configura como um sistema que não pretende anarquizar a vivência no capitalismo, mas, sim, desconstruir as mazelas do capital, através da produção, da sistematização e da difusão do conhecimento intercambiado.

DA CÉLULA PARA A REDE Alejandro Vargas, 30 anos, é integrante do Lumo Coletivo, um braço do Circuito Fora do Eixo no Recife (PE). Ele conta que começou a trabalhar com cultura no Diretório Acadêmico (D.A.) de sua universidade. Foi lá onde, pela primeira vez, começou a vivenciar os entraves das engrenagens burocráticas da universidade, fato que se repete em várias instâncias quando o assunto é cultura no País. “Frustrados, com a vontade de fazer aconte-

cer, conhecemos o Lumo Coletivo. Eu tinha uma banda e o Lumo me trouxe a opção de utilizar da minha força de trabalho para ter alguns serviços que não tínhamos grana para executar, como release, ensaios, gravação, etc. Com o tempo, percebi que meu trabalho não era uma simples troca de serviços, era formação”, lembra. A partir disso, Alejandro passou a notar o Fora do Eixo como uma prática do “colaborativismo” e, dois anos e meio após sua criação, o Lumo Coletivo hoje funciona com dois agentes de dedicação exclusiva e outros 10 colaboradores que produzem projetos e ações culturais, a partir de um novo modelo de economia criativa. Atualmente, o coletivo se sustenta financeiramente através do “caixa coletivo”, utilizado por todos de forma igualitária, em uma gestão compartilhada. Alejandro relata como é viver seu sonho junto à rede: “Os meus dias começam cedo e terminam tarde, falo com pessoas do Brasil e da América Latina o tempo todo. Cuido de tours, penso em programação de cineclube, reflito

@alantremere  A rede será

@aeromocas  Certeza daqui

@gabrielruiz  Várias cenas

@cortielha  Em 10 anos, a

apontada como uma das

a 10 anos: todo mundo vai

consolidadas, vários braços

moçada do @foradoeixo vai falar

principais origens do movimento

ter direito de fazer o som que

na América Latina, muito

“como aquele povo de 2010 era

político do século. O ativismo

quiser! #FuturoFdE

intercâmbio artístico e nós de

lento, né?! #FuturoFdE

cabelos brancos felizes e fritos

cultural #FuturoFdE @AparelhoFDE  Cultura @brigatti  Cineclubes

e Música independentes e

fortalecidos, democratização

compartilhadas! #FuturoFdE

#FuturoFdE

@alejandrovl  Vem que a vida é feita passo a passo e nossos

@fabimilhas  Eu quero

sonhos vão vingar, de norte a

de acesso ao cinema e à

principalmente que o futuro não

sul, de leste a oeste, construindo

informação — tudo em rede, o

seja só até amanhã. #FuturoFdE

um novo lar! #FuturoFdE

tempo todo #FuturoFdE


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1102 apsiver

e debato sobre os rumos da cultura e da política, produzo eventos, faço reuniões e chego a passar uma média de 14 horas trabalhando por dia, bem acima da média comercial. Mas não trocaria meu modo de vida por nada”. O integrante do coletivo, que já promoveu shows com mais de 200 bandas, se orgulha de movimentar não só o cenário cultural alternativo, mas toda a economia local. Para ele, mais do que trabalho, sua rotina faz parte de uma vida intensa, que se difere do modus operandi de quem trabalha para poder viver. “As pessoas comemoram a chegada da sexta-feira só porque chegou o fim de semana. Colocam suas vidas em bolhas separadas. Eu me orgulho de trabalhar e viver ao mesmo tempo”. Utilizando a internet como meio para articular a comunicação livre, horizontalizada, polifônica e multimidiática, o Fora do Eixo, com seu espírito independente, acredita representar um futuro no qual o sonho de um mundo melhor deixa de ser clichê romântico para se tornar expectativa real; lida em cima de fatos

@tatita_oliveira  Nosso futuro

@cardumecultural  Muito

tem cor, letra, som, movimento.

peixe, muita água e muito amor

Ele marcha plural, horizontal,

#FuturoFdE

fora do que está, dentro do que quisermos que seja. #FuturoFdE

@lumocoletivo  Um futuro verde, sustentável e mais

@diogocpst  A mudança de tudo que achávamos imutável e a liberdade de ser feliz! #FuturoFdE

consciente #FuturoFdE

concretos. Para isso, possui alta velocidade e quantidade em sua produção de conteúdo, escoado principalmente na web. Como mais um desafio para (re)significar o modo de compreensão de como podemos esperar pelo futuro através dessas práticas cotidianas e solidárias, o Fora do Eixo promoveu no dia 20 de julho, o dia do #FuturoFdE. Nesse dia, todo o circuito movimentou no Twitter uma campanha que instigou colaboradores de todo o País a tuitarem seus anseios e perspectivas, abrindo discussões para o futuro esperado, conforme o que vem sendo construindo na rede desde já. v


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revispa 2011

Percepções contemporâneas. Corpos sensíveis na dança digital UM OUTRO TEMPO E MEU OUTRO EU

ivani santana é artista e pesquisadora, mestre (2000) e doutora (2003) em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Desde a década de 1990, pesquisa a relação da dança com as novas tecnologias. Em 2009, concebeu e dirigiu artisticamente o espetáculo e-pormundos afeto, obra experimental realizada através da web, com a participação do público por avatares, de dançarinos localizados em Fortaleza e em Barcelona e do robô Galathéia em Natal, tele-guiado a partir dos sensores colocados no corpo da dançarina brasileira, tudo em tempo real (http://www.lavid.ufpb.br/ gtmda). Atualmente, é professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos e do Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Olho para minha imagem, faço-a dançar, enquanto dança minha imagem com aquele que lá com ela está. O tempo se desloca. Aqui estou em um momento, que, por um instante, parece que é o futuro, pois lá ainda está minha imagem que dançava com meu companheiro, aquilo que meu corpo já havia dito para fazer… A frase acima foi elaborada a partir das impressões dos dançarinos que atuaram no espetáculo de dança telemática Versus (2005), referindo-se à sua forma de contracenar. Esse tipo de obra é possível graças às novas possibilidades de transmissão via internet, que possibilita o acontecimento ser realizado simultaneamente em distintos espaços. Em um dos pontos remotos, ou seja, em uma das localidades geográficas onde ocorre a obra, o/a dançarino/a precisa de telas-guia para poder se orientar no tempo e no espaço. Uma outra percepção surge, pois o/a dançarino/a não move apenas seu corpo, mas movimenta o corpo da imagem para seu corpo poder dançar! É através da imagem no monitor que o/a dançarino/a pode se orientar para contracenar com o companheiro.

por ivani santana ivani_santana@uol.com.br

Portanto, trabalhar com as tecnologias digitais para mim não é estar em busca de efeitos especiais ou de cenografias diferenciadas pelo potencial das novas mídias. O intuito é verificar, explorar, descobrir no corpo o que muda para a percepção e a ação do dançarino quando imerso, exposto, implicado com essas tecnologias (sejam elas digitais ou não).

Na arte telemática, o deslocamento espacial e temporal dos corpos (dos dançarinos, do público, dos avatares1, etc.) ocorre a partir de composições realizadas em tempo real. Sendo assim, o objetivo não é apenas transmitir a imagem pela internet para o público assistir, como também não é nosso interesse apenas transmitir a imagem de um palco para outro. Não basta ser simultâneo, o intuito do dançarino é dançar com seu parceiro virtual, o que significa dançar com uma imagem virtual que não tem cheiro, volume, sombra, calor, peso, gravidade e outros aspectos existentes na relação presencial entre corpos físicos. A partir do entendimento de camadas, podemos compor um único quadro que é enviado pela rede. A dança telemática propiciou para meus estudos em dança, o que para mim significa estudar o corpo como um agente perceptivo, cognoscente2, novas possibilidades de espaço, de tempo, de relação. Esse corpo perceptivo cognoscente ganha outras demandas e descobre outras possibilidades de agir no mundo. Por isso, não acredito que seja um mero fazer para a câmera ou para a tela, mas uma outra forma que o corpo percebe, elabora e produz movimento.

Performance telemática Versus (2005) Brasília/Salvador/João Pessoa/Internet Fotos: Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP)/Divulgação


fotoS: Andrea Viana/Divulgação

Espetáculo E fez o homem a sua diferença (2005), no Teatro Vila Velha (ES)

1.  Animação em 3D de figura humana.

DANÇA PARA VÁRIOS PONTOS DE VISTA. A DANÇA COMO SISTEMA

2.  Do latim cognoscens, particípio presente de cognosco. Aquele que conhece. No sentido utilizado no texto,

Fiquei ali, aos pés dele que balançava sobre mim…

refere-se àquele que conhece não apenas no sentido intelectual, mas através de todo o aparato sensório motor, por meio do qual o ser adquire conhecimento do mundo.

Tentava entender o que ela fazia aos meus pés, o resto já não importava, fiquei ali, olhando seus movimentos leves, contínuos, misturados àquela projeção e a mim mesmo.

3.  Coreógrafo americano. Foi importante por romper com pressupostos de sua época e propor novos postulados para a dança, como por exemplo: não haver hierarquia entre dançarinos, espaço a ser dançado

Lá de cima podia ver o rosto dela. Lá no alto, ela observava quieta e atribulada para aqueles pontos no chão: pontos de gente, de imagem, de dança… A topografia de uma obra!

Em 2005, estimulada por tantas experiências anteriores, deixo para trás a quarta parede que nos separa do público e, definitivamente, assumo a dança como um acontecimento sistêmico. Seguindo a risca o que Merce Cunningham3 (1919/2009) já havia postulado há tanto tempo, rompo com as hierarquias que ainda estava presa e assumo: não há ponto central importante de um palco a ser visto à nossa frente; não há um local privilegiado no público; não há acontecimento principal a ser acompanhado; não há UMA obra, mas muitas em um mesmo instante. É como parar no meio da Praça da Sé e olhar ao redor — os acontecimentos eclodem dando complexidade àquele sistema.

ou partes do corpo utilizadas nos movimentos. Música e dança ocorrem em um mesmo período de tempo, sem implicar submissão de uma a outra; qualquer movimento pode ser dançado.

A sensação era que todos estavam imersos em um grande caldeirão que revelava meu sonho. No ar, aquelas figuras de branco flutuavam.

As modificações propostas por Cunningham foram muito importantes

Cheguei perto e comecei a balançá-lo.

na passagem da dança moderna para a dança contemporânea.

De repente, comecei também a dançar.

Cada olhar constrói um espetáculo, já sabemos. Mas em E fez o homem a sua diferença, essa é a única possibilidade colocada de forma radical. Nesse espetáculo, ocorrem ações na terra, no ar, nas imagens… A simultaneidade de um mundo dinâmico rodeado de olhares, de cúmplices, de atuantes. Ver ao longe, ver de perto, ver de cima, ser visto. Todos os


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revispa 2011 Andrea Viana/Divulgação

QUEBRA DA QUARTA PAREDE, QUE DE UMA (COMPREENSÃO DE) PERSPECTIVA Meu corpo deitado movia a grande imagem em pé que flutuava no ar. Meu corpo em movimento descolava dele mesmo que permanecia fixado, congelado no tempo e no espaço. … terminei por quebrar a parede trazendo o fora para dentro!

Espetáculo E fez o homem a sua diferença (2006), no Teatro Castro Alves (BA)

locais constróem uma percepção especial para aquele que ali está, imerso e pertencente àquele sistema. Ninguém, nem mesmo eu como criadora, pode ou tem como dizer como a obra é por completo. Assim como quem está na Praça da Sé não dá para dizer o que realmente, na totalidade, está acontecendo, mesmo que descreva cada ação. Na obra, em cada espaço um acontecimento diferente surge do propósito de cada dançarino, pois não trabalho com o entendimento de coreografia. O objetivo não é produzir movimento, mas uma atitude perante um propósito claro, que se apresenta em forma de metáfora corporal. Trata-se do processo de propósitos que desenvolvo, uma negação da coreografia, mas também da improvisação livre preocupada com a cinestesia, com o peso e com as qualidades de movimento, porque meu entendimento de corpo vai além desses.

Em Corpo aberto (2001), realizado no Itaú Cultural, em São Paulo, como uma das obras selecionadas para o Rumos Dança, já havia um interesse em deslocar o entendimento de perspectiva e movimento. Nesta cena, as imagens são colocadas de forma a criar uma dúvida sobre qual imagem é gerada em tempo real, o que é pré-gravado, o que é foto, o que é vídeo, etc. As imagens são compostas entre elas e discutem o espaço vertical e horizontal como podemos perceber na foto ao lado (direita). A questão de quebrar a quarta parede era muito mais do que querer aproximar o público dos/das dançarinos/as. Tratou-se de refletir

Ter atitude é pensar, refletir e agir diante de um mundo. Por que não de um mundo feito de dança? Obra Pele (2002), no Sesc Ipiranga (SP)

Regina Agrella/Divulgação


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Divulgação

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O rompimento com a quarta parede para discutir a questão do espaço e do tempo — não apenas para aproximação realidade/ ficção (vida/arte; público/obra) — foi um dos elementos que possivelmente impulsionou meus trabalhos para a arte telemática. Nesse sentido de “conectar espaços”, a obra Pele (2002), concebida durante a residência no Ateliê de Coreógrafos Brasileiros (evento pelo qual fui contemplada), em Salvador, já indicava o uso da telemática. A obra iniciava no foyer com uma performance e o público era obrigado a atravessar uma cortina de elástico na qual era projetada a videodança de mesmo nome. A primeira cena continuava acontecendo entre os dois espaços: foyer e palco, ou seja, a performance que ocorria no foyer era projetada no palco. A imagem captava também os acontecimentos do lado de fora do teatro, pois a performance era realizada exatamente nas portas de vidro do teatro, deixando transpor e misturar o cotidiano daquele contexto com o espetáculo que se desenrolava. Isso possibilitava uma integração entre a “realidade” do mundo exterior e a “ficção” do interior da sala de espetáculo. Esse interesse é utilizado em várias obras, por ser um dos pontos principais da minha investigação.

Corpo aberto (2001), no Itaú Cultural (SP)

sobre nosso entendimento de espaço, tempo e perspectiva, que nada mais é do que uma convenção que incorporamos na nossa cultura desde a renascença.

A perspectiva é uma forma de ver o mundo, mas não é o mundo!

Além disso, na enorme plateia do Teatro Castro Alves, dimensionada para mais de 2 mil pessoas, 14 monitores de TV foram espalhados mostrando imagens do cotidiano e recortes em close de um espaço do próprio palco. A mídia funcionou, então, como uma ponte de ligação entre universos, a princípio, muito distintos.


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PURA LUZ…

A tela nada mais é do que uma tela. Sem a luz da projeção nada restará, apenas ela — a tela — sozinha. A imagem de projeção é seu suporte, seja ele o que for, desde que sirva de anteparo para luz que emana do projetor.

Imagem de projeção diferente de tela na parede. Projeção é luz. Imagem de projeção fica naquilo que encontrar. Imagem que te devora imagem. … e, com isso, estamos imersos.

Paredes, papéis, potes d’água, corpos, muitos foram os suportes que escolhi para minhas obras. Na obra Eu (2008), realizada na galeria do MAM da Bahia, em Salvador, e apresentada no Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia, “cortamos” a imagem do olho do dançarino Hugo Leonardo, que era captado em tempo real. Fizemos, assim, uma citação do filme Cão andaluz, do cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983).

Assim como no nosso dia a dia na frente do computador acostumamos a abrir tantas janelas, tantas ideias, tantas possibilidades, da mesma forma agimos na elaboração de uma obra mediada pelas novas tecnologias. Podemos vê-las de forma ampliada, reduzida ou recortada. Entretanto, ficamos presos à tela e meu esforço é romper com o aprisionamento da imagem. Quero poder amassá-la, cortá-la, enrolá-la, colocá-la no líquido, “molhá-la”.

Todas as imagens do espetáculo eram projetadas nas próprias estruturas da galeria, aproveitando os contornos e as texturas da edificação, ou em papéis e plásticos utilizados para compor a cenografia (que também era montada e modificada durante as cenas).

Em meus espetáculos, tenho procurado romper com entendimento equivocado da imagem de projeção como a tela.

Divulgação

Eu (2008)


Divulgação

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Divulgação

Laboratorium MAPA D2 (2011) Divulgação

(In)TOQue (2008) Salvador/Brasília/São Paulo

Foi um manifesto em prol da “destelização” da imagem! E fez o homem a sua diferença (2005)

Nessa obra, cada um dos dançarinos — Hugo Leonardo, Daniela Guimarães e eu — tínhamos nosso propósito que determinava uma possibilidade de uso espacial. O Hugo podia trilhar todo o ambiente, a Daniela ficava em um único espaço com câmeras de segurança que a “vigiavam” — inclusive uma presa ao próprio braço da dançarina — e eu passava a maior parte do tempo em uma parede forrada de várias camadas de papel, onde projeções interativas ocorriam. Eu ficava ali misturada àqueles papéis, que ora moldavam meu corpo, ora eu os moldava.

FIM deste texto, mas não da exploração do corpo perceptivo cognoscente! Pensar em imagem, no deslocamento do tempo e do espaço, e em todas as outras articulações que nos deparamos na pesquisa da dança com mediação tecnológica, para mim interessa como possibilidade para refletir sobre o corpo e não sobre a tecnologia. Esse corpo perceptivo cognoscente transformase com seu meio e o nosso é o da cultura digital. Que corpo é esse? Esta é nossa busca, sabendo, respeitando e acreditando na sua mutabilidade!


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revispa 2011

A utopiaquentupiatuapia

flávio emanuel é artista visual e recifense. Atualmente trabalha com videoarte, música e intervenções.

É a segunda vez que sento nesta praça, só que agora sento para meditar. E medito como um político sem congressos e assembleias; como um religioso sem templos e igrejas; e como um artista sem museus e galerias. Como é linda essa paisagem e todas essas pessoas que aqui a contemplam. Eu olho para elas e sinto que as conheço, e elas me conhecem, estamos na connexion complete, primeira geração depois do ciclo concluído, somos um rizoma que se enraizou sem perder de vista suas extremidades. Nos reconhecemos como humanos, simples humanos, e nos corrigimos numa velocidade cada vez maior. E não foi como previmos, a casualidade nos corrigiu historicamente, e as máquinas não se voltaram contra nós, simplesmente nos conectamos por completo, ao mesmo tempo em que criamos nossa réplica perfeita, e ela compôs canções, esculpiu mármores e pintou paisagens maravilhosas. E nos sentimos livres desse encargo, entendemos que ferramentas só funcionavam enquanto existiam buscas. Hoje me sento nessa praça pela segunda vez, desta vez completamente conectado, como se fosse uma igreja, como se fosse um congresso e como se fosse um museu, e a primeira pergunta que lanço no universo online, é: para que nos servirão os políticos? E à minha frente uma nuvem de milhares de tags, metadados transformam-se em respostas, processando-se em uma única resposta: Eles terão que procurar outra função, pois para nossas dúvidas temos uma resposta plena e essa resposta terá outro nome que não lei, e nós a experimentaremos, como aprendizado e a processaremos aqui no universo online. Daí, teremos outras respostas.

por flávio emanuel flavio@e-nave.com.br

Pelo semblante das pessoas que aqui também estão, vejo que existe um consenso. Então, uma outra pergunta também me vem à mente e novamente a lanço no universo online: e os padres, os bispos e os cardeais que até pouco tempo guiavam legiões de seguidores? Novamente, outra nuvem surge à minha frente, desta vez um pouco mais veloz, e perguntas ricochetearam no universo e novamente a resposta vindo de todos os cantos se revela: Eles terão que procurar outra função, pois não mais oraremos, estaremos a nos reconhecer, meditaremos as respostas como orações. Nosso guia será nós mesmos, pois todos seremos um só. Novamente, vi que todos vivenciavam a mesma sensação de paz que eu. Então fiquei ali naquela praça por muitas horas, reconhecendo meu contato universal. E muitas foram as perguntas que se processaram em respostas plenas. Nossos códigos são livres e eles se aprimoram a cada conexão. Nossos softwares processarão nossos recursos mundiais e o que serão encargos ou benefícios serão igualitários e um único imposto universal será praticado. Nossa ética resultará de nosso verdadeiro bem-estar comum. Finalmente nos livramos de todos os Dogmas... Abriremos nossos portos e nossas mercadorias circularão livres, criaremos uma moeda comum... E em meio a todas as respostas que descortinava aquele novo território, pensei em mim, um velho artista do século 20.


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Uma coisa eu sabia: há muito minhas ações, minhas músicas, minhas pinturas, minhas performances se fundiram em um ativismo meio que emergencial. Minhas criações (foi assim que passei a chamar toda minha produção artística) tornaram-se expressão usual. E é assim que crio hoje. Não mais me setorizei em linguagens. A rua e a web passaram a ser meus veículos, sem atravessadores. Criei um atalho. Muitos foram os artistas que, como eu, desistiram de suas antigas identidades e assumiram novos papéis e novos nomes. Desistiram de habitar reservas de museus e decorar paredes de galerias, e passaram a falar de novidades, em cada canto, em cada esquina da cidade, corrigindo as grandes mídias com a verdade, exercitando a verdade sem filtros, para todos os olhos verem. Foi assim comigo também, rasguei meu documento de identidade, meu registro de nascimento e me rebatizei de Bauer’05. Desprovi-me de toda e qualquer vaidade, e principalmente passei a praticar o que discursava. Então aconteceu a connexion complete. Primeiro na Espanha, os jovens, os velhos, todos passaram a discutir em fóruns virtuais. E depois em reuniões presenciais em plena praça pública. Como uma reação virótica, a ideia se espalhou por todo o mundo e todos voluntariamente foram abrindo seus contatos e ninguém mais foi considerado desconhecido. Os softwares de tradução evoluíram para uma tradução em tempo real. O Linux foi adotado e aprimorado à perfeição, e rapidamente todos se ajudaram. Foi quando percebi que a maneira intuitiva que me movia também movia outros.

Hoje me sento nesta praça pela segunda vez, desta vez completamente conectado, como se fosse uma igreja, como se fosse um congresso e como se fosse um museu, e a última pergunta que lanço no universo online é: E nós artistas, o que será de nós? A nuvem que forma à minha frente é rápida e percebo como a conexão vai se aperfeiçoando a cada pergunta feita, e a resposta que se forma à minha frente é: Vocês artistas não poderão ser outra coisa que não livres. v


prefeito  João da Costa

SPA DAS ARTES – SEMANA DE ARTES VISUAIS DO RECIFE 2011

vice-prefeito  Milton Coelho

coordenação geral

SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO secretário de comunicação  Eric Carrazzone

Beth da Matta (Diretora do Mamam) Bruna Pedrosa (Gerente de Serviços do Museu Murillo La Greca)

assessora executiva  Cláudia Araújo

coordenação de produção/produção executiva

assessora especial  Flávia Lemos

Enaile Lima (Caramiolas Projetos Afins Multimídia)

SECRETARIA DE CULTURA

assistente de coordenação de produção

secretário de cultura  Renato L

Sabrina Carvalho

assessor executivo  Fernando Duarte

produção

diretor de captação de recursos e marketing  Dida Maia

Adriana Vaz | Bárbara Collier | Lia Menezes | Laíse Carvalho | Rose Lima

diretora do museu de arte moderna aloisio magalhães – mamam  Beth da Matta

equipe de apoio

PREFEITURA DO RECIFE

FUNDAÇÃO DE CULTURA cidade do recife presidente  Luciana Félix assessor especial  Bode Valença diretor administrativo-financeiro  Argemiro

Elisângela Nascimento | Mauricéia Lacerda | Rosângela Nascimento coordenação educativo

Joana D'arc de Souza LIma | Fernanda Simionato

de Souza Leão Filho

coordenação de comunicação

diretora de desenvolvimento e descentralização cultural  Luciana Veras

assessoria de comunicação

diretor de gestão de equipamentos culturais  Fábio Cavalcante gerente de serviços do museu murillo la greca

Bruna Pedrosa

Olívia Mindêlo Dani Acioli (Aponte Comunicação) assessoria de imprensa da secretaria de cultura do recife e fundação de cultura cidade do recife

Jaciana Sobrinho | Flora Noberto | Paula Walter comunicação online e website

Leo Antunes design gráfico

Zoludesign registro audiovisual

Rafael Mazza (Tilovita Produções) vídeo saldão retrospectiva spa

Celso Costa (Caramiolas Projetos Afins Multimídia) comissão julgadora do edital spa das artes

Aslan Cabral | Marcio Shimabukuro | Paulo Bruscky | Rodrigo Braga | Solon Ribeiro curadoria galeria janete costa | parque dona lindu

Beth da Matta | Márcio Almeida

www.spadasartes.org contato@spadasartes.org


parceiros internos M useu de Arte Moderna Aloisio Magalhães -

Mamam | Museu Murillo La Greca | Parque Dona Lindu | Memorial Chico Science | Centro de Formação em Artes Visuais – CFAV | Museu de Arte Popular –­ MAP patrocinador Fundarpe parceiros Sala NE | Fundaj | B3 apoio Arte Plural | Cult Hotel/Cult Galery | Galeria

Amparo 60 | Galeria Dumaresq | Galeria Mariana Moura | Sesc artistas selecionados A ntonio Lima (PB) | Bruno Faria (SP) | Coletivo

Catapulta (SP) | Coletivo Dança no Andar de Cima (CE) | Coletivo Duplicata17 (GO) | Daniel Toledo (PE) | Fabiano Araruna (RJ) | Felipe Brait (SP) | Fran Junqueira (RJ) | Geraldo Zamproni (PR) | Iezu Kaeru (PE) | Luísa Nóbrega (SP) | Marcelo Armani (RS) | Moa Lago (PE) | Os Aparecidos Políticos (CE) | Rubens Pileggi Sá (RJ) | Rubiane Maia (ES) | Sara Lambranho (MG) | Thaíse Nardim (TO) | Thelmo Cristovam (PE) | Ulisses Locicks (AL) artistas colaboradores M arcelo Silveira | Eudes Mota | Gil Vicente |

REVISPA 2011 edição, concepção e redação de textos

Olívia Mindêlo Grupo Pia – Pesquisa e Interações Artísticas (Cris Cavalcanti, Laura Sousa, Raíza Cavalcanti e Raquel Borges) colaboradores

Circuito Fora do Eixo e Coletivo Lumo (Ney Hugo, Tatiana Oliveira e Alejandro Vargas) | Flávio Emanuel | Ivani Santana | Jacqueline Medeiros | Jeims Duarte | Samarone Lima | Tatiana Diniz | Tomás Lapa | Simone Jubert | Simone Mendes agradecimentos

Aslan Cabral | Beatriz Ribas | Bertrand Sampaio | criadores do SPA (José Paulo | Maurício Castro | Rinaldo Silva) | Cristiana Tejo | Dani Acioli | Heraldo Souto Maior | Isabel Queiroz | Joana D’Arc de Sousa Lima | Lia Letícia | Lorena Taulla | Marlene Pessoa | Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam) | Natália Barros | Paulinho do Amparo | Theo Acioli | Tony Vasconcelos projeto gráfico

Zoludesign impressão

FacForm

Manoel Veiga | Renato Valle | Mauricio Castro | José Paulo | Paulo Meira | Marcio Almeida | Juliana Notari | Bruno Vilela | Kilian Glasner | Adriana Veiga | Rinaldo | Joelson

realização

patrocínio

parceria


sta revista foi produzida entre agosto e setembro de 2011. A Zoludesign utilizou no projeto gráfico as famílias Whitney HTF, E comissionada pela Hoefler & Frere-Jones, e Spotka, comissionada pela T26. A pré-impressão, a impressão, a encadernação e o acabamento foram realizados na Gráfica Facform, com tiragem de 1.000 exemplares, impressos sobre papel offset e reciclato 120 g/m2, para o miolo e cartão Triplex 350 g/m2, com placas ecossustentáveis Alluse acopladas, para a capa.




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