EMOÇÃO - Causos do Cotidiano

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EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

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EMOÇÃO “CAUSOS” DO COTIDIANO

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EMOÇÃO “CAUSOS” DO COTIDIANO

Vitor Moreira

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Emoção “Causos” do Cotidiano Direitos reservados para língua portuguesa: Vitor Moreira Revisão: Capa: Vitor Moreira Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a permissão, por escrito, do Autor

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Eis o novo trabalho do artista Vitor Moreira! O livro Emoção – “Causos” do cotidiano. Uma reunião de pequenas histórias selecionadas pelo autor para de uma forma bem-humorada falar de assuntos que são cada vez mais constantes no dia-a-dia do povo brasileiro como política, segurança pública, relacionamento interpessoal, religião, avanço tecnológico, ética, cidadania e amor nos tempos atuais. Mais uma vez o autor não deixa passar em branco a pessoalidade do que escreve e sua personalidade ousada ao criticar as falhas do sistema social arraigado na Constituição, onde muitas das vezes somente se preserva no sentido de privilegiar alguns em detrimento da maioria. É certamente uma grande emoção a forma com que mais uma vez o cantor, compositor e escritor Vitor Moreira presenteia o público com uma jóia rara da literatura brasileira! Outras obras do autor são Rei Sitae – Onde A Coisa Se Encontra; Frenesi – A Poesia da Vida; O Coração Não Nega; Soneto, Convite Para Sonhar; Quarenta Passos Até o Campo; É Que O Amor Morreu No Belvedere; Petrúcio; Desfragmentação – O Formigueiro de Ilê-Ifé; O Lavrador das Lavras Vazias; Carnaval em Raul Soares e Amor de Veraneio – Uma História de Verão. Completa o acervo do artista o trabalho musical Marcas da Paixão de samba.

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Universo Humano Pintura do próprio artista Vitor Moreira, do ano de 2004, onde conforme relata há a expressão de toda a sua criação artística, baseada na unidade do universo interior de cada indivíduo. Entende-se que cada indivíduo é bom ou ruim, tem seus mitos, suas crenças e seu caráter, entretanto no interior de cada um há o consenso, onde se nota que todos independente de qualquer coisa, até mesmo da disposição das suas prioridades de vida (posição dos astros, planetas, cometas) dentro do seu universo pessoal idealizam um céu de estrelas, luz e mistérios e uma Terra de prazer e realização. O Universo Humano é a base de toda criação artística de Vitor Moreira.

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SUMÁRIO O “diabo louro”......................................................10 O problema não é a bebida, é o problema...........16 Ele era de fé............................................................22 Era meu grande amigo e nem lhe conhecia.........27 O cachorro fugiu, não o marido, Jurema............34 Não te amo mais, ficarei com a televisão.............41 Bolinho de bacalhau..............................................46 Amigos também sussurram no ouvido.................48 Violão, roça e cachaça de alambique...................53 Mudar de vida.........................................................57 Perseguição.............................................................65 Quem trabalha não precisa pedir.........................74 Ou ele ou eu, aos sábados......................................79 O plano do plano de saúde....................................83 Fiquei careta, e agora?..........................................86 A pegadinha do falso cigarro................................91 Ái meu fusca!..........................................................98 “Moreno” só tem um.............................................102 O galã......................................................................106

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O “diabo louro” Havia uma favela muito perigosa naquele bairro onde nenhum morador gostava da policia! As viaturas constantemente se deslocavam para lá com a intenção de averiguar a situação do crime ou prender um traficante. As pessoas, moradores daquele local perigoso jogavam pedras, ovos, tomates podres e objetos...depois saiam correndo gritando e se escondiam nos becos e vielas, como se fossem eles os responsáveis pela violência. Todo domingo havia um samba no barzinho do Tinoco, um velho bicheiro que promovia jogo de baralho e purrinha. Porém agora não há mais 10 Vitor Moreira, 2013


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porque ele está pagando serviços comunitários depois que seus jogos foram descobertos. Aquele novato, acabara de ser transferido pra sua cidade natal após um longo período trabalhando no interior e tentativas frustradas de voltar pra essa cidade...até que a insistência com o tempo foi atendida muito a contragosto pelo seu chefe de policia lá no interior do Estado. Conhecia aquele lugar, e bem, pois há muito tempo, muitos anos atrás nos dias de criança aquilo ali era pacífico, tudo era movimentado! Havia barracas de produtos contrabandeados sendo vendidos livremente, uma quitanda de frutas bem simples, plantadas no fundo do quintal, um velho que sempre ficava pitando cigarro de palha na varanda de seu barraco, algumas meninas brincando de ciranda na pracinha e até o campinho de terra onde as crianças jogavam bola perto do lixão municipal enquanto que longe dali um ou outro adulto fumava um cigarro de maconha ao velho estilo do Bob... Os tempos mudaram. E agora ele olha pela janela do banco do passageiro da viatura de policia, usando seu uniforme vermelho. O mesmo lugar onde antes jogava bola no campinho do lixão, tudo tão mudado, repleto de pichações e o campinho já não existe porque a prefeitura expandiu o lixão, a pracinha virou matagal porque a grama não foi podada, as barracas sumiram, assim como o barraco do velho homem que gostava de ver o movimento da rua principal daquele lugar enquanto pitava cigarro de palha. Um dos policiais da viatura, velho de casa, com um cargo alto de chefia na policia, 11 Vitor Moreira, 2013


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trabalhando nesta região há vários anos, inclusive antes das mudanças, nos tempos da Ditadura ainda, extremo conhecedor do serviço naquela área tão perigosa diz sempre que tudo começou a mudar quando o “diabo louro” trouxe a droga pra cá após seu pai ser morto por uma bala perdida enquanto dormia. O pai dele era uma espécie de líder comunitário muito influente, que acreditava em alguns ideais e sempre batia de frente com os poderosos para garantir saúde e bem-estar aos moradores daquela favela. Possuía uma rádio pirata que transmitia notícias de interesse dos moradores e tocava umas músicas que ele comprava na mão dos camelôs no centro daquela cidade, tudo pirateado porque não tinha dinheiro pra comprar os CDs originais. Além disso fazia pequenos furtos fora da favela. Dizia sempre na rádio que aquelas pessoas mereciam um centro de saúde, um cuidado maior da prefeitura, empregos, respeito, dignidade, cidadania... Então passado um tempo o “diabo louro” estabeleceu a sua boca de fumo. Dizem que tem escolta armada e hoje há uma rede de tráfico muito grande, conforme relata o chefe da policia naquela viatura. Não há quem nunca tenha ouvido falar do “diabo louro” na policia daquela cidade. Era um homem terrível! Desprezível! Perigoso! – diziam. Dizia o chefe que ninguém ali prestava, que nada de bom jamais sairia daquele lugar, pois os moradores acobertavam a criminalidade do “diabo louro” em troca de remédios, mantimentos, carne, carvão, panelas, bebida, botijões de gás, entre outros favores. Na verdade essa é a tendência em 12 Vitor Moreira, 2013


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áreas de risco porque ninguém quer se expor, denunciar, revelar o que há de errado e ser morto em seguida. O Estado e o município não estarão ali todo o tempo e ao virar as costas...uma saravada de tiros, um golpe de faca. E quem é o estado com toda a sua competência pra dar dignidade a um favelado? Isso é o que acreditavam os moradores dali, e se inclinavam para quem mais lhes proporciona vantagens. Sentado num banco estava o “diabo louro” sem a sua escolta armada, tomando um copo de cerveja calmamente. Era domingo. Os policiais ao avistarem-no, se assustaram, tomaram um choque e já pegaram as armas pra se defender do perigoso bandido, que estava desprotegido no bar. Só o novato não o conhecia. Havia acabado de retornar para a cidade, estava em período de adaptação e por isso ficou fazendo a segurança dos outros. Rapidamente o abordaram e começaram a revirá-lo procurando armas e drogas. Com ele havia alguns trocados apenas, um celular barato e dois cigarros. O novato ficou atrás fazendo a segurança enquanto que os experientes procuravam em seus bolsos, nas imediações, apertavam as articulações daquele homem tão cruel para que revelasse qualquer indício de algo errado para prendê-lo e acabar com toda aquela violência que existia na favela. Queriam fazer aquele lugar voltar a ser o que era antes, queriam proporcionar bem-estar para a população do lugar e livrar todas as pessoas do indivíduo maléfico. Não havia nada com o “diabo louro”, porém aquele policial mais velho e de alta patente 13 Vitor Moreira, 2013


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chamou o outro que dava buscas em um canto para conversarem sobre o que fazer com o perigoso bandido e devolver a paz para o lugar. Queria de todas as formas usar sua influência para resolver os problemas daquela gente. O novato então se aproximou para ver a fisionomia do “diabo louro”, pois conhecia bem aquele lugar, que era o lugar onde sempre passava para ir para o campinho jogar bola com os amigos de infância e onde ficava a escola pobre onde sempre estudou desde criança. Ali perto era também a lojinha de muamba do seu pai e ele sempre levava o almoço por volta das treze horas pontualmente. - Nossa é você? – disse o “diabo louro”. Surpreso e um tanto nervoso por estar perto de um homem tão perigoso, dono do morro, o novato respondeu: - Sinto muito, não o conheço. - Sou eu Joaquim, o Lorim. Jogava no seu time lá no campo, lembra? Eu era o atacante, baixinho! Cansei de receber bola sua pra fazer gol pro nosso time. Nossa, você jogava muito bem! Eu era seu fã! Até hoje guardo de lembrança aquela chuteira velha que não te servia mais e você me deu de presente porque eu não tinha. - Não está me confundindo com alguém? - Não. Tenho certeza que te conheço, eu já almocei na sua casa uma vez, lembro até hoje, havia bife com batata frita, jogávamos no mesmo time ali onde era o campinho. Lembro até onde morava. Era lá perto da rua da escola. Direto eu via você no intervalo do recreio indo até a biblioteca pegar livro. Eu estou muito feliz em te 14 Vitor Moreira, 2013


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ver de novo depois de tantos anos! Eu sabia que você iria estudar! Eu sabia que iria ser alguém na vida! Parabéns meu amigo! Vou contar pra minha mãe que eu te vi, ela nem vai acreditar que você virou “gambé” e já está num cargo de chefe, ela nem vai acreditar. Então o chefe de policia olhou surpreso para os dois, mais espantado ainda por saber que o novato crescera naquele lugar que tanto difamou e era quem mais conhecia o homem perigoso que mandava e desmandava naquela favela. - Você definitivamente está me confundindo com alguém. Não conheço você e nem conheço esse lugar, pois sou um homem da lei e você é um criminoso perigoso! Afaste-se. Aliás, perigoso e jogava muito mal! Aquele dia contra o time da vila Formosa quase ganhamos o jogo e você foi errar o pênalti aos quarenta e três minutos do segundo tempo. E mande um abraço pra sua mãe, tenho saudades dela. Diga que estou bem. - Atenção todos: embarcar. Vamos embora.

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Com Fábio Nogueira

O problema não é a bebida, é o problema Hoje não vou beber nenhuma dose de bebida alcoólica para esquecer desse problema tão grave! Problema que tem me perseguido no âmbito pessoal e se tornou motivo dos meus dissabores sociais e humanos! Problema este pelo qual estou passando nos últimos tempos e que tem perturbado tanto os meus pensamentos, dia após dia, a ponto de deixar a vida repleta de 16 Vitor Moreira, 2013


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desilusões e provocar depressão em alguns momentos, me fazendo até chorar, segurar os cabelos derrotado ao sentar na cadeira e desabafar em silêncio uma sensação de desgosto por tudo que há neste mundo. Persegue-me ao acordar e em tudo que vou fazer. Sinto-me triste! Queria uma solução para isso tudo, para esse problema tão devastador em minha vida. Problema que não tem coragem de olhar em meus olhos ou se materializar em minha frente para eu derrotá-lo. Desde que isso tudo começou, todos os dias eu tenho enchido a cara nos bares da vida pra tentar esquecer do problema. Isso está me prejudicando financeiramente, porque a minha conta de pendura no bar está cada vez maior, extrapolando o planejamento financeiro que eu sempre mantive e o pagamento vem aí. Talvez o dinheiro nem dê para pagar tudo que estou devendo. No mês passado a pindura do bar foi três vezes maior que nos meses anteriores. Tudo por causa desse problema pelo qual estou passando e que até agora não tem solução. O único alívio tem sido a bebida. Na hora que chego do trabalho, os pensamentos sobre o problema estão pesados! Eles ficam sufocando minhas artérias, apertam o pescoço, deixando a fala difícil e o olhar sem brilho. Tira minhas armas de defesa, mas eu não vou vangloriar o problema, pois isso o faz feliz! Ou faça a todos eles, porque já nem sei se é somente um problema ou um círculo de problemas. De problema oficial só sei de um. 17 Vitor Moreira, 2013


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Traiçoeiros que são me fazem querer beber muitas doses de qualquer coisa que contenha bastante álcool, para esquecer do problema que estou enfrentando e poder ao menos sorrir um pouco ou ter a curiosidade de ler uma notícia no jornal ou pensar em mulheres. No outro dia pela manhã vem a ressaca. Uma sensação terrível de arrependimento! Aquela dor de cabeça forte, principalmente na fronte. Bebo água constantemente e o problema começa a surgir de novo quando a sonolência se passa e me dou conta da burrada que fiz. Queria uma espada de prata para cortar esse mal pela raiz! Descer da cama se torna difícil, pois o corpo sem forças, após uma noite mal dormida e várias idas ao banheiro no meio da madrugada para urinar, ou com ânsia de vômito, prefere continuar na cama a enfrentar os desafios de mais um dia pensando no mesmo problema. O que agrava é que o problema vem e parece dividir comigo a cama, roubando inclusive os lençóis e me empurrando para fora do meu próprio leito, me deixando encolhido no frio da madrugada. Sim! Se me levanto é pra ver se ele fica lá na cama e termine essa perseguição implacável à minha pessoa. Ao almoçar a comida passa com dificuldade pela garganta e tem gosto amargo por causa do meu estado. O suco parece que nunca ficará doce mesmo após várias colheres de açúcar. A diabetes que ainda nem nasceu sorri no seu germe! Quando a tarde chega já estou mais recuperado apesar da fadiga, e nessa hora quando vai escurecendo, os pensamentos sobre o 18 Vitor Moreira, 2013


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problema se tornam muito intensos! Difícil encontrar uma saída para resolver isso tudo. Vai crescendo uma sensação de vazio por dentro, e nessa hora, vendo a noite cair, o problema ocupa totalmente os quartos da casa, a sala, até mesmo a visão da rua. Pessoas conversando, até parece que falam do meu problema. E então eu saio para esfriar a cabeça e parar de pensar nesse problema tão grave que me tira o gosto pela vida em alguns momentos, quando a depressão é mais evidente, e de tanto pensar no problema até tropeço nas pessoas na rua quando estou à pé, ou então quase bato o carro ao passar por um sinal vermelho, num cruzamento nas ruas do bairro. E já embebido de stress eu paro no bar e encho a cara. Ali eu vejo a solução noturna para acabar com o meu problema que não me dá vontade de viver. O álcool leva embora em questão de minutos tudo de ruim, aquilo que persegue minha liberdade, e nesse momento até a voz fica mais forte, mais firme, e já não há aquela fraqueza e tristeza que a afina como voz de criança ao receber uma bronca dos pais. Uma imagem suave, de iluminação calma no interior do recinto! As pessoas lá dentro, bem vestidas ou não são todas importantes! Artistas de um cenário que agrada os olhos do público que sou eu! O ar se apresenta macio e o cheiro do cigarro tantas vezes repudiado se torna gostoso, porque lembra calma e relaxamento. Barulho de copos, barulho de bebida caindo dentro do 19 Vitor Moreira, 2013


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copo...a espuma...o gelo...o limão...o torresmo...a solução para o problema... Quando o problema vem de forma mais tenebrosa, ali no bar mesmo peço uma garrafa de refrigerante. Às vezes até bebo o líquido em seu interior, porque na verdade o que interessa mesmo é levar a cachaça pra casa dentro daquela garrafinha para a eventualidade de no meio da noite, ao sonhar com o problema, acabar perdendo o sono e não conseguir mais dormir, e acordar com horríveis olheiras! Hoje estou decidido a não beber. Vou sair pela cidade como tenho feito todas as noites desde que esse problema começou, mas vou evitar passar em frente ao bar. Sei que ali dentro está o remédio para o dia de hoje, mas não irei até lá. Quando eu olho em seu interior, vejo uma sensação de cura e libertação que me agradam, me deixam aliviado! Então, já sobrecarregado pelo problema vou até lá para abrandar as tensões do corpo e do espírito, sorrir um pouco, contar casos do cotidiano que não tem relação alguma com o problema e relaxar um pouco, tirando a tensão dos ombros e respirando fundo, sentindo voltar o prazer pela vida! A emoção renasce! Quero me erguer, encher o peito, olhar para o horizonte e não enxergar o problema, sacudir a poeira dos pés, olhar meu rosto no espelho e ajeitar os cabelos, ajeitar a gola da blusa e a manga, um olhar altivo, uma expressão jovial nos lábios e no rosto, uma postura mais realizada! Sentir-me um verdadeiro galã e ter prazer em caminhar pela rua! 20 Vitor Moreira, 2013


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E embora todas as noites eu tenha feito a mesma coisa, em relação aos meus desejos de superação, sempre frustrados após o passeio, sei que hoje será diferente! Hoje eu estou mais decidido que ontem, e mesmo que hoje os pensamentos sobre o problema estejam mais fortes que nos outros dias eu sei que vou conseguir. Nos dias anteriores tentei também manter firme o meu propósito, mas o pensamento sobre o problema foi mais forte! Acabei indo parar no bar e bebi muito, a ponto de ter dificuldade para ir embora. Sei que hoje a perturbação está mais evidente que nos outros dias, mas hoje eu vou conseguir. Eu preciso conseguir! De repente hoje ao caminhar o problema resolva ser solucionado. Quem sabe se ao pensar nesse problema durante o passeio eu encontre uma resposta que me fará dormir melhor hoje. Só não quero beber hoje, e resolver esse problema o mais rápido possível... Fecho o portão da casa e guardo as chaves no bolso. Então vou seguindo a rua em direção à avenida...

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Ele era de fé Ele era de fé! Toda quarta-feira vestia sua roupa branca, colocava os adereços no pescoço, sua guia. Acendia um incenso de Anakanan. Passava uma alfazema no pescoço e ia pro terreiro, lá do outro lado do bairro. 22 Vitor Moreira, 2013


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Deitava pro santo, batucava o tambor, rodava, cantava. Uns reprovavam e diziam: está aí o macumbeiro! Lá vai prejudicar a vida dos outros. Colocar contenda e trazer mau-olhado para as nossas inocentes crianças. Lá vai ele. Resmungavam: lá vai fazer barulho e o que não é lícito. Alguém devia é chamar a polícia pra esses arruaceiros que ficam até tarde cantarolando e chamando espíritos. O que é lícito? O que é o certo e o errado? Alguém poderia dizer com elementos de convicção? Acreditar em algo é lícito. E aquele homem era de fé! Não falava mal dos outros, filho de Oxossi, entidade representada por um nativo caçador, rei da mata, oriunda das religiões africanas da antiguidade. Dizia que era de fé e acreditava na purificação do corpo e da alma através da fé. Um outro disse que não ficaria rico com a sua religião. Ele então agradecia e dizia que se fosse assim seria feliz porque a vontade do criador estaria sendo cumprida. Que a vida é peregrinação e sofrimento dia após dia para a purificação e remissão dos pecados. Que a prosperidade vinha do talento e não era dada pelo céu de mão beijada, era o homem que deveria buscar o progresso com o trabalho. Ele era de fé sim! Dizia que religião é o que escolhemos acreditar e não aquilo que é imposto pela colonização ou pela própria sociedade em que vivemos. Não aceitava que o proibissem a 23 Vitor Moreira, 2013


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crença, porém não criticava quem o criticava, apenas sorria, como se subjugasse a ignorância alheia com classe e cortesia! Contava que na época da escravidão os seus antepassados cultuavam as divindades africanas escondido, sob o aspecto de imagens de santos da igreja que mais se pareciam com elas. Falava dos caboclos que protegiam as matas e mares. Tinha um aspecto sereno e estudava muitos livros. Queria conhecimento de muitas coisas. Nunca pendurava conta no bar nem na farmácia e nem na padaria. Dizia que não queria ser motivo de discórdia porque isso desagradava o seu orixá. Dizia que algumas pessoas não lhe tinham bons olhos pela sua religião, e que embora fosse um homem de fé as outras pessoas estavam cheias de maldade. Mas o que é certo: acreditar ou criticar? A fé conforme ele falou é aquilo que escolhemos acreditar. Uns poucos aí tentando minimizar o homem, mas quem tem a fé verdadeira senão aquele que busca a sua crença com o coração limpo e sem menosprezo pelos outros? Eu só sei que ele era de fé! Nunca deixava de ir ao terreiro nas quartas-feiras. Quando voltava e passava pela rua até mesmo o ar ficava com cheiro de ervas e incenso, acho que guiné, jurema e benjoim. Vários cordões no pescoço, verde, marrom, vermelho e branco. A roupa sem manchas e uma expressão alegre. Ao passar pelo bar ainda cumprimenta a todos e toma uma dose antes de ir embora, 24 Vitor Moreira, 2013


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jogando é claro a parte do santo no cantinho da parede. Ele era de fé! Acendia o incenso dentro de sua casa sempre no mesmo horário, não passava um minuto sequer. Cantava suas músicas, fazia sua reza, untava a bandeja com dendê e preparava oferendas para seus santos. Como pessoa ninguém tinha do que reclamar, exceto um que morava na casa em frente e sempre o criticava, dizendo que sua vida não prosperava porque certamente havia uma macumba da parte do homem. E ele pagava suas contas em dia e até emprestava dinheiro quando alguém estava necessitado. Dia 27 entregava muitos doces para as crianças, sorvete, balas, bombons. Contratava um carrinho de algodão doce pra ficar o dia inteiro por conta das crianças. Vinham crianças até de outros bairros e formavase uma multidão de meninos pobres em frente ao portão de sua casa. Alguns diziam: vai envenenar as pobres crianças famintas com esses doces cheios de maldade. Outros resmungavam: infelizes os pais que permitem que essas crianças aceitem doce na rua de uma pessoa tão ruim e que faz maldades atrasando a vida dos outros. Ele gostava de ser um homem de fé. Embora algumas pessoas lhe fechavam os rostos, ele sempre sorria para todos na rua e cumprimentava a todos, sempre educado e cortês. Então morreu ano passado de velhice aos noventa e seis anos. Seu último desejo foi ser cremado e suas cinzas jogadas no mar em dia de 25 Vitor Moreira, 2013


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Iemanjá junto com muitas flores. Veio gente de longe para o seu velório e cremação. As pessoas então na rua não tinham mais de quem falar mal e tudo ficou sem graça, as crianças sumiram da rua no mês de setembro, o cheiro de incenso que até era gostoso sumiu da rua e todo mundo sentiu falta dele. Aquele lá que morava em frente à casa dele se sentiu sozinho. Quando viu que tudo estava perfeito no que reclamou por anos em relação a ter sido vítima de uma suposta macumba, viu que sua vida não mudou em nada financeiramente com a ausência daquele macumbeiro. No fundo gostava do vizinho, admirava o seu sorriso, sua simplicidade e principalmente a sua fé e devoção à sua escolha religiosa. E viu que faltava a presença dele lá do outro lado da rua, pitando seu cachimbo todos os dias à tarde lá pelas cinco horas, cumprimentando a todos que passavam com um sorriso sempre tão espontâneo no rosto e olhar sereno. A religião não era o problema, era o motivo para descarregar as angústias da vida, uma forma de externar parte da raiva que existe dentro de cada um. E no fundo gostava dele, e hoje todo mundo da rua sente falta daquele velhinho simpático e bem humorado, que hoje é espírito de luz da falange dos pretos velhos.

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Com Tiago Prado, Lulu e Rose Assunção na roda de samba do Restaurante Xavier

Era meu grande amigo e nem lhe conhecia Nos dias modernos em que estamos vivendo, a tecnologia entra cada vez mais fácil e rápido em nossas vidas! Tanto que quando compramos um aparelho, achando que estamos adquirindo algo de última geração, em poucos dias surge um outro mais moderno e eficiente ainda! Lembro que no meu tempo de adolescência possuir um celular estilo tijolo de construção balançando na cintura, preso ao cinto era um sinônimo indiscutível de um status econômico diferenciado! Em outras palavras: pesava uma tonelada e estava deixando quem usava até corcunda, mas, “tô pagando”. E aí veio o avanço tecnológico e com ele as mudanças se tornam cada vez mais notáveis. Para 27 Vitor Moreira, 2013


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se ter um exemplo, outro dia eu passava de carro e havia um pedinte no sinal, e aí o celular do pedinte tocou e ele parou seus afazeres para atender a ligação, que por sinal parecia muito interessante porque ele foi para a calçada e conversava aos sorrisos altos com quem quer que seja que estava do outro lado da linha. Eletrodomésticos, computadores, laptops, notebooks, celulares, sons...e até amizades. Tudo se tornou tão virtual que até a vida social deixou as baladas animadas de sábado à noite para dar espaço ao confinamento de um quarto vazio, luzes apagadas, em frente ao computador, tendo ao lado um pacotinho de salgadinhos e uma lata de refrigerante. Um abraço amigo é algo cada vez mais extinto na sociedade moderna, e depoimento, já não significa estar numa sala de interrogatório e sim numa rede social virtual. Eu também não fugi disso. E foi muito inusitado! Acabei entrando em uma rede de relacionamento onde conheci muitas pessoas! A Cristiane de São Paulo, uma palmeirense fanática com um corpo escultural de modelo! A Bruna, uma carioca que eu pegava no pé sempre e o André, um dedicado ou delicado professor de geografia do Rio de Janeiro! Uma garota linda de Pernambuco, o Pedro do sul do país, que era um atleta do vôlei e também ensinava a crianças carentes, a Ellen, uma cantora maravilhosa também do sul do país! Páklis, que era nordestino eu acho, Uriel, Mário (sem ser aquele do armário). O Júlio, um colega de profissão que mora lá para os lados de Conceição do Mato Dentro, a Rejane 28 Vitor Moreira, 2013


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que cheguei a conhecer pessoalmente, um montão de gente que desfila na Estação Primeira de Mangueira, minha escola do coração no Rio e até dois americanos e alguns italianos, fora os brasileiros espalhados pelo mundo afora que sempre se comunicam com os integrantes da tribo natal através do computador. Então, fazendo amizades e descobrindo novas culturas, acabei ficando muito amigo do Rodrigo, um camarada muito gente fina, até da mesma cidade que eu, a minha querida Belo Horizonte, apesar da grande quantidade de sinais que não me deixam dirigir dois quarteirões sem ter que fazer uma parada e da pouca quantidade de vagas de estacionamento que acabam com o meu humor nos melhores dias da minha vida. Me fazem xingar constantemente e explodir numa ira incontrolável! O cara era dos bons! Torcia para o mesmo time que eu, tinha o mesmo estilo de música, os mesmos gostos em relação às mulheres, também gostava de uma cerveja geladinha acompanhada de porção de camarão ao alho. Mais um pouco eu iria pensar até que era um clone meu, pela semelhança de personalidades. Até o jeito de falar era parecido! Um sujeito fenomenal! Acabamos combinando de na última sexta-feira parar num barzinho “copo sujo” no centrão da cidade para jogar conversa fora e comer a famosa porção de camarão ao alho que tanto gostávamos. Eu nunca havia visto antes o meu grande amigo Rodrigo pessoalmente, e na rede de 29 Vitor Moreira, 2013


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relacionamentos só havia uma foto dele de rosto, assim como a minha também era de rosto. Combinamos assim: trocamos o celular para que ambos pudessem saber quem era quem na hora de parar no buteco, sem essa frescura de “eu vou com tal roupa”, porque isso é coisa de camarada quando vai encontrar com a mulher e tem medo que ela seja feia. Isso também é uma cicatriz do mundo moderno. E nós marcamos de lá pelas vinte horas parar no Dourado, que é um barzinho lá no meio do centro mesmo, aí ficaria fácil para os dois estacionarem os carros. Já no caminho, toda hora tinha que parar num sinal de trânsito e parecia que o sinal ficava mais de uma hora no vermelho. Isso tira o prazer de qualquer um. Quando o sinal abria, eu tentava acelerar para passar o sinal seguinte ainda no amarelo, mas era em vão. Parecia que havia alguém fazendo hora comigo, brincando com os controles do tráfego só para me deixar estressado. E estava conseguindo. Mas nada iria me abalar, iria tomar uns tragos com este grande camarada que conheci na internet, muito gente fina, parecidíssimo comigo em tudo que gosto! Então o celular tocou, era o Rodrigo, meu amigão. Mesmo com o carro em movimento cismei de atender, olhando sempre pra ver se não havia nenhum guarda me vigiando para me multar. Outro elemento da cultura daqui. - E aí Rodrigo, como vai parceiro? - Estou bem! Já estou chegando ao bar. 30 Vitor Moreira, 2013


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- Eu também. Espera aí que o sinal abriu e tem uma vaga lá na frente. Tem um retardado do meu lado que está de olho nela também, mas como ele está falando ao celular acho que vou conseguir a vaga. - Comigo também está acontecendo o mesmo, tem um cara estúpido me encarando o tempo todo. Acho que é um guarda, parece estar me medindo com os olhos pra ver se desconfio e desligo...vou desligar aqui, assim que parar o carro te ligo e falo onde estou. Então o cara retardado que estava do meu lado acelerou o carro e eu estava ainda desligando o celular, mas acelerei também porque eu queria aquela vaga. Joguei o celular no bolso da camisa e parti. Está muito difícil encontrar lugar pra estacionar aqui no centro e meu carro sem seguro, não queria arriscar ser roubado e nem pagar flanelinhas. E não é que o cara queria a vaga. Só que ele foi muito pra frente na hora de fazer a baliza, chegando até a derrapar e eu não me fiz de rogado, já cheguei bicando o carro de frente pra pegar a vaga, depois era só falar que havia pensado que ele iria passar direto e sair andando. Só que o estúpido não me viu e deu ré, batendo na dianteira do meu carro. Já desci do carro xingando. Onde já se viu isso, na porta do bar? E ele também já saiu invocado de dentro do carro dele gritando. Mal conversamos e já saímos no tapa. Quis nem saber quem era e já dei uma gingada de corpo e um coice. O pessoal que estava no bar tentou separar, mas a confusão já estava armada. 31 Vitor Moreira, 2013


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Sopapo de um lado, sopapo de outro e logo vieram duas viaturas para separar a confusão. Fiquei com um olho roxo e ele trincou um dente. Então a polícia começou a ameaçar de deixar os dois presos pela confusão então quase que instantaneamente e até mesmo em palavras parecidas convencemos os policiais a não tomar nenhuma providência, afinal os prejuízos foram somente materiais, que um amassadinho no carro era fácil de resolver. E terminada a confusão, cada um entrou em seu carro e saímos de lá rapidinho. Eu não queria que meu amigão Rodrigo chegasse e me visse com o olho roxo. O celular havia caído no chão na confusão, foi pisoteado e não queria ligar. Já em casa eu resolvi acessar a internet pra dar uma desculpa pro meu grande amigão Rodrigo sobre o motivo de eu não ter ido pro bar e para minha surpresa ele já estava on-line e já havia um recado. “Boa noite meu amigão, desculpa não ter chegado ao bar. Espero que não fique zangado comigo. Parei pra comprar um cigarro, tropecei numa casca de banana e caí no chão. Até trinquei um dente. Aí tive que voltar pra trás. Foi mal.” E eu respondi: Não se preocupa. Também não fui pro bar. Estava no meio do caminho, quase chegando, e ao parar numa farmácia pra comprar um “Engov” a atendente falou que eu estava com conjuntivite. Voltei pra casa correndo pra não passar isso pra ninguém. 32 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

“Realmente hoje deu tudo errado não é verdade? Mas podemos marcar pra semana que vem pra gente tomar aquela cerveja geladinha.” Claro, podemos sim, mas acho melhor ir de ônibus, afinal beber e dirigir não dá muito certo...

33 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Com o cachorrinho de minha amiga Josiane

O cachorro fugiu, não o marido, Jurema Formou-se o escarcéu no morro do Bananal! Muita gente discutindo na rua, em frente à casa de Maria. Havia uma desmaiada recebendo cuidados de uma vizinha que lhe dava água com açúcar, um enorme copo de água com açúcar, dois discutindo alto, uma mulher dando entrevista, crianças correndo de um lado a outro envolvidas com todo aquele furdunço. Como não havia nada melhor pra fazer e eu aguardava o boteco abrir, fui aproximando daquela algazarra toda só pra me inteirar do que estava acontecendo, não que eu goste de fofoca é claro. Lá ao longe se via um cachorrinho magrelo latindo preso à corrente e o marido de Maria com a cabeça enfaixada, só de bermuda e todo 34 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

molhado, sentado no canto do muro, numa calçada repleta de tomates e cascas de banana. Então um tiozinho veio me contar que tudo foi mais ou menos assim... Pela manhã, bem cedinho mesmo, umas cinco horas, Antenor, o marido de Maria, após ajudar sua esposa a preparar o café, foi até a rua colocar o lixo pra fora e nesse momento o cachorro de estimação do casal fugiu pelo portão que estava aberto. - Volta aqui cachorro! Volta aqui seu cachorro sem vergonha! Gritou Maria de dentro da casa e como os gritos de Maria eram bem estridentes por causa do timbre da sua voz o som foi intenso, ecoando no morro! Nisso Antenor saiu correndo pela rua atrás do cachorrinho. Estava só de bermuda, dessas de ficar em casa mesmo e até perdeu os chinelos na empreitada. Acontece que os vizinhos ouviram os gritos altos da Maria e logo em seguida ao olharem pelas janelas viram o Antenor correndo pela rua só de bermuda e sem chinelos. Viram Maria com a correia do cachorro na mão gritando continuamente para o cachorro voltar. Como a fama de Antenor na vizinhança não era das boas, talvez por ele ser bem forte e delineado, moreno escuro, alto, de dentes bem brancos, cabelo bem cortado, voz grossa e o peito bem peludo, entregava e até trocava gás na vizinhança enquanto os maridos estavam no serviço, esperaram só a Maria fechar o portão para formar um grupinho de fofoca nas 35 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

imediações. Os homens dali tinham inveja porque as mulheres se derretiam por ele. Uns diziam que ela havia descoberto os galhos que Antenor colocava nela escondido e outros que ele chegou em casa aquela hora após gastar todo o dinheiro do casal num jogo de purrinha na véspera e estar com várias mulheres. E o Antenor não estava traindo a Maria, é um homem fiel e sério, apesar das insistentes cantadas das mulheres do morro, principalmente as casadas. Era tudo intriga da vizinhança mesmo, que adorava uma fofoca, principalmente dos homens que tinham ciúme das suas esposas até cumprimentarem o Antenor, que trabalhava de sol a sol num depósito de gás e quando o fogo das vizinhas apagava ele tratava de ir lá rapidinho pra colocar mais lenha na fogueira, ou melhor, mais gás no fogão. E nada do Antenor voltar. Uma das vizinhas foi até a casa de Maria para consolar a amiga. Já chegou dizendo que o Antenor uma hora seria descoberto, que ele era mesmo um cachorro e que Maria estava certa de chamá-lo assim. A Maria foi dizer que era um engano, mas logo chegaram mais duas tagarelas. Uma delas trazia um copinho de água com açúcar para acalmar Maria, nem bem ofereceu e já foi empurrando o copo d’água goela adentro da Maria. Nisso entrou o João que era chefe do Antenor no depósito para dar o seu apoio à pobre da Maria, a qual pensou estar desolada. Não deixavam Maria falar que o cachorro havia fugido de casa. 36 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Então a mãe da Maria chegou lá pelas sete da manhã, após saber do estado da filha, e com dificuldade entrou na casa que já estava cheia, todos falando ao mesmo tempo. Com muito custo perguntou à Maria o que estava havendo e ela baixinho falou que não sabia, que o cachorro fugiu e de repente todo mundo apareceu. Então um gritou assim: - Exatamente! Um cachorro, um exemplo de canalha! Em menos de cinco minutos a mãe de Maria, sogra de Antenor já estava gritando mais que todo mundo ali naquela sala, rodando a bahiana, dando golpes no ar e então de tanta falta de ar Maria desmaiou. Um abanava um pano, pois na casa não possuíam ventilador, um outro dava mais um copo de água com açúcar, e foi aí que chegou a Jurema, a fofoqueira da rua. Já chegou contando que Antenor estava de caso com a filha do meio do Tadeu, um catador de latas de alumínio e papelão e que já chegou a ver os dois no maior amasso atrás da sacristia, citou a vez em que saiu correndo do Antenor quando este num dia “30 de fevereiro” teria feito gestos para ela na rua indicando que queria “coisas”, falou até mesmo da cabritinha do Chico, um criador de cabras e bodes que adoeceu de repente...só pode ter sido o Antenor, disse a Jurema fofoqueira. E Jurema foi à luta, ligou para um conhecido da rádio que logo mandou um repórter pra casa da Maria. Ela estava acamada então Jurema tratou de falar com a reportagem. 37 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Logo a história estava espalhada pela cidade inteira ao vivo e Antenor sem saber de nada perseguindo o cachorro pelas ruas, a esta altura Antenor já exausto de tanto correr atrás do animado cachorro que seguia pela cidade cheirando postes e deixando marcas de urina nos lugares escolhidos. Mas o cachorro também se cansou, e Antenor conseguiu pegar o arisco com ajuda de alguns pedreiros que vendo o desespero e o cansaço do Antenor, cercaram o cão e ajudaram a colocar a coleira. No mesmo instante ligou pro Manoel que tinha um boteco perto de sua casa, já que não possuía telefone ainda, e este ainda não havia saído na rua então não sabia do que estava ocorrendo na casa do Antenor. Então Antenor pediu que dissesse à sua querida esposa que já pegou o cachorro com a ajuda de uns pedreiros e estava voltando pra casa. Como Manoel estava ocupado fazendo deliciosos quibes para vender em poucos minutos no seu boteco, pediu que seu garoto fosse dar o recado à Maria. Acredito que o que a Maria queria era ter notícias do seu esposo Antenor já que toda aquela gente ali estava julgando seu esposo de coisas que ele não fez. O guri chegou ao portão e como não conseguia entrar gritou que um grupo de pedreiros já pegaram o cachorro do Antenor e que estava voltando com ele pra casa amarrado com uma corda. Então Maria, desmaiou novamente e vieram mais dois copos d’água com açúcar, um maior que 38 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

o outro. A essa hora Maria não sabia se entrava em desespero por não poder falar que o cão da família é que havia fugido ou pela quantidade de água com açúcar que já havia forçosamente ingerido. E ao apontar na esquina, Jurema avistou Antenor de longe, com sua bermuda de dormir e trazendo na coleira o cachorro da família. Ela ainda falava com o repórter quando interrompeu repentinamente sua fala... “Pega!” Gritou Jurema a fofoqueira. Então vários correram em direção ao Antenor com as panelas, os tomates, bananas, um alface e um côco verde que estavam na fruteira do casal. Limparam a fruteira e Antenor sem saber de nada tomou a chuva de panelas, tomates, bananas, alface e não é que a Jurema acertou o côco verde bem na cachola. Antenor foi ao chão na hora e antes de Maria desmaiar de novo a vizinha já lhe empurrou mais um copo de água doce. Preocupados em terem exagerado, carregaram o Antenor até perto do portão e deram nele um banho de mangueira para ver se acordava e também para limpar a sujeira que provocaram. Um outro correu e guardou o cachorro dentro da casa, pois o cão não parava de latir ao ver o que ocorrera com seu dono. E aí eu cheguei aqui, mas como não gosto muito de confusão, vou sair de fininho porque os famosos quibes do Manoel já estão cheirando e o bar está aberto lá na esquina da rua. 39 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Quero nem ver o resultado disso tudo quando a viatura chegar em frente à casa do Antenor.

40 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Aos 8 anos ao lado de uma televisão antiga

Não te amo mais, ficarei com a televisão Amor!? Eu amo cerveja com bolinho de bacalhau ou com camarão ao alho, numa quartafeira à noite quando joga o meu Cruzeiro e o jogo passa no telão do bar! Também amo gemada com canela, caldo de mocotó, frango recheado e acarajé bem apimentado da Bahia! João ama jogar futebol com seus amigos que conhece desde a infância, e depois de uma boa partida na quadra, todos confraternizam com churrasco. Adoram falar de futebol! Vivem futebol o tempo todo e se consideram verdadeiros craques desse esporte tão admirado em todo o mundo! 41 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

A Jane está amando o seu novo celular! Ela fica mais tempo falando do que trabalhando, estudando ou dormindo. O Juarez, contador, adora os números! Conta tudo que pode. Sabe o valor exato de todas as taxas de juros e até adivinha antes do aumento dos preços quais serão os reajustes. Uma verdadeira calculadora humana! Faz cálculos complexos de cabeça, sem nem mesmo contar com a ajuda dos dedos. Ricardo adora mulheres...casadas! E Tina adora mulheres! Mas aquele cara se apaixonou pela televisão. Tela plana, sessenta polegadas, com sinal digital, alta definição, internet direta e controle remoto interativo...agora ele pode jogar seu videogame em alta resolução on-line com jogadores do mundo inteiro, e isso passou a incomodar sua mulher, que por sinal é muito ciumenta! Antes ela tinha ciúme porque o marido chegava altas horas com cheiro diferente na camisa ou até batom, outras vezes o celular tocava misteriosamente e ele se trancava no banheiro pra conversar, numa outra ocasião ele não dormiu em casa, o dia da vizinha sem roupa então... Fatos como esses sempre a levaram a desconfiar que seu marido traísse. E mesmo com essa cisma, nunca chegou a falar nada porque não possuía provas suficientes que levassem a desconfiar do marido. Só que de uns tempos pra cá ele anda apresentando um comportamento muito suspeito 42 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

para ela! Não sai mais de casa à noite com a desculpa de ir comprar um remédio na farmácia e demora mais de duas horas, já não recebe ligações no celular e sái correndo para atender. Pelo contrário, atende ali na frente da televisão mesmo e ainda pede pra pessoa ser breve que o jogo está pausado. As roupas agora só chegam com odor de suor, sem perfume de mulher. Essas situações começaram a provocar muita desconfiança em sua esposa e as brigas começaram. Antes não brigavam, embora ela até pensasse que ele poderia supostamente estar traindo, mas depois que ele começou com essas atitudes suspeitas as brigas começaram. E com tantas discussões ela começou a fazer pirraça, querendo que seu esposo voltasse a ser o que sempre foi. Ela parou de lavar as roupas dele e ele contratou uma lavadeira. Ela parou de fazer a janta dele e ele contratou uma cozinheira. Ela parou de arrumar a casa e ele contratou uma doméstica. Tudo foi só para provocar o marido. Ela queria seu amado esposo de volta e não esse novo. Mas aí veio o pior: ela ofendeu a televisão e ele olhou feio para ela. Colocou a culpa nesse objeto tão útil à humanidade nos dias atuais e ele não agüentou tal provocação. Virou para ela e disse que queria se separar, que não a ama mais. A discussão durou a noite toda e ele estava irredutível, queria a separação. Decidiu sair de casa. Disse que iria pra casa de um amigo, que ela podia ficar com a casa e ela falou que ele é que 43 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

deveria ficar com a casa que ela queria ir pra casa da mãe. Depois de muita discussão sem chegar a um acordo resolveram dar um tempo, ficar uns dias separados para ver se pensavam melhor a relação. Ela ficou na casa e ele foi pra casa de um amigo que também gostava de videogame. Foram dias difíceis! A televisão do amigo era preto-e-branco, pequena e isso prejudicava o jogo. Difícil imaginar uma tela de duas cores funcionando até hoje. Ele não entendia como isso era ainda possível. Passados alguns dias a casa do amigo estava um fuzuê! Latas de cerveja espalhadas por todo lado, embalagens de salgadinho e de macarrão instantâneo, roupa suja na mesa, um cheiro de mofo e cigarro impregnando o ar. Mas a saudade foi falando mais forte! Ele não poderia ficar sem ela então resolveu procurála. Foi uma conversa bem rápida, ele realmente já não amava sua esposa e queria mesmo se separar. Não quis nada, só levou a televisão, disso ele não abria mão. Amor! Tem gente que perdoa uma traição. Tem gente que gosta de ser traído e aceita tudo numa tranquilidade muito serena! E até troque casais, tudo muito moderno e sem preconceito algum...o que vale é o prazer! Tem gente que está só porque não encontrou ainda o verdadeiro amor ou porque se chama Ricardo. 44 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

A mulher pode até ter ciúme de um perfume diferente na blusa do seu macho, de uma ligação, de uma amante que o procura. Mas jamais tenha ciúme de uma televisão de sessenta polegadas, toda automática, com acesso à internet, em alta resolução do sinal digital e tela plana. Não tenha, porque é uma guerra que já se entra com a derrota certa. É como querer tirar da mulher o prazer da fofoca nos dias de fazer a unha no salão. O homem assina ali o divórcio. Proteja seu casamento, aprenda a jogar os jogos de videogame preferidos do marido e ainda o desafie numa quinta-feira à noite para um duelo no futebol, e de quebra deixe ele ficar com o Barcelona senão há um sério risco de haver confusão. Também é bom não fazer o primeiro gol, mesmo se sua intenção for mesmo ganhar do esposo, espere ele comemorar o primeiro gol. A noite vai acabar em muito amor! Beijos, carícias picantes, um vinho gelado, janela semiaberta deixando entrar a brisa da noite... Mas tente tirar a televisão dele e ficará chupando o dedo. A dica é de graça, mas vale ouro!

45 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Selma e seu fantástico bolinho de bacalhau

Bolinho de bacalhau Gostoso! Maravilhoso! De casquinha crocante! Desfiadinho por dentro! Douradinho por fora! Quentinho! Provocante! Um gostinho peculiar de maravilha! Uma iguaria sem dúvidas! Um aperitivo superior! Bolinho de bacalhau! Oh, quem criou essa delícia? Passado com azeite de oliva e molhado de limão. Portugueses, seus bonzinhos! Vieram aqui no passado e levaram o pau-brasil, a liberdade e a terra dos índios, o ouro das Minas Gerais, o café, a cana-de-açúcar, a borracha das seringueiras da Amazônia, obrigaram os índios a rezar e ignorar Tupã, obrigaram os escravos a se batizar e 46 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

abandonar o batuque às entidades...mas em compensação trouxeram o bolinho de bacalhau! Acho que até compensa termos passado um período de guerras internas e participado da grande guerra da humanidade, se hoje temos bolinho de bacalhau à vontade para experimentar e degustar nos estados brasileiros. Até compensa sermos enganados a cada quatro anos em apenas alguns meses e depois usar nariz de palhaço por mais quatro anos. Só o preço anda um tanto salgado! Isso me incomoda. E sem contar que antes vinham vinte e um bolinhos na porção e agora só estou contando quinze em todo lugar que vou. Quero meus bolinhos de bacalhau! Não toquem nos meus bolinhos de bacalhau! O tamanho também andou diminuindo, será que a presidência está aplicando mais impostos na tarifa de importação do bacalhau? Ou será que descobriram que eu sou um viciado e pensam que aumentando o preço irão me curar? Pode aumentar a gasolina, a luz, aumentem aí também o imposto de produtos industrializados, o IPTU, IPVA, IOF, IPI, aumentem a conta de água, e nem ligo se aumentarem os impostos sobre os remédios, mas querer aumentar o imposto sobre o bacalhau é desumano! Bacalhau é uma conquista do povo brasileiro! Aumentar o preço dos meus bolinhos é maldade! Isso prejudica minhas condições de comer bolinho de bacalhau com frequência, oras. E todos sabem que o país vai bem se eu puder ter sempre à mesa bolinhos de bacalhau, pois adoro bolinhos de bacalhau! 47 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Com a amiga Rejane Alves no Restaurante Dourado

Amigos também sussurram no ouvido Encontro de amigos na praia. Um veio do sul do país, uma de São Paulo, quatro de Belo Horizonte, dois do interior de Minas Gerais, e o restante do estado do Rio de Janeiro. O que houve no encontro? Eram todos conhecidos virtuais e a bebida foi no exagero... Tanta conversa afora, a exploração das novidades, a lua baixando sobre a Guanabara. Negar o clima para uns beijos é como negar a própria essência humana. Tantas conversas! E logo a areia da praia se torna um piquenique ao luar! Um com o violão, uma fogueira acesa, espetinhos de queijo tipo Minas, pedaços de pãode-alho, picanha passada no sal grosso, um 48 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

gostinho de bebida e sal na saliva, sorrisos, sussurros, mais bebidas... Amigos também sussurram no ouvido! Os tempos amadureceram, e já é coisa de outro mundo que amigos não possam trocar umas carícias de vez em quando. Que mal há nisso? Se nos aventuramos com pessoas desconhecidas ao encontrar um novo parceiro de intimidade, porque não sermos íntimos dos nossos amigos? Antigamente um amigo sussurrar no ouvido da amiga era motivo de escândalo social, notícia de primeira página, agora, veja bem, pode parecer estranho e uma muralha de negações veementes pode se erguer...mas que atire a primeira pedra quem já não deu um selinho naquela sua amiga especial. Aquela pessoa legal e atenciosa que nem é para ser sua namorada e jamais será sua esposa, apenas amiga, mas numa festinha, num churrasco, naquele dia em que você está magoado com a vida e a pessoa vem te confortar? Quem de vocês mulheres já não se arrependeu e encheu a cabeça de tabus ao ter beijado o seu amigo na noite anterior? Mas acordem arrependidas, sem se arrepender de não ter concretizado, não é verdade? Sexta-feira às dezoito horas. Naquela repartição, o chefe havia preparado uma confraternização para os funcionários devido às excelentes marcas alcançadas pela empresa de produtos e serviços. Champanhe, bolinho de bacalhau (oh céus quem inventou essa maravilha?), camarão ao alho, muitas frutas, pão de queijo, e ela, a cachaça! 49 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Entre conversas, piadas, sorrisos, eis que veio um sussurro no ouvido. Foi baixinho, mas parece que toda a cidade ouviu e parou pra ver. Nada demais os dois amigos de trabalho pararem um pouco na sacada do décimo quinto andar da cidade, olhando a esplendida vista da Avenida Afonso Pena quando os carros e ônibus buzinam querendo os seus condutores chegar logo em casa. Amigos também sussurram no ouvido! E mesmo que essa noite termine num lugar com hidromassagem, bebida, música e luzes ambientes, na segunda-feira haverá um bom dia, os trabalhos,e talvez no máximo um sorrisinho de canto do rosto ou até mesmo só um pensamento sobre a performance do amigo. O que há de mais em amigos sussurrarem no ouvido? O carinho está arcaico? Ora, se até mesmo o sexo já foi banalizado a ponto de virar estilo musical, se já nem é crime o adultério, se há um consenso cada vez mais crescente em descobrir novos prazeres, coisas que tempos atrás seria motivo para escândalos na sociedade, hoje se tornam elementos até necessários à saúde de um relacionamento ou da pessoa, considerando a característica de seus personagens. Que mal há num sussurro? Eu sussurro! Minha amiga sussurra! A prima do irmão do cunhado do meu chefe sussurra. A amizade não é uma sociedade como o casamento. Espera aí! O que eu disse? Existe casamento ainda? Nossa, acho que me perdi no tempo, mas está bem, voltando ao assunto, a amizade não possui regras, vai mudando conforme o contexto das eras. Quem 50 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

permite ou proíbe as coisas são os amigos, e o consenso prevalece até mesmo nas mais libertinas emoções como compartilhar um cigarro de maconha, noite, praça do centro, luzes, veículos, mais luzes ainda, brilhantes, ela com o cabelo grená... Amigos sussurram no ouvido na faculdade, no hospital, na padaria, no escritório, na escola, no supermercado e até mesmo no velório. Pior é o amigo que tenta consolar a viúva bonita e herdeira da fortuna. Ora, por que negar? Amigos sussurram no ouvido, e sussurram nos lugares mais inesperados... Mineirão, domingo à tarde. O casal de amigos decidiu ir ver o jogo após terminarem o trabalho de escola que estavam fazendo em grupo, enquanto os outros amigos foram pra casa. Jogo quente, torcida agitando as suas bandeiras...o estádio dividido em duas cores rivais, gritos, palavrões, a polícia tentando identificar de onde vem o cheiro de maconha que exala no ar...e de repente um gol! Ah que felicidade! Muito bom! Aos quarenta do segundo tempo quando a partida estava tensa. A torcida do Cruzeiro agitando as bandeiras e o estádio tremendo! Esse beijo veio sem sussurro mesmo, afinal no meio da torcida, não dava nem pra ouvir o sussurro. E logo após como se nada tivesse acontecido, já nem se lembram do beijo e voltam as atenções novamente para o gramado que a torcida do Atlético começou a cantar porque a bola foi parar no pé daquele jogador perigoso, 51 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

ocorreu a falta na entrada da área e pode ser a última chance de empatar. Na alegria ou no consolo, um beijo é sempre uma forma de carinho que nossos amigos e amigas merecem, ainda mais quando vem precedido de um intenso sussurro. Às vezes para incentivar, em segredo, um sussurro que só quem fala ou só quem ouve sabe o seu conteúdo... Olhares tensos. Então chega a hora de fazer a cobrança de falta, o colega chega e sussurra algo no ouvido do jogador, que dá uma risada sacana, balança a cabeça e se prepara para fazer a cobrança da falta perigosa...

52 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Tio avô Mário em Raul Soares/ MG

Violão, roça e cachaça de alambique Cheguei ao interior! Após horas viajando de trem pelas ferrovias do estado. Período de férias anuais! Tempo de renovação, de esquecer os problemas do cotidiano, o trânsito caótico do centro da cidade e a rotina daquela repartição, os desafios do marketing, etc... Alto lá! Que maravilha uai! Agora sim: cheguei na roça sô! Tirei as botina do pé e botei logo o chinelão. Corri pra abraçar os tio que há um tempão não via! O tio táva lá na varanda pitando seu cigarro de palha e a sua viola táva ali do ladinho, só esperando ele terminar de pitar. 53 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Veio logo me levando lá pra dentro da casa pra me mostrar as novas pinga que comprou. Eu via aquele mundão de cachaça espalhada pela estante da sala e até me deu uma água na boca. Tava era bão com pão de queijo e lingüiça defumada de tira-gosto, tudo preparado ali pela tia no forno e no fogão de lenha! Hum, que tempero! Os boi, as vaca, as cabrita...tudo lá no pasto entretito com a grama verde aqui da roça. O trator táva quebrado então não deu pra ver ele funcionando outra vez e o tio falou que só mês que vem agora pra arrumar a lata véia. Ao sentar na rede, na varanda o tio começou a cantar suas moda de viola lá na sua caderinha predileta e eu aqui tomando uma cachaça muito gostosa e amarelinha que só! Comendo pãozinho de queijo e linguiça picadinha. Aí os cumpadre vem chegando pra saber das modas da cidade grande, do que anda acontecendo por lá e a varanda fica cheia de um tantão de gente. Logo alguém acende a brasa e o churrasco começa. A viola dedilhada cantando os sons e as coisa da roça, de todas as roça, do interior da terra e do interior de cada gente. Uma pratada de comida que a tia fez, uma calmaria muito da boa e isso qui é bão dimais da conta uai! Até as risada quando alguém conta um causo mais interessante e engraçado, aí vem logo o jogo de baralho na varanda e todo mundo senta ali no chão mesmo. Só vai ter que limpar os pé pra entrar em casa depois. 54 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

As mocinha da roça, tudo meio tímida. Passam com um sorriso no rosto e muito vermeia de vergonha com seus vestidinhos de flor. Depois lá na frente olham pra trás de novo pra ver o galã da cidade que acabou de chegar na roça. Das cachaça do tio eu preferia as mais amarelinhas, de alambique, não gostava muito das brancas não. E as modas de viola são muito boas! Um trenzão muito apaixonante ouvir violão de noite vendo as brisas da roça e a noite cheia de estrela lá no céu afora, tomando cachaça de alambique! A lua do sertão alumiando a relva lá na serra e as coruja suindaras avoando na noite com as suas penas brancas. De manhã eu ia até o galinheiro pegar ovo pra tia fazer no café, umas gemadas maravilhosas com canela por cima, tinha até ovo de codorna lá também, ajudava o tio a pegar leite na vaca e depois do café ia andar pela roça pra verificar as prantação e os gado pra ver se não tinha onça atacando nas redondeza. Outro dia o cumpadre Manuel falou que viu onça de noite quando voltava do alambique pra buscar cachaça pra vender na cidade. Então ao final do mês, após um proveitoso período de férias que proporcionou relaxamento e descanso do corpo e da alma, rejuvenescido em energias, novamente embarco no trem em direção à cidade. Ao me despedir dos meus tios saúdo também aos amigos e conhecidos desse lugar tão pacífico e de tão belas paisagens! Levo comigo as lembranças e um litro de aguardente com o qual 55 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

me presenteou o senhor Manoel, que é comerciante do produto na cidade. Espero ano que vem poder voltar a esse lugar esplendoroso onde moram os meus parentes e muitos amigos, os quais cultivo nas viagens de férias a essa cidade de interior.

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EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Mudar de vida Ontem foi domingo. Meu dia de descanso e eventual ressaca após a última bebedeira no meu barzinho preferido. Havia uma hóspede em minha casa, vinda do interior. Wanda. Veio a Belo Horizonte para fazer a prova do concurso público oferecido pelo estado para preenchimento de cargos na área de segurança. O cargo era o inicial da carreira. Acordamos cedo, o que me chateou por dentro por causa do barulho do despertador, alvoroçando o íntimo dos meus tímpanos, mas disfarçando bem me levantei da cama, tomei um banho quente para despertar e preparei o café para a visita. Domingo de manhã. Tomamos café e rapidamente fomos para o lugar onde seria a prova que apesar de próximo, teria um grande engarrafamento devido ao grande 57 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

número de candidatos que iriam de carro fazer a prova. Muita correria, candidatos perdidos dentro daquele campus enorme e cheio de matas, sem muita informação sobre o lugar onde fariam a prova do concurso, perdidos no tempo e no espaço correndo de um lado a outro. Estavam todos atrasados, inclusive esta minha amiga muito simples do interior que tentava a prova para mudar de vida, ganhar estabilidade e prosperidade financeira, se sentir mais realizada e poder projetar planos para o futuro. Ela entrou no prédio onde estava relacionada e então resolvi esperar a prova terminar lendo um jornal num banco dentro do campus. Acendi um cigarro e passei a folhear as notícias. Embora meu interesse era a parte de esportes pra ver as últimas do meu time e do meu jogador preferido. Na segunda página uma matéria de um pedreiro que havia encontrado uma maleta com dez mil dólares e devolveu ao dono, vindo este a se alegrar grandemente e recompensar o humilde pedreiro com um carro novo. Eu lia a reportagem quando passei a prestar atenção aos candidatos à prova. Corriam desesperados em direção ao lugar de realização da prova, uma cena, entretanto, me chamou a atenção: uma mulher grávida, isso mesmo, grávida e com a barriga enorme, correndo com notável dificuldade e uma expressão de dor no rosto já suado e vermelho pelo esforço. Precisava chegar até o prédio onde faria a prova. O 58 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

problema é que o prédio era longe, talvez um quilômetro de onde ela estava naquele momento. Sentindo um pouco de tristeza eu sabia que não daria tempo, mas torcia pela coitada, como se talvez a conhecesse e soubesse de toda a sua história. Mudar de vida! Será isso? Empenhar-se por um sonho que muitas vezes pode ser apenas uma lavra vazia, sem ouro nem riquezas? Uma decepção da qual não há retorno... O que é a riqueza? A prosperidade? Talvez se encantar com uma proposta de salário alto no anúncio de um concurso? Muitas vezes não se sabe o que encontrará do outro lado. Talvez a privação de todos os seus direitos, um amontoado de desgostos e humilhações, perseguições e a carência de reconhecimento. Uma lavra vazia sem riquezas! Neste mundo a prosperidade quem constrói somos nós mesmos. Existem pedreiros que são felizes, e pela qualidade do trabalho são requisitados por grandes empresas e até dispensam contratos de trabalho, se dão a esse luxo. E por outro lado existem advogados, médicos, engenheiros e empresários que vivem dias de tristeza, de desgosto pela vida. Muitas vezes o valor do dinheiro não paga a felicidade e a realização. O que é prosperidade senão estarmos felizes? Contas a pagar sempre existirão, e não é poder comprar um carro que irá injetar amor e alegria em nossos corações. Mudar de vida é muito mais que correr para uma sala de realização de prova. É despertar no 59 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

interior da alma o desejo de aperfeiçoar o seu método de trabalho, de inovar, de se destacar. Há na sociedade marceneiros que pela perfeição do trabalho são procurados todo o tempo por pessoas importantes e ganham muito bem para isso, a ponto de comprar um carro. Um vidraceiro que criou uma nova forma de corte perfeito como fio de navalha! E aquele padeiro então? Que trabalha há vinte anos naquele mesmo lugar, seus doces e broas fazem pessoas de outros bairros irem até lá para comprar esses quitutes fantásticos que ele produz! Outro dia ele estava contando que um empresário sisudo veio até a padaria para conhecer seu trabalho e lhe ofereceu o dobro do salário que ganhava para ele produzir suas obrasprimas na rede de padarias da qual é dono. O padeiro, porém recusou, pois já tinha carro e não tinha nenhuma conta pra pagar, estava se sentindo próspero em ter sua casa, seu carro e mulher, os amigos de vinte anos trabalhando no mesmo bairro, o seu lugar naquele grupo social. Tirar isso dele seria tirar a própria identidade. Então me pergunto se aquele homem de negócios que o procurou era uma pessoa feliz. Talvez sim, talvez não, mas o certo é quem sabe. Então os candidatos que não chegaram a tempo nos prédios onde seus nomes estavam relacionados foram voltando pra trás após muitos minutos. Fiquei imaginando o tanto que correram, em vão...buscavam mudar de vida. Até aquela mulher grávida com sua imensa barriga, saliente embaixo da blusa de linho branca 60 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

com flores nas laterais, voltou andando com dificuldade e na saída do campus um carro cinza a esperava. Uma expressão de desgosto e cansaço no rosto, segurando a barriga enorme, indo em direção à saída do campus, se lamentando pela oportunidade perdida de se mudar de vida e passar naquela prova de concurso público que lhe daria condições de ter um salário melhor para cuidar do seu filho. Entrou no carro e foram embora pela avenida. Após isso fui ler o jornal e depois de tantas notícias de destaque sobre violência, guerras, homicídios, latrocínio, estupro, tráfico de drogas, assalto, explosão de caixas eletrônicos, fuga de presos, condenações de políticos, condenação de um preso famoso, incêndios em ônibus coletivos, furto de veículos, violência doméstica e familiar, morte por bala perdida, morte por acerto de contas entre traficantes, mortes na estrada mais perigosa do estado, suicídio do décimo sexto andar de um prédio, um pai que matou a mulher e o filho desconfiando de traição da esposa, espancamento de um cachorro, afogamento na lagoa durante o fim de semana, infestação de escorpiões num bairro da capital, surto de dengue matando pessoas, violência contra homossexuais, envenenamento de mendigos no viaduto, atropelamentos, enforcamento e até mesmo uma pessoa que quebrou o dente numa briga, enfim veio a parte do esporte... Eis o campo de atuação dessas pessoas que estão fazendo a prova: tentar mudar um mundo, ou enxugar gelo. 61 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

E no esporte as notícias do meu time. Será que esse jogador famoso é feliz? Nunca o vi no barzinho lá do centro que vende camarão ao alho toda sexta-feira, também nunca o vi naquela casa de show fantástica que todos gostam de ir. Sei que ele tem um carro importado que custou trezentos mil, mas nunca o vi andando pela cidade. Mas sim, ele deve ser feliz sim! Isso porque está fazendo o que gosta e não o que achou que iria fazê-lo feliz por causa do salário. Ele está ganhando muito porque é bom naquilo que faz! Todos os dias nos treinos procura fazer o melhor e admira o sorriso das pessoas nas arquibancadas quando consegue fazer o que esperam dele! Procura agradá-las fazendo seus gols, suas jogadas mirabolantes, e entende que somente se procurar ser o melhor naquilo que faz será feliz. Um bom pai! Um bom amigo! Um bom profissional! Um bom vizinho! Um bom ouvinte! Um bom conselheiro! Mudar de vida! Por que não agora? Ler um livro, fazer um curso naquela área que sempre tivemos interesse em trabalhar. Pizzaiolo, barman, músico, cabeleireira... Só quem procura fazer o melhor encontra o caminho do sucesso e da prosperidade. Isso porque há dois tipos de pessoas: as medíocres que se consideram as melhores entre os piores e os piores entre os melhores, medianos, acomodados, esperam tudo cair do céu. E há os vencedores, altivos, líderes, que procuram sempre o melhor, e dessa forma, algum tipo de prosperidade irão encontrar na vida, isso é inevitável! 62 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

O bom salário é um convite às enganações da vida. Muitos desses candidatos não pensam nas dificuldades das profissões. Pra começar você é o mais baixo no escalão, e até que chegue um mais baixo, tudo de ruim é você quem terá que fazer: a pior jornada de trabalho, os piores labores, o pior local de trabalho, as culpas serão suas e embora concorra para o sucesso não será nem lembrado na hora do champanhe. Você não tem vontade própria e muitas vezes nem respeito. Ao mínimo erro será crucificado, mas em um grande acerto lhe roubarão a autoria disto. E os candidatos vão saindo das salas. Alguns com uma expressão de derrota no rosto, outros empolgados com a prova que realizaram. Passam comentando com outros candidatos sobre a questão treze que possuía duas respostas certas, ou sobre a dificuldade da questão vinte e sete. Outros vangloriando a redação maravilhosa que acabaram de fazer e que irá impressionar os avaliadores. Alguns dizendo que a prova estava muito fácil e já se considerando dentro do sistema, planejam fazer o curso e comprar um carro logo. Então minha amiga após várias horas aparece na entrada do prédio de filosofia e ciências humanas. Seu rosto cansado, sua expressão apreensiva, indecisa sobre o futuro. Falava nas dificuldades de se mudar de vida. Não disse nada. Não sei se ajudaria ou iria atrapalhar. Apenas desejei sorte. Melhor deixar que a mudança de vida ocorra com o tempo. Não é o quanto se ganha, é o quanto se é feliz. E até mesmo eu que já fui carregador de 63 Vitor Moreira, 2013


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botijão de gás, lá em Contagem, no bairro Laguna, chegava o fim do mês e havia uns trocados no bolso que me permitiam o luxo de tomar uma cerveja no barzinho da rua, hoje que sou um executivo, chega dia vinte e já estou sem dinheiro. O trabalho era pesado? Bom, entregar e instalar gás na casa da divorciada não, nem a cantoria quando as crianças da favela pulavam em cima da caminhonete pra ir de carona até perto de casa, sempre me chamando de tio. Hoje nem sorrir no trabalho eu posso, preciso manter a pose. Ou talvez a falta de sorrisos se deve ao amontoado de contas que estão vencidas pois o pagamento não deu pra cobrir todos os gastos. Além disso a facada do imposto de renda foi terrível! Mudar de vida! Não aconselho a parar de tentar concurso público não. Só acho válido que se procure saber se isso é realmente um sonho ou só um ludíbrio por um salário melhor e a esperança de comprar um carro, uma casa e pagar umas dívidas, achando que o salário não está revestido de tensões, stress, exaustão, fadiga, desgosto, tristeza e dor. Se for isso, há uma loteria muito pé quente lá na avenida principal que solucionará todos os seus problemas.

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Perseguição Nobre deputado em quem muito confio! A quem já conheço há muitos anos, desde antes da candidatura, lá naquele nosso outro emprego, não sei se ainda se lembra. Gostaria de relatar coisas que vêm ocorrendo em meu lugar de trabalho atual. Nesta empresa de gelo seco e cubos de gelo. Sei que mais conhece das leis trabalhistas do que eu e por isso venho pedir ao menos uma orientação sobre esse caso que está acontecendo com um grande amigo meu e de todos aqui nesse lugar. O coitado não tem casa própria, não tem curso superior, está atolado em dívidas, principalmente a do cartão de crédito, o que 65 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

ganha mal dá para pagar as contas e seu pagamento fica quase todo empenhado pra pagar o aluguel, conta de água, luz, os atrasados da padaria...e não é que o chefe da empresa está perseguindo o pobre coitado. Aqui dentro desse lugar. Sim! Sem se dar ao luxo de esconder sua ira e a grande quantidade de inveja que tem dessa pessoa. Ora, o indivíduo tem casa própria num dos melhores bairros da cidade aqui onde moramos, tem um carro importado muito caro e elegante, ganha exageradamente bem, não tem contas atrasadas em lugar algum, além disso tem mais de um curso superior e viaja para o exterior todo ano com a desculpa de desenferrujar o inglês que fala com fluência. O problema senhor deputado e colega do ramo de gelo seco desde os tempos da antiga, é que o ser humano não pode comprar a admiração e o carinho das pessoas, muito menos a simpatia, e isso está incomodando o coisa ruim do chefe, aquele carrancudo! Esse meu amigo, muito fiel companheiro, tem a admiração até mesmo dos executivos da empresa onde trabalhamos! Direto eles levam presentes para ele, roupas, bebidas, carnes caras e até charutos. Adoram se assentar ao lado dele no refeitório e ouvir suas piadas durante o almoço. A secretária mais bonita da empresa já saiu com ele algumas vezes e o cobre de elogios sempre que pode, sobre detalhes que nem quero comentar, e ao que tudo indica, o chefe tentou cortejá-la, mas nada conseguiu. Veja bem, o indivíduo é baixinho, fora de forma, o cabelo pixaim é herança dos caboclos e fala mal o 66 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

português, mas conseguiu conquistar toda a empresa e até mesmo os melhores clientes que esta empresa tão antiga e conceituada de fabricação de gelo seco possui em todo o estado. Muitos clientes engravatados que chegam à empresa, representantes de redes de bebidas, bares, restaurantes e hotéis, que precisam muito do gelo seco que produzimos, querem sempre ser atendidos por este meu amigo, o que causa furor no chefe. Ele só não proibiu ainda que meu amigo atenda clientes, pois isso faria a empresa perder uma grande quantidade de clientes importantes. Então o chefe passou a perseguí-lo abertamente dentro da empresa, de uma forma que todos os funcionários estão sensibilizados, mas temos medo de represálias desse chefe tão ruim, tão perverso e sem nenhum caráter! Por isso deputado, vim pedir esse conselho sobre o que fazer nessa situação, se é caso de chamar a imprensa e denunciar tudo isso aos jornais. Nós aqui trabalhamos com gelo, já falei, mas a situação está quente, fervendo, borbulhando na empresa! Não há gelo que esfrie o clima ruim! Se isso continuar o gelo vai derreter e teremos que enxugar o chão, mas por enquanto é só gelo o que andamos enxugando, na tentativa de melhorar as coisas. Veja bem, onde já se viu tudo que esse excelente funcionário faz, sempre se vira contra ele aqui neste lugar. Ele está recebendo muitas advertências da chefia por coisas que nem estão ocorrendo, e isso vira descontos no pagamento. Onde já se viu um fulano que é só sorriso e simpatia foi acusado pelo 67 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

chefe de ter ofendido os maiorais da empresa dizendo que não tinha medo deles. Não havia prova alguma, testemunha alguma disso e o comentário partiu lá de cima, e não de onde há trabalho braçal. Pior foi quando o chefe o acusou de deixar de montar uma planilha, reduzindo um dia do seu salário, sendo que isso era função dos auxiliares administrativos e não de um mero pião que mal sabe escrever. Entretanto como é esforçado, se tivesse mesmo recebido esta ordem, teria feito muito esforço para fazer o serviço. Tantas outras coisas deputado, este chefe tão maldoso e sem vergonha tem feito na frente de todos! Sem vergonha sim! Pois onde já se viu condenar alguém por ser tão querido por todos? Se não fosse chefe já teria sido escorraçado da empresa pela porta dos fundos, pois nem competência tem para se relacionar. O grande problema é que o maior acionista da empresa, é amigo pessoal do chefe e não o tira da gerência pois confia no seu modo de gerenciar. Além disso tantas reclamações contra ele não chegam aos ouvidos do acionista. Até o horário de trabalho desse sujeito tão bom que nós conhecemos foi mudado para prejudicá-lo. O horário de almoço dele é menor que os demais e há mais de um ano ele espera umas férias que tem direito, mas o chefe tem negado. Veja bem deputado, o homem tem sido apedrejado somente por ser melhor que o chefe em ser líder sendo que isso o chefe jamais conseguirá na vida. Liderança é algo que vem com o nascimento, é como uma estrela natural que 68 Vitor Moreira, 2013


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brilha na fronte de um verdadeiro líder e não naqueles que usam um terno brilhante, tendo na lapela um broche de ouro e no bolso uma caneta cara, melindrosamente ostensiva para mostrar poder, mas por dentro há uma pessoa vazia de eficácia em conquistar as pessoas e fazê-las motivar, sorrir e seguir ao líder como as ovelhas seguem fiéis ao seu pastor. Sim deputado, venho para contar ao senhor sobre um líder nato! Um que se veste mal, ao contrário de todos na empresa compra roupa em bazar, e às vezes quando fica um aroma de sovaco no ar, é porque o seu desodorante, que é do mais barato, já passou o efeito. Mas todo mundo aqui o admira e o respeita, e sente mais prazer no odor de suor que fica, quando ele passa carregando um amontoado de caixas e cubos de gelo, cantando suas músicas, do que no perfume caro que fica no ar quando passa o chefe para inspecionar o serviço dos outros ou simplesmente ser notado, dar o ar da sua graça em cada sala da empresa. Parece até um gavião vigiando as presas para ver qual delas irá perseguir! Antipático! Antiético! Vulgar! Menospreza o ser humano como se fosse um deus, um ser superior aos outros que o rodeiam. Não se preocupa com a vida alheia, com a segurança, com as metas da empresa, só se preocupa em ser o centro das atenções e mostrar poder a todo tempo. Acredito que persegue tanto esse meu amigo justamente por ter visto nele as coisas, as qualidades que nunca conseguiu ter na vida, nem terá. Meu amigo é nobre de espírito e não se 69 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

importa em dividir o pão. Outro dia ele ganhou um litro de cachaça de um empresário parceiro da empresa, a garrafa era envelhecida dez anos e tipo exportação. Se ele fosse vender ganharia o dobro do salário que ganha, ou até mais, mas ao contrário, depois do expediente nos chamou e abriu aquela iguaria lá no refeitório. O cheiro exalou no ar melhor que perfume! Todos brindaram e isso chegou aos ouvidos do chefe, mas antes o cheiro chegou até a sala dele, e mandou chamá-lo, dando mais uma advertência. Não pelo fato de ter brindado, disse que ele estava pervertendo os funcionários a não trabalharem direito. Confesso deputado, que se esse fulano desse ordem de greve na empresa, a empresa parava imediatamente, mas ele ao contrário, muito honesto com o trabalho aconselha a todos a fazerem o melhor e trabalhar sempre mais, pois o sucesso na vida vem justamente de tentarmos o melhor mesmo e abrir mão das vaidades pessoais em prol da melhoria do mundo. Veja bem, o modo de pensar desse simples pião! De onde vem tanta cultura e conhecimento se mal sabe usar um computador e até o português é repleto de erros de ortografia? Isso é um dom dado pelo criador, não é algo que o dinheiro do chefe pode comprar aqui na Terra. Ameaça mandar este meu amigo embora a todo tempo, mas não tem coragem porque o espírito maligno que está em seu coração no fundo tem medo do meu grande amigo por causa da sua grande virtude. Nem lhe olha nos olhos com medo que caia por terra e comece a se 70 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

debater derrotado e humilhado. Ele tenta espetálo a todo tempo tentando tirar-lhe a fé e o amor pela vida e por seus semelhantes, mas a cada espinho o sorriso no rosto desse meu amigo resplandece mais forte, brilha mais até que as três estrelas que formam o cinturão de Órion e estão lá no céu pra todo mundo ver! Não há castigo que seja capaz de tirar o brio desse meu amigo. Teve uma vez que o chefe foi avaliar os melhores funcionários da empresa para conceder aumento. Todos ficaram espantados ao ver que justamente um dos piores funcionários da empresa, mas que é bem visto pelo chefe por ser um bajulador foi o que melhor foi avaliado, em compensação este meu amigo que é só trabalho e empenho teve a pior nota de produção em toda a empresa. O chato mesmo foi quando o chefe o proibiu de frequentar a sala de reuniões da empresa, alegando que somente os funcionários ligados à gerência que podiam opinar sobre os rumos da empresa, excluindo assim os funcionários que trabalham na execução de obras. O engraçado foi que um dos gerentes ligou escondido do celular pra esse meu amigo durante a reunião, pedindo um conselho sobre o que dizer ao chefe. O assunto era sobre formas de estocar gelo seco para reduzir os espaços no estoque sem reduzir a produção. Eu ouvi tudo, ele estava do meu lado, e ao discursar o chefe elogiou muito as propostas do gerente, dizendo que sua opinião era digna de um grande empreendedor! Em seguida o parabenizou pela colocação apresentada, citando que seria levada aos altos investidores. Depois da 71 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

reunião não resisti e fui falar com meu amigo, dizendo o que aconteceu. Ele sorrindo disse que coração vazio não sabe plantar, mas um coração que tem fé faz brotar água no meio da areia do deserto. Que sua intenção na empresa era trabalhar, apesar dos pesares, pois só tinha ali para trabalhar, se fosse mandado embora teria que catar latinhas na rua para sobreviver. Fiquei impressionado com as palavras de meu amigo, e por isso estou pedindo a sua ajuda. Será que isso tudo que vem acontecendo é caso de entrar na justiça contra o patrão? Será que ele deve seguir seu caminho e procurar um outro lugar para trabalhar? O que fazer? Esse meu amigo, deputado, muito honesto, vive apenas do trabalho, não tem muitos recursos. Aí vem um outro que todos os dias toma champanhe e começa a dificultar ainda mais as coisas para essa pessoa tão querida na empresa! Não vejo justiça alguma nisso e venho para pedir uma opinião sua sobre tudo isso que vem acontecendo, pois lembro que antes de ser deputado também trabalhava numa empresa de gelo seco e vendia gelo seco para várias pessoas. Sabe bem das dificuldades de se trabalhar com gelo devido à exigência da clientela. Ora, se já é tão difícil agradar quem está do lado de fora, como sobreviver tendo maiores problemas com quem está aqui do lado de dentro? Os clientes querem sempre o melhor produto e o gelo tem que estar sequinho, e dá muito trabalho para deixá-lo sempre assim sequinho para agradar os olhos dos clientes. 72 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

E estou escrevendo essa carta escondido, aproveitando que meu amigo hoje não veio trabalhar. Fraturou o braço ao ser designado pra empilhar umas caixas de gelo no freezer e um dos corrimãos de sustentação estava solto. Então ele caiu sobre o braço e teve uma fratura. Acho que volta a trabalhar amanhã mesmo. Disse que iria trabalhar com um braço só porque está com o aluguel pra vencer e se ficar muitos dias afastado corre o risco de perder o emprego e passar fome. E isso é tudo deputado. Estamos todos muito preocupados com isso tudo e por isso resolvi incomodar o senhor pra me dar uma luz sobre o que fazer para ajudar essa pessoa tão querida e tão sofrida que todos gostamos muito e queremos ver sempre bem! Até breve! Desejo um ótimo trabalho a todos!

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EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Avenida Afonso Pena, Belo Horizonte

Quem trabalha não precisa pedir Não, a vida não é difícil! Somos nós que sempre buscamos tudo muito fácil e reclamamos de ter que trabalhar. Sempre reclamamos do trabalho, do cansaço do dia-a-dia, do chefe, do salário, mas a grande maioria de nós embora de humor indeciso pega a sua cruz e carrega, vai todos os dias para o trabalho, faz os afazeres e ao fim do dia entra num vagão lotado de pessoas suadas, cansadas e vai pra casa. O motivo disso é único: dignidade! Sim, trabalhamos para termos o dinheiro ao início do mês para comprar uma roupa bonita, pagar as contas de luz, de água, de telefone, de internet, a prestação do carro ou da moto, ou então poder parar num barzinho para sentar na cadeira e tranquilamente tomar um bom gole de cerveja e 74 Vitor Moreira, 2013


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pedir aquele aperitivo gostoso de bacalhau ou camarão ao alho. Então logo eles aparecem. Sujos, fedidos na porta do bar. Não falam nem “bom dia” e com olhar de intimidação misturado com sofrimento já vão logo pedindo qualquer coisa. Às vezes pedem dinheiro, outras vezes já vão pedindo um copo de cachaça, um cigarro, um pouco da cerveja, o camarão, qualquer coisa...parece que o que querem é levar algo. Não posso acender um cigarro na porta do bar que logo vem um pedir. Falo que é o último querem dar um trago. E se falo que não ainda insistem para eu deixar a guimba. No trânsito ao parar no sinal vermelho chegam as mãos sujas dentro do carro e até tocam minha blusa branca de linho, sujando a gola. Encostam nos bolsos para ver se não há moedas, como se eu fosse obrigado a dar alguma coisa. Ao comprar um salgado na pastelaria já vem outro com suas mãos sujas, quase roubando das minhas mãos ou já tirando um pedaço como se eu tivesse obrigação de ter pena de algum deles. E não, não tenho pena alguma! E vou ter pena por quê? Estamos nos tempos modernos. Está sobrando emprego por aí. Basta querer trabalhar e procurar dignidade. Sei que alguém vai me acusar de desumanidade, então sejam humanos! Vão até lá embaixo do viaduto e adotem um desses vagabundos noiados que não querem trabalhar e ficam mendigando para comprar pedras de crack. Levem pra dentro de suas casas e sejam humanos. 75 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Não querem trabalhar, e já comprovei isso. Reclamam da vida e da exclusão social, mas não querem trabalhar, a verdade é essa. Perceberam que a maioria da sociedade tem pena dos seus olhinhos fingidos pedindo esmola e vivem nessa mordomia sem limite. É fácil pedir, difícil é carregar tijolos! Mordomia sim! Eu e meus amigos trabalhamos o mês todo pra poder parar no barzinho no dia do nosso encontro mensal pra jogar conversa fora, e vem um que não carregou uma caixa lá na empresa onde trabalhamos, só chega, pede e leva. É fácil demais ser mendigo! Uma vida sem impostos! Em todo lugar onde ando vejo uma placa do tipo: “precisa-se de pedreiro e ajudante de pedreiro urgente, com ou sem experiência”, ou então aquelas do tipo “precisa-se de faxineiro”, “precisa-se de auxiliar de serviços gerais”, “precisa-se de carregador”, “precisa-se de ajudante”. Aí alguém vai virar e dizer que o mercado exige preparação, mas se observarem bem ao andar pela cidade, haverá uma placa assim: “curso grátis de garçom”, “curso de pedreiro”, “curso de pizzaiolo”, “curso de tricô e crochê”, “computação”. Não fica longe de onde eles dormem não, ali no centro mesmo no serviço social. Até eu já fiz um curso de digitação lá para melhorar a mim mesmo, era de graça mesmo. Então outro partidário da causa vai dizer que eles não encontram apoio. Não? Então não conhecem os abrigos municipais, onde os pedintes 76 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

podem chegar, tomar banho e dormir? E quem disse que eles querem? Querem não. Não querem e sabe o motivo? Lá dentro não existe a pedra de crack, que na maioria das vezes é o motivo real de estarem pedindo dinheiro nas ruas embora tenham casa. Não é fome porque tem sempre alguém que leva sopa, frutas, verduras e outros lanches para eles. A necessidade deles é a droga, e absolutamente decididos não querem trabalhar. E falo com propriedade, pois já conversei com muitos que chegam me pedindo e falam abertamente sobre o assunto, culpando a sociedade pelo estado em que se encontram, mas basta falar em trabalho que mudam o olhar. Realmente a culpa é da sociedade sim, porque alimenta o vício dos pedintes. No momento em que esse recurso financeiro fácil se esgotar, uns roubarão e serão presos ou mortos, outros criarão vergonha na cara e catarão latinha para sustentar o vício, e uma parte menor irá fazer um curso de pedreiro no serviço social e ser laçado, fisgado, seqüestrado por alguma das centenas de empreiteiras que estão construindo a torto e a direito por toda a região metropolitana. Duvidam? Passem perto de alguma obra grande na cidade e comente que você tem um amigo pedreiro ou ajudante de pedreiro que está procurando emprego. Depois digam se eu não tenho razão. A construção civil está contratando, a rede hoteleira está contratando, restaurantes, bares. O problema é que as pessoas querem uma solução do céu, querem “Maná”. 77 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Não é nem Deus nem o Diabo. Nós que temos que fazer, correr atrás do que queremos, se bem que a maioria dessas pessoas quer mesmo é pedir. É mais fácil e prático! Pra pedir não é necessário acordar cedo com o despertador, nem tampouco entrar no vagão lotado do metrô, suportar as teimosias do chefe, ter horários pra tudo, ter que suportar aquele colega de serviço que implica conosco, após o almoço ir trabalhar com aquele sono, ao fim do dia entrar no mesmo vagão lotado, dessa vez com o odor de suor tomando conta do lugar, e no fim do mês as contas chegando. E não! Eu não vou dar nada. Olhando pro meu rosto já saibam que não vou dar nada! No outro dia foi um de vocês que tentou me assaltar e quase morri. No outro dia no jornal havia a notícia de uma mulher que foi violentada próximo à trincheira por um de vocês. Também foi um de vocês que estava usando crack ontem quando passei de carro e jogou uma pedra. E acredito também que um de vocês deixou a calçada suja de merda e acabei pisando hoje cedo. Quem trabalha não precisa pedir e meu dinheiro que demorei um mês pra receber foi suado! Trabalhei para ter o direito de estar aqui agora apreciando meu bolinho de bacalhau e meu camarão. Tive um mês de trabalho para estar aqui agora tendo um pouco de lazer e satisfação. Não dou! Vocês é que deveriam me dar alguma coisa afinal levam uma vida muito boa, sem precisar trabalhar. A minha é sofrida, e isso me dá o direito de não gostar de vocês. 78 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Ou ele ou eu, aos sábados Minha querida! Eu sei que anda muito ocupada ultimamente conversando todas as noites com o Ricardão pelo telefone, logo após nos encontrarmos e algumas das vezes ele nem espera eu sair para já começarem a conversa. Não estou nem preocupado mais com isso não, o Ricardão virou cultura do povo! O problema é outro e está me incomodando bastante nos últimos meses: O horário em que conversam. Hoje a nossa sociedade já não se escandaliza com um relacionamento extra, muitos casais são inclusive adeptos dessa técnica ultra moderna de amor e descarrego de libido. Embora eu não aceite, o que posso fazer se não há como 79 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

ficar te vigiando todo o tempo? E além disso tenho um monte de outras coisas pra me preocupar, como de costume, naquele escritório repleto de metas a cumprir. Mas convenhamos meu querubim, ele deveria ter um pouco de desconfiômetro! Ficar te ligando aos sábados à noite, justo na minha hora de ficar com você? Acho que você deveria falar com ele sobre, sabe, uma conversa sincera e esclarecedora, de mulher para Ricardão. Isso pra não abalar a confiança que tenho em você meu docinho de côco. Sei que irá compreender o meu posicionamento pudinzinho. Veja bem: se estamos no cinema ele te liga, se estamos num barzinho, numa boate e até mesmo aquele sábado em que ele estava escondido debaixo da sua cama quando fui dormir aí em sua casa ele ficou trocando mensagens contigo a noite inteira. Como eu posso ter segurança no nosso relacionamento assim meu pão de mel? Fico cheio de desconfianças em relação ao não cumprimento de horários por parte dele. Lembra também daquela vez que viajamos de trem e ele estava no mesmo vagão? Ficou te encarando entre sorrisos e mensagens de celular e eu só tinha sossego pra namorarmos um pouco quando o sinal caía, ao passar por um túnel ou região mais montanhosa. Peço que me entenda minha flor! E aquela vez então no clube? Você se distraiu e o celular caiu na água quando falava com ele. Ele ligou no meu celular pedindo pra falar com você, e ainda por cima a cobrar. 80 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

E aos sábados, sempre aos sábados que ele fica importunando e atrapalhando nossos encontros. Ora, sábado é o meu dia de lazer, de esquecer os compromissos do dia-a-dia e respirar ar puro num passeio pelo parque ou tomar um bom drink num lugar aconchegante! Preciso de privacidade, ao menos um pouco de privacidade pra poder me divertir um pouco minha princesa. Acho que você deveria ter uma conversa séria com ele, pois afinal neste próximo sábado estou querendo te levar ao teatro e será muito ruim você perder a peça respondendo às mensagens dele. Sem contar que as outras pessoas podem se sentir incomodadas com a conversa entre vocês dois. Vamos combinar assim pitelzinho: vou anotar todos os nossos horários numa planilha, fazer uma programação semanal dos nossos encontros. Aí você passa pra ele, assim tudo se resolve e eu poderei estar com você aos sábados tranquilamente. Ele saberá exatamente os horários em que não estará ocupada comigo e todos ficarão contentes! Sei que ele irá entender afinal é uma pessoa compreensiva e não se importará em eu estabelecer horários para poder sair com você minha musa, afinal nós já namoramos há bastante tempo e pelo que sei essas ligações intensas começaram acerca de um ano atrás, se não me engano. Ele já entrou nessa história sabendo que eu adoro sair aos sábados à noite e não posso abrir mão disso. Então ficamos combinados assim, querida! Adoro você! Mande também um abraço pra ele 81 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

quando ele ligar logo após eu virar as costas e ir embora.

82 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

O plano do plano de saúde Hospital! Lugar que ninguém gosta de visitar, ainda mais quando a pessoa não possui plano de saúde, pois afinal um plano de saúde sempre foi referência de qualidade de atendimento! Você chega e logo é atendido pelos melhores profissionais! Leitos, apartamentos, comida de qualidade, ar condicionado e todo um preparo de toda a equipe, uma enfermeira bonitona, essas coisas. Errado. Pagar o plano de saúde não quer dizer que você terá o atendimento que a propaganda fala. As filas estão cada vez maiores, até parece o Sistema Único de Saúde! 83 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Outro dia eu caí doente e precisei utilizar o meu plano de saúde caro. E para minha surpresa eu estava no SUS. A única diferença é que eu paguei anos desse plano para ter o direito de ficar horas e horas na fila esperando atendimento médico juntamente com outros enganados, todos pessoas bem sucedidas, que enfim podem agora sentir na pele o que é a espera pelo atendimento. Aquela ilusão de um hospital maravilhoso e tecnológico é, bom, já ouviu falar de cenário de novela? Algo assim! Mas há uma grande lição nessa demora aqui neste hospital: enquanto houver alguém lucrando, haverá alguém afundando na lama. Ora, se eu pago pelo serviço, onde foi parar o dinheiro para investir nos materiais e na capacitação dos profissionais? Só o que me deram foi um soro. Onde estão as camas automáticas? Onde está a equipe de pelo menos seis médicos e enfermeiros me bajulando e fazendo sala pra mim até eu ficar bom? Onde está minha linda enfermeira? Onde está a adrenalina da equipe e um monte de equipamentos ligados ao meu corpo monitorando tudo que se passa comigo? Só o que vi até agora foi um soro, uma agulhada no braço e uma recepcionista com cara de poucos amigos e voz enjoativa fazendo várias fichas de atendimento e empilhando sobre a mesa para o caso de algum médico vir até o hospital e ainda assim, se interessar em pegar as fichas. Enquanto isso ficamos todos a ver navios. Pagamos e na hora de usufruir nos dão um nariz de palhaço. Então o nosso último estado fica pior 84 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

do que o primeiro, pois além de doentes, o humor vai embora rápido. O jeito é esperar até o soro acabar agora e depois acho que vou embora porque aqui está cheio de pessoas doentes e machucadas. Isso não é bom para minha saúde. Não vou esperar meu plano de saúde perceber isso não, melhor me virar eu mesmo, ir pra casa e fazer um chazinho caseiro.

85 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Aos 5 anos com a professora Júlia na Escola Padre João Maria Kooyman em 1989

Fiquei careta, e agora? Fotografia velha, por que tu és tão rigorosa com nosso coração? Qual o motivo de jogar antigas poeiras em nossos olhos fazendo cair lágrimas ao limpar? Por quê? Diga-me o motivo de estar tão melindrosa, tão culpada, escondida entre antigos papéis que eu iria jogar fora nessa tarde ao dar uma faxina no porão tão cheio de poeira de minha humilde casa? Fotografia velha que remete a toda a nossa história. Aquela infância sofrida ou repleta de sorrisos de cada um, as brincadeiras, bom...as brincadeiras... 86 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

No meu tempo ainda havia as brincadeiras de “roubar bandeira”, o pique-esconde, futebol jogado no asfalto onde fazíamos o gol com chinelos, bolinha-de-gude, caí no poço, passa anel, telefone-sem-fio, carrinho de rolimã e guerra de balão com água. Fugia das minhas lembranças o meu passado, minha origem e uma fotografia despertou tudo isso novamente. Então, parar de fazer a limpeza e procurar por outras fotografias. E encontramos antigas provas da escola, os antigos boletins com as notas e até mesmo jornais da época. A nostalgia, uma emoção tão profunda exala no ar o cheiro de papéis velhos! Fantasmas do cotidiano saindo dos túmulos trazendo nas mãos os calendários de décadas atrás, num tempo que já cinzento na lembrança instiga os olhos a chorar enquanto os lábios sorriem e o coração bater de uma forma diferente do habitual! Eles soltam no ar a sua risada maliciosa e passam o tempo todo diante dos nossos olhos feito moscas e mesmo tentando afastá-los são todos insistentes e não param de perturbar mostrando as folhinhas já amareladas pelo tempo, batendo com elas em nosso rosto. Ah, a vida! Tão passageira e repleta de encantos que até mesmo as decepções são bem lembradas, quando vários anos mais tarde uma simples faísca acende uma tarde inteira de reflexões, retrospectiva e análise da existência! Que belas são as nossas lembranças! Nosso passado é tão cheio de cultura! Cada pessoa tem dentro de si um universo tão repleto de conteúdo! 87 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

É como se cada dia fosse uma estrela de um grande universo! Nesse contexto, jamais haverá um universo pessoal igual ao outro, pois cada pessoa possui um coração que bate! A vida de cada pessoa é única em amor e desilusão, sonhos, virtudes, defeitos, sorrisos e mágoas! Os desejos e até mesmo os medos e todo o resto! Mas em cada um desses universos existe a história que cada pessoa viveu, repleta de assuntos que enchem as páginas de um livro! Emoção! Emoção! Emoção! Eis a nossa história! As canções da época então se sussurram nos lábios, baixinho enquanto as lágrimas vão caindo, até mesmo os programas que passavam na televisão, que ainda era em preto e branco. Naquela época era comum que em muitas casas tivessem uma máquina de costurar, o que era inclusive artigo de luxo. Havia propagandas de cigarro sem citar os males provocados. Ainda lembro dos antigos slogans marcantes, principalmente do meu achocolatado preferido que já nem me lembro mais o sabor pois hoje já não gosto de achocolatado, só de cerveja e das noites de luzes, boates, barzinhos... O primeiro vídeo game, com aquele joguinho de naves. Bem simples! Gráficos que hoje qualquer criança consegue criar melhores no computador. Mas era a minha época! Minha história! Minha cultura de vida e por isso é tão especial! Eu presenciei a luta contra a ditadura. Caminhões cheios de homens de farda passando pela rua, estudantes correndo, a banca de frutas 88 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

caindo na calçada, o caminhão jogando água nas pessoas, muitos rostos pintados. Futebol! As pessoas reunidas em frente à garagem de quem tinha televisão e a colocava numa mesa, reunindo os amigos e logo a frente da garagem repleta de pessoas enquanto o dono da casa procurava o melhor lugar para colocar a antena, tendo inclusive que enrolar um pedaço de Bombril na ponta da antena para melhorar o sinal da televisão. Eleições! As pessoas que votavam se sentindo importantes, colocando uma roupa mais vistosa que possuíam e indo para o seu colégio eleitoral. Encontrando antigos amigos, exercitando uma democracia que na maioria das vezes só se vislumbra quando é época de campanha, pois é quando alguém lembra ao cidadão que ele existe. Pessoas correndo pela rua com as mãos cheias de “santinhos”, de faixas, de camisetas de algum candidato, e logo em seguida uma viatura cinza passava. Dias antigos! Os planos de vida que naquela época eu tracei, que na sua maioria foram substituídos pela realidade da vida e pelas oportunidades que realmente surgem num mundo tão competitivo. Amei! Com as forças que meu corpo tinha para amar! Os sonhos que meus olhos tinham pra sonhar! As desilusões? Meias verdades coloridas! Deixo o porão, trazendo algumas fotografias nas mãos e nova expressão no rosto. 89 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Tiro então as fotografias da minha banda predileta da sala e coloco no lugar as antigas que encontrei no porão. Ao sair, passo pelo supermercado e compro um achocolatado. Tomando ali mesmo no caixa enquanto pago, a atendente até estranha, pois habitualmente eu faço isso somente com cerveja. Ao entrar no carro, coloco o cinto de segurança, lembrando das vezes em que brincava de carrinho de rolimã e fingia que estava usando o cinto antes de cada disputa com os amigos nas ruas do bairro Glória. E no meio do caminho eu lembro que não estou brincando de carrinho de rolimã e tiro o cinto. Voltando pra casa coloquei no canal do desenho animado e fiquei horas assistindo. Olhando as novas fotos na parede, me pergunto onde foram parar os amigos do tempo de escola? Que rumo suas vidas devem ter tomado? Saudade marca e nos torna tão ultrapassados, tão antiquados se formos olhar os dias de hoje! Mas um dia todo mundo fica assim. Pra não chegar a esse momento, ou se deixa o porão sujo e jamais entra lá, ou então é mais fácil viver uma vida sem sabor, pois onde há um mínimo de prazer e realização, ali estará um motivo para que o passado venha bater em nossa porta.

90 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

A pegadinha do falso cigarro E lá estava eu no Dourado, tomando uma branquinha antes do almoço, segunda-feira, pensando no quê eu iria degustar após uma branquinha, talvez um frango, hoje não estou querendo comer camarão. Todo dia camarão às vezes enjoa! Olhando as pessoas passando na rua ficava entretido com as culturas de cada um, seus modos de vestir, de andar. Eu admirava as pessoas e a sua necessidade de sempre chegar a algum lugar! Correr atrás das coisas. Cheguei a 91 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

pensar que somente eu estivesse vagabundeando em toda a cidade. Foi quando Xuxinha, uma simpática funcionária de lá me mostrou um maço de cigarros idêntico ao original, e até me ofereceu um. Eu estranhei, pois nunca havia visto ela com cigarros, mas aceitei. Afinal era de graça mesmo! Foi quando aos risos ela não conseguiu terminar a pegadinha e começou a rir antes da hora. Então ao pegar o cigarro percebi que era realmente um maço de cigarros, porém em seu interior haviam cigarros feitos somente com o filtro, para servirem de enfeite das vitrines. Não havia o fumo, era somente filtro em toda a sua extensão. A principio eu achei interessante! Foi quando ela me mostrou uma caixa com dezenas de maços iguais, dizendo em seguida que era ordem do representante que os maços fossem substituídos por outros mais novos, mais bonitos! Então a mente vazia funcionou instantaneamente e eu tive a idéia de fazer uma pegadinha com as pessoas que passavam pela rua. Ela não concordou a princípio, mas o “espírito convencedor de palhaçadas e outros afins” deu um jeito de convencê-la através de uma risada maldosa que eu liberei e já pegando o primeiro maço. Deixei perto da árvore na calçada e fiquei observando. Um casal discutindo. De repente os dois passam pelo maço e o homem diz para ela que havia um maço de cigarros novinho jogado no chão. Andam mais alguns passos e ela pergunta 92 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

se ele quer o cigarro. Então num gesto de companheirismo a mulher volta e pega rapidamente do chão e leva para seu amado, o qual com maestria coloca no bolso dando uma olhadinha pra trás por segurança e seguem abraçados pela rua talvez nem lembrando que brigavam. Fiquei comovido com o gesto! Apesar de ser uma pegadinha de gosto duvidoso, pude notar que as pessoas passam por problemas cotidianos, mas por dentro são companheiras e ninguém vive sozinho! Por mais que as brigas num relacionamento existam há sempre um desejo mútuo de fazer o outro feliz e sermos também felizes! Emocionei! Então tomei mais um golinho da minha branquinha e rapidamente deixei o segundo maço no mesmo local. Mal entrei de novo no recinto e um vendedor de sacolé tratou de pegar o maço do chão rapidamente, com habilidade de goleiro. Andou um pouco e parou para saborear um dos cigarros. Ao ver que eram somente filtros, jogou o maço no chão e xingou alguma coisa que não pude ouvir da porta. Ele andou um pouco, mas voltou e pegou o maço de cigarros. Estava com o mesmo sorriso do “espírito convencedor de palhaçadas e outros afins”. Que bom! As pessoas apesar das dificuldades têm senso de humor! Sei que foi passar a pegadinha em alguém. Ali pude ver que não é necessário dinheiro para que existam sorrisos no rosto das pessoas. 93 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Basta um motivo, mesmo que insignificante que desperte o desejo de gargalhar. Novamente outro maço. Dessa vez demorou, mas valeu a pena! O sujeito estava bem vestido, vindo pela direita. Um ar “posudo”! O outro um rapaz bem parecido com um malandro, desses que se vestem mal e têm hábitos musicais estranhos! Não é nem pelo gosto musical, mas pela altura que ouvem, principalmente em coletivos lotados. Os dois empataram! Chegaram na mesma hora para pegar o maço de cigarros do chão. Então o que estava bem vestido perguntou se o maço era do rapaz e ele respondeu automaticamente que sim, citando até que havia doze cigarros dentro do maço. O outro então pediu desculpas e seguiu, admirado pelo rapaz com propriedade demonstrar mesmo sem abrir o maço a quantidade de cigarros existente lá dentro. Nesse momento eu não pude conter o riso e quase caí da cadeira! Cheguei a liberar lágrimas e dessa vez nem pude chegar até a porta para ver se o rapaz chegaria a abrir o maço de cigarros porque não conseguia parar de rir. E sim, as pessoas são aguerridas em buscar sempre vantagens sobre as outras, mesmo que tenham que fingir! E não sei se o rapaz era bom moço, mas tentar vender o maço para algum bêbado no fim da noite seria uma sacanagem maior que a que eu havia acabado de fazer! O problema é que pensando nisso me dava mais vontade de rir imaginando o bêbado 94 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

acendendo o cigarro de filtro. Mais ainda, ele dando alguns tragos até perceber que não acendeu o cigarro do lado errado e que o mundo não estava conspirando contra seu cigarro, após ter virado o lado, revirado e retirado o pedaço queimado de filtro em ambos os lados. E então depois de um bom tempo perceber que o cigarro é somente um filtro, sem fumo. E pior seria se ele pensasse que este cigarro veio com defeito e tentar acender outro do mesmo maço. Percebendo que eu já começava a incomodar os clientes tentei me conter, e confesso que foi difícil! Eu já estava pensando em desistir da brincadeira quando vi que só havia mais dois maços comigo, pois a Xuxinha havia guardado os outros em seu armário porque o Zezé não estava gostando da brincadeira em seu comércio. Coloquei outro maço lá perto da árvore e fiquei olhando. Passou uma garota vendendo balas e ao ver o maço se abaixou para pegar. Fiquei preocupado achando que ela iria pegar aquilo e sair contente achando que era de verdade. Para minha surpresa ela pegou o maço e entrou no Dourado, jogando o maço no lixo. Fui até ela rapidamente e perguntei se ela estava jogando cigarros fora e ela respondeu que sim, que seu pai morreu de câncer por fumar demais e por isso hoje ela ajuda a mãe vendendo balas enquanto a mãe olha uma senhora lá para os lados do bairro Serra. Falou que não gosta de ver as pessoas fumando porque isso lembra do sofrimento da família. 95 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

A pegadinha dessa vez não foi engraçada, mas me encheu de orgulho ao ver que aquela garotinha tão nova, aparentando dez anos, tinha uma consciência tão bem desenvolvida. Então sorri emocionado e a parabenizei! Aí ela virou, com uma rápida mudança de fisionomia, de criança para comerciante experiente e perguntou quantas balas eu iria levar, já até tirando algumas da caixinha. Mas é justo! Está certo! Comprei algumas, afinal eu que fui até a garotinha puxar assunto. Acabou que o último maço eu mesmo abri, e fiquei vendo aqueles cigarros somente de filtro. Desmanchei um para ver e deixei o maço em cima da mesa aberto. Comecei a filosofar em silêncio sobre a vida, olhando o filtro de cigarro, sobre o interior de cada ser humano, as vontades, o desejo de realização que se parece em cada um, e o quanto cada um se esforça para pelo menos ter o que comer, sendo que na maioria das vezes as gotas de felicidade que sobram se resumem a poder pagar as contas no final de um mês de trabalho duro e não passar fome, mesmo que a carne tenha que ser baratinha e não dê para comemorar um jogo de futebol com churrasco no quintal. Foi aí que me levantei para escolher algo para comer e ao voltar não é que haviam levado o maço de cigarros falsos! Então eu não sabia se ficava preocupado com a safadeza alheia ou se caminhando pela rua o safado me visse e pensasse que eu sou doido varrido ou fumo cigarro de filtro sem fumo pra não ter o perigo de pegar câncer ou poluir o mundo. 96 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Pior é se o larápio fumar o cigarro de filtro pensando que se eu, que estava bem aparentado fumo essa marca, deve ser algo chique, da última moda! Eu mereço?

97 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Ái meu fusca! Claro que arrumo seu Fusca minha amiga Alessandra! Nunca fiz manutenção em carro, nem tenho curso de mecânico, mas não há um brasileiro que não entenda de Fusca. Vamos ver: A porta está fechando bem! O motor funciona bem apesar de ser muito barulhento! As marchas estão um pouco duras, mas esse carro é bem antigo, deve ser por isso. Os pneus estão um pouco gastos e a pintura original está bem conservada, apesar de um amassado na lataria! O volante está duro e vira com dificuldade, mas vira! 98 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Os pedais são duros também, mas estão funcionando perfeitamente! Também quando sento no banco as molas vibram bastante, como todo carro Fusca que se preze, caso contrário nem adianta querer dizer que é um Fusca. Um monte de badulaques, fitas, um terço, dentadura e chaveiros pendurados no retrovisor interno... O motor é atrás e o porta-besteira tem de tudo, desde colcha até um sanduíche velho já mofado, aranhas viajantes, ferramentas, uma barata morta, um pente de cabelo, um espelho e uma toalha toda impregnada de mofo verde. Depois de vistoriar o carro conclui: realmente o paciente parece ser um Fusca! Faltam alguns detalhes para que eu possa comprovar cientificamente que é um Fusca. E com o olhar de um perito, após dar meu parecer, minha amiga vira e fala que o problema é que o vidro do lado direito não estava fechando embora ela girasse a maçaneta. Olhei pra ela e fiz uma cara de desgosto e desaprovação. Pôxa! Eu estava fazendo a autópsia da vítima Eu iria constatar em breve que o vidro não estava fechando. Mas continuei meu trabalho importante! Agora eu precisava desvendar as causas do trauma gravíssimo na porta direita que impedia que o vidro fosse fechado. Um olhar sério sobre os fatos. Com calma pego várias ferramentas numa caixa. Procurei um bisturi, como não havia, tive que me contentar com uma chave de fendas e um alicate. 99 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Eu estava prestes a iniciar os trabalhos de uma operação de risco quando novamente minha amiga vira, com um olhar de preocupação ao ver que o veículo seria aberto e fala que o vidro não fechava porque a maçaneta perdeu os dentes por estar muito velha. Olhei para ela de novo, fazendo transparecer que ela estava interferindo na operação cirúrgica. O sol estava quente e eu já começava a suar bastante, pelo calor e pela tensão naquela operação delicada. Após um longo período de comprovações científicas percebi que a maçaneta estava muito gasta e as secções já não conseguiam erguer o vidro do veículo, que parece ser um Fusca realmente, embora eu ainda tivesse algumas dúvidas. Então após o término do trabalho virei pra minha amiga e disse que ela precisaria trocar a maçaneta, que era baratinho! Eu segurava a maçaneta removida nas mãos e ainda mostrei que estava totalmente gasta. Mas ela disse não poder trocar a peça porque era muito caro e não poderia gastar mais com o carro. Quase se desesperando em ter que gastar algumas moedas para comprar outra maçaneta. Eu olhei para ela e ao mesmo tempo para a caixa de ferramentas, fazendo uma cara de lerdo. Olhei para o paciente, seus faróis me olharam com tristeza, conformados diante dos fatos, parecia me demonstrar no silêncio de seu labor as dificuldades de ser um Fusca. 100 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Pensei que se ela não estava nem aí para a troca de uma peça que evitaria que o carro fosse roubado ou que fosse assaltada no trânsito, a minha cerveja de prêmio também não iria acontecer em hipótese alguma. Estava ali na caixa uma fita de vedar rosca de cano d’água e um pedacinho de arame. Peguei o rolo, passei em volta da parte da porta da maçaneta e voltei a colocar o parafuso na maçaneta e apertar. Em seguida passei o arame em volta com a ajuda do alicate. O vidro então fechou normalmente e ganhei um abraço e um “muito obrigado” feliz da minha amiga. Voltei para o barzinho onde estava antes dela aparecer com o seu veículo desesperada para que eu o salvasse da morte trágica, provocada por um vidro que não se fechava. Sim! É um Fusca! Não tenho dúvidas agora! Com certeza é um Fusca! É um Fusca certamente! Com um remendo na porta, todos os outros itens de série já citados e uma dona mão-de-vaca! É um Fusca completo! Legítimo!

101 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

“Moreno” só tem um A sociedade molda demais as pessoas, tirando muitas vezes a espontaneidade de ações e idéias. Pessoas capazes, que têm dentro de si uma identidade, um juízo de valor sobre cada coisa, muitas vezes são sufocadas pelas pressões sociais em busca de um padrão de aceitação até mesmo contrário à própria individualidade humana. A sociedade molda os modos de vestir, o corte de cabelo, os gostos culturais, a escolha religiosa, os lugares que cada um frequenta e até mesmo o que está degustando no prato e quer saber até mesmo quantas doses de bebida já foram ingeridas. Nós estamos numa sociedade tendenciosa, aliás, sempre foi assim! Só o que muda é a época em que vivemos. Outro dia eu estava comendo uma porção de bolinho de bacalhau sossegado no barzinho, quando percebi que um casal me encarava pelo 102 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

fato de eu estar comendo os bolinhos com as mãos, sem usar um guardanapo ou um palitinho. Comentavam baixinho e depois voltavam a me observar. Ora, se vou pagar pelos bolinhos, não posso comer da maneira que mais achar conveniente? Como com a mão mesmo e adoro fazer isso! Ainda lambo os dedos em seguida pra aproveitar a gordurinha do azeite e o gostinho do limão. Gostar ou não gostar de mim? Aceitar ou não? Na verdade não fará muito a diferença. O que importa é que para o meu orgulho, só eu sou eu, e sempre serei eu. A sociedade não vai me mudar, me tornando um robô da aceitação coletiva. A ovelha negra recebeu a cor negra para ser diferente do rebanho das ovelhas e se destacar por isso. Identidade, que ninguém vai tirar! Eis a identidade de um sambista, que não perde seu valor! Toca viola, no domingo joga bola, na segunda vai pro emprego, acende vela pro santo e não dispensa a boa hora do jantar! Isso é nossa personalidade! Sejamos exemplos sociais ou sem vergonhas, mas que tenhamos a nossa identidade! É tão bom acordar e olhar no espelho! Nosso modo de olhar é único, com ou sem remela nos olhos! Eu sei que em nenhum lugar do mundo alguém tem um olhar igual ao meu, nem está pensando o mesmo que eu ao me olhar no espelho, a menos que seja tão egocêntrico. Sei que existem muitas pessoas com o meu nome, ou com o mesmo tom moreno da pele, o mesmo corte de cabelo, as mesmas pendências 103 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

de contas atrasadas. Mas por dentro da pele não há outro de mim, isso me deixa muito feliz! As pessoas costumam criticar as roupas que vestimos, costumam criticar a combinação das cores das roupas. Ora, em eras remotas as roupas eram usadas para proteger do frio e esconder as “vergonhas”. Agora são usadas para servirem de objeto de análise das outras pessoas. Ainda mais que hoje em dia ninguém se preocupa em esconder nada e sim mostrar. Isso é muito bom! Em um mundo tão diversificado é importante termos pensamentos diferentes. Mas não vou trocar de roupa não. Gosto de ser espontâneo! Bom, pra falar a verdade quando vou sair pego a roupa que estiver menos amassada e dependendo da roupa, se eu gostar, dou um cheirinho pra ver se está com odor de suor, mesmo se já estiver no cesto. Aposto que todo mundo já fez isso um dia. Meu estilo musical, os lugares que gosto de ir, meu time de futebol do coração, tudo isso são escolhas de vida que me realizam e proporcionam prazer! Gosto de possuir a minha subjetividade e me orgulho que ninguém consiga tirá-la! Eu sou único na sociedade, não há um outro indivíduo totalmente igual a mim. Eu gosto de cantar minhas músicas, de escrever de vez em quando, de paquerar, comer bolinho de bacalhau e camarão ao alho como acompanhamento de uma boa cerveja! Gosto do carnaval do Rio de Janeiro e minha escola do coração é a Estação Primeira de Mangueira! 104 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Eu gosto das paisagens mineiras, das ferrovias, do típico ambiente das cidades do interior, cada uma tão tradicional e com um astral diferente, um clima diferente! Há pessoas que não gostam de viajar, que não gostam de sair, que não gostam de sorrir e nem de amar, que não se emocionam com nada...ao contrário de mim... E se não gosto de você, ou se não gosta de mim, ou se não gostamos daquela outra pessoa. Bom, não dá pra resertar a vida e voltarmos em épocas diferentes. Tampouco o mundo será sempre uma maravilha, a ponto de não nos desgostarmos por alguma coisa. Vamos viver então! Aproveitar da vida o melhor e buscarmos sempre a felicidade! Enquanto procurarmos a nossa felicidade, menos tempo teremos para nos aborrecer com as diferenças alheias. Tenho palitos na mesa, quer pegar um bolinho?

105 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

O galã Quem nunca gostou de estar bonito? Andar pela rua sentindo que as pessoas admiram a sua elegância? Se sentir um astro do cinema, alguém importante? Galã em todos os aspectos da supremacia masculina? Isso ocorre quando o homem comum veste um terno! Mas não essas pessoas que estão acostumadas a usar no dia-a-dia para ir ao trabalho. Falo das pessoas humildes do cotidiano que na maioria das vezes usam mesmo é o bermudão e uma camiseta, chinelo de dedo e um penteado comum, sem gel, e para o trabalho a calça jeans e uma blusa de botão. Numa ocasião especial, uma formatura, um casamento ou uma festa mais requintada, vai lá o indivíduo comum, o que passa por nós na rua invisível todos os dias, como se fosse parte de um 106 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

cenário cinza. Ele veste um terno bem passado e ocorre uma transformação completa no momento em que coloca a gravata no pescoço e percebe no espelho que está usando um terno. Um novo mundo se abre diante dos seus olhos e ele percebe que está irresistível! Comestível! Sedutor! Quando está de terno se torna um galã! Saindo da frente do espelho após passar o gel nos cabelos, nem espera o espelho dizer que não há ninguém mais belo que ele. Caminha pela rua com graça e beleza! Se sentindo uma nova pessoa, um artista de televisão! Bonitão e boa pinta! O bom da boca! Nessa hora é necessário manter a classe afinal todos os holofotes estão lhe vendo, mulheres admiradas e homens invejando a sua condição de galã. Ajeita a lapela ao passar pelas mulheres, ou então finge arrumar os cabelos, passando os dedos só nas arestas para não atrapalhar o gel. Ou então franzindo a testa finge se preocupar com algo importante, talvez o início de uma grande guerra ou um compromisso com os altos investidores em ações. O homem se sentir bonito e perceber que as pessoas o notam é mais importante que se alimentar ou ter saúde! A condição privilegiada de galã no ambiente social em que está inserido é mais prazerosa que estar com uma mulher na intimidade no momento do clímax! O reconhecimento é o máximo da realização do homem! Notar um olhar de admiração do público provoca um êxtase interior que dá até calafrios ou 107 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

uma náusea, um desejo até de não ser tão notado naquele momento que logo vira uma timidez. Chegar de carro num lugar e ser notado imediatamente devido à condição de galã, ao sair os olhares o seguindo...por dentro uma realização que não dá para descrever em palavras. Eu sei que existem homens que não sabem o que uma mulher diz pra um galã de verdade, para um conquistador nato, usando um terno alinhado e caminhando pela rua como se até mesmo o sol brilhasse só em si, tal qual a luz de um palco a destacar o ator. Eu sei! Mas quando se tira o terno, parece que um peso enorme saiu do corpo! Uma responsabilidade imensa de ter que se comportar estilisticamente correto e não poder fazer o que usualmente fazemos no dia-a-dia como enfiar o dedo no nariz, coçar o saco ou soltar um pum ou um arroto. Galã não! Galã deve ser um homem garboso e sem vício! Uma imagem sincera da jovialidade e virilidade masculina aliada a uma inteligência sagaz, um sorriso sem motivo apenas por ser galã e um olhar que faz declinar as mulheres. O galã deve ser uma pessoa decisiva, imediata! Solucionador da solidão ou do tédio do cotidiano de alguma mulher entretida em seus afazeres, e que logo se declina à imagem ostensiva do garanhão. Isso tudo por causa da necessidade de realização de cada homem no seio da sociedade. O ego interior, o desejo de ser importante, de chegar a algum local e ser notado com olhares de desejo, mesmo que isso tenha um custo alto de não poder fazer qualquer movimento brusco ou 108 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

inconveniente que será contestado pelo público eleitor da condição de galã perfeito. Mas é sempre bom estar galã! Ah o galã! Tão bem notado e tão sem noção!

109 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Este livro foi impresso pela Gráfica e Editora o Lutador O texto foi composto na fonte Gill Sans MT e os títulos na fonte Times New Roman, em corpo 12. A impressão foi realizada em papel pólen rustic 85g.

110 Vitor Moreira, 2013


EMOÇÃO – “Causos” do cotidiano

Escrever a obra Emoção – “Causos” do Cotidiano me surpreendeu porque nela eu deixei de lado muitas formalidades com as quais sempre convivi ao criar e escrevi livremente, 111 Vitor Moreira, 2013


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