A família de Lia Salgado agradece especialmente a José Pedro Rodrigues de Oliveira, Myrian Dauelsberg, Raul Marçal, Otto Drechsler, Alceu Bocchino, Vera Guarnieri, Henrique Gandelman, Judy Carmichael e Guili Seara.
Longe, bem longe Discorrer sobre uma experiência que excede o âmbito das palavras é sempre um desafio. Talvez por isso tenha me custado tanto começar esta apreciação sobre a arte de Lia Salgado, aqui representada por sua importante incursão na canção de câmera brasileira.1 Mas como, neste caso, a música se faz justamente em forma de canção, de repente descubro que palavras contidas nas peças cantadas pelo soprano podem desvelar o que há de mais particular em seu modo de interpretar. (Curiosa coincidência...)
Assim, para falar sobre Lia, ouso tornar minhas algumas frases das canções. O tom brejeiro e ao mesmo tempo sedutor que tanto nos cativa ao ouvi-la, encontro “com a boniteza, a faceirice, a risada que (ela) me dá” (Toada pra você). O jocoso também se revela naquele único “jeitinho de sentir” (Teus olhos verdes) e de se expressar musicalmente. Além da graciosidade e do bom humor característicos à sua interpretação, surpreende-me como a voz de Lia se torna próxima ao ouvinte, tomando às vezes a inflexão de uma fala íntima. Em algumas das canções, sentimos que a cantora se dirige a nós como quem vem “falar com seu amor” (Canção das mães pretas), como quem quer lhe “dizer (...) essa frase encantada: eu gosto de você” (Eu gosto de você).
É neste modo espontâneo, familiar e coloquial, tão em sintonia com a “alma brasileira” evocada pelos modernistas, que Lia consegue deixar à vontade no terreno da nossa canção de câmera até mesmo o ouvinte menos acostumado com o universo da música erudita. (Sim, erudita, porque ainda quando elaboradas a partir de melodias folclóricas, as peças que compõem este CD de algum modo se inscrevem dentro da tradição européia de canções para canto e piano, como o Lied e a chanson.) A espontaneidade de Lia não aparece sozinha, mas vem acompanhada de um grande refinamento vocal e musical, que poderia passar despercebido também pela naturalidade com que se expressa. Este refinamento se manifesta, por exemplo, na dicção da cantora, cuja fluência e clareza são resultado de um trabalho minucioso e consciente. A consciência da dicção pode ser constatada ao observarmos o modo sutil com que Lia transforma a sonoridade de certos fonemas de acordo com a altura em que são cantados ou o local da frase em que se encontram. A integração estabelecida com o piano é outro ponto em que o requinte da cantora se verifica. Como exemplo da audição cuidadosa que busca uma harmonia entre voz e acompanhamento – que não só revela o refinamento da cantora, mas também do pianista – podemos destacar a divertida frase:
“Quisera ver o teu seio desabrochar como a flor” (Quando uma flor desabrocha), em que o Maestro Alceu Bocchino e Lia obtêm uma surpreendente unidade tanto de articulação quanto de espírito. A interpretação refinada da cantora também se comprova quando nos atentamos para as mudanças de cores, intenções e intensidade que realiza em algumas palavras ou até mesmo no interior delas. É assim que Lia nos faz descobrir, em canções tão consagradas como Azulão, um novo brilho. Como Guarnieri que descobre num par de olhos castanhos um verde antes desconhecido... E estes novos verdes e azulões sonoros se formam sempre numa profunda aliança com o texto cantado. Talvez seja essa interação entre o aspecto semântico e o musical o que permite às letras das canções nos dizer algo sobre a cantora Lia. A obra nos revela a artista. A artista nos revela a canção feita no seu tempo.2 E quem sabe ambas nos indiquem como devemos ouvi-las e, mais que isso, ouvir: “Segue-me de olhos fechados, que a estrada é toda de luz” (Segue-me).
Clóvis Salgado Gontijo
“Intérprete por excelência do repertório de concerto.” Ayres de Andrade – O Jornal – Rio de Janeiro
“Foi com vivo prazer que me defrontei com uma intérprete cheia de vivacidade espontânea, fiel aos acentos e às inflexões de nossos peculiares modismos, tanto no terreno erudito como no popular.” Andrade Muricy – Jornal do Comércio – Rio de Janeiro
A canção de câmara brasileira É como intérprete da canção de câmara brasileira – um dos gêneros em que melhor se evidenciam os seus méritos artísticos -, que Lia Salgado vem prestar, com esta gravação, a sua preciosa contribuição para a discografia nacional. Ao valor intrínseco das canções aqui reunidas, congregando alguns dos nomes mais representativos da música brasileira contemporânea, acrescenta-se a beleza de sua voz expressiva e o interesse de suas interpretações. A canção constitui talvez o capítulo importante da criação musical brasileira. Essa importância decorre não apenas de uma constatação estatística de seu volume, mas sobretudo da circunstância de se haver tornado um receptáculo privilegiado dos melhores valores intrínsecos de nossa produção musical.
“Uma voz bem trimbrada, quente, que se move com maciez invulgar, perfeitamente empostada, capaz de toda flexibilidade e de todo matizamento.” Ricardi – A folha da Manhã – São Paulo
Acrescenta-se a isso a significação histórica e estética desse meio de expressão por excelência que é a palavra cantada, em que um contato mais íntimo se estabelece entre o criador e o meio, pela utilização da linguagem mesma em que se expressa toda uma coletividade. Não surpeende que a canção haja sido sempre o primeiro veículo de expressão de uma cultura musical nacional, sendo a palavra a mais direta via de acesso dos sentimentos coletivos à sensibilidade musical do compositor. Acresce, ainda, a circuntância de ser a canção a forma elementar de expressão musical do próprio povo, que tem sabido sempre fazer o melhor uso desse instrumento musical privilegiado com que foi dotado pela natureza – a voz humana. Originária da multiplicidade de manifestações do cancioneiro tradicional, incorporando elementos da modinha, do lundu, da canção de roda, das toadas e cantorias de violeiros, a canção de câmara brasileira apresenta uma enorme variedade de elementos, dentro da uni-
dade genérica de sua forma universal. Convivem, na canção brasileira, a nostalgia dorida da canção de amor portuguesa, a brejeirice tropical e maliciosa do lundu, a ingenuidade cativante dos folguedos infantis, o lirismo e a poesia da toada serteneja, a ternura envolvente da canção de ninar, o misticismo ritual do culto pagão primitivo, o dinamismo dos cantos de trabalho. A canção erudita brasileira surge como um aprimoramento artístico dos múltiplos processos de cantar sistematizados pela tradição popular, partindo daí para uma personalização crescente na obra de cada compositor. Universal em sua forma, nacional em seu conteúdo e individual em seu tratamento, é a canção a síntese mais perfeita do gênio musical brasileiro.
Edino Krieger Texto escrito para o LP “Lia Salgado interpreta autores brasileiros”, da Cia Brasileira de Discos - Sinter
À Lia Salgado, admirável cantora e maravilhosa intérprete de minhas obras, esta lembrança cheia de amizade. Camargo Guarnieri
The Brazilian Chamber Song With this recording, Lia Salgado makes an important contribution to the Brazilian Discography in her interpretations of the chamber Brazilian “canção” (Lied)—one of the genres that most highlights her artistry. Gathered here are some of the most impressive names of contemporary Brazilian music who contribute to the beauty of Lia Salgado’s expressive voice and her special interpretations.
“Canção” is perhaps the most important component in the evolution of Brazilian music. Its importance is reflected not only in it’s ubiquity, but in its role as a privileged receptacle of the best inherent values of our musical heritage. It is illustrative additionally, to stress the aesthetic and historical meaning of this expressive medium, by its excellence with the singing word, where an innermost contact is established between the creator and the environment, by the use of the same language of a whole community. It is not surprising that the song has always been the first vehicle of expression of a national musical culture, and that words are the most direct way to convey the emotion of a composer’s musical sensitivity. Furthermore, the song, being
the elemental form of musical expression of a culture, has always utilized this privileged musical instrument with which it has been endowed by nature - the human voice. Derived from the mix of the traditional songs, incorporating elements of “modinha”, “lundu”, “canção de roda”, “toadas” and the singing of the “viola” players, the chamber Brazilian “canção” shows a large variety of elements, inside of its generic unity of its universal form. In Brazilian “canção” reside the painful nostalgia of the Portuguese love song, the tropical and spiteful provocation of the “lundu”, the charming naïvité of children’s playing songs, the lyricism and the poetry of the “toada sertaneja”, the enveloping tenderness of the lullaby, the ritual mysticism of the primitive pagan cult, and the dynamism of working songs.
The Brazilian classical song appears as an artistic refinement of the various ways of singing, systemized by folk tradition, which evolves the individuality of each composer. Universal in its form, national in its contents, and individual in its treatment, the “canção” is the most perfect synthesis of the Brazilian musical genius. Edino Krieger (Written for the LP record “Lia Salgado interpreta autores brasileiros”, of Sinter) Translation: Judy Carmichael
“Su dulzura, su sensillez y su clarísima vocalisación sirven de manera felisísima a lo que pudiéramos llamar con término, a un tiempo bárbaro y clásico ‘Lied Brasileño’. Lia Salgado nos dio la medida en sus canciones con ‘Vida Formosa’, de V. Lobos y la deliciosa ‘Quebra o coco, menina’, de su talento y de su capacidad de pasar de la zona lírica a otra más ligera, más superficial, pero no menos llena de encanto”. Dolores Pala Berdejo – El Alcázar – Madrid
Lia Salgado nasceu no Rio de Janeiro. Concluiu o curso de Música no Consevatório Mineiro de Música. Casou-se com o médico Clovis Salgado, que sempre foi seu maior incentivador. Teve três professores: Nahyr Jeolás, Murilo de Carvalho e Marion Matheus. Distinguiu-se como cantora lírica e de câmara. Na cena lírica, estreou em 1947 (Cavalleria Rusticana). Em 1949, estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (La Bohème), tendo prestado concurso de seleção para a 1ª Temporada Nacional. Desde então, participou de todas as temporadas até 1972, em inúmeras óperas. Cantou ao lado de celebridades como Del Monaco, Tagliavini, Simionato, Christoff, Guelfi, Italo Tajo, Lemeni, Mellis, Gottlieb, Tadei, Damiano. Criou, em estréias mundiais, os papéis de Cilia, de O Sertão, de Jouteaux, da Compadecida, de J. Siqueira, e 3 personagens de Um Homem só, de Guarnieri.
Especializou-se na canção brasileira e dedicou-se à sua difusão no exterior. Gravou 10 LPs de música brasileira, incluindo a 1ª gravação de música colonial mineira, a Missa em Fá, de Lobo de Mesquita. Apresentou-se com êxito em Paris, Madri, Lisboa, Londres (Wigmore Hall e BBC), Nova York (Carnegie Hall), Boston, São Francisco, Los Angeles, New Haven, Houston, Nova Orleans, Filadélfia, Miami, Washington, D.C. (Hall of the Americas – OEA) e Buenos Aires. Foi a única convidada brasileira da Accademia Internazionale di Musica, Scienze ed Arti de Roma para participar do concerto que celebrou o centenário de Puccini, no Teatro del Giglio, em Lucca, em 1958. Morreu no dia 14 de novembro de 1980, em Belo Horizonte.
“Cantora de méritos indiscutíveis, aplaudida nos principais palcos, o soprano Lia Salgado integra hoje o quadro de cantores de primeira linha, tanto na parte lírica, como de câmara. Dispõe de fato de material de voz susceptível de rendimento de qualidade generosa. Ao lado de novos recursos que dão ampla segurança ao seu canto, há tudo aquilo que não se aprende: a sensibilidade, a musicalidade, a emoção sincera, capaz de matizar-se de diferentes graus de sentimento dramático e poético, a comunicabilidade, a ternura e a graça. Acima de tudo, a inteligência interpretativa, misto de intuição e de ludidez penetrante.” Eurico Nogueira França – Correio da Manhã – Rio de Janeiro
“Lia Salgado é, sem dúvida, uma das maiores cantoras do Brasil. Possuidora de uma voz bela e generosa a serviço de uma técnica raramente atingida por outro cantor brasileiro. Sua sensibilidade é refinada e seu gosto artístico é de primeira ordem.” Camargo Guarnieri
“À D. Lia, intérprete excelente de qualquer compositor, inclusive eu.” Heitor Villa-Lobos
“Lia Salgado canta com arte e exprime real talento, observa com carinho as exigências da interpretação e as particularidades estilísticas. A música artístitica é por ela revivida nos seus aspectos mais característicos.” Caldeira Filho – O Estado de São Paulo
“O colorido vivo e a virtuosidade com que interpretou Villa-Lobos foram emocionantes. Seu timbre é cheio de reflexos dourados. Foram as melhores interpretações que ouvimos desde o desaparecimento da grande Elsie Houston, especialista nessas canções. Lia Salgado é possuidora de uma linda voz, de brilho invulgar, como também de rara técnica e grande sensibilidade e bom-gosto. Seus registros médio e pianísssimo são de esplêndida qualidade. As canções que essa embaixatriz da música nos trouxe foram fascinantes.” Lawrence Sears – Evening Star – Washington, D.C.
Coordenação musical: Clovis Salgado Gontijo Assistência musical: Clovis Augusto Albuquerque Salgado Produção: Marilia Salgado Recuperação digital e finalização: Rio Digital Arts Studio Rio de Janeiro Tel. (21) 2240-1168 Engenheiro de som: Otto Drechsler Masterização em sistema Sonic Solutions: PMCD Produções Rio de Janeiro Tel. (21) 2240-1168 Engenheiro de masterização: Raul Marçal Finalizado em junho de 2008 Projeto gráfico: Guili Seara Design www.guiliseara.com.br Diretor de criação: Guili Seara Designer: Zumberto
Das vossas cantigas, todo o mar ĂŠ nado, tangedoras idas! Vozes deixastes derramadas em terras pelo tempo andadas, e ainda sĂŁo floridas! Cantar Saudoso CecĂlia Meireles
PARTE I A : A B C G Amo-te muito 2’51” Harmonização de C. Guarnieri BR-POC-08-00307 Longe, bem longe 3’42” Harmonização F. Mignone BR-POC-08-00308 Azulão 1’45” J. Ovalle e Manoel Bandeira BR-POC-08-00309 Foi numa noite calmosa 4’22” Harmonização L. Gallet BR-POC-08-00310 Quando uma flor desabrocha 2’20” Francisco Mignone BR-POC-08-00311 Canção das mães pretas 2’00” Francisco Mignone BR-POC-08-00312 Tayeras 1’21” Harmonização L. Gallet BR-POC-08-00313 Aribu 2’13” Harmonização C. Guarnieri BR-POC-08-00314 Segue-me 1’18” Camargo Guarnieri BR-POC-08-00315 Teus olhos verdes 1’31” Camargo Guarnieri BR-POC-08-00316 Vadeia caboclinho 0’53” Harmonização J.Siqueira BR-POC-08-00317 1"35& ** t A : A B 12 Evocação 3’27” H.Villa-Lobos e S. Salema BR-POC-08-00318 13 Vida formosa 1’23” Ambientação H. Villa-Lobos BR-POC-08-00319 14 Toada pra você 2’37” L. Fernandez e M. de Andrade BR-POC-08-00320 15 Meu coração 3’12” L. Fernandez e Mello Souza BR-POC-08-00321 16 Cantiga de ninar 3’39” Alceu Bocchino e G. Sá Brito BR-POC-08-00322 17 O doce nome de você 3’14” F. Mignone e J. Guimarães BR-POC-08-00323 C G A : C G 18 Pomba-rola 1’29” Ambientação C. Guarnieri BR-POC-08-00324 19 Viola quebrada 4’37” C. Guarnieri e M. Andrade BR-POC-08-00325 20 Eu gosto de você 1’25” C. Guarnieri e S. de Campos BR-POC-08-00326 21 Aceitei tua amizade 1’41” C.Guarnieri e S. de Campos BR-POC-08-00327 22 Porque 1’06” Camargo Guarnieri BR-POC-08-00328 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
Parte I: LP Lia Salgado interpreta autores brasileiros (Sinter) Fonogramas de propriedade da PolyGram do Brasil Ltda / Parte II: Lia Salgado e a canção brasileira (Chantecler) Fonogramas de propriedade da Warner Music Brasil Ltda