Renascendo das cinzas - A Democracia é do Povo

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VITOR MOREIRA

Belo Horizonte - 2014

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Copyright@2014 by Vitor Moreira Email para contato: vitormoreira@vitormoreira.com.br Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios, sem a permissão, por escrito, do autor. Ophicina de Arte & Prosa Editora: Rachel Kopit Cunha www.ophicinadearteprosa-kopitpoetta.blogspot.com arte.prosa@gmail.com 31-9128-7441 Capa: Miriam Carla Alves - Vitor Moreira Diagramação: Miriam Carla Alves Revisão: Rachel Kopit Cunha Ilustração: Petrede Fotos da capa: Fotos das manifestações populares pelo Brasil, em 2013.

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Moreira, Vitor. Renascendo da cinza / Vitor Moreira. – Belo Horizonte: Ophicina de Arte & Prosa, 2014. 160 p. : il. ; 15 x 21 cm. Bibliografia: 140-144 ISBN: 978-85-88750-77-7 1. Processos Mentais/ética 2. Vida 3. Confiança I. Título. II. Petrede. CDD – 22. ed. – 153

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Catalogação-na-fonte - Segemar Oliveira Magalhães CRB/6 1975 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Universo Humano Pintura do próprio artista Vitor Moreira, do ano de 2004, onde, conforme relata, há a expressão de toda a sua criação artística, baseada na unidade do universo interior de cada indivíduo. Entende-se que cada indivíduo é bom ou ruim, tem seus mitos, suas crenças e seu caráter, entretanto, no interior de cada um, há o consenso, onde se nota que todos, independente de qualquer coisa, até mesmo da disposição das suas prioridades de vida (posição dos astros, planetas, cometas) dentro do seu universo pessoal, idealizam um céu de estrelas, luz e mistérios e uma Terra de prazer e realização. O Universo Humano é a base de toda criação artística de Vitor Moreira. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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TENTE OUTRA VEZ (Paulo Coelho/ Raul Seixas)

Veja! Não diga que a canção está perdida Tenha fé em Deus... tenha fé na vida Tente outra vez!... Beba! (Beba!) Pois a água viva ainda tá na fonte (Tente outra vez!) Você tem dois pés para cruzar a ponte Nada acabou! Não! Não! Não!... Oh! Oh! Oh! Oh! Tente! Levante sua mão sedenta E recomece a andar Não pense que a cabeça aguenta se você parar Não! Não! Não! Não! Não! Não!... Há uma voz que canta Uma voz que dança Uma voz que gira (Gira!) Bailando no ar Uh! Uh! Uh!... Queira! (Queira!) Basta ser sincero e desejar profundo Você será capaz de sacudir o mundo Vai! Tente outra vez! Huuum!...

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Tente! (Tente!) E não diga que a vitória está perdida Se é de batalhas que se vive a vida Han! Tente outra vez!...” RENASCENDO DA CINZA - VITOR MOREIRA


SUMÁRIO INTERNAÇÃO ..................................................................... 09 PERSEGUIÇÃO .................................................................... 20 CAMPO MINADO ............................................................... 42 SUICÍDIO .............................................................................. 47 CAMPO DE CONCENTRAÇÃO ....................................... 54 A HORTA ............................................................................. 60 A VENDINHA ..................................................................... 61 O LIXADOR DE CHAVES ................................................. 63 O REJEITADO ..................................................................... 65 O FAZENDEIRO ................................................................. 67 OS BOIS ............................................................................... 69 A VELHA............................................................................. 73 O CORREDOR .................................................................... 74 MÃOS TRÊMULAS ............................................................ 76 A RODINHA DE BRASAS................................................. 79 OS REMÉDIOS DO DESEJO ............................................. 80 A IMAGEM DA ESTRADA ................................................ 82 O FRIO E AS NEBLINAS................................................... 86 OS EMBATES ...................................................................... 88 RENASCENDO DA CINZA - VITOR MOREIRA

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DESENHOS NA PAREDE................................................. 90 AS TROCAS DE OBJETOS ............................................... 94 VISITAS ................................................................................ 96 A ANSIEDADE ................................................................... 99 OS AMORES PROIBIDOS................................................ 103 O TROTE............................................................................ 106 A PEGADINHA DO BONECO ........................................ 109 O PRESENTE .................................................................... 115 LEMBRANÇAS DA ROÇA.............................................. 122 A IGREJINHA .................................................................... 126 VISITA À ALA DOS LOUCOS ........................................ 130 SEGUE A SUA ESTRADA ............................................... 134 O DESPERTAR .................................................................. 141 DESVIANDO O OLHAR .................................................. 147 A DEMOCRACIA É DO POVO ....................................... 152

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INTERNAÇÃO A partir desse momento, não admito mais falar com o senhor. Não sou um cachorro para ser tratado dessa maneira e exijo respeito da sua parte. Querem que eu vá à força, como se eu fosse um produto do sistema, um androide programado para apenas cumprir ordens, sem ter vontade própria. O que está acontecendo não é por minha vontade. Tenho o direito de escolher o que é melhor pra mim. – Acalme-se, senhor! – disse uma mulher que acompanhava um enfermo no ambulatório do hospital. – Que acalmar o quê? Manda que ele chame lá os vinte que falou que vai chamar pra me segurar, já que ele sozinho não tem coragem. Não sou homem de receber uma ameaça dessas e ficar calado. Que ele volte e cumpra a ameaça que fez, estou esperando. Não aprendi a ser medroso e vim parar aqui justamente por causa disso. Eu sei que tenho direitos, sei disso, e mesmo que tenha de ir até as últimas consequências para tê-los respeitados, tenham a certeza de que farei isso sim, às custas de muito sofrimento, mas nada muda o meu caráter. – Eu entendo, senhor, mas é necessário – replicou a enfermeira. – Eu vou aguardar em minha sala – disse o médico. Esse aí é insubordinado realmente, como andam comentando lá na repartição onde trabalha. Já veio com a fama e agora demonstra valentia perante um profissional com curso superior. – Está vendo, senhor? Tudo isso poderia ter sido evitado se tivesse cooperado. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Não tenho medo dele. Que enfie o seu diploma e sua arrogância onde melhor se encaixar. Aliás, hoje acordei sem medo de ninguém porque oquehavia para me prejudicar já se esgotou. Já estou cansado de tantas perseguições, de tantas arbitrariedades cometidas contra a mim. Um sistema que não mede as consequências do que fazem os seus representantes, que rasgam a cada manhã a Constituição Federal e limpam a boca com ela ao terminar de tomar o café sujo e apodrecido que lhes mata a fome. Hoje mesmo quero dar cabo da minha vida. – Então, pelo menos tome o remédio e não será necessário tomar a injeção que o médico receitou. – Você me garante que isso não me fará dormir? Não posso ser internado. Em casa há os meus animais para eu cuidar. Tenho também que acionar a justiça contra o gerente da repartição onde trabalho. Se eu não for até a minha casa cuidar dos animais e não for até o juiz denunciar tudo que está acontecendo comigo e com outros funcionários, não haverá outra pessoa que possa fazê-lo por mim. – Pode ficar tranquilo, senhor. Isso é apenas um calmante que irá ajudá-lo a relaxar um pouco. O senhor passou por momentos de grande abalo físico e mental e precisa de ajuda! Tomei então o medicamento receitado, acho que era um clonazepan, caindo no sono logo em seguida. Deitado numa cama de hospital, tinha ao pé a mochila e os sapatos que foram tirados pela enfermeira. A roupa estava amassada e nos braços havia fina camada de suor, ainda brilhante. O desodorante nos sovacos já nem era notado devido à quantidade de suor já impregnado na camisa. Um bom tempo depois fui acordado pelo Genaro, ex-assessor do deputado Juarez. Ele ficou sabendo da notícia por meio de uma ligação que fizeram do hospital para os números mais frequentes de contato do celular. Queriam alguém próximo que pudesse acompanhar o meu caso. Tentavam localizar algum parente para decidir sobre a internação. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Ora, o que faz aqui? – Calma! Procure se acalmar. Não precisa se levantar. . – Que dia é hoje? Há quanto tempo estou aqui? – Esfria! Só se passaram algumas horas desde que chegou. – O que aconteceu? – Procure não pensar nisso agora. Tudo está sendo resolvido da melhor forma. – Preciso ir embora para minha casa. Tenho que cuidar dos meus animais. Não confio em ninguém aqui. São todos iguais! Todos exercendo suas funções e incapazes de decidir alguma coisa. – Olha, é melhor você se acalmar porque já está decidida sua internação. Não há nada que possa ser feito no momento. – Mas eu vim aqui apenas para me consultar. Vim de livre e espontânea vontade e pedi pra falar com o psicólogo ou psiquiatra. Como esse povo ousa querer determinar o rumo da vida das pessoas assim como se fossem meros objetos? Acham que não temos o direito de escolher o que é melhor para nós? Só querem saber dos interesses das funções e cargos que exercem. – Olha, procure se acalmar. Sobre os seus animais, tente encontrar alguém que possa tomar conta deles até seu retorno. É por pouco tempo. Tente cooperar porque nós sabemos o que o sistema faz. Testam-nos a todo instante e procuram sempre nos deixar em situação desfavorável! Quem está no topo procura se proteger de tudo, até mesmo da própria lei. Você terá que ficar internado, isso é fato! Mas eu irei fazer o possível para te ajudar, tenha certeza disso. – Onde está meu celular? – Está com o médico. Aliás, ele relatou em súmula tudo o que aconteceu. Como você foi capaz de ameaçá-lo? – Foi ele quem me ameaçou. Disse que chamaria vinte seguranças para me segurar enquanto me aplicaria uma injeção para que eu ficasse sedado. Ele quer me internar à força e eu não quero ficar numa clínica de loucos. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Não há nada disso relatado na súmula de sua internação. Consta que você estava nervoso e foi necessário que ele se retirasse daqui com medo de uma possível agressão. Isso pode trazer problemas para você. – É mentira. Havia várias pessoas perto e todas o viram dizer que iria chamar os seguranças para me segurar. – Escute: ele é o chefe desse pessoal. Acha mesmo que seriam testemunhas contra o próprio chefe e depois serem perseguidas até se verem obrigadas a sair do hospital? Vai por mim. Não se precipite. Você está num ninho de cobras! Cuidado onde pisa! Isso é o sistema. Ao perceber o que Genaro falava, senti um nojo pela sociedade brasileira por ser tão omissa, tão passiva e permitir que o que deveria ser democracia se tornasse imperialismo colono, onde os poucos que gerenciam os vários impérios determinam tudo conforme seu bel-prazer, como se fossem os donos, e não executores da regra. O médico mandou uma enfermeira trazer e aplicar o medicamento. Estava esperando algum familiar comparecer, mas no seu celular não havia telefone de parentes próximos. Estava repleto de números de defensores do meio ambiente, estudantes, empresas e órgãos, mas não havia muitos números de amigos ou familiares. Então, após me ligarem e já imaginando a gravidade dos fatos, tive de colaborar e vir aqui falar contigo. Sabemos que tudo está sendo muito arbitrário, mas não perca a razão pela emoção do momento. – Eu saio daqui preso, demitido, ou até mesmo amarrado; por minha vontade, não haverá internação. Não podem me obrigar. Afinal, vim aqui me tratar de livre e espontânea vontade e agora, por causa de uma mentira desse fulano, querem me sedar e me levar para um lugar desconhecido. – Tente entender... Que entender o quê? – disse aos gritos. Logo você vem falar isso comigo, Genaro? Você acaba de ser vítima de uma mulher que o perseguia lá no gabinete até ser exonerado. Como uma vítima rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


em potencial do sistema, você me pede para entender esse abuso que está sendo feito contra mim? Eu não sou louco, só estou com depressão. – A situação não é tão simples. Você se lembra de alguma coisa? De como chegou ao hospital e o que fez antes disso? Lembro-me de estar conversando com uma médica. Ela me receitou um calmante lá no pronto-atendimento e depois eu estava aqui nesse ambulatório. Esse outro médico apareceu na sala querendo me sedar sem ao menos perguntar o que eu estava sentindo ou de onde vim. Nada disso. Chegou falando em sedativo como se eu fosse objeto de uma experiência de laboratório, um animal arredio! – Mas, e antes disso? Tente se lembrar de alguma coisa. – Não sei. Estou com a cabeça doendo muito! Não sei o que aconteceu. Alguém falou alguma coisa? – Você chegou carregado por uma pessoa aqui no hospital com uma expressão de choque no rosto. Muito abatido, se queixando de uma forte batida com a cabeça e, como seu plano de saúde é desse hospital. você conseguiu um atendimento mais efetivo! – O que está dizendo, Genaro? Não está vendo a arbitrariedade que estão cometendo contra mim? Atendimento mais efetivo? Ora, o que é isso? Como se já não bastasse ser tão perseguido lá naquele lugar, ainda sou perseguido onde vim procurar ajuda? – Conte-me o que houve por último. Talvez eu possa ajudar. – A gota d’água foi minha avaliação de produção desse ano: uma nota baixa que irá interferir em meu salário. A justificativa foi que eu não fui trabalhar no dia 25 de fevereiro, sendo que nessa data eu estava de férias e, ainda por cima, operado por causa daquele assalto no início do ano. Não sei se você se lembra do assalto. – Claro que me lembro! – Eu estava com o braço imobilizado. Ele inventou que faltei ao serviço para me prejudicar. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Que filho da mãe! Como teve coragem de fazer isso? – Ah, Genaro, você sabe como é isso, como tudo funciona: se não é do time da arbitrariedade acaba virando alvo dela. Não vê o seu caso? Você sempre foi tão eficiente em seu serviço! Sempre tão prestativo e, pelo que eu sei, livre de qualquer mancha em seu caráter. De repente, é exonerado durante as férias, e nem foi pelo e sim pela chefe do gabinete. Você está mais desamparado do que eu! – São coisas da vida... – A situação do assalto também me deixou muito abalado! Esse segundo assalto de anteontem. A polícia não conseguiu prender os dois ladrões e estou sem documento algum. No serviço, não consegui alguns dias de licença, embora estivesse abatido demais para trabalhar. É que o gerente do bloco intermediário ordenou a todos os gerentes de repartição que não liberassem os funcionários, nem, por qualquer motivo os dispensassem do serviço. Querem retomar a produção que foi abalada pela onda crescente de insatisfação não declarada dos funcionários. – Tem coisas que realmente nos deixam com ódio do sistema! Mas eu sei me controlar. Tente se lembrar do que aconteceu hoje pela manhã, pois ninguém sabe como veio parar aqui e o que aconteceu antes. Só você pode dizer por que havia sangue em sua roupa. – Eu não matei ninguém, eu... – Calma. Não se desespere! O sangue era seu mesmo. Havia um corte e estancaram o sangue. Você deve ter caído e batido com a cabeça. – Não consigo me lembrar de nada. Deve ser o efeito do remédio. – O que aconteceu? Desse jeito, você nos mata do coração! Acabou de sair na televisão! Uma pessoa filmou tudo. – disse um colega de serviço ao chegar ao ambulatório, sendo rapidamente puxado pelo braço pela enfermeira que dava recomendações. – O que vocês dois estão fazendo aqui, Seixas? rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Ordens do gerente Lino. Viemos ver como você estava e acompanhar sua viagem até a clínica onde ficará internado, em outra cidade. – Não vou ficar internado em nenhuma clínica. Estou um pouco nervoso é com toda essa situação que estão criando. – Olha: vou ter que ir embora, mas conte comigo para o que precisar. Deixarei você com os seus conhecidos, mas lembrese do que eu disse. Algo será feito enquanto estiver lá, não se preocupe. – Tudo bem, Genaro! Obrigado por ter vindo! Um olhar que parecia revelar muitos segredos ficou obscuro no ambiente. E assim o Genaro foi até o médico e conversaram sobre coisas que eu não conseguia ouvir. Talvez Genaro o estivesse pressionando para que medisse as consequências do que ocorrera naquele ambulatório antes da sua chegada. Ele sabia que havia exageros no relatório. Pude ver que o médico ficou pensativo e, depois de um tempo, o Genaro foi embora carregando a sua pasta de documentos. Levava uma expressão de descontentamento em seu olhar e, antes de sair, olhou para trás, fitando o médico. O gerente Lino era o responsável pela repartição onde eu estava trabalhando e se encontrava num congresso onde se discutiam temas alusivos ao segmento da empresa. Era uma pessoa jovem, que eu não conhecia muito bem, pois estava na nova repartição há menos de dois meses, após ser viabilizada a minha troca de repartição pelo Genaro e pela assessoria do deputado Juarez, que pressionou o gerente do bloco intermediário a realizar a troca, ou de outro modo seria adotada a melhor condição legal para representação dos meus direitos trabalhistas, o que causaria um desconforto muito grande à imagem da empresa. Enquanto o Seixas e o Jarbas conversavam com a enfermeira, fui sentindo um sono pesado e, enquanto digitava mensagens de socorro no celular para que alguém chamasse a imprensa e viesse rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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me ajudar a me livrar das garras dessas pessoas, cada vez mais sentia os olhos se fechando. Houve tempo suficiente para enviar algumas mensagens avisando sobre os animais, para que alguém viesse até aqui pegar a chave de minha casa e ir até lá colocar ração. Uma delas endereçada a Marluce, com quem eu estava saindo há algumas semanas, apenas nos conhecendo até então, sem maior intimidade. Falei que eles precisariam de alimento. Em outra, eu comentava o que o médico havia feito e pedia para avisarem à mídia ou à polícia. Fui sentindo sensações estranhas! Uma palpitação no coração e dificuldade de coordenar palavras. Uma dor forte na cabeça e no peito, como se tivesse sido atingido por uma barra de ferro. A lucidez foi diminuindo e então resolvi permanecer de pé para não dormir novamente, pois ali tudo girava contra mim e o passar das horas era tendencioso aos interesses daquelas pessoas que se encontravam no ambulatório do hospital. Caí no chão e o Jarbas ajudou-me a levantar. Eu estava decidido a não aceitar o sedativo nem a ficar internado ali. . Aguardava a chegada da imprensa, caso alguma das mensagens que enviei tivesse surtido efeito. . Os funcionários da clínica ficavam parados, assim como os dois do meu serviço, todos esperando que eu apagasse, que caísse no sono, para decidirem o meu destino. E eu resolvido a permanecer de pé a qualquer custo. Caminhei até o banheiro e, ao urinar, expeli um pouco de sangue. Então, já preocupado com aquela situação, olhei pela janela e vi que estava no segundo andar. Meu coração batia forte e desamparado! Havia uma grade e tentei forçá-la para escapar do hospital, mas foi em vão. Alguma coisa estava acontecendo, mas eu não sabia o que era. Senti que minha vida corria perigo e lutei contra o efeito do medicamento. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Ao olhar meu braço, vi que havia uma marca recente de agulha, mas eu não me lembrava de ter tomado injeção. Devia ter sido aplicada enquanto eu estava dormindo sob o efeito do comprimido que me deram. Percebi, então, que já tinham me dado uma dose de sedativo, mas meu corpo lutava bravamente contra seu efeito. Algo me dizia que eu não poderia cair no sono novamente. Que eu precisava lutar e ser valente. Não me deixar abater pela presunção do sistema, pela arrogância das pessoas que o controlam ou pela maldade e inveja que seus corações carregam. Do lado de fora, estavam aquelas pessoas paradas no ambulatório sem a coragem de chamar os tais seguranças cuja ameaça foi o que me fez odiar estar aqui. E embora por fora estejam todos ali cumprindo a função que lhes foi atribuída, sei que, por dentro, ou estão admirando minha resistência feroz, ou odiando minha pessoa devido aos últimos fatos ocorridos ali no hospital. Quando saí do banheiro, todos os olhares eram apreensivos, aguardando que eu dormisse. Então caí pela segunda vez e, já sentindo dificuldade de me levantar, eis que aplicam em meu braço direito outra dose de medicamento que havia sido receitado pelo médico. Foi a enfermeira que esteve conversando comigo durante todo aquele tempo.. Ao olhar no íntimo dos seus olhos, pude ler até mesmo o que sua alma frágil sentia. Ela torcia por mim e vi que, pelo seu modo de me olhar, se culpava por não ter tido coragem de descumprir a ordem que lhe foi dada, exercendo a sua função com o coração em pedaços ante todo o sofrimento que me via passar. Um frágil grito de dor... Nesse momento, senti o coração disparando e as mãos trêmulas, como se eu fosse o objeto de uma experiência. Desespero! Despreparo emocional! Fatos passando pela minha cabeça e algumas lágrimas rolando do rosto quente queimando como brasas ardentes! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Cenas de monstruosidade passavam diante de meu rosto e eu pensava em várias coisas ao mesmo tempo. Ainda disposto a ficar de pé, fui percebendo que as pessoas ao meu redor foram se transformando em figuras espectrais e se dissolvendo... Esmaeciam como a bruma do horizonte em dia de forte neblina! Ainda consegui perceber que o celular caiu de minha mão. Um dos espectros foi ficando maior em minha direção e, como uma sombra, pegou o celular e o carregou consigo como despojo. Eu tentava pegar o espectro, mas minhas mãos eram pequenas! Eu trazia as mãos para perto do rosto e elas continuavam pequenas. Não conseguia tocar o rosto com elas, pois pareciam estar queimando constantemente como uma brasa eterna. Sons! Muitos sons sem nexo chegavam aos meus ouvidos, turbinados por muitos ecos! Não conseguia entendê-los, pois estavam todos muito carregados! Que cenas horrendas! O que estava acontecendo? Tentava falar e nada saía de minha boca. Somente grunhidos misturados com muita baba, que chegava a escorrer pelo rosto. Podia ver os espectros, mas não conseguia ir até eles, pois o chão era muito macio e, quando eu tentava caminhar, meus pés afundavam. Eu voltava a colocar os pés onde estavam antes, numa parte mais firme. Novamente, tentava me comunicar com aquelas figuras espectrais e não conseguia. Não saíam palavras de minha boca. O que essas figuras queriam comigo? Tudo foi ficando tão estranho! De repente, as figuras começaram a girar e se misturaram, virando uma só coisa e girando ao meu redor com velocidade impressionante! Eu parecia estar olhando para o céu, pois havia um fundo azul na figura do espectro. Depois o céu ficou todo branco e eu não pude ver a rua. Não conseguia ver minhas mãos nem mexer os pés. Continuava ouvindo sons com ecos. Eram dois sons apenas. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Parecia que eu estava num lugar fechado porque o eco batia nas paredes e reverberava como se fosse metal. Havia alguma coisa me impedindo de movimentar os braços e as pernas. Eu podia sentir amarras, mas era difícil sentir os pés e as mãos. Falar também não podia, pois cada vez que tentava a língua não se movia e meus lábios não conseguiam se firmar. Seria uma ambulância? Pensei comigo. Mas não dava para saber. Eu não conseguia mover o rosto. Tentava falar, mas não conseguia produzir nenhum som, nenhum pedido de socorro, nenhum grito de apelo ou de raiva! Nada! Não fazia ideia do tempo em que estava ali, nem conseguia pensar com sobriedade. Estava sedado, lutando contra o efeito devastador de um medicamento que neutralizou todo o meu corpo. Meu rosto não se mexia, e os olhos se abriam com dificuldade, repletos de lágrimas, até que eu não pude mais abri-los, e tudo se apagou. Não mais senti o rosto queimar nem as mãos em brasas. Tudo estava apagado e já não havia lucidez, somente o escuro de uma vida acabada, sem luzes ou brilho capaz de produzir qualquer estímulo que evidenciasse a existência de um ser.

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PERSEGUIÇÃO Anos atrás, um novo funcionário chegou à repartição. Ele vinha de outra, do bloco intermediário, e trazia ideais de crescimento e maturidade intelectual que provocavam inveja! Era baixo, de pele clara, usava sempre um par de óculos de armação fina e tinha o semblante ora sério e compenetrado, quando estava pensando, ora alegre e descontraído, quando conversava com todos. Sempre carregava algum livro debaixo do braço, alguns que, de tão grossos, desanimavam a leitura de quem observava. Tinha sido transferido após se envolver em problemas com um dos gerentes da antiga repartição, o Clóvis, devido ao fato de esse o estar perseguindo moralmente por ter se negado a providenciar documentos tendenciosos que objetivavam desconto no salário de funcionário que se envolveu numa discussão na rua, quando estava de folga do serviço. Eram os apensos, documentos produzidos no âmbito do bloco intermediário, que provocavam sanções em desfavor de quem era seu alvo, após ser rigorosamente verificado o seu teor, numa espécie de processo interno da repartição, com provas reais que autorizassem a chefia direta e a intermediária a apenar o funcionário. Esse documento era sempre elaborado por um funcionário com status de chefia e mais tempo de serviço que aquele que seria apenado conforme os fatos denunciados, tal como ocorre nas repartições públicas e em empresas privadas dotadas de algum tipo de regimento interno ou hierarquia.

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Contouquenãolhe parecialícitojulgar os atosdeumfuncionário em seu horário de folga, pois qualquer coisa que fizesse fora do bloco dizia respeito a sua vida particular e não cabia interferência ou investigação. Dizia que todos têm direito a intimidade e vida pessoal, independente do que fizessem. Então o Clóvis, após esse desgosto e sentimento de que seu poder doutrinador fora subjugado, passou a cobrar excessivamente o funcionário quanto a detalhes do serviço, realizando constantes averiguações, procurando sempre um motivo para provocá-lo moralmente e obter sucesso em afastá-lo da empresa ou rebaixá-lo de setor, pois de maneira alguma aceitava ser contrariado em seus interesses no âmbito da antiga repartição. Isso tudo ocorreu lá no bairro Pratos, onde fica a repartição de onde veio. Contou que o Silveira era um bom funcionário, e se em seu horário de trabalho produzia o que a empresa desejava, se era irrepreensível na função que exercia, em hipótese alguma, a empresa poderia interferir em sua vida particular. O que acontecia fora do ambiente de trabalho somente dizia respeito ao homem e não ao funcionário. Ao se expressar com sabedoria, falou que as pessoas têm o direito de serem cretinas em sua vida particular, e que ninguém poderia interferir no sentimento alheio do ser humano, exceto se isso trouxesse prejuízos ao ambiente de trabalho. Rapidamente, o excêntrico novato conseguiu conquistar espaço perante o público interno da repartição e suas ideias, seu modo de se expressar e sua generosidade se destacavam por agradar pela eficiência, confiança e simplicidade de execução. Um pensador! Amante das artes, da cultura e das ciências! Lia muitos livros, dentre eles os mais aclamados da literatura nacional. Lembro-me da vez em que fez uma citação à obra Senhora, de José Alencar, tendo se referido ao livro como uma busca da dignidade vendida, e que o amor, apesar de ser um sentimento bom, possui tanto ou até mais vingança que o próprio ódio. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Ele procurava se inteirar de todos os assuntos sociais do momento, sempre lendo jornais e revistas. Era figura presente nos teatros, museus e em eventos culturais na cidade. Admirava a natureza e, por isso, participava de vários encontros com ambientalistas, a fim de discutir os meios de incutir no poder público maior responsabilidade na proteção do meio ambiente, com a diminuição dos casos de maus tratos a animais, maior controle sobre os carroceiros da cidade que exploravam demasiadamente os seus cavalos, maior agilidade para apurar denúncias de desmatamento e outros muitos assuntos nos quais fazia questão de se envolver ativamente, pelo interesse na causa. Reunia-se com estudantes e intelectuais e participava de eventos grevistas, apoiando quem estivesse realizando o evento, se esse fosse justo. O fato é que não aceitava injustiça nem aceitaria vender o seu caráter ou a sua honra para satisfazer o desejo pessoal de outra pessoa, fosse ela quem fosse. Aquele lugar, repleto de falsos elogios às ações que apenas satisfaziam interesse da gerência, era uma casa de marimbondos! Era necessário saber onde pisar para não encontrar problemas com as ferroadas, e o pensador sabia disso. Na verdade, todos sabiam, e o medo do sistema fazia com que se escondessem em alguma sala, quando passava algum gerente pelos corredores. Dessa forma, o gerente da repartição não poderia aceitar um pensador influente entre os funcionários de baixo escalão, pois seu conhecimento e sua capacidade de liderar poderiam reduzir o sentimento de imperialismo, quase santidade, que rondava o círculo superior, cada vez mais em ascensão, enquanto a gama dos mais subordinados do núcleo dos trabalhadores era, mais e mais, submetida à afirmação de poder e escravização moral impostas. Um sistema de blindagem protegia o escalão superior. Ali se fazia de tudo, de assédio moral e sexual a funcionárias até a restrição de direitos conferidos em lei aos funcionários. Tudo era arbitrário,

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e nenhuma falha, crime ou abuso de poder era averiguada, pois havia uma poderosa rede de proteção aos integrantes do círculo de gerentes. A repartição funcionava numa construção muito antiga, um prédio de somente um andar contendo três corredores dispostos de forma triangular. A sala da gerência ficava ao centro e na área externa havia um vasto estacionamento para cerca de cem veículos. Contornava o complexo uma pequena mata, com algumas árvores de médio e muitas de grande porte. Todas as manhãs, ele era visto colocando sementes para os pardais numa vasilha grande de cor esverdeada, que ficava perto do muro e que antes ficava sem ração e não recebia visitas dos passarinhos. Trazia frutas para as maritacas, as quais, após um tempo recebendo tais guloseimas, já não faziam cerimônia e, ao vê-lo chegando com a vasilha repleta de morangos, laranjas, bananas e amendoins, vinham até sua mão para pegar as frutas. Por várias vezes repousavam em seu ombro com afinidade e confiança, dez, vinte, talvez trinta maritacas... o que enchia os olhos dos demais funcionários ao admirarem a beleza daquela cena tão incomum! Ele as pegava entre os dedos e coçava suas cabeças, como se, desde filhotes, tivessem sido amansadas por seu dono. Regava as plantas e as árvores em dias mais secos, antes de começar o seu trabalho, e, depois de um tempo, a natureza pareceu agradecer tal carinho fazendo brotar folhas que, de tão verdes, ofuscavam a vista, e cuja sombra era fresca e acolhedora! O prédio parecia ser um hospital desativado! A pintura era velha na parte externa, evidenciando que não havia muita preocupação com a imagem do lugar... Na primeira vez em que se cruzaram, ele havia acabado de dar comida aos pássaros e suas mãos estavam ainda sujas de frutas que as maritacas descascavam, prendendo-as entre as patas e seu braço. Sua camisa estava amassada por causa das unhas das maritacas e rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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seus cabelos despenteados, pois pousavam em sua cabeça para ter um lugar privilegiado na atenção daquele homem. Foi no corredor daquele lugar, e o gerente local fitou o seu obstáculo com ódio e surpresa! Seu modo garboso e inquisitivo de andar foi surpreendido por uma visão ameaçadora! Algo que não era usual, pois não via nele o olhar assustado com que os outros funcionários o olhavam. Um ente maligno que não se sujeitaria a qualquer imposição que não fosse justa e baseada na lei. Uma figura ameaçadora, à visão do gerente, oriunda do próprio inferno e esculpida no fogo do capeta, que sabia dos seis direitos e olhava nos olhos sem abaixar a cabeça e demonstrar submissão humana, tal qual um cão ao seu dono! Uma aura que pairava sobre um corpo sinistro, capaz de se opor ao sistema se a sua honra e seus princípios assim desejassem! Envergonhando o rosto de quem é iníquo e se deliciando com o resplandecer da constitucionalidade! Ele viu imediatamente a necessidade de reduzir o brilho daquele ente diferenciado que se tornaria uma ameaça à sua autoafirmação de poder e de imposição de uma imagem de adoração santa naquele ambiente. Então foram cassados quinze dias de férias que ele iria tirar no meio daquele ano para providenciar ocasamentocomsua noiva. Para executar a tarefa, selecionou um funcionário de sua total lealdade, o gerente de setor Alisson, que mandou suspender suas férias, alegando diversos fatores não consolidados, como a necessidade de aprender um serviço que o novato já dominava melhor que muitos outros funcionários que passaram pelo setor. Na verdade, não haviamotivo para cassar essas férias. Era apenas a necessidade de mostrar quem tinha poder naquele ambiente, que suas ações eram pautadas em seu interesse e que sua visão pessoal deveria sempre prevalecer.. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O gerente respirou aliviado, acreditando que sua arbitrariedade iria lapidar o olhar constitucionalista daquele rapaz, e os problemas de uma liderança popular estariam encerrados de uma vez por todas. O fato provocou um desagrado muito grande em sua noiva que já vinha demonstrando descontentamento por morar muito longe e iniciou-se um ciúme que em poucos meses iria colocar fim ao relacionamento. Embora triste num primeiro momento, continuou realizando o seu trabalho, contudo sem se prestar à fidelidade cega, antes disso, possuindo uma isenção intelectual e moral que às vezes conflitava com o que era imposto pela gerência com arbitrariedade e truculência. Não aceitava irregularidades. Era uma mancha em seu caráter encobrir a ilegalidade impositiva. Não se sujeitava a se prostrar em terra e adorar o falso deus que o incitava a tal ato de submissão como única forma de obter privilégios ou até mesmo condições de trabalho dignas. Então, meses mais tarde, o chefe de setor Alisson determinou que ele fizesse os apensos de chegada ao serviço com atraso de quinze minutos de um funcionário muito amigo de todos, o Paulo Pirre, para que isso fosse imediatamente descontado em seu salário. Mas todos sabiam que houve o atraso devido a um acidente de trânsito, e que a polícia local tentava, a todo custo, providenciar um guincho para retirar um caminhão tombado. Pirre ligou para o trabalho avisando, e isso para o novato era uma justificativa plausível e provada, afinal a notícia havia saído até no jornal da manhã naquele dia, não sei se você se lembra desse fato. – Claro que me lembro! No horário do almoço também passou no jornal naquela televisão antiga que ficava no canto da cantina, pendurada numa armação. – Exatamente! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Então, foram confeccionados os apensos, mas com a justificação do atraso por escrito e assinada pelo novato, e que não haveria motivos para a redução do salário. A notícia se espalhou na empresa e muitos funcionários admiraram a nobreza de espírito do colega em não prejudicar injustamente o que se atrasou. Paulo Pirre, que tinha família e dependia do seu salário mais do que qualquer outro funcionário da empresa, veio agradecer pessoalmente, dizendo que nunca havia recebido um gesto de tanto profissionalismo naquela repartição, e soube reconhecer um grande espírito de liderança naquele profissional. Parece que todos estavam tão acostumados ao sistema imperial, impositivo e arbitrário da gerência, que algo diferente que tivesse respaldo legal era uma novidade a se comentar. O ódio iminente do chefe Alisson se fez demonstrar mais abertamente quando, após esse incidente, mudou o novato de setor, colocando-o para trabalhar diretamente com o público externo da repartição. Masoquehaviasidoprojetadoparatrazertranstornosaonovato, tornou-se sua maior fonte de influência! O gerente imaginou que ele teria problemas de relacionamento com o público, por ser autista. Idealizou que da sua dificuldade de falar resultaria um desastre ao trabalho e haveria como retroceder à condição funcional de novato. Ele não falava muito no interior da empresa. Chegava, assumia a função e se preocupava muito em terminar o serviço, não sendo visto em conversas pelo corredor. Contudo, não sabiam de sua condição social, já inserido em ambiente de contato frequente com artistas, escritores, filósofos, ambientalistas e políticos, aos quais se ligava em busca da consolidação de seus ideais e para conciliar com outros pensadores o exercício cada vez mais frequente da cidadania, cobrando do Poder Público a execução de obras destinadas à proteção do meio ambiente e à melhoria da qualidade de vida da população. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Trazia propostas inovadoras com soluções inteligentes e de fácil aplicação, as quais agradavam justamente por isso! Ele não falava muito no serviço, aos olhos da gerência, mas era uma pessoa de eloquência admirável! O público passou a gostar da sua presença, cada vez mais constante nas rodas da sociedade, onde recebia convites para festas e eventos de grande importância, deixando cada vez mais apagado o brilho do gerente. E este, inutilmente, tentava reduzir no novato o desejo de trabalhar, ordenando ao Alisson que, de tempo em tempo, fossem feitos apensos contra qualquer ato que fizesse, mesmo que não fosse verdade, só para dar-lhe o desprazer de ter que se explicar. Havia algo subentendido no ar sobre quem fizesse um bom apenso em desfavor dele, e se este chegasse à punição, seria bem visto aos olhos da chefia. Esse clima pairou entre alguns dos que eram leais à chefia da repartição, principalmente o Alisson, mas havia também aqueles que não tinham ânimo para prejudicar o novato, pois viam nele uma grande liderança e alguém que estava na repartição para executar um trabalho de qualidade cada vez melhor! O Cris era assim. Um funcionário com muitos anos de serviço e experiente sobre os assuntos da repartição. Cris tinha sempre bons conselhos sobre prudência e juízo, era quase um advogado! Mas sempre esbarrava no fato de não ser o gerente da repartição, antes de tudo subordinado às ordens do Wladmir. Embora não concordasse com muitas ordens, seguia a todas, procurando exercer sempre uma influência sobre as decisões finais da gerência, pois havia sido funcionário na empresa durante toda a sua vida e sabia das consequências nocivas em se desagradar o público interno. E foi assim que um dia um funcionário efetivo na repartição, o James, apresentou um apenso contra o novato, alegando que este deixou de realizar seu serviço com retidão, ao contrário, se esquivando de produzir algumas planilhas de sua conferência, rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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referentes a balanço do período de trabalho da Semana Santa, que resultava em alteração da produção de todo o bloco intermediário. Mais que isso, fez outro apenso contra o Paulo Pirre, alegando que ele havia saído do seu local de trabalho sem permissão. Na verdade, o James sabia que Paulo estava sob supervisão do novato, e que ele havia autorizado que fosse até uma vendinha próxima ao prédio para comprar lanche para todos os funcionários do setor, frutas, pão, leite, amendoins que o novato adorava, e queijo. Ao pedir auxílio ao novato, este o defendeu abertamente, citando que estava na empresa para cumprir a rotina de trabalho, para executar o exercício da função e que Paulo estava sob suas ordens. O que seria uma mera formalidade da repartição se tornou um problema, haja vista que no dia relativo às planilhas o novato não estava de serviço, e tendo comparecido para trabalhar no dia seguinte já não estavam lá na saleta de reuniões os documentos para confecção das planilhas. Dessa forma, não ficou sabendo que deveria realizar tal labor. Contudo, durante a apuração, o Alisson desconsiderou qualquer prova que o novato apresentara, como a sua jornada impressa de trabalho e o amparo constitucional de que estava sendo desrespeitado, onde sugeria que nada fosse adotado de providência, devido a não estar ciente do trabalho a ser realizado. Essa foi depois de várias tentativas frustradas, a primeira vez que em público, foram executados os apensos contra um funcionário que conseguiu provar que o apenso era irregular, mas a gerência queria impor sua condição de soberania de qualquer forma, nem que para isso o Wladmir precisasse rasgar a Constituição Federal ao meio e fazer a sua própria lei punitiva, e foi o que fez. Em outro embate, o novato produziu um documento ao antigo gerente intermediário, que era uma pessoa muito aprazível e do agrado de todos os funcionários, o senhor Alvarez, que chegou a rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


ficar na gerência da repartição na época em questão, antes de ser promovido. No documento, relatava inúmeras falhas na administração e destinação de materiais que eram guardados sem nenhum cuidado numa sala de reuniões, o que estavam provocando mofo, sujeira e o risco do aparecimento de ratos, baratas e escorpiões no interior do prédio. A sala ficava no centro do prédio, entre o corredor da sala da gerência, a saleta de reuniões e o almoxarifado. Realmente ali havia muito material orgânico provocando sujeira, mofo, produtos químicos e o risco a todos os funcionários do lugar. Havia restos de comida e até materiais de fácil combustão espalhados pelo chão. O cheiro do lugar era ruim e o chão estava imundo! Havia teias de aranha, baratas, pão mofado, produtos de limpeza, papéis e livros jogados sobre mesas e cadeiras. E embora a ideia apresentada para a solução do problema tenha sido acatada imediatamente pela simplicidade e eficácia pelo senhor Alvarez que estava como gerente interino, o gerente da repartição, Wladmir, não ficou contente, pois a manutenção daqueles materiais naquela pequena sala era algo que interessava a um dos seus homens de confiança, justamente o Alisson, pois se esquivaria assim de ter que providenciar local adequado para a guarda e destinação dos materiais orgânicos que eram ali depositados. Com isso, determinou que fosse proibida a entrada do novato naquela sala, ou que se inteirasse dos assuntos relacionados a materiais, impedindo assim que fiscalizasse se não havia nenhuma outra irregularidade que comprometesse a saúde e o bem estar de todos. Havia a iminência de uma promoção de cargos naquele ano pelo gerente geral da empresa, devido à abertura de novas vagas. O gerente local da repartição, Wladmir, se empenhou para que o novato não viesse a ser promovido, chegando a externar isso a um de seus homens de maior confiança, citando ser do interesse rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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da gerência que o funcionário não fosse promovido senão exerceria uma influência negativa à visão da gerência entre os demais funcionários. E de fato o excesso de confiança naquele funcionário foi um duro golpe, pois foi justamente quem o traiu, contando a notícia a outros funcionários e logo chegando ao conhecimento de todos. Carlos era namorado de outra funcionária da repartição, Valéria. Tinha um bom conhecimento de leis, e sabia que ali naquela repartição estavam ocorrendo muitas arbitrariedades. Quando o desejo do gerente foi externado, abandonou de si qualquer lealdade que possuía ao chefe e se desviou do caminho de auxiliá-lo a continuar com a execução de seus atos de excessiva nocividade em relação aos funcionários do lugar. E Carlos criou coragem para deixar perceber que já não era leal ao regime autoritário que se instalou na repartição. Wladmir determinou então que o gerente direto Alisson fizesse contra o novato uma avaliação de eficiência ruim, mesmo que para isso fosse necessário mentir nas informações. Isso o colocaria num patamar mais baixo do que os demais que se candidataram àquela promoção. O que ocorre é que o gerente geral não conhecia pessoalmente todos os funcionários da empresa, pois eram milhares. O que era relatado pelos gerentes, era acatado pelo gerente geral, entendendo esse que os seus homens de confiança seriam leais e justos em relação aos seus subordinados, assim com era com eles em todos os aspectos. O desejo do gerente Wladmir de prejudicar o novato já era do conhecimento de toda a repartição, pelo que foi exposto pelo Carlos no vestiário. Aliás, a avaliação foi tão ruim e com teor tão tendencioso em relação à produção profissional do novato, que provocou comentários nos demais funcionários até das outras repartições que compunham o bloco. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Foi se queixar ao gerente intermediário, o senhor Tarcísio, que o aconselhou a procurar trabalhar de acordo com o que o gerente Wladmir queria ou então teria problemas naquele lugar. Tarcísio era um homem de idade bem avançada, conivente com todos os atos de abusoe restrição de direitos cometidos pelos demais gerentes de repartição na composição do bloco intermediário. Só o que lhe interessava era produção constante, embora quem produzisse estivesse descontente. Estava para se aposentar e já não tinha interesse em tomar partido de nenhuma causa trazida pelos funcionários de alguma repartição. Mas por educação sempre recebia os funcionários que o procuravam. No vestiário alguns colegas de trabalho o aconselhavam a tentar mudar de repartição, conversando novamente com o senhor Tarcísio, pois era claro que estava sendo perseguido pela gerência e seus homens de confiança. E foi o que fez, procurando melhorar as condições de trabalho procurou um interessado em trocar de lugar em outra repartição, levando os nomes pessoalmente ao gerente Tarcísio, que o atendeu com cordialidade e disse que iria providenciar que fosse feita a troca, porém o gerente Wladmir negou, alegando que não poderia dispor de seu funcionário mais experiente no serviço e ceder vaga ao que o que viria em seu lugar. Até mesmo os homens que compunham o círculo superior estranharam a negativa do Wladmir, contudo eram submissos demais para perguntar. Não queriam questionar uma visão de gerência daquele que por conveniência ou passividade admiravam como a um deus. Meses depois, um dos homens de confiança do gerente acusou o novato de ter dito algumas coisas a respeito da gerência, com caráter depreciativo à imagem do gerente Wladmir, e a acusação foi amplamente acatada pela gerência que mandou descontar no salário do funcionário alguns dias de pagamento, a título de punição. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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A incredulidade da acusação perante os demais funcionários gerou uma sensação de insegurança dentro da repartição, que se tornava pouco a pouco um regime ditatorial. Não havia nenhuma prova contra o funcionário e mesmo assim os apensos foram acatados como de ordem punitiva direta. Foi a segunda vez em que o Wladmir rasgava a Constituição Federal a seu bel-prazer e gozava o fato de ser uma pessoa cretina pela própria natureza, rejeitada pela decência e moral! Com isso, vários funcionários pediram para trocar de repartição. Messias, Valéria, Carlos, Solto, Cheres, Kaio, Praxedes, Paulo Pirre, Jorge Soares e muitos outros bons funcionários, mas que não eram a imagem e semelhança da gerência, os quais presenciando de perto o que vinha acontecendo com o novato, sentiram a necessidade de sair daquele lugar com urgência. Sentiam que suas vidas corriam perigo naquele lugar. Não havia respeito aos direitos humanos, e a arbitrariedade era sempre acobertada por quem tinha o poder. O Júnior estava para se aposentar, por isso começou a desagradar o gerente Wladmir abertamente, expondo todas as suas insatisfações guardadas há muito tempo naquele ambiente autoritário, regime de servidão, porque sabia que o gerente já não poderia mais ousar nas suas perseguições e arrogância. O Rayner saiu da repartição após discutir com o gerente Wladmir, chegando até a colocar o dedo no rosto dele e exigir respeito por parte do chefe. Nesse dia houve uma grande discussão e outros funcionários precisaram conter os ânimos dos dois. No evento mais gritante de abuso, o funcionário Messias quase foi demitido depois que um dos carros da frota da empresa fundiu o motor, e houve um consenso da gerência em alegar que a causa teria sido o descuido do funcionário com os bens materiais da repartição. Isso ocorreu logo após o funcionário ter sido visto conversando com o novato em caráter confidencial no vestiário pelo James que passando pelo corredor ouviu parte da conversa. De fato a frota de veículos era muito mal acondicionada, em rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


garagens a céu aberto e sem mecânicos próprios da empresa, sendo contratados serviços terceirizados que melhor compensassem no preço e nas formas de pagamento. O gerente consentiu que todos os que pediam fossem trocados, pois não lhe eram submissos. O câncer representado pelo novato já havia lhes tirado o medo dos olhos e do coração e se tornaram pessoas de opinião formada, ou seja, já não serviam para a gerência. E nessa troca de peças deixou o pensador em situação difícil, pois era o único que não conseguia sair dali, mesmo com inúmeras tentativas frustradas. A repartição agora tinha um déficit de funcionários muito grande, o que provocaria maior carga de trabalho nos demais para compensar as perdas de recursos humanos. Enfraquecido de apoio, tendo em vista que todos os que não eram leais ao sistema ditatorial imposto pelo gerente Wladmir tinham ido embora, já não havia mais defesa contra os ataques idealizados por ele. O gerente estava cego pelo poder! Já não se preocupava com mais nada, apenas vencer a guerra de imagem e liderança. O gerente queria demonstrar poder usando como exemplo o novato. Era necessário à sua autoafirmação de força e soberania que o motivo de seus desgostos hedonistas fosse massacrado na frente dos demais funcionários com ilegalidades cada vez mais ultrajantes e um assédio moral que escapava a tudo que fosse previsto nas leis trabalhistas em vigor. Isso garantiria de vez a afirmação de poder e representatividade, pois submeteria toda a repartição à submissão plena e cega aos caprichos do gerente Wladmir. Mas um incidente minou o intelecto maligno daquele homem tão nocivo e uma organização importante mandou através de carta registrada à repartição um convite para uma reunião seleta com a cúpula de uma organização influente na cidade, e o convite era justamente direcionado ao novato. Seria tratado de assuntos rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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envolvendo propostas ao Poder Público para a melhoria das condições de trabalho de cavalos no município, cuja pretensão seria o veto à tal exploração, além do plantio de uma grande quantidade de árvores. A reunião seria presidida por um vereador do município, muito influente em causas relacionadas ao meio ambiente e recursos naturais. Um desgosto como esse! Como é possível? Justo agora que estava tudo indo tão bem para os planos pessoais cravados dentro da repartição. Sentindo-se impossibilitado em negar o pedido, e procurando esconder das entidades externas tudo que estava operando na repartição, à margem da lei e do caráter, liberou o funcionário no dia e hora marcados para o encontro, a fim de agradar à cúpula, e já planejando uma forma de tentar minar qualquer eventual convite posterior. Contudo o encontro havia sido um sucesso! O pensador compareceu bem vestido, num terno de cor escura, gel nos cabelos e barba bem feita! Foi muito elogiado pelas ideias que demonstrou para a modernização do quadro produtivo de vários seguimentos! Praticamente discursou todas as viabilidades do novo projeto de lei acerca dos semoventes. Apresentou como viabilidade que o plantio das árvores fosse feito junto às escolas, como forma de conscientizar os alunos para a preservação ambiental e garantir maior participação popular nos atos de cidadania. E tendo apresentado inovações tão notáveis, recebeu outros convites para representar o seu seguimento de trabalho, deixando o gerente possesso de ódio, pois em pouco tempo notava-se claramente que sua imagem era venerada somente no interior da repartição, pois havia implantado seu regime ditatorial, através da inquisição e do medo, mas que fora dali havia todo um mundo que não lhe era submisso, e que não se conquistava pela opressão e sim pela eficiência e liderança, pelo carisma e prestatividade!

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E o câncer que representava os ideais do pensador começou a influenciar no modo de pensar de alguns funcionários. Estes foram percebendo pouco a pouco que possuem direitos profissionais, e que o gerente Wladmir não era um deus e sim uma pessoa de carne e osso. Que a ditadura moral somente conduziria suas vidas ao infortúnio. Que ele era um funcionário da repartição e não o dono dela. Nada ali era dele e sim dos acionistas que todo mês injetavam dinheiro na empresa. Que o assédio profissional para forçá-los a execução de atitudes que visam agradar seu bel-prazer, e o cunho pessoal de seu desejo de autoafirmação de poder, jamais seriam concretizados se não houvesse a participação de suas pessoas, na passividade das suas emoções, pois de outro modo o brilho dele cada vez mais iria se reduzir, até se apagar por completo, como estrelas que morrem nos confins do universo, e aquele regime ultrajante de assédio moral se extinguir. E num acesso de fúria, o gerente acionou o gerente intermediário, alegando que o pensador o havia caluniado, sendo então encaminhada à decisão do bloco intermediário a demissão do funcionário. Como era de praxe, havia a necessidade de decisão judicial sobre o caso, porém como não havia prova alguma o processo de demissão nem sequer foi instaurado, sendo arquivado logo que deu entrada na esfera judicial. Foi aí que a greve branca começou diante do último desaforo cometido pelo gerente Wladmir. Em pouco tempo os resultados da produção da repartição caíram drasticamente, não pela vontade do pensador, e sim pela própria revolta social e moral que as ações do ditador começaram a despertar em todos. Os números caíam consideravelmente em comparação com os balanços apresentados pelas outras repartições espalhadas por outros locais e que compunham o bloco intermediário. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Em poucas semanas havia mais de trezentas ordens de serviço aguardando cumprimento sem, contudo haver qualquer manifestação profissional mais efetiva dos funcionários ligados à execução do serviço para cumpri-las. Então houve a queda do Alisson, como uma resposta do gerente Wladmir aos acionistas, que começavam a pressionar por melhorias na qualidade do serviço, e para tentar acalmar os ânimos dos funcionários. Foi notadamente uma prova de que o império que se consolidou naquele lugar não era permanente, e que a imposição do assédio moral somente aconteceria se os próprios trabalhadores permitissem, deixando de correr atrás dos seus direitos. O Alisson havia caído devido à presença do novato. Isso é certo. E todas as suas tentativas frustradas de eliminar a concorrência do novato na liderança, acabaram por conduzi-lo ao fracasso e à humilhação de sair da repartição pela porta dos fundos, tendo os funcionários subalternos comemorado a saída de um funcionário tão prejudicial à paz e à harmonia! Ele era um homem de idade avançada, com muitos anos de serviço na repartição, porém de índole muito prejudicial a todos! Não procurava ser gentil ou cortês em nenhuma ocasião. Descumpria promessas de folga ajustadas, mandava caçar férias e não se preocupava em ser querido na empresa, antes, sentia-se feliz por ser odiado e temido. Não possuía a mínima carga cultural que o ajudasse a promover justiça no ambiente de trabalho, onde exercia a chefia direta de cerca de quarenta funcionários. Contudo, era um dinossauro que chefiava os seus funcionários! Uma pessoa cheia de falhas moraisequese encarregara pessoalmente de procurar prejudicar o novato de todas as formas possíveis, até que suas tentativas frustradas foram se esgotando, pois sempre deparava com um funcionário moderno, cheio de conhecimentos técnicos e de disposição para lutar por seus direitos quando houvesse alguma ilegalidade.

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Com a queda de seu homem de confiança, seu império desmoronou, e o gerente já não exercia poder sobre todos os funcionários, restando apenas alguns leais, como o Fábio, que assumiu a vaga deixada pelo Alisson. Era um serviçal capaz de sacrificar a vida para agradar a gerência, almejando, com isso, várias subidas de cargo, abrindo mão inclusive de seus escrúpulos para ser leal a qualquer preço; o James, que era um misto de boa pessoa e capacho bajulador, estando sempre em desarmonia com sua própria predominância de caráter; o Cris, que, embora leal, conservava um caráter que não se subjugou, antes disso, tentando sempre debater com o gerente por uma solução menos prejudicial a todos, sendo sempre vencido pela imposição, o Nicolau, que era justamente quem controlava todos os apensos. A queda do Alisson foi uma resposta aos acionistas que começavam a pressionar melhorias na repartição. Os outros funcionários ficaram no anonimato, por medo da gerência ou da ameaça em potencial ao regime de imposição que se instalara na repartição devido à greve branca. No fim daquele ano, houve uma festa de confraternização entre os funcionários, sendo convidado o novo gerente do bloco intermediário, senhor Barcelos, que assumiu a vaga após a aposentadoria de Tarcísio. A divisão social existente na repartição ficouevidente,aopassoquesomentecompareceramosqueaindaeram submissos ou leais ao gerente Wladmir, ou que temiam represálias e procuravam se socializar, sem, contudo, tomar partido pela direita ou pela esquerda na causa que dividiu o lugar em dois polos. As famílias dos funcionários em questão compareceram à festa e apenas alguns dos presentes ousou comentar sobre as ausências generalizadas, embora o clima entre os funcionários tenha sido notável! Eram esperados uns duzentos funcionários, os quais levariam ainda os familiares. No entanto, pelo que foi comentado sobre o evento, havia na festa os seguintes funcionários: rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Da base aliada à gerência: Fábio, James, Nicolau, Cris, Pontes e Juliana. Dos funcionários de classe mais inferior: Sérgio, Vicente, Paulo Mateus, Roberto, Sanches, Oscar, Demétrius, Solange, que era uma fofoqueira repudiada por quase todos os funcionários, Castilho, Queiroz e Samuel. Contando todos os funcionários presentes e suas famílias, não chegava a cinquenta pessoas. Com isso, uma grande quantidade de mesas ficou vazia e o clima, pesado. Sobrou comida e bebida. Até mesmo o que era mastigado descia pela garganta com dificuldade, embora pudesse estar saboroso. O novo gerente do bloco intermediário desaprovou as ausências e cobrou do gerente Wladmir uma mudança de postura na empresa. Na verdade, o novo gerente era nos moldes do gerente local, uma pessoa que ambicionava cada vez mais poder e admiração. Tinha interesse naquela confraternização para ser o centro das atenções, e se viu reduzido em importância, pois as cadeiras vazias chamaram mais atenção que sua presença. O que o diferenciava do Wladmir era a apreciação da legalidade quando esta lhe era conveniente. Isso porque em alguns momentos, para a garantia de sua supremacia, ousou também restringir direitos de alguns. Os funcionários que havia chefiado costumavam chamá-lo de “o semideus”, devido ao fato de não aceitar intervenção, chegando, muitas vezes, a desconsiderar os acionistas e a vontade do gerente geral; trabalhava apenas conforme sua própria vontade. Todos saíram da confraternização com a certeza de que era necessário tirar o pensador daquele lugar. Ele deu àquelas pessoas o poder de pensar e questionar o sistema, e esse espírito de cidadania, embasado na lei, na honra e no caráter, eram males a serem combatidos a qualquer custo. Alteração de horários de trabalho, grande quantidade de apensos cujo teor cada vez mais ilegal já não demonstrava a rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


veracidade dos fatos e sim o desejo ardente de sangue e sofrimento, carga de trabalho mais pesada em relação aos demais funcionários, reduções de salário, assédio moral, abusos de poder, impedimento de acesso ao público externo, acusações tendenciosas, calúnias, negação de férias regulamentares, horário extra sem fundamento para correção de trabalhos não realizados ou terminados com imperfeições, acusações de baixa produção e até mesmo a desculpa da gola da camisa estar amassada... Ah! Com o passar dos anos a carga de stress foi proliferando na cabeça do pensador, a ponto de ele começar a beber descontroladamente! A bebida era um refúgio a todas as agruras que aquele lugar proporcionava! O cigarro, também companheiro inseparável dos momentos de depressão, teve seu consumo aumentado dia após dia. Não entendo até hoje, e juro que não, como esse funcionário ainda encontrava forças para chegar de manhã e ainda ir lá colocar frutas para as maritacas que vinham até ele com alegria e barulho. Ele estava pálido! Magro! O rosto descontente... Finalmente as férias de período lhe foram concedidas, o que se deu na época de reforma da repartição, e a gerência gostaria de contar com a participação efetiva, quase escrava de todos. Como o pensador questionaria demais, acabaram desistindo de convocá-lo naqueles dias. Nesse meio tempo, o novato foi vítima de uma tentativa de latrocínio, justamente no dia em que vendeu o carro para comprar outro mais novo. O ladrão havia entrado em sua casa para roubar o dinheiro e acabou ferindo o braço do pensador com uma arma. E, fugindo logo em seguida sem levar o dinheiro que estava bem escondido, acabou sendo preso pela polícia que passava pelo local e foi acionada por moradores da rua onde tudo aconteceu. Mesmo estando de férias naquela época, fez questão de comunicar o fato à empresa. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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O fato foi veiculado em jornais, e o gerente Wladmir acusou o pensador de ter prejudicado a imagem da repartição, cujo nome foi noticiado, e, com isso, tentou mais uma vez que o funcionário fosse demitido. Diante desse fato, o pensador procurou o Genaro, que era assessor de um deputado, para que usasse de sua influência junto ao bloco intermediário para tratar do assunto dos assédios morais que estavam ocorrendo e de todas as ilegalidades que vinham acontecendo na empresa. A repartição ficou na mira direta do poder público, e a possibilidade de vir à tona a grande quantidade de abusos profissionais ali cometidos fez acender o sinal de alerta dos gerentes. Com isso, o gerente do bloco intermediário viu-se obrigado a transferir o pensador para outra repartição, e esse, em sua saída, levou consigo todo o brilho que ainda restava na seção. Mais que isso, outros quinze funcionários pediram para mudar de lugar. A motivação para o trabalho nos funcionários foi reduzida a nada: pilhas de ordens de serviço, algumas urgentes, ficavam dias sobre a mesa da saleta de reuniões, apesar de a gerência ter-se esforçado ao máximo para incutir-lhes o desejo de trabalhar, ora com concessões, ora com autoritarismo, não tendo obtido sucesso em nenhum dos casos. Boa parte dos funcionários que ainda restaram pediu a troca de repartição, alegando não ter condições de trabalhar com a atual chefia. Isso foi novidade! Antes, todos os que pediram transferência alegaram inúmeros outros motivos, mas dessa vez a revolta social era evidente! O espírito de democracia havia sido despertado nos funcionários! Até os passarinhos deixaram de visitar aquele local, tendo voado para tão longe que nem nas ruas próximas, nem na copa das árvores eram vistos. As maritacas já não agitavam as manhãs com seus gritos alegres. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


As árvores ressecadas foram podadas por ordem da gerência e o clima ficou mais quente e seco em todas as salas. Na verdade, só Deus soube os motivos pelos quais o gerente do bloco intermediário, senhor Barcelos, manteve no cargo o gerente Wladmir, mesmo com tanta rejeição de todos, a ponto de os funcionários se manterem em greve branca. O tempo foi passando e, após três anos, o estado emocional do pensador já estava bastante debilitado devido ao assédio moral e ao abuso de poder perpetrados contra ele na antiga repartição. Foi bem recebido no novo local de trabalho, porém as marcas recentes ainda demorariam muito para se apagarem. Será que em todo lugar seria assim? Será que em todas as funções haveria perseguição, especialmente quando houvesse conflito de pensamentos e técnicas de trabalho, ou quando alguém conseguisse se destacar, embora não fosse mais que um mero empregado? Solidão... vem e arranca as esperanças do coração do homem. Depressão aguda que vira inferno ou vira céu, leva embora o sorriso dos lábios e provoca a falta de sono e de apetite durante quatro dias. As decepções com a vida e com o trabalho foram só aumentando... Não poderia sair do emprego sem conseguir outro lugar para trabalhar. Via-se de alguma forma preso ao sistema e sem condições de sair dele, e agora, após o cansaço dos combates por justiça, temeroso de represálias. Mas, em momento algum vendeu seu caráter nem sua honra, e não se submeteu à imoralidade ou à ilegalidade que tantas vezes lhe foram determinadas como doutrina. Essa sempre foi sua fonte maior de energia para resistir, e sempre será, independente de onde estiver! A vida há de proliferar os dias dos pensadores para que possam, com coragem e determinação, mudar os rumos do mundo e reduzir as forças do mal sobre os mais necessitados. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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CAMPO MINADO

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E, no início, o homem criou o ciúme! Havia uma testa frisada pelo juntar das sobrancelhas, e os lábios ressecados se mordiam a cada nova conquista. Antes tudo era pacífico, mas o surgimento de uma Supernova abalou a paz de todo o universo. Um brilho reluzente como sorriso alvo, cativante pairou no centro da galáxia e seu discurso semelhante à poeira dos astros chegava aos ouvidos como cantilena suave e agradável! E então, houve um choque tão brusco que todo o universo ficou em brasas... – Senhor! Acorde! Onde estou?...(voz descompassada) Que lugar é esse? Eu estava sonhando com um universo... vários astros...uma explosão muito grande onde as faíscas se espalharam e algumas estrelas ficaram perdidas...que lugar é esse? – A sua família está na recepção. Querem vê-lo. – Que estou fazendo aqui...? – O senhor está internado numa clínica psiquiátrica. Está dormindo há dois dias em virtude de remédios e de um forte impacto que recebeu em seu corpo. Caminhando com dificuldade e sem conseguir um raciocínio lógico sobre os fatos, cheguei até uma sala. Lá estavam alguns parentes que haviam trazido objetos de uso pessoal, tais como roupas, desodorante, pasta de dente e alguns biscoitos e doces. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


E disseram que eu estava internado naquele lugar por estar com problemas sérios de depressão causada por perseguição no ambiente de trabalho e por outro motivo que não quiseram revelar. – E quem está cuidando dos meus animais? – A prima Sara está cuidando deles. Não se preocupe que tudo está bem. Fomos até sua casa, pegamos os animais e os levamos para a casa dela, onde ficarão em segurança até você se recuperar do trauma. Sentindo dificuldade de falar devido aos fortes sedativos que nem sei quantas vezes foram aplicados em meu corpo, preferi permanecer em silêncio, apenas ouvindo. Logo veio um funcionário com uma ficha de internação para que eu assinasse. Eu procurava ler o que estava escrito, mas meus olhos embaçavam após algumas palavras. O funcionário disse que era apenas o consentimento de internação. Que o enfermeiro da ambulância conveniada com o meu emprego relatou que o pedido de internação havia sido feito por mim e por isso eu teria que assinar o documento, consentindo com o tratamento. Que campo minado repleto de bombas é a minha vida! Não posso confiar em ninguém. Jamais consenti em ser internado. Estavam me colocando naquele lugar contra a minha vontade, mas naquele momento eu estava muito fraco para tentar alguma coisa. Percebi que não tinha condições de me opor a nada. Era como se somente meu corpo tivesse vida, e minha alma estivesse morta e sem brilho. Assinei o documento e a letra saiu forçada! Os dedos não se mexiam com naturalidade. Sabe-se lá o que havia na injeção que foi aplicada em meu braço direito! O que dá a essas pessoas o direito de fazer semelhante atrocidade com alguém e não haver qualquer tipo de punição? Produzem loucos a partir de pessoas normais abaladas por algum problema que muitas vezes não tem nada a ver com a loucura. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Dois dias direto dormindo! O que é isso? Que tipo de veneno é esse que foi injetado em minha veia? Para depois o médico escrever o que quiser em minha ficha, com base apenas em seu interesse pessoal ou profissional. Talvez seja por este mesmo motivo que todas aquelas pessoas que estavam no ambulatório foram se transformando em espectros, após a aplicação do veneno. O cumprimento das ordens, mesmo que ilegais, unicamente para que o sistema continue operando com todas as regalias da classe que comanda, num fechamento que passa por cima até mesmo das leis vigentes. Isso tudo é disciplina. Não a disciplina que vem de ser íntegro, lastreada na boa educação, e sim a disciplina de ser discípulo, de seguir fiel e prontamente o que é determinado, conivente com a mentalidade de quem está no nível do governo. Por isso é um campo minado. Um esquema de pirâmide, onde poucos têm privilégios e a maioria carrega fardos mais pesados que o próprio corpo. Jamais segui de maneira cega qualquer ordenamento ou sistema, pois acredito que isso se denomina fidelidade cega, e retira do homem a sua personalidade, transformando-o num reles objeto de uso pessoal. Fidelidade é, antes de tudo, saber se opor ao sistema quando há ilegalidade. Há, contudo, a forma leal e a forma desleal. Lealdade é pautar-se na lei para agir em sociedade dentro de um conjunto. Qualquer coisa que fuja disso, que não dê o direito de uma das partes manifestar o pensamento ou expor opiniões, técnicas que vão melhorar a execução do sistema, não pode ser considerado fidelidade e sim escravidão moral. Qual é a legalidade de um sistema baseado na inquisição e na imposição? Um assédio moral que coíbe qualquer conduta que não vá agradar à cúpula? Por outro lado, seoindivíduoinserido no todo sabeser discípulo, embora perca toda uma vida de liberdade de trabalho para ser unicamente um instrumento, não pisará nos artifícios deixados no campo, pois são armadilhas contra os inimigos. Inimigos que não rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


impunham armas, e sim livros, não usam coletes à prova de balas, ao contrário, levam flores nas mãos para oferecer, mas pensam, e o mundo dos pensadores é ambiente de perseguição repleto de mágoas e desejos. Um local de sonhos e aspirações à aceitação dos ideais. Os idealistas conseguem mudar o mundo, mas somente depois de muito sofrer com prisões e perseguições. O abuso caminha lado a lado com os idealistas. E quando os idealistas caminham um pouco mais para a direita, a corrente de abusos que tenta prendê-los no trajeto em linha reta se arma, repleta de instrumentos cortantes que rasgam a carne e procuram sugar a determinação dos ideais. Quando os idealistas então decidem ir para o lado esquerdo a outra corrente já está armada como um cão feroz que tenta intimidar e empunha seus instrumentos de guerra. Desde o princípio da existência social, é dessa forma que as mudanças são feitas. Sempre à custa de muito sangue derramado, de muitas lágrimas, e, embora os ideais dos pensadores não se abalem pelos chicotes do arcaísmo social em sua esfera mais representativa, as chagas deixadas permanecerão por toda a vida. Após conversar com os parentes, levaram-me de volta à cama e dormi novamente. O efeito dos medicamentos era muito forte e até os passos eram difíceis! Mais algumas horas de sono e então despertei. Era um quarto com seis camas de solteiro e em cada cama havia um paciente. Em silêncio, caminhei até a porta do quarto, e havia um corredor com vários outros quartos iguais, e pacientes em todos eles. Estava numa clínica psiquiátrica. Aos poucos, fui recobrando a lucidez dos pensamentos e procurando entender tudo o que estava acontecendo. Caminhei pelo corredor procurando pela cozinha e uma enfermeira rapidamente trouxe algo para que eu comesse e me ofereceu soro, devido à desidratação provocada pelo período em que fiquei sem alimento. Lanchei um pão com manteiga, um copo rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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de café com leite, biscoitos trazidos pelos parentes e, em seguida, bebi o soro. Após um tempo, que não sei precisar quanto, sentado em um banco, peguei uma roupa numa mochila que os parentes haviam trazido e fui até o banheiro tomar banho. O banheiro masculino possuía quatro boxes com privada e cinco boxes com chuveiro, todos um ao lado do outro. Havia um grande espelho sobre a pia e duas torneiras. A água era muito quente, devido ao fato de ser um lugar muito frio nessa época do ano. A clínica ficava numa fazenda cercada de montanhas, nas proximidades de uma rodovia. Debaixo do chuveiro, procurava me lembrar de tudo o que havia acontecido, porém não me recordava senão de entrar no hospital e tudo o que me trouxe até esse lugar. Meu corpo doía em toda a parte frontal, principalmente no peito. A água do chuveiro ajudava a reduzir os efeitos da dor. Meu rosto no espelho demonstrava a carência de vida. Parecia um defunto de olhos abertos, e não havia brilho nos olhos. Tão feia era a visão que não consegui ficar durante muito tempo olhando a minha própria imagem e saí da frente do espelho de cabeça baixa.

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SUICÍDIO Após alguns dias, com as dores no corpo passando, algumas recordações vagas começavam a brotar na memória. Um misto de loucura e sensatez! Fatos esparsos, como um quebra-cabeça sendo montado. Diálogos, expressões de rostos, lugares, visões... tudo ainda muito desconexo! Num instante, estava no trabalho, em outro, no hospital, até que foram clareando os elos entre os fatos... Lembrei-me do dia em que fui assaltado pela segunda vez, quando saí de casa para ir ao centro da cidade. Ainda não havia comprado o novo carro e, ao chegar ao ponto de ônibus, dois homens armados numa motocicleta exigiram a carteira e a bolsa que estavam em minhas mãos. Nesse dia, foram levados todos os documentos e uma considerável quantia em dinheiro, que seria usada para pagar o aluguel da casa. Lembro-me de que, devido à comoção, nesse dia não trabalhei, e de que foi no dia seguinte que tudo começou... – Preciso de um carro pra me levar até o hospital. Não estou bem. – Mas o que foi? Está com algum problema de saúde? Nesse momento, arremessando objetos ao chão, o controle foi escapando. As mãos começaram a tremular, e a cabeça se movia com muita agilidade e nervosismo. – Já disse que não estou bem, oras. Preciso ficar repetindo? Não deveria nem estar trabalhando nessas condições de trabalho, no meu atual estado mental. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Vou ligar para o gerente e verificar se ele pode te liberar do trabalho hoje. Então você vai para o hospital em seu carro. – Como quer que eu dirija nessas condições? Nem se tivesse carro. Não está vendo o que está acontecendo? Preciso de que alguém me leve até o hospital. Lágrimas rolando pelo rosto delicadamente, ostentando raiva e indignação por acontecimentos recentes que fizeram explodir uma revolta interior e um rancor pela própria existência. Num segundo, um soco no ar na direção do vazio. – Olha, procure se acalmar. Vá lá em cima. Tome um banho. – Não preciso que fiquem o tempo todo me ordenando as coisas! Já disse que não estou bem e querem que eu vá tomar banho? Ora, vão... Nesse momento, com um pouco de lucidez, saí da saleta de reuniões aos prantos, subi as escadas e abri a porta do banheiro com um chute. Ao lavar o rosto e olhar no espelho, a morte falava comigo: – Filho, prepare-se! Chegou o momento de me acompanhar. Desça ao casarão sem demora... Por um momento, observei aquela figura espectral com o rosto semelhante ao de um homem desfigurado. Havia sangue ressecado numa das narinas e um colar de espinhos aparecendo por baixo da capa preta e suja de carne. A carne parecia podre e exalava almas como fumaça saindo do corpo após um banho quente. Passei as mãos nos olhos e, ao olhar no espelho, era minha imagem que estava lá. Pálido! Sem vida! Sem motivos para sorrir ou acreditar num mundo mais justo e digno. Voltei para o lado da porta e uma voz dizia: – Não se vá. Eu não estou lá fora. Estou dentro de você. Loucura! Demência! Corri até meu armário e tirei rapidamente o uniforme do serviço. Quando desci as escadas, todos na repartição já estavam nos seus afazeres do dia. Passei em silêncio, com o rosto e os cabelos ainda molhados e uma grande sensação de ódio e de escuridão! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Ao sair na rua, o motorista do primeiro carro que veio em minha direção me acenou. Era uma figura também espectral e sem carnes no rosto, apenas pedaços de pele podre. Passou por mim e meu corpo bambo, agitado pelo vento, ainda titubeou até ir de encontro ao veículo e se chocar contra o capô. Tudo estava ficando muito estranho! O céu da manhã foi se tingindo de um cinza cadavérico! As nuvens pareciam feitas de muitos ossos humanos e, no alto, embora na realidade não estivessem lá, minha loucura percebia abutres com bicos ensanguentados, cujo sangue pingava e atingia meu corpo. Das paredes do instituto de ofídios e estudo de animais peçonhentos, saíam milhares de mãos tentando me puxar para dentro e eu tentava escapar delas e dos abutres. Escondi-me debaixo de uma árvore para que o sangue não me atingisse, mas a árvore tinha muitos vermes em seu tronco. Eles pareciam homens com lanças nas mãos, saindo de frestas no tronco e tentando espetar meus dedos. Muitos homens pequenos, usando armadura preta e tendo duas lanças nas mãos, agitando-as contra o vento, vinham em minha direção. Corri sem rumo, tentando escapar das gotas de sangue e dos vermes armados e, de repente, estava em outro lugar. Era uma escadaria e várias pessoas passavam por mim apressadas, até trombavam em mim, pois eu estava sentado no meio de um degrau. As mãos estavam colocadas no rosto tentando escapar desse momento tão difícil, de loucura. – Levante-se! Veja que seu transporte já está vindo! Apresse-se para tomar a condução. Era uma voz diabólica, com ecos de sofrimento, chamando no alto-falante que estava no teto, acima de minha cabeça. Ficava repetindo as mesmas coisas o tempo todo. Eu estava numa estação de metrô. Não sei em qual das estações da cidade, mas de alguma forma fui parar lá, embora não rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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me lembrasse de ter caminhado até o metrô. A última cena de que consegui me lembrar foi de ter parado embaixo da árvore, tentando escapar dos abutres. Num instante depois, estava num céu negro, repleto de estrelas negras que não brilhavam, ao contrário, tornavam mais negros os horizontes do espaço sideral. Havia um pouco de claridade somente onde não havia estrelas, porque elas eram injustas! Aglomeravam-se e criavam uma constelação impenetrável! Irredutível! Lá no centro da constelação, vi a morte segurando um globo com milhares de vozes. Era uma cena horrível, como se as vozes fossem as almas aflitas cujas vidas se resumiram em desgostos e decepções! Ela usava um traje de gala, ostentando muitos títulos e brasões, e, nas pontas do traje, havia mãos com unhas enormes, arranhando o ar de forma ameaçadora! Novamente meus olhos clarearam por um tempo... Vinha um metrô, bem longe, encoberto por uma bruma. Só era possível enxergar a luz branca. Cheguei até a beira da faixa de segurança, enquanto a morte ficou do outro lado da linha me chamando e tendo nas mãos algo semelhante a um globo, porém de cor cinza e negro ao invés do azul do mar. Dessa vez, milhões de vozes falavam e gritavam de dentro do globo. Era o mesmo globo que havia visto antes, porém agora estava mais próximo. E era mais nítido o casarão. Ela dizia para não me demorar que logo estaria em casa. Então, fui entrando num estado de transe eventual, que nada mais parecia ter importância na vida. Lembrei-me da infância, dos desejos que jamais foram realizados, das brincadeiras de roda, de polícia e ladrão, de roubar bandeira, de pique-esconde e futebol. Ao recordar a adolescência, vieram à mente o primeiro amor, as aspirações sobre o futuro e o primeiro emprego que consegui numa lojinha de sapatos lá naquele bairro onde passei a infância. Os rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


amigos que as estradas da vida levaram em busca do ouro em lavras que talvez nenhuma riqueza vá proporcionar. Porém, o sonho impulsiona o desejo aventureiro no coração de cada um. E aquele que segue o seu caminho, a sua estrada, talvez jamais volte ao lugar de onde partiu. Torna-se um errante pelo mundo, sempre à procura de novas aventuras. As antigas festas, as ruas do bairro, a simplicidade da vida quando ainda não havia os problemas de relacionamento social, que podem reduzir o próprio direito de viver e tornar a vida, de forma sarcástica, no mero acatamento de imposições sem fundamento. Um robô do sistema... O mundo não é dos pensadores e sim dos escravos e de seus respectivos senhores que os açoitam o tempo todo e não há revolta. Quem pensa num mundo como esse e possui autonomia, torna-se um problema a ser exterminado a qualquer custo. Um câncer no meio do sistema regrado de autoafirmação de poder e de submissão plena e cega. Um jardim de flores se descortinou diante de mim na extensão dos trilhos do metrô. Eles davam acesso a um lugar calmo, onde borboletas voavam e pássaros cantavam. Uma brisa levava o perfume de muitas flores que eram agradáveis e a morte havia se transformado numa linda moça que segurava um raminho de flores. Ela sorria vários sorrisos como que em sonho. Usava um vestido longo tal qual donzela de romance! Lá não havia sofrimento nem dor! Não havia motivos para o choro nem para o desespero! Havia apenas um jardim imenso, repleto de flores! Embriagado de êxtase e excitação por um mundo melhor, uma saída para os problemas que estava enfrentando, desci pelo trilho e comecei a caminhar naquela direção agradável. Eu já não detinha o controle sobre a minha vida. Atrás de mim, vi um mundo negro, repleto de fantasmas horrendos que não queriam se desgarrar do meu corpo. Parecia que rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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a minha lágrima é que dava poder ao ódio estampado na face de cada um deles. Eles pareciam querer me puxar de volta, pois o poder estava se esgotando em seus peitos sem coração, onde somente os pulmões inspiravam a fumaça negra da poluição social. Era necessário que eu fosse a fonte que alimentava o ódio, mas, sem minha presença, já não haveria mais motivo para que esse existisse. Olhei então para frente e novamente vi a figura daquela mulher. Ela foi se desfigurando, caindo-lhe as peles do rosto. As flores murcharam e seus espinhos entravam na carne dos braços, fazendo porejar sangue negro e de cheiro ruim. Um grito distante foi chegando aos meus ouvidos e de repente não vi mais nada além do céu azulado, com um tom diferente, quase roxo! Havia um calor insuportável no chão e um gosto estranho, como o cheiro do ácido, na boca. Uma sensação de coração batendo forte, e as artérias e veias do corpo desesperadas, querendo jorrar o sangue pelo corpo todo, como se a quantidade de sangue fosse maior do que poderia passar por elas. Até que tudo se apagou por algum tempo. Estava na lembrança. Eu havia tentado suicídio entrando na pista do metrô. Por isso, vim parar nesse lugar. A clareza dos fatos era inevitável! Eu não me lembrava de nada, por causa do impacto, mas certamente tinha sido arremessado pelo metrô. Então, tudo fazia sentido: a dor no corpo, as pessoas, os lugares. Finalmente minha lucidez começava a voltar e eu podia traçar um raciocínio lógico de como tudo tinha começado. De fato, eu não estava morto, mas meu coração e minha vontade de viver estavam em cinzas! A vida é difícil e repleta de mágoas! Muitas vezes, o desespero nos conduz a loucuras que podem atingir muito mais do que a nós mesmos. Mas eu não havia morrido. Pelo menos parecia que não. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Como o ser humano é tendencioso, seu desejo de ser importante é mais valioso do que comer e beber! A imposição de se destacar no seio da comunidade surge em quem mira o poder como o líquido precioso da vida e do prazer! Nada pode abalar o império consolidado de força e soberania, mesmo que seja algo justo, tira-lhe o brilho de estar acima da lei e perturba o olhar dos poderosos. A vida é difícil E repleta de sonhos! O sistema social imposto, entretanto, rouba até os sonhos que ainda não foram sonhados e os sorrisos de prazer ainda não provocados! Transforma a liberdade e até mesmo o próprio sentimento de que somos uma pessoa, com direitos e obrigações, em um ambiente de privações e humilhação moral. Até que o próprio desejo de viver acaba como o último gole de uma bebida que antes era gelada, doce e gasosa, mas cujo resto se torna amargo, morno e sem espuma. Ao lembrar de tudo isso, fui até um canto e fiquei de cabeça baixa, sem dizer nada, olhando para o chão até as lágrimas rolarem e caírem na terra.

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CAMPO DE CONCENTRAÇÃO

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– Olha o café, moçada! Olha o café! Uma voz gritando pelo corredor, às sete horas da manhã de um dia bastante frio e com neblina cobrindo a serra que fica atrás da clínica, onde há uma horta. Vi que os pacientes iam se deslocando para a área da cozinha e uma fila se formou. Fiquei atrás na fila, e os pacientes foram entrando. Logo também entrei. Havia uma pessoa atrás de um balcão que, com um garfo, pegava o pão para cada paciente e logo em seguida outra servia café e leite. Os copos eram de plástico, iguais aos que há duas décadas eram usados para servir leite na escola onde estudei. A cozinha tinha três mesas grandes de madeira, uma ao lado da outra, e os bancos eram contínuos. Os pacientes se sentaram e tomaram o café. Do outro lado da cozinha, o mesmo aparato separava os pacientes crônicos, e, em outra ala, ficavam as mulheres internas. Fiquei em pé, próximo à porta, observando tudo que acontecia. Em seguida, logo após tomar o café, fui caminhar pelo corredor, olhando bem a fisionomia de cada um, tentando formular uma opinião sobre aquele local. Num primeiro momento, imaginei-me num campo de concentração. Estava preso àquela realidade, internado contra a minha vontade, com base no laudo de um médico, por eu ter tentado suicídio e sobrevivido ao choque contra um metrô. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Havia uma sala de enfermagem próxima à cozinha e, ao passar por lá, uma enfermeira perguntou se eu havia tomado o remédio. Não estava sabendo de nada e, por isso, perguntei. Ela esclareceu que todos os pacientes ali internados tomavam algum tipo de medicamento receitado pelo médico que acompanha o tratamento. No meu caso, estavam receitados dois calmantes pela manhã e, à noite, um calmante mais forte para ajudar no sono. Era tudo muito regrado! O café da manhã era servido às sete horas, os portões da área externa eram abertos às oito e meia. Então, os pacientes tinham de ir para fora para participar da caminhada ou de terapia ocupacional, numa área onde eram feitos desenhos, objetos de decoração, artesanato ou exercícios físicos. A caminhada era acompanhada por algum funcionário da clínica em uma estrada de terra que, segundo eles, se estendia por dois quilômetros, até uma igreja, num povoado próximo. Nos primeiros dias, não participei de nada. Estava muito abalado por estar ali. Quando a vendinha abria, eu comprava cigarros e ficava olhando o movimento lá na rodovia através da grade da clínica, tomando o sol da manhã. O almoço era servido às onze horas. Meia hora antes, de segunda a sexta-feira, os pacientes assistiam a palestras sobre temas variados. Novamente a fila para o almoço: cada um pegava o prato e as cozinheiras colocavam a comida. Após o almoço, não havia muito que fazer. Podia-se assistir o jornal pela televisão na sala de palestras, fumar um cigarro ou deitar na cama. O espaço de terapia ocupacional ficava fechado para que as terapeutas Lígia e Claudete também fossem almoçar e pudessem ter um horário de descanso. Na parte da tarde, o recinto funcionava somente a partir das treze e trinta, ficando até as dezesseis e trinta. Era proibido o uso de celular dentro da clínica e todos os aparelhos dos pacientes ficavam guardados com a assistente social, desligados e identificados, e somente eram devolvidos rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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aos familiares em dia de visita ou quando o paciente recebia alta. Isso era justificado pela assistente social, senhora Iara, pelo fato de que ali estavam internados alguns pacientes que tinham vício em álcool e drogas e que usavam o celular para pedir o que sentiam desejo de consumir. De madrugada, o ilícito era jogado por cima do muro na direção do pátio interno, quando todos estivessem dormindo, sendo rapidamente recolhido pelo paciente interessado. Às quinze horas, havia o café da tarde e às dezessete, era servido o jantar. Após esse horário, às dezenove horas, era servido um mingau, leite queimado ou achocolatado quente. As roupas de cada paciente eram identificadas com o seu nome e guardadas na rouparia, em armários individualizados, para que nada fosse misturado. Todas as manhãs cada paciente levava um par de roupas sujas para a rouparia e à tarde, antes das dezessete, ia buscar um par de roupas limpas. Isso para evitar trocas de roupas entre pacientes ou até mesmo o sumiço de alguma peça. O portão da área externa era fechado às dezessete e após esse horário os pacientes não tinham mais acesso à área externa da clínica. As noites eram monótonas! Não havia muito que fazer também. Os pacientes mais velhos dormiam sempre muito cedo. Havia um paciente, o Sebastião, que costumava tocar gaita em alguns dias da semana no pátio próximo à cozinha. Vez ou outra, alguns se animavam a jogar baralho ou uma sinuca, que ficava na sala de palestras. Sebastião era um policial aposentado. Dizia que quando chegou à clínica ainda era do serviço ativo, que tinha problemas com as bebidas e foi internado pela família. Então comecei a fazer amizade com os pacientes do meu quarto. Havia o Fausto, que estava com problemas de excesso de bebida, e, para minha surpresa, trabalhava na mesma empresa que rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


eu, porém numa repartição em outra cidade. Ele contou que passava por problemas em seu casamento e também no serviço, sendo constantemente perseguido, embora passasse por tratamento médico há algum tempo. Contou de outros funcionários que também sofriam perseguição e contou sobre sua vida lá na cidade onde morava, das pessoas que tinha saudade e das festas. Sobre o assédio moral, falou que nos anos em que trabalhou na repartição presenciou diversas formas de abuso, cometidas sempre com o conhecimento da gerência, mas que nada era feito para melhorar as condições de trabalho dos mais baixos na hierarquia. Havia o João, um paciente que estava internado há dezoito anos na clínica, e tinha autorização para sair nos finais de semana para ir até a cidade próxima. Dizia que estava internado por causa de bebida e que a família, no caso seus irmãos, não o aceitavam em casa por causa do vício. O Deivisson, um paciente que tinha uma televisão, um aparelho de DVD e alguns outros pertences, era uma pessoa muito alegre e descontraída, comunicativo que só! Após alguns dias, foi mudado de quarto, pois concordou em cuidar de um paciente mais idoso que dormia num quarto particular de apenas duas camas. O Deivisson o ajudava a se vestir e tomar banho e lhe buscava o café. À noite, sempre fazia café numa cafeteira elétrica e levava para os outros pacientes, passando sempre em nosso quarto para conversar um pouco. O Osvaldo não era muito comunicativo. Sempre calado, nunca se soube nada sobre ele. Dormia cedo e ao acordar saía do quarto e se isolava do resto das pessoas. O Borges reclamava o tempo inteiro de estar internado. Não conversava conosco. Falava somente para si mesmo sobre a infelicidade da vida, que aquele lugar não resolveria nada, que queria ir embora e que sua família o odiava. Outras vezes, reclamava do governo por haver tanta corrupção num país com excesso de riquezas, mas que, devido à corrupção, não consegue crescer. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Falava sobre fraudes nas loterias e jogos autorizados pelo governo, dizendo que sempre jogava em vários jogos antes da internação e que os resultados eram manipulados. Citava casos famosos de corrupção e desvio de dinheiro envolvendo a política e as obras públicas, e que, embora veiculados pela mídia, não resultavam em nada, e, quando muito, o responsável cumpria prisão domiciliar em mansão que havia adquirido com o dinheiro do povo. Falava de abusos de autoridade das polícias em seu estado. Que já apanhou de um policial que comandava o policiamento em um evento de manifestação pública e que recebeu um golpe de bastão porque gritava bastante e segurava uma faixa de protesto. Na verdade, uma onda de revoltas populares tomara conta do país nos últimos meses. A sociedade já não aceitava a corrupção, o abuso de poder e o assédio moral dos mais fortes impingindo aos mais fracos todo tipo de exclusão de direitos. Havia, em todo o país, uma onda crescente de descontentamento com o desvio de dinheiro público e com a precariedade da segurança pública e dos serviços públicos de saúde, devido à falta alarmante de profissionais e de prédios para atender a população. O povo descobriu que democracia é o governo do povo por meio de seus representantes eleitos, e não a monarquia que vinha sendo exercida, onde o representante não cumpria nada do que era prometido em campanha política. E a noite caiu com a neblina cobrindo todo o horizonte. Olhava pela janela do quarto enquanto fumava um cigarro. Ainda estava muito abatido por estar internado e não aceitava o fato de estar ali contra a minha vontade. Conversava muito com o Fausto. Ele dizia que estava internado há dois meses e que logo receberia alta. Que o tempo de internação fez muito bem e que agora está mais controlado emocionalmente! Depois, fui até o posto de enfermagem tomar o remédio da noite e veio um sono muito forte! Então dormi pela primeira vez rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


na clínica, após passar um dia inteiro acordado, apenas observando tudo que ali havia e como funcionava. Conheci pessoas que fariam parte do meu convívio diário e não deixava de pensar na tristeza da vida e em tudo que aconteceu de ruim para que chegasse ao ponto de ser necessária minha internação numa clínica psiquiátrica. A noite estava calma! Havia muitos cobertores disponíveis para cada paciente devido ao frio intenso da época do ano. Ao adormecer, meu corpo mergulhou profundamente no sono, derramando num arfar toda a carga de pensamentos que permaneceram em minha mente por todo o dia.

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A HORTA

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Havia uma plantação agrícola nos fundos do lugar. Tudo muito bem feito e cultivado na terra, semelhante à típica horta do campo! De um lado, eram cultivadas couves, no outro, umas alfaces, cebolinha, cenouras e outros legumes. Havia uma amoreira muito grande, e deu vontade de provar dos seus frutos, porém, nessa época do ano, estavam muito verdes e ainda sem o doce sabor das amoras. Lá no final da horta, havia um espantalho voltado para a montanha que, de tão parecido com espantalho, no fim das tardes e cair da noite, parecia que ganhava vida e ficava dançando um balé da noite. Um fantasma acordado pelos pensamentos e aspirações de quem apenas via a tudo do lado de dentro da clínica. Era uma troca de papéis, pois, a cada manhã, o espantalho cumpria sua missão, afugentando os pássaros que costumavam atacar as plantações ou animais de terra que fariam buracos e estragariam tudo o que era cultivado. Nas noites, entretanto, ao ganhar vida, impulsionado pelos nossos sonhos, que às vezes fogem da realidade, para alimentar de fantasia um ambiente interno que foi esvaziado pelas tristezas, por sentimentos tolos de justiça que muitas vezes não serão vistos, por privações da saúde, de afeto, de carinho, vem o simpático fantasma protetor da horta a dançar lá no final daquela plantação, o que, na verdade, não é mais que o vento forte da noite trazendo a geada e sacudindo o boneco de pano de um lado para o outro, enquanto sua plateia imóvel apenas observava das janelas de grades finas. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A VENDINHA Havia uma vendinha na saída da clínica, onde os pacientes compravam lanches e cigarros para fumar à noite. Tudo metodicamente controlado! Cada paciente dispunha de uma conta para poder gastar a cada dia, um valor módico, somente a quantidade de dinheiro disponível para o dia, num limite que era depositado antes pelos parentes. Isso ensinava a regrar o dinheiro. Era uma vendinha simples, porém tinha uma diversidade de materiais muito grande! Desde barbeador até sabonete, doces da roça, cigarros, bolos, sanduíches, sucos e refrigerantes... Todas as manhãs, os pacientes crônicos eram liberados mais cedo para se deslocarem até a vendinha e comprar o que precisassem para o dia, e, no horário das oito e meia, nós éramos liberados para a mesma ala externa para também comprar alguma coisa antes das atividades da manhã. Formava-se uma fila de pacientes os quais logo escolhiam o que queriam e depois iam para alguma atividade. Um balcão pequeno, com vitrine de vidro, contendo doces e biscoitos, algumas prateleiras com salgadinhos, cigarros, doces caseiros, bolos e sabões. Duas geladeiras, uma cafeteira e, pendurados no canto da parede, utensílios de higiene pessoal. A vendinha continuava aberta até o horário próximo ao almoço, e fechava por algumas horas, voltando a abrir depois das treze e fechando antes das dezesseis. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Um casal se revezava nos dias de trabalho. Uma mulher loira e um rapaz moreno. A vendinha abria todos os dias da semana para atender os pacientes, e os preços eram módicos, nada aquém nem além do justo preço para cada mercadoria. Às vezes, na fila eu ficava ansioso por causa de algum cliente indeciso que demorava a fazer o pedido, mas também isso era ensinamento! Ensinava a ser paciente! Em algumas ocasiões, à noite, depois que a vendinha fechava, fumando um cigarro diante da janela de grades finas do quarto onde dormia, eu me pegava olhando para a porta da vendinha e lembrava os momentos de confusão na fila das manhãs, percebia a calmaria que deixava no ar até mesmo ecos e risos. Ficava pensando na diferença desse lugar, tão calmo e correto, daquele de onde eu vim, agitado e truculento. E a vendinha tão simples e com uma fundamentação de existência mais definida que muitas pessoas ou empresas! Ela cumpria sua missão de servir aos pacientes sem nenhum cunho pessoal, ao contrário de muitas empresas e até órgãos públicos, que se subordinam ao chefe, governo ou comando, e são obrigadas a agir conforme desejos e aspirações pessoais de quem no papel é um instrumento a serviço das pessoas, mas acaba por menosprezar a própria essência do cargo que ocupa para atender a interesses subjetivos. Bom é ver que um universo pode ser pequeno, mas sendo bem definidos os seus fundamentos, e na prática tudo que se executa é a missão de atender, tudo ocorre conforme o que foi planejado lá no início. A vendinha é o centro de compras dos pacientes da clínica.

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O LIXADOR DE CHAVES João não era muito comunicativo até um mês atrás, segundo o Fausto. Estava internado há dezoito anos e gostava muito de ficar lixando chaves que não eram próprias dos cadeados nos quais tentava encaixá-las. Era o seu passatempo preferido! Dizia que quando chegava paciente novo evitava puxar conversa, pois cada um ali tinha um problema diferente lá fora, e que justamente por não conhecer o sofrimento dos outros, esperava que os próprios novatos se adaptassem ao lugar para depois procurar diálogo. Entendia bem do sofrimento alheio! Dizia que nos anos em que estava internado pôde aprender muito sobre o mundo fora da clínica, o que o fez acreditar estar seguro no lugar contra toda uma sociedade autoritária, interesseira e impositiva, em que a necessidade de ser importante é motivo para humilhar, desacatar, privar de direitos os mais fracos e humildes e que tudo gira em torno do interesse pessoal e do dinheiro. As pessoas não sentem fome, frio ou calor; querem é ser importantes dentro da sociedade. Um mar de cobras onde cada uma tenta picar as outras com mais força para tirá-las do caminho da autoafirmação. Os seres humanos não estão nem aí para o amor, se casam por mera conveniência. Ou porque querem melhorar de vida, ou para ter alguém para lavar as louças, ou porque os pais querem ostentar um genro ou nora dignos da fidalguia, de porte, loiros, olhos claros rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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e, claro, endinheirados. Dizia isso baseado na experiência de ter conhecido tantas e tantas pessoas diferentes ao longo de muitos anos internado. A única vez que falou em família somente se referiu aos familiares como “aqueles que não me querem”. Seu fumo de rolo, já picado e guardado metodicamente em trouxinhas de plástico, até semelhantes às trouxas de maconha que são vendidas nas grandes cidades, digo, nas grandes, pequenas, médias, na roça, nas escolas, nos bares, no teatro, no cinema, nas ruas e vielas, em todo lugar. Depois de um tempo, apelidamos o João de “bumbum de veludo”, devido ao fato de ele ficar lixando as chaves. Lustrava cada uma como se não estivesse ainda com o brilho aveludado que esperava. Fizemos piadas, criamos uma musiquinha, enfim, conseguimos adquirir mais confiança do João para conversar. Ele era uma pessoa boa, embora guardasse em silêncio uma mágoa muito grande, que jamais conseguimos que revelasse nos diálogos, e isso é coisa que está guardada sob sete chaves, dentro de seu coração.

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O REJEITADO Nenhum interno da clínica gostava de um paciente, o Lucas Stephanini, que veio da cidade grande. Diziam que ele era muito fofoqueiro! Que contava ao enfermeiro chefe todas as conversas que havia entre os pacientes e que reclamava de qualquer coisa que o incomodasse. Diziam que se achava melhor do que os outros e que era arrogante a ponto de dar respostas grosseiras a funcionários da clínica, sob o pretexto da conversa ou da pergunta feita ser estúpida. Sentia-se protegido contra todos pelo fato de seu pai ser uma pessoa muito influente e chefe de polícia na cidade de onde viera. Foi internado pelo próprio pai, como medida de segurança, pelo fato de ter problemas com uso de drogas. Era comum haver alguma confusão envolvendo o Lucas. Ameaças do Franklin, um paciente do mesmo quarto, que sempre discutia com ele no corredor, chegando a apontar o dedo em riste ou dar empurrões. Também em outra oportunidade, o Deivisson saiu de licença para passar o dia na cidade e o Lucas comentou com o enfermeiro chefe que ele havia comprado uma faca para cortar laranjas e entrou com ela escondida na clínica. Quando foi dada busca no quarto, a faca de serra estava entre as coisas do Deivisson, e ele teve de passar a noite no R3, que é um quarto de pacientes mais problemáticos, na ala dos pacientes crônicos. Uma espécie de castigo para quem provocasse algum problema dentro da clínica. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Depois desse dia, o Deivisson o cercou no corredor, só não vindo a machucá-lo porque nós o seguramos. Lucas também tinha problemas com a Adalgisa, uma garota menor de idade que estava internada por ordem judicial por ter se envolvido com drogas. Ele criticava demais a jovem, a ponto de provocar bate-boca no corredor, dos quais sempre escapava calado para o quarto após ter armado a confusão. O rejeitado sabia da sua condição de pessoa não aceita na clínica, mas parecia não se incomodar com isso, bloqueando os ouvidos para toda a carga de rejeição social que o cercava. Ouvia conversas no corredor, fazia intrigas, era sempre criticado por suas condutas, mas não procurava se acertar para ter uma aceitação. Seu egocentrismo parecia falar mais alto sempre que algum problema acontecia. Lucas também denunciou uma tentativa desesperada de fuga de uma paciente, a Vera. Foi num dia de visitas, quando ela aproveitou o portão aberto e fugiu. Porém, como o Lucas denunciou-a rapidamente, até apontando a direção em que ela havia corrido, em pouco tempo ela estava de volta, trazida por funcionários. Escapou de ficar de castigo no R3 porque tomava conta de um paciente bem idoso e com problemas mentais, um fazendeiro que foi internado pela família, pois não queriam cuidar dele em casa.

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O FAZENDEIRO

Havia um senhor de idade bem avançada internado na clínica. A família decidiu pela sua internação, pois ele já não batia bem da cabeça. Lá na fazenda, de que ainda era o dono, fazia artes igual criança e, já cansado de tanto que trabalhou para erguer o império das mais de mil cabeças de gado, dez mil galinhas, uma vasta plantação de cana-de-açúcar, os alambiques de produção de cachaça e se envolver nos negócios agrícolas, acabou enlouquecendo. Aos 89 anos, era milionário e sofredor. Todos os dias, acordava às quatro e meia da madrugada, embora não tivesse despertador perto do leito, e os galos que cantavam na fazenda ficassem muito longe, sendo impossível que o velho pudesse ouvi-los de seu quarto. Mas sua pontualidade era invejável! A Vera tinha um carinho todo especial pelo fazendeiro, a quem tratava como um familiar! Caminhava pelos corredores da clínica chamando os bois e costumava arrastar os tapetes que encontrava pelo caminho falando com eles para não se desgarrarem da boiada. Então depois de juntar todos os tapetes em um mesmo lugar falava com eles para não se afastarem para a direção do precipício, e depois voltava a percorrer os corredores. Se alguém o reprimisse, então lhe voltava um pouco de lucidez e se lembrava de que, na verdade, aquilo era um tapete e não um boi. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Costumava fazer as necessidades em algum canto do corredor, quando não havia ninguém olhando. Se fosse surpreendido, falava que estava no mato, que não era proibido fazer ali, e, procurando nas paredes por folhas de bananeira ou qualquer outra coisa para se limpar, acabava por sujá-las com marcas de fezes, ao que ele agia com naturalidade. Quando passava por alguma crise, tentava de todas as maneiras fugir da clínica a fim de voltar para sua fazenda que com tanto esforço ergueu. Subia em cadeiras e tentava escalar as paredes como se fossem árvores. Seus filhos e netos até costumavam aparecer, quando não estavam ocupados usufruindo dos tantos bens.. Em seu olhar cansado, o peso de uma vida que se notava na quantidade de rugas e nos calos que se amontoaram uns sobre os outros nas mãos e nos pés para criar os filhos e também os primeiros netos que já eram casados e já lhe haviam dado seis bisnetos. Dos filhos, apenas um dos nove morava na fazenda. Todos os outros queriam distância do lugar, refugiando-se no conforto da cidade grande, longe da sujeira e do cheiro do gado. E os dias se passavam com o velhinho fazendo todas as manhãs o seu trabalho nos corredores, juntando seus bois e nunca deixando nenhum deles espalhado. E se guardava mágoas de sua família pelo abandono daquele que nem viveria mais tanto tempo e lhes deixaria tudo, ninguém sabe dizer. Seu olhar parecia implorar por um leve resquício de dignidade em acolher na velhice quem tanto serviu. Ninguém podia saber se possuía lucidez para se sentir magoado, pois não se sabia diferenciar os momentos de loucura que são muitos, dos poucos instantes de lucidez quando falava sobre a vida na fazenda.

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OS BOIS

A natureza foi transformada! Onde antes havia floresta, que de tão densa era necessário abrir caminho entre os cipós, hoje existe pasto. Um imenso tapete verde que ia até a encosta da montanha, onde, antes, cantavam pássaros, agora somente galos antes do amanhecer, chamando os senhores para tocar o gado para o campo. Os bois ficam pastando no campo de futebol existente em frente da clínica. São ao todo dezessete animais, todos de grande porte. Já adultos e prontos para o abate. São tão submissos! Aceitam o fato de a vida se resumir apenas em comer o capim e seguir de um canto a outro, obedecendo a horários que nada dizem. Seus donos aguardam que cresçam mais um pouco ainda para o dia de servirem de alimento e serem vendidos aos frigoríficos lá da cidade. Cada um dos bois sabe a sua função de cada dia, de apenas comer grama na parte da manhã e depois de determinado horário, assim que o boi mais graduado na hierarquia sair do pasto, os demais em fila e pisadas retas devem seguir a mesma direção. Obedecer a horários para o pastoreio na fazenda é a única função a ser executada a cada dia. Não há outra filosofia de vida. Esses animais de grande porte, em eras remotas, teriam uma sociedade selvagem semelhante aos mamutes ou aos búfalos e rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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seriam caçados por homens nômades que morariam em cavernas. Mas teriam uma vida livre e sem as regras impostas pelo seu senhor. Hoje são simples cumpridores de ordem, sem vontade própria e sem condições de modificar o sistema regrado e sem fundamento ao qual pertencem. O que difere esses animais de alguns setores da sociedade é que, durante o trajeto que fazem pela trilha da estrada de terra ao deixar o campo todas as manhãs, um boi não pisa na merda deixada pelos bois que conduzem a boiada, antes disso, sabem desviar do excremento deixado pelos que vão à frente. Nosso sistema é diferente! Muitas vezes os erros dos que conduzem são seguidos cegamente por quem não detém tanto poder de decisão, e apenas seguem por medida única e exclusiva do interesse em agradar quem pode prejudicar os mais baixos, mesmo que para isso seja necessário pisar na merda que é deixada no caminho. Por isso é pregado que não se deve desagradar quem está no topo, pois poderá haver retaliação, e a vida, que já é difícil, passa a ser mais difícil ainda, ao ponto de já não se imaginar escolha a não ser dar cabo da própria existência! Os bois, entretanto, não sabem se matar, mas todos sabem que irão morrer. E dias antes do abate, um dos dezessete bois saiu pelo campo em linha reta a caminho da rodovia. Passos lentos, devido ao seu grande peso, porém decididos. Não se desviou pelo caminho, nem para a direita nem para a esquerda. Saiu pelo portão de entrada, onde os outros bois ficavam pastando como de costume. Em pouco tempo somente o que se podia enxergar nesse dia tão nublado era um ponto negro chegando até a rodovia, seguindo talvez para a sua última jornada e levando consigo um viajante desatento. Seria uma vingança daquele boi contra o seu dono ou contra a má sorte da própria existência?

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Sua carne ofertada de graça aos urubus, aos abutres que lá do céu acompanhavam a caminhada, voando em círculos, seria oferenda pacífica ou, na podridão da vida sem sentido, uma forma de afrontar o seu senhor? E depois de um tempo coberto pela neblina não vi mais o boi. Foi se formando uma grande fila de carros e caminhões em meio a uma neblina muito espessa. Nos dias que antecederam o abate, só contei os dezesseis bois que ficaram no pasto. Aquele que se extraviou sumiu para sempre e, embora o seu destino tenha sido o mesmo dos demais, houve uma revolta moral, e o boi que foi embora escolheu morrer por uma causa, a sua vontade própria, e não apenas pela vontade do seu senhor, a dolorosos golpes de machado na cabeça. Ele foi embora para a rodovia e, quando o caminhão bateu, o motorista quase não se feriu. É o que disseram os funcionários. Outro chegou atrasado por causa do acidente e falou que o caminhão ficou com a frente destruída, e não havia seguro. Que houve um congestionamento muito grande por causa do acidente e que muitos motoristas esperaram horas até que o caminhão fosse rebocado do local. Na verdade, as estradas são construções arquitetadas pela própria morte para desafiar os viajantes! Suas curvas são maliciosas e guardam o choro de muitas almas em suas histórias precocemente finalizadas. Os últimos segundos da vida que vai se apagar são negros! É possível enxergar ao longe quem usa a capa preta, vindo silenciosamente recolher o seu despojo. O que difere essa entidade sombria do senhor no dia do abate desses inocentes animais? Após a perda do boi, o vaqueiro passou a vigiar os demais e colocou dois cães para evitar que os outros escapassem para a rodovia como fez o primeiro. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Chegou o dia do abate. Ao tomar sol pela manhã, o campo estava vazio e os bois não vieram como de costume. Nenhum deles. E depois disso não vi mais nenhum boi no campo de futebol ou na estrada de terra que vai para a fazenda.

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A VELHA

Uma das pacientes era uma senhora muito idosa. Ela já não conversava, porém seu rosto demonstrava muita raiva e tristeza. Era difícil para ela se alimentar, e os funcionários precisavam convencê-la da necessidade do alimento! Por vezes, era preciso que alguém a carregasse até o refeitório, pois se negava a sair do quarto. Estava internada havia alguns meses, segundo o João, e não aceitava contato com ninguém. A psicóloga Vanusa tinha dificuldades para tratá-la, mas sempre se empenhava bastante para que a idosa tivesse um pouco de recuperação, sem nunca ter desistido de devolver a ela um pouco da lucidez que uma vida já cansada havia levado. A velha estava com noventa e sete anos. Sua mentalidade não era a de uma pessoa normal, já que estava muito debilitada. Nas vezes em que estava mais nervosa, não deixava ninguém chegar perto. O Franklin tentava puxar conversa, e ela dava socos no ar na direção dele. Eu via em suas ações o sentimento de revolta, pois era uma pessoa já cansada de viver e não guardava senão vagas lembranças desconexas da vida. Já não falava e somente podia se expressar por meio de gestos e gemidos que sempre balbuciava quando alguém a carregava para o refeitório para se alimentar de sopa, já que nem dentes possuía mais. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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O CORREDOR

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Era noite! A bruma cobriu todo o horizonte e lá do lado de fora da clínica uma fina camada branca escondia o verde da grama, tornando a vegetação escrava do frio intenso da estação. Eu havia acabado de ler um livro da autora Lucília Junqueira de Almeida Prado, chamado Antes Que o Sol Apareça, da biblioteca da clínica. Nele é retratada a difícil vida de uma família rural que vive das estações do ano, trabalhando como boias-frias e utilizando condições precárias de transporte nos antigos caminhões pau-dearara, que levavam os trabalhadores sem as mínimas condições de segurança, dependurados na caçamba, os quais provocavam muitos acidentes e geravam riscos à vida de todos. O livro é muito interessante, e a prisão à sua leitura me ajudou a formular inúmeras reflexões sobre minha morte espiritual. Lembro que, numa das passagens do livro, a personagem Rosa, filha do casal principal do livro, vai morar em São Paulo e há um acidente grave: o prédio onde ela trabalhava pegou fogo. Depois desse acidente, e com a morte da garota, se desenvolve um rito simples de amor à vida, na sentimentalidade do povo humilde em sua essência mais rica! A surpresa ficou por conta do final, quando o amor demonstra ainda mais querência em perdoar quem comete falhas tão graves de negação ao passado apenas pelo fato de a pessoa renascer da cinza e, embora por rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


uma tela de televisão, o coração humilde saber que ainda há esperança! Havia um corredor, de exatos quarenta metros, que dava acesso aos quartos. Foi ali, naquele local, que me concentrei e que ocorreu minha primeira reflexão sobre a vida. Lá no final do corredor, onde havia um sofá de dois lugares. Após ler o livro, fui pra lá meditar sobre a vida ruim de um pensador, enquanto a cerração corria pelo lugar com ferocidade e ousadia! Nos primeiros dias, desacostumado ao fato de estar internado e me sentindo desamparado frente a problemas tão cruéis quanto o assédio moral e o abuso de poder, ficava fumando cigarros, no final das tardes, para relaxar. E observava os pacientes da clínica, cada um com o seu modo de viver e conviver com o problema que os trouxe a esse lugar de tratamento. Ao mesmo tempo, sentia profunda indignação com a impotência dos mais fracos perante o poder maquiavélico dos sistemas social e profissional humanos. Não há socialismo nas ações dos homens de negócios. Não há apoio mútuo nem compaixão com os problemas alheios. O que há é somente o desejo de ser onipotente a qualquer custo. E ali no corredor, filosofando sobre a vida, aceitando cada vez mais o fato de estar doente, tendo meus ideais inoculados pelo peso maléfico dos verdadeiros doentes morais, olhava o corredor em sua extensão e me lembrava do dia do acidente, das loucuras que pairaram sobre minha mente naqueles momentos de terror, lembrava os gritos das pessoas, a freada brusca do metrô e o momento em que fui sedado no hospital. O corredor parecia uma passagem ou uma travessia! Cada vez que eu cruzava a sua extensão era como se houvesse algo de muito importante a fazer do outro lado, mas nunca havia. Eu era um morto em cinzas, porém com as funções vitais ainda íntegras. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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MÃOS TRÊMULAS

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A abstinência das drogas provoca sensações diferentes em cada pessoa. Percebi que vinha lá do final do corredor um senhor de idade, recém-internado. Ele tinha vendido todos os móveis da casa para comprar entorpecentes. Após o período inicial de desinfecção, suas mãos ficavam tremendo, sem coordenação. Ao me ver fumando, veio depressa. Sentou-se do outro lado da poltrona e, como não tinha cigarros, de maneira bem tímida, pediume um. Contou-me sobre a vida os motivos que o levaram a aceitar a internação: – Em minha cidade eu era muito conhecido! Tinha o meu comércio na praça, fui casado por mais de dez anos. Era feliz! – E como isso tudo começou, senhor Elias? Perguntei fitando seu semblante resignado, de olhos rígidos e atentos! – Foi logo após ela ter ido embora. Eu a amava muito! – Como foi isso? Ela descobriu que eu usava drogas, mas nunca fui de brigar com ela. Eu fumava meu cigarrinho escondido, na casa de um amigo, e depois ia embora, tomava meu banho, levava frutas e verduras. – Mas isso não é motivo... rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Espera, tem mais. Ela estava querendo se separar já havia um tempo. Dizia que estava infeliz longe dos pais e queria ficar mais tempo com eles. Começou a fazer viagens constantes que demoravam quase o mês todo. – Sentia que ela já não o amava? Perguntei, demonstrando curiosidade em ouvir o que ele tinha a dizer. Reparei suas mãos cada vez mais trêmulas segurando o cigarro, deixando até mesmo algumas cinzas caírem sobre a roupa. – Foi tudo muito de repente! Ela foi embora. Separou-se de mim e levou metade de tudo. Vendi a casa e a loja, depositei o dinheiro na conta do banco e, depois de um tempo, veio um oficial de justiça me procurar para assinar os papéis. – E depois disso, não se falaram mais? – Ela sumiu no mundo. Tentei ligar algumas vezes, mas nunca atendia minhas ligações. – Compreendo... – Fui morar numa estalagem em outra cidade e comecei a beber muito, cada vez mais afundando nas drogas até que comecei a roubar por não ter mais dinheiro. Havia perdido tudo. – Então está internado por ordem judicial. – Vou cumprir pena aqui. Fui julgado, e foi determinada a internação para me tratar. – Mas o que fez? – Depois de um tempo a encontrei. Estava casada com outro homem. Eu era um mendigo que ficava pedindo esmolas no centro e a vi passando com aquele rapaz bem mais novo do que eu, sem ruga no rosto e porte de atleta. De repente, as mãos de Elias começaram a tremer mais ainda, e ele começou a ficar mais agitado. – Entendo. Essas coisas nos tiram do sério mesmo. Escute, tome mais um cigarro e me conte o que houve, vai ajudar a descarregar esse peso. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Eu tentei matar o homem, mas, quando dei a facada, pegou de raspão no braço e só veio a sangrar. Várias pessoas estavam na rua e me seguraram. Um deles até me conhecia de tanto ficar naquele lugar, pedindo dinheiro e comida. Não deixou que me batessem. – E depois? – Fui preso, e algumas pessoas, que me conheciam dos tempos da venda que eu possuía na praça da antiga cidade, procuraram me ajudar. Eles nem sabiam de tudo o que estava acontecendo comigo. – E vai ficar aqui por muito tempo? – Eu quero ficar. Se eu sair daqui, não terei nem onde passar as noites. Não me sobrou nada na vida. Fiquei imaginando o que poderia estar passando pela cabeça dele, mas tentar entender um problema tão sem solução acaba fazendo com que pensemos nos nossos próprios e ficamos também tristes e deprimidos. Então, ao se levantar e caminhar pelo corredor, novamente as mãos tremiam, denunciando a falta do entorpecente para o corpo e o vazio da própria existência, difícil de preencher novamente com qualquer tipo de plano ou sonho. Havia uma paciente na ala feminina cujas mãos também ficavam tremendo bastante, em determinados dias, e esse estado se espalhava pelo corpo, provocando também movimentos na cabeça. Todos os dias, cumprimentava a todos, lá do balcão da área feminina da cozinha. Às vezes, pedia que jogássemos um cigarro e, em dias em que estava mais aflita pela carência de entorpecente, ficava agressiva e nem os remédios controlados, que todos os pacientes tinham de tomar, ajudavam-na a se acalmar.

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A RODINHA DE BRASAS Por motivos de segurança, devido ao fato de haver internos com sérios distúrbios mentais, era proibido que qualquer paciente tivesse isqueiros ou fósforos em seu poder, mesmo que bem guardados. Era a regra, sem exceção. Qualquer funcionário que visse algum paciente com isqueiros tinha ordem para tomar e guardar no posto de enfermagem. Então, quando algum paciente conseguia acender um cigarro, os demais que fumavam sempre pediam a brasa emprestada para acender seus cigarros. A brasa era passada de cigarro em cigarro e durante o dia era raro que não houvesse ao menos uma pessoa fumando. O paciente que passava pelo pátio procurava para ver se havia ali alguém fumando, o que era comum, para pedir a brasa emprestada e acender seu cigarro. Alguns pacientes conseguiam esconder isqueiros e, à noite, acendiam cigarros quando a rodinha de brasas já estava desfeita. Então sempre aparecia um, como que guiado pela fumaça, pedindo a brasa emprestada. Era algo que fazia até mesmo o paciente que já estava deitado sair do quarto, ao perceber que havia alguém fumando, pois a grande maioria ali não tinha isqueiros e quem os tinha escondia bem para evitar que fossem recolhidos pelos funcionários. Para acender o cigarro, ia até o esconderijo, acendia rapidamente e voltava a guardar o objeto valioso tão cobiçado! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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OS REMÉDIOS DO DESEJO

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Desde o dia em que cheguei aqui na clínica, algumas sensações como o desejo foram praticamente abolidas do meu corpo. A quantidade de remédios necessários para que os pacientes fiquem relaxados e calmos durante o tratamento também serve para evitar determinadas condutas. São poderosos inibidores de emoções e desejos! Não é interessante que haja relacionamento afetivo entre os pacientes. Na verdade, são proibidos os beijos e certos assanhamentos entre pacientes. Tudo é muito controlado! Há no posto de enfermagem as fichas de cada paciente onde são anotados os medicamentos receitados pelo médico responsável. Tudo o que o paciente faz de errado é anotado em sua ficha, e se esquecer do remédio, os enfermeiros vão atrás dele para lembra-lo. Antes de cada horário de tomada de medicamento, a equipe de enfermagem faz a separação, com o nome de cada paciente anexado ao medicamento, sendo impossível que, por algum descuido ou falta de vontade, o paciente deixe de tomar o que lhe foi prescrito. Havia dias em que, na parte da manhã, eu ficava com certa sonolência devido ao uso dos medicamentos, e o Fausto havia falado que, nesses dias, é bom ingerir muita água para que o efeito seja mais breve e logo o corpo possa restabelecer o funcionamento normal. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Percebi também que as unhas não estavam crescendo como antes. Nessa época, cheguei a ficar duas semanas sem precisar cortar as unhas das mãos e dos pés. Os medicamentos neutralizavam a maioria das emoções, como amor, ódio, tensão, saudade, desgosto e vingança, deixando o corpo num estado de tranquilidade plena e numa carência de ânimo para qualquer ato nocivo à paz e à ordem. Eu parecia um vegetal! Sem ações de anarquia ou pensamentos revolucionários. Imune às emoções que sempre foram uma das minhas grandes qualidades.

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A IMAGEM DA ESTRADA

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No primeiro dia de visitas coletivas, o pensador ainda não podia receber ninguém, pois cada paciente internado ficava quinze dias sem receber visitas ou ter contato com os parentes e conhecidos. Era uma norma da clínica para promover a reabilitação do paciente e a equipe médica traçar um plano de ação para minimizar os problemas psicológicos de cada um. Os pacientes chamavam de quarentena do inferno. Era sábado de manhã e não havia nada para fazer. Após tomar café, ele foi para a área externa ler um livro, dessa vez a obra que escolheu na biblioteca foi O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Um livro interessante, que dá vida ao povo humilde dos cortiços, em que o personagem João Romão cria, com certas picaretagens, uma estalagem, talvez uma pequena favela ou algo parecido, e, ao longo do livro, a vida do povo humilde ganha status de interesse, ao passo que é conhecido o modo de ser e viver da classe mais baixa da sociedade, demonstrando que há muita cultura nos ambientes mais humildes e menos favorecidos. As intrigas, os ciúmes, a velha bruxa que sonhava incendiar o cortiço e até mesmo a briga entre o português casado e o mulato capoeira pela posse do corpo e da essência da baiana cheirosa e sedutora tornam o livro atraente. Nessa guerra de ciúmes, após uma briga iniciada numa roda de samba no cortiço, o capoeira, magrelo, astuto, melindroso e com rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


uma vasta história criminal, apunhala o português, levando-o a ficar internado e passar por um doloroso tratamento pós-operatório. Certo é que, ao se recuperar, o luso se vinga do mulato cercando-o com outros comparsas na encosta da praia. É difícil imaginar tal situação hoje em dia, na qual uma pessoa esfaqueia a outra e não vai presa, se localizada pela polícia. O livro conta que o capoeirista ganhou até fama no cortiço vizinho, sendo apoiado pela malandragem, frequentando normalmente um botequim que havia no bairro, como se nada houvesse acontecido. Numa situação dessas, hoje em dia, o indivíduo seria preso, e, na sua prisão, já imaginaria de mil formas o dia de sua morte, pois é difícil imaginar, num mundo que vive de vingança e acerto de contas, que um crime contra a vida ficasse sem punição. Isso mexe com a honra das pessoas. Brigar por motivos banais e tentar tirar a vida dos outros é ato de covardia que, na moderna visão vingativa do povo, não fica sem retaliação à altura. No livro, o capoeirista é morto com várias pauladas, o que também é incomum hoje em dia. A modernidade usa armas e instrumentos de tortura, capazes de fazer a pessoa implorar pela morte rápida e sem dor, mas ao contrário sentiria desfalecer cada partícula de vida, e nem mesmo gritar seria possível. Após o homicídio, o corpo do capoeirista é jogado num desfiladeiro, na encosta da praia, e foi encontrado dias depois. E o pensador reflete sobre o livro e sobre a vida, contrastando com um sol arredio no céu, ora desafiando o cobertor de nuvens, ora reinando absoluto num céu limpo e claro! O que falta ao homem é conhecer melhor a sociedade em que vive. Talvez se os que governam ou comandam tivessem participado da vida no seio pobre da sociedade, teriam maiores condições de governar justamente essa massa social que, em todos os sistemas sociais e profissionais, é a maioria. O imperialismo surge justamente devido ao afastamento de quem possui poder da classe que é governada ou comandada. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Após terminar a leitura, e já com o sol da tarde clareando as matas e a rodovia, o pensador foi para um quiosque localizado na entrada da clínica e ficou admirando a estrada. Uma grande quantidade de carros seguia seu destino! Alguns apressados, outros na calmaria da viagem para relaxar e esquecer os problemas. Caminhões carregados de mercadorias iam em direção à cidade grande para abastecer o comércio. Ônibus passavam, com várias pessoas olhando pela janela, viajando a trabalho, a passeio, para procurar emprego e se consultar nos hospitais da cidade. A imagem da estrada provocou muita tristeza! O pensador se lembrava dos desgostos provocados por pessoas de espírito tão vazio. O silêncio dos carros ao passar pela estrada, às vezes quebrado por buzinas, despertava de súbito o desejo de chorar. Chorar pelas lembranças da perseguição moral que nada mais significa que um ciúme, exteriorizado em ações, de gente que nasceu com alguns dons, porém com o intelecto maligno. E essa gente não aceita que outra pessoa também os possua, fazendo o impossível para lhe apagar o brilho e a vontade de viver. Foi lá naquela estrada que passou a ambulância que o trouxe a este lugar, e, embora estivesse desacordado, parecia se lembrar dos momentos, como se sua alma, para protegê-lo, saísse do corpo e ficasse sentada na ambulância, como uma sentinela fiel, olhando pela janela para reconhecer o caminho por onde deveria voltar para sua casa e se reerguer dos momentos de infelicidade. As estradas provocam sensação de liberdade e paz nos homens! Embora seja arriscado trafegar por elas pelo grande número de acidentes e devido ao descaso do poder público em aumentar a quantidade de placas, investir em duplicações, em sinalização e acostamentos, em segurança, enfim. A estrada sempre leva a um destino, mesmo que este seja a morte em alguma de suas curvas. Paisagens belíssimas de montanhas e rios se descortinam às margens das estradas! Tudo isso provoca um esvaziamento rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


considerável da carga de stress que a vida em sociedade provoca em cada indivíduo. A sociedade é egoísta por natureza! Julga, sem fundamento, os indivíduos inseridos no meio social pelo simples fato de serem diferentes em algum aspecto. Imaginem como seria ruim se todos fossem iguais em todos os sentidos, desde o modo de se vestir, ao modo de pensar e viver, unicamente seguindo a filosofia de pensamento dos mais antigos no seio social! Não haveria a própria sociedade, com a supremacia da democracia e sim um regime simplificado à carência de vontade própria em cada indivíduo. Todos usariam a mesma roupa, o mesmo corte de cabelo, o mesmo jargão decorado, gostaria das mesmas coisas, e dessa monotonia social resultaria a própria extinção da sociedade e a transformação da vida numa mecanização da individualidade humana. Sim, seríamos todos robôs! Sem ações próprias, sem amor próprio, sem individualidade e sem interesse. Logo a tarde foi cedendo lugar ao frio da noite, e o pensador foi até a lavanderia pegar uma calça de moletom, uma blusa de cor verde, um par de meias, uma cueca e um gorro. Ao voltar, em direção à área interna da clínica, deu a última olhada em direção à estrada, tendo o sol já se escondido atrás da serra e a luz no lado oposto já vinha mostrando uma cor vermelha, escondida parcialmente atrás de uma nuvem. A estrada já não apresentava o mesmo movimento intenso de horas atrás. Quem tinha que ir já se foi antes que a noite caísse, e os que voltavam já estão no aconchego de casa há muito tempo. Só ficaram as marcas no asfalto, das frenagens de pneus, dos animais que ali morreram, das pedras arrancadas do chão e a poeira que deixaram, já quase extinta, somente ganhando o ar novamente quando passa um carro, no escuro da noite, clareando as curvas da estrada e o mato verde na extensão da sua encosta. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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O FRIO E AS NEBLINAS

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– Que frio é esse Fausto? Não sei como se acostumou com o clima daqui. – A gente se acostuma. Lá onde eu moro, no município de São João do Reino também é bastante frio nessa época! – Esse ano está mais quente que os anos anteriores! Tinham que ter visto o frio que fez quatro anos atrás, aquilo sim que foi frio mesmo! Disse o João com propriedade. – Lá onde eu moro não faz tanto frio assim. A coisa mais difícil de acontecer por lá são neblinas. – Hoje à noite não vai haver neblina porque vai chover. A neblina vai aparecer só de manhã, quando a chuva parar. – Como sabe, João? Também anda prevendo o tempo? Estou há muitos anos nesse lugar e aprendi, com o passar dos anos, a entender a natureza das coisas. O tempo sempre avisa o que vai acontecer. Como hoje não está tão frio como deveria, a chuva não demora a cair. Se não fosse chover, já teríamos neblina. Aconselho que fechem as janelas antes de dormirem. – Que interessante! São coisas que não nos acostumamos a reparar, não. – Quando se fica muito tempo preso a um lugar, como eu estou, aprende-se a observar coisas que passam despercebidas no dia-a-dia. Se aplicássemos esse aprendizado em nosso cotidiano, evitaríamos muitos transtornos! Saberíamos mais facilmente identificar as pessoas ruins e nos afastar delas, poderíamos prever rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


com boa antecedência o resultado dos nossos planos de vida. Coisas ruins, como a perseguição e o assédio moral que sofremos, não teriam acontecido se se pensasse melhor antes de trabalhar num bom emprego que paga muito bem, mas que rouba sua felicidade e a joga fora como lixo, num sistema que oprime a todo instante, não dando credibilidade alguma a quem não é mais que um mero objeto de uso numa doutrina arcaica que não procura progredir. – Não é tão simples assim, João. Acredito ser mais fácil prever o frio que as más intenções das pessoas. – Mas tudo serve de aprendizado. Você escolheu um bom emprego. Mas veja que há pedreiros felizes e empresários infelizes. Em determinado lugar, há um padeiro muito feliz e um cliente da padaria que vai todos os dias de terno para o serviço, com a expressão do desgosto pela vida. Isso está em toda parte! Parece que quem mais se diverte ou é feliz é justamente quem menos pode e menos tem. Isso prova que a felicidade não está em possuir um cargo elevado numa repartição, empresa ou instituição, e sim em fazer um bom trabalho, sendo, antes de tudo, um bom amigo, um bom profissional, um bom pai e um bom esposo! As horas passaram e, no meio da madrugada, acordei com um barulho na janela. Os pingos de chuva entravam pela fresta e chegavam ao chão do quarto. Então me levantei e vi que os outros pacientes do quarto dormiam um sono profundo. Um vento gelado com cheiro de terra molhada percorria o quarto. Fechei a janela por completo, voltando a dormir em seguida, enrolado em três cobertores.

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OS EMBATES

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Todas as pessoas passam por problemas na vida. Na verdade, poucas encontram a solução plena de seus problemas. Unsaprendemmais facilmente aconvivercom tantas decepções, que na maioria dos casos se parecem: a perseguição moral no local de trabalho, a falta de dinheiro, a depressão, as drogas, o excesso de bebida e até mesmo a perda repentina da lucidez e o desejo de acabar com a vida. Mas as pessoas são dotadas de personalidade, e na vida em sociedade, seja ela qual for, há sempre os conflitos entre as personalidades. É por isso que, muitas vezes, uma pessoa que possui um status elevado no ambiente social se sente ameaçada quando, do nada, surge um obstáculo que é justamente uma pessoa que se destaca no ambiente. E o indivíduo dotado da condição de soberania, na maioria das vezes, procura eliminar seu concorrente a qualquer custo, pois vê sua importância se reduzir devido a um dom encontrado nele, e que não possui. Nesse contexto, por vezes os pensadores ponderam sobre onde se encaixa o patamar revolucionário, voltado ao socialismo. Na sociedade humana capitalista, é importante demais ser alguém que ocupa uma posição social de destaque! Para o ser humano, estar no topo é mais importante do que comer, beber ou ter saúde física e mental. Em qualquer lugar é assim. No trabalho, na família, numa festa, confraternização, no barzinho e até mesmo na intimidade. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Na clínica não é diferente. Há alguns pacientes que querem ocupar um lugar de destaque entre os internos. É comum no corredor se ouvir algum embate. Ou porque alguém fica fumando perto dos quartos, ou por causa de alguma fofoca com o nome da outra pessoa, ou o barulho do som, a mudança de canal da televisão, um esbarrão na fila do almoço ou do lanche e até mesmo pela altura das conversas à noite. Há aqueles que querem ser os donos da situação e os moralistas, que, por qualquer motivo, querem gritar e se fazer notar, e aqueles que são eternos provocadores. O interessante é que, embora as pessoas estejam em um determinado momento da vida inseguras sobre a racionalidade dos pensamentos e ações, conseguem conviver no ambiente social mesmo tendo personalidades tão distintas e problemas de vício ou algum transtorno mental, em alguns até permanente. Isso nos leva a crer que o tamanho das sociedades e as características dos indivíduos que as compõem é que darão origem à natureza e à amplitude dos embates que formam o seu cotidiano. Eu não entrava em tais conflitos. Na verdade, ainda estava me sentindo ideologicamente morto. Ainda não havia encontrado uma razão para vencer toda a situação em que estava. Um morto que respira e come, dorme e acorda, vê o sol da manhã e o luar reinarem no céu, que sente frio e sede, mas não tem uma razão para ressuscitar e voltar a ser um pensador, um ideólogo, capaz de confrontar a ilegalidade onde quer que ela esteja, não importando o peso do fardo e as consequências da coragem e do amor pela justiça e pela honra. Esse ser morto dentro de mim, queimado no âmago do coração e derrotado pelas desilusões da vida compara-se a um montinho de cinzas após a brasa queimar tudo que encontra pelo caminho.

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DESENHOS NA PAREDE

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– Bom dia! – Disse a terapeuta ocupacional Claudete. – Olá, tudo bem? – Fiquei sabendo que você desenha muito bem! Gostaria de convidá-lo para fazer os novos desenhos na parede do espaço de terapia ocupacional. Ontem, vi um desenho seu lá, numa folha de papel, e amei! Mas, se achar melhor, pode fazer alguma outra atividade lá na terapia, o que acha? – Não há tintas suficientes para fazer os desenhos. Não é tanto pelo trabalho, é o material mesmo. Não estou muito animado a fazer nada. Eu fiz aquele desenho porque a Adalgisa me pediu para que pudesse fazer uma estampa. – Vamos fazer o seguinte: faça um desenho só, e eu convenço a dona Hélida, proprietária da clínica, a comprar mais material amanhã mesmo. – Tudo bem! Posso fazer qualquer coisa que quiser? – Sim. O artista aqui é você. E não percebe como essas paredes estão feias, sem vida?! – Está bem, então. Vamos aproveitar a manhã, não é verdade? – Isso mesmo, garoto! Na verdade, as artes já nascem com o artista! Estão no gene, no sangue, no modo de andar, de olhar, de viver! Não há como aprender a ser artista, o máximo que se pode obter com o aprendizado é fazer arte. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Expressão artística fundamentada na essência da carne e do espírito somente pode entender quem foi gerado no crisol divino da criação e mergulhado no licor sagrado do dom artístico! É o dom da arte! Algo que para o artista vale mais que cem moedas de ouro! A sua tradução intelectual nas variadas formas de expressão, tanto em palavras, quanto gestos e movimentos, figuras, sons e fala. A arte surge do artista tal qual a planta no agreste ressecado, carente de chuva: não se entende como é possível, mas se vislumbra que é! Corre água no interior das palmas mesmo que elas sejam o cenário do sertão seco e carente das chuvas e rios. Para o artista de verdade, as palavras não são apenas o talho e o filete, ornadas conforme a caligrafia escolhida, ou a Gótica, ou a Ronde Francesa, a Manuscrita Italiana ou Manuscrita Comercial Inglesa. Para o artista, a música não é apenas a execução lógica de campos harmônicos e tons que somente se explicam num contexto lógico. É inovar conforme a sua ousadia e se aventurar, até mesmo numa troca de tom no meio da canção. O artista de verdade se expressa com o corpo ao dançar, não apenas para mostrar o que o contexto musical representa, ele transcreve em ações aquilo que o espírito transborda. Morto espiritualmente, eu já havia me esquecido disso. Meu corpo apenas vivia, já não possuía nenhum ideal nem a sedução comunista dos ideais contrários ao maquiavelismo do atual governo. O primeiro desenho estava terminado. Um painel vistoso com dois pássaros alimentando um filhote, muma árvore. A gravura gerou comentários na clínica, e todos que viram gostaram muito da figura, que se destacou no meio de tantos rabiscos antigos que estavam no lugar, já envelhecidos pela ação do tempo. No dia seguinte, todas as tintas pedidas estavam no espaço de terapia ocupacional, separadas com o meu nome. A terapeuta rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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havia realmente convencido a proprietária da clínica a adquirir os materiais necessários. Seria um modo interessante de passar o tempo, além de dar uma nova imagem ao espaço de terapia ocupacional, que era uma pequena casa onde eram guardados os trabalhos feitos pelos pacientes e todos os materiais usados para a terapia, tais como tintas, lantejoulas, barbantes, palhas, cabaça, cola, fitas adesivas, brilhos, entre outros. E a área externa da terapia ocupacional consistia de um quintal com paredes delimitando o espaço das atividades. Foi justamente nessas paredes que um lindo trabalho artístico foi elaborado! Muitas cores, nas quais se destacavam o verde e o rosa, cores representativas do amor e da esperança. Na verdade, a combinação das cores verde e rosa tem um significado espiritual muito grande! Transmitem paz e alegria muito intensas! São as cores da Estação Primeira de Mangueira, a tradicional escola de samba do carnaval carioca, muito querida em todo o país! Também foram usados vários tons de vermelho, uma cor marcante para o ideal revolucionário. Em vários países, é a cor do comunismo e do socialismo. Numa das paredes, desenhou-se um painel único com a alimentação das aves, um beija-flor tirando o néctar de uma planta rara, um cavalo e duas aves silvestres, tudo com muita cor e magia! No outro painel, de um canto a outro da parede, surgiu o fundo do oceano, concentrando, em magia e sutileza, a imagem das sereias e dos corais. Em outro canto, revelou-se o esplendor do samba, com uma autêntica roda de samba, alegre, festiva! As matas e um índio caçador, um rei da mata, empunhando sua flecha, tendo ao fundo uma cachoeira imensa, de águas azuis! Borboletas e flores! Um contraste harmônico e alegre de cores e paisagens que se projetaram até a porta do espaço.

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Foi como se a própria porta tivesse se transformado num livro da vida, e a passagem fosse folha em branco para ser preenchida com ações para o bem-estar de cada um. Os trabalhos artísticos auxiliaram o processo de adaptação àquele lugar, visando ocupar o tempo e tirar da memória tantos momentos de depressão e cenas de retaliação aos dons que a vida proporcionou. As pinceladas na parede foram rasgando o coração, para arrancar de seu interior um ranço de decepção e impotência moral que haviam envenenado a vontade de viver. E daí em diante, passava os horários de terapia fazendo os desenhos na parede, retocando as cores, criando efeitos de luz e sombra para que ficasse o mais perfeito possível! A importância do detalhe é algo tão valioso quanto a perfeição na lapidação de um diamante! Ao fim de duas semanas, todas as paredes estavam cobertas de gravuras muito coloridas! Havia uma sensação gostosa de ambiente novo, com o cheiro de tinta ainda pairando no ambiente! Sabendo da notícia, um jornal local procurou a clínica para exibição de umareportagemsobreo trabalho de terapia ocupacional. Na verdade, o que queriam era mostrar os painéis criados, pois não foi possível gravar mais que imagens dos trabalhos artísticos, sem a exibição de nenhum paciente da clínica, a fim de se evitarem transtornos com familiares. Os pacientes e funcionários gostaram muito do novo espaço e várias vezes paravam para admirar os trabalhos. A porta virou um livro aberto com uma mensagem agradável, e as paredes, uma tela de um mundo mais alegre, mais festivo. De fato, foi traduzido em imagens um desejo que há muito tempo estava anestesiado em minha alma, que só carregava as chagas da perseguição e as marcas da chibata que há muitos anos já não açoitavam nem mesmo os escravos! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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AS TROCAS DE OBJETOS

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Foi quando faltou cigarro na cantina. Um desespero silencioso pairou durante a manhã, pois alguns pacientes ainda tinham cigarros. Quando acabaram os da grande maioria, houve uma revolução! As pessoas ficavam nervosas ao saber que não iriam fumar. Muitos pacientes procuravam quem ainda tinha cigarros para propor a troca por um par de meias, uma blusa, bermuda e até dinheiro. Na verdade, eu não sabia que alguns pacientes conseguiram esconder dinheiro na clínica entre os seus pertences. Essa notícia me deixou surpreso! Se o fazendeiro visse, iria dar problema, pois outro dia uma enfermeira lhe mostrou uma moeda de dez centavos, e ele entrou em crise falando que ela lhe havia prometido dois mil. Na verdade, o boiadeiro tinha diversas crises. Ainda bem que não fumava. Ele tentava pular a divisória do posto de enfermagem e entrar lá de qualquer maneira, xingando e delirando que a enfermeira disse que lhe daria dois mil e que estava voltando atrás em sua palavra. Os pacientes crônicos estavam desesperados querendocigarros! Pegavam restos de cigarro no chão, catando as guimbas para tirar o fumo. Reviravam a grama, tateando cada centímetro à procura de restos dos restos jogados. Eu ainda tinha a metade de um maço de cigarros. Como não queria trocar nada, se algum paciente chegasse pedindo, eu tirava rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


um do bolso, pois o restante estava guardado para evitar que eu também entrasse no desespero de ficar sem o doce vício, que aquieta as emoções e tensões aqui nesse lugar. Entretanto, as trocas de objetos logo foram descobertas, e a direção determinou as devoluções de todos os objetos que tinham sido trocados por cigarros. Foi uma tarde inteira de devoluções de objetos, sendo monitoradas pelos enfermeiros. E tudo aconteceu porque faltou cigarro na vendinha. A situação foi tão alarmante que a direção da clínica chamou a atenção do rapaz que estava lá no dia, cobrando mais eficácia no serviço para não prejudicar os pacientes que dependem do vício. Depois desse dia, contudo, as trocas continuaram acontecendo. Os pacientes descobriram que o interior da clínica poderia ser uma sociedade, tal qual a que estavam acostumados no mundo lá fora, até mesmo com uma rede de comércio, bastando para isso apenas uma oferta e uma procura. Houve troca de um sabonete chinês, muito cheiroso, por um maço de cigarros. Outro paciente queria fumar um cigarro de melhor marca e comprou com dinheiro. Um outro, conseguiu, sabese lá como, um aparelho celular em ótimo estado de funcionamento com bateria e carregador. As pessoas sentiam saudade da vida social, e isso alimentou, desde aquele dia, as constantes trocas de objetos no interior da clínica.

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VISITAS

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Depois de quinze dias internado, o pensador finalmente poderia receber visitas e ligações, as quais eram direcionadas ao telefone da sala da assistente social Iara e atendidas na presença dela. Era domingo de manhã e várias pessoas ligaram. Queriam falar com ele, ouvir sua voz e saber como estava. Passou boa parte da manhã atendendo ligações de amigos, familiares, pessoas importantes e comuns, e a todos dirigia palavras de respeito e gratidão por terem se preocupado com ele. Até mesmo um representante do partido comunista ligou, para falar que sentia falta da sua presença nas reuniões da cidade, que sempre o viam como um político em potencial, embora sempre acabasse desviando do assunto. Vieram da cidade onde morava, já na parte da tarde, sua irmã Karolina, a amiga Riana, a prima Sirlene e seu esposo Ademar. Trouxeram no carro um cobertor de veludo, vários salgados, duas cartas de familiares, doces e balas de que muito gostava. Era dia de visitas coletivas e alguns pacientes receberam seus parentes, entre eles os parentes do fazendeiro, os quais chegaram num carro novo. Ao caminhar pelo interior da clínica mostrando aos que vieram as dependências, o pensador falava sobre as experiências que estava tendo, apresentava-os aos pacientes e contava um caso ou outro sobre algum paciente. Com um pedido feito antes à dona da clínica, obteve autorização para que o enfermeiro-chefe acompanhasse os parentes até o rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


espaço de terapia ocupacional, e quando a porta foi aberta todos ficaram admirados com os mosaicos que cobriam todas as paredes de um canto a outro, com graça, alegria e perfeição nos traços de cada desenho. O enfermeiro chefe ainda não havia visto os murais e chegou a tocar nas paredes, admirando-as. Os visitantes tiraram várias fotografias do lugar, que disseram estar belíssimo! Um ambiente tão puro e cheio de vida, repleto de cor e esperança! Parecia que ali era um novo mundo, sem as cinzas que infeccionam os pulmões na vida em sociedade. Realmente foi exteriorizado em imagens outro universo, existente na subjetividade do pensador, que não foi poluído ou ferido pela aspereza da vida em sociedade. Depois, foram todos para um local onde havia cadeiras e mesas. A assistente social então chamou as mulheres para conversar à parte, numa sala, e o pensador ficou conversando com o Ademar. Falou dos momentos que passou e que foram decisivos para o quadro de depressão a que estava submetido, recebendo conselhos importantes para não deixar que as tristezas da vida abalassem uma pessoa de futuro tão promissor, devido à grande intelectualidade que possuía. Ao abrir um salgadinho, do que mais apreciava, feito de farinha de trigo cozida, uma paciente entrou na sala e pediu um pouco, ao que ofereceu com gesto de desprendimento e alegria. A paciente estava internada há um ano e seus parentes nunca foram visitá-la, por morarem muito longe e não terem muitos recursos. Após um tempo e depois de muito conversarem, as mulheres retornaram. O sol já estava se escondendo, deixando que os primeiros sinais da noite aflorassem, trazendo o frio e o brilho da lua cheia no horizonte oposto, quando os parentes se despediram. E, ao entrarem no carro, desejaram melhoras, dizendo que iriam ligar constantemente para ter notícias, já que agora não estaria mais tão isolado, podendo receber notícias. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Nesse intervalo, outras pessoas ligaram para a clínica a fim de saberem notícias suas. E ao saber disso pela assistente Iara, ficou contente de haver tantos conhecidos preocupados com sua melhora. Uma das pacientes, a Salomé, passou o dia inteiro dizendo que seus dois filhos iriam visitá-la, mas a tarde passava e nada de aparecerem. Foi decaindo, ficando com um semblante descontente e apreensivo, até que, pouco tempo antes do horário de visitas se encerrar, o casal de filhos chegou de carro. Uma jovem de dezenove anos, loira e muito bem apessoada, e um jovem de treze anos, rechonchudo e de cabelos arrepiados! A vida é difícil! Lutamos para vencer ! Viver é procurar diamantes onde só existe areia... Ela, maravilhada com a presença dos dois, andou com eles pelo interior da clínica, apresentando-os aos funcionários e pacientes, e, embora a visita tenha sido muito curta devido ao horário, sua fisionomia estava muito melhor! Era possível perceber um olhar entristecido nos pacientes que não receberam visitas, pelo menos em alguns deles, outros já estavam acostumados ao abandono dos amigos e da família e já não prestavam culto a certos sentimentos como a saudade.

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A ANSIEDADE Era manhã! Ao chegar à janela do posto de enfermagem, havia vários pacientes esperando os seus respectivos remédios. A enfermeira colocou rapidamente em minha mão dois comprimidos e recusei o copinho descartável dessa vez, dizendo que iria tomar o medicamento no bebedouro para dar lugar aos outros pacientes que aguardavam na fila torta que se formou. Entretanto, ao chegar ao bebedouro, acabei guardando os comprimidos no bolso. Estava cansado de tudo aquilo! Do estado de dormência que ficava no corpo todas as manhãs, uma sensação de impotência moral e espiritual que me impedia, por exemplo, de sentir ódio ou revolta. Os comprimidos não estavam me impedindo de viver, de sentir os sentimentos que eu sempre senti, amar o que sempre amei e odiar também. Mas, por outro lado, me impediam de me revoltar e porejar do corpo como suor o idealismo intelectual que sempre foi uma chaga perene em meu semblante, tal qual uma imagem de fênix brotando da testa. Isso mesmo! A fênix. O pássaro de fogo no qual sempre me inspirei, que sempre renascia das próprias cinzas. As horas foram passando e com a abstinência do medicamento, a primeira sensação sentida foi uma grande ansiedade! Meu sangue corria mais acelerado e o coração batia mais intensamente! Acendia um cigarro atrás do outro. Consegui um isqueiro com um paciente a troco de um maço de cigarros e, sem me rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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preocupar se alguém estava vendo, acendia os cigarros ali mesmo no corredor, contrariando todas as regras e proibições. Com o passar das horas, ansiedade foi só aumentando! E na hora do almoço, pela primeira vez desde que aqui cheguei, estava com fome. Antes, parecia que me alimentar, em vez de necessidade, era uma tarefa sem sentido a ser cumprida. Eu não sentia fome, medo, coragem, sono, saudade, amor ou ódio. Mas hoje, com a carência da droga, meu corpo foi tomado por grande euforia! Depois de muito tempo, eu sentia os olhos ardendo, e a imagem do ser debilitado e anestesiado, incapaz de reagir diante das dificuldades, começou a esmaecer diante do espelho. A ansiedade, entretanto, não tinha um motivo determinado. O corpo se ludibriava com um desejo puro e suave, repleto de ideais que turbinavam milhões de pensamentos a cada momento. A vivacidade do corpo! O ato de respirar e, depois de muito tempo, perceber a presença do ar com todos os seus cheiros. À tarde, senti vontade de comer um doce e fui ver se havia algum na cantina. Havia um doce cristalizado que desde a infância não provava. Coberto de açúcar, de cor vermelha e amarela, parecia uma bala de goma! Muito saboroso! Comprei vários doces e guardei no bolso para comer mais tarde. Na hora de dormir, o sono demorou a chegar. Fui até o pátio da área interna e fiquei admirando as estrelas. Levei alguns doces e me sentei em um dos bancos, justamente o preferido da velha resmungona. O suor, nesse dia, foi bem mais intenso devido à agitação do dia, cheio de ansiedade! O céu... Um céu repleto de estrelas que nada dizem, não têm ações próprias, somente cumprem sua missão de ficar ostentando brilho, sem nada fazer pelos habitantes da terra, aqui embaixo. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Ao comer doce, lembrei-me de momentos da infância em que olhava para o céu com tanta naturalidade, como se estar sob ele fosse algo comum. Pensamos de forma muito terrestre! Somos limitados a viver as agruras sociais e o desejo hedonista com o qual apenas poucos estudiosos estão preocupados, com a conquista do universo, com a descoberta de novas formas de vida ou puramente o motivo de existirmos. Claro, por ser improvável, preferimos acreditar nas soluções e explicações mais simples, porém, desprezar que há muito oculto a ser descoberto é ignorância. Acreditar numa explicação simples é arbítrio do ser humano, mas fechar os olhos para a realidade é como olhar para o céu e apenas enxergar pontos luminosos. Para os esclarecidos, cada ponto é um sol igual ao que nos dá o calor das manhãs e o direito de viver. Se o que há lá fora ainda não foi descoberto, uma hora ainda será. Após comer o último doce, acendi um cigarro para acalmar um pouco a ansiedade desse dia. Deixar de tomar os remédios foi uma atitude perigosa, visto que eu ainda estava com depressão, mas correr risco é arbítrio do homem. Então decidi que não iria mais tomar os comprimidos. Talvez outro paciente sem esses medicamentos ficasse agressivo. Eu, porém, voltei a pensar, a ter sentimentos que já havia esquecido. Era como uma águia, após se recolher aos picos altos, com as penas já gastas, unhas que não mais seguravam as presas e o bico, curvo, dificultava os ataques. Recolhida ao local escolhido ou determinado pela natureza, a águia, num processo doloroso de renovação, arranca o bico batendo-o constantemente contra as rochas, e, ao nascer o novo bico, arranca todas as unhas para que novas possam surgir, e arranca também todas as penas do corpo. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Quando a águia termina esse processo, é como se um novo ser deixasse as montanhas! Como se voltasse a viver depois de haver morrido. Eu queria sentir essa sensação de euforia com o primeiro voo depois de haver perdido a vontade de viver. Deixar as sensações do corpo explodir novamente e tornar-me um ser de atitude, mais que isso, um novo ser! Inquestionável em coragem, determinação, ousadia e consolidação de ideais que não se abalam por motivo algum! Após terminar o último trago e cientificar-me, olhando novamente para as estrelas, sobre o motivo real da ansiedade que durante o dia causou tanta euforia em meu ser, passei pelo corredor, parando ainda um momento no bebedouro e tomando uma boa quantidade de água gelada! Pensei que se resfriasse minha temperatura interna, sentiria frio e, ao encobrir todo o corpo, o sono chegaria mais facilmente. Há muito tempo estava dormindo, mais do que o corpo necessitou, e houve o desejo de acordar.

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OS AMORES PROIBIDOS Deivisson está encantado pela paciente Adalgisa, uma adolescente do município de Viscoso, que por lá se envolveu com drogas ilícitas e, por determinação do juiz, foi internada para tratamento. A adolescente é morena, de estatura mediana, curvas muito bem distribuídas, seios volumosos e firmes, rígidos como uma fruta rosada! Longos cabelos que vão até a cintura! Seu modo um pouco arrogante é típico de adolescentes desaforados, porém, em certos momentos, é uma garota muito comunicativa. Mas, por alguma contrariedade já fica com raiva e grita aos berros! Franklin também já gostou da paciente Sabrina, uma morena alta, também nova, com dezenove ou vinte anos. Esbelta e de pele morena e fisionomia brilhosa! Também de gênio forte como a Adalgisa! Chegaram a trocar uns beijos escondidos pelo corredor ou na sala de palestras, quando não havia nenhum enfermeiro por perto. Uma pegação que vem e acontece no calor do momento, assim de repente, quando há tensão ou saudade mesmo do desejo de amar e viver a aventura. Qualquer tipo de envolvimento afetivo entre pacientes ou entre funcionários, porém, é proibido na clínica, sendo conduta que gera passagem corretiva pelo R3, o setor mais temido da clínica, ou até demissão do funcionário que se envolver com qualquer paciente. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Segundo o João, há uma história de um funcionário da clínica que foi demitido por ter sido flagrado aos beijos com a Adalgisa, tempos atrás, logo que ela chegou e foi internada na clínica, e teria provocado no enfermeiro um desejo incontrolável! Na verdade isso existe em todo lugar – disse o Fausto. Em empresas ou repartições, há sempre um querendo uma vantagem amorosa, seja ela lícita ou não. – O que o povo quer mesmo é diversão! – disse o João. Principalmente quem tem algum poder de chefia ou gerência. Basta ver uma mulher bonita novata na empresa que logo quer mostrar as asinhas, cheio de gentilezas e agrados. – Lá onde trabalho, houve um problema assim. Uma mulher casada foi trabalhar na empresa. Era muito bonita e atraente! Caminhando pelos corredores, provocava sussurros e logo um dos gerentes de setor se interessou por ela. Levava presentes e fazia diversos elogios. Depois de um tempo, deixou mais claras as suas intenções de tê-la a qualquer custo, oferecendo-lhe um cargo de confiança no setor, embora houvesse funcionários que estavam no setor há mais de dez anos sem jamais terem sido promovidos. – Isso existe em quase todo lugar, Fausto! Sempre haverá alguém interessado na outra pessoa. Depende de a pessoa ceder ou não às investidas. – Pois é, só que nesse caso, lá na repartição, deu um problemão porque a mulher contou ao marido que estava sendo assediada, e ele apareceu lá no dia seguinte. Era chefe de polícia e levou cinco carros para provocar um impacto na gerência da empresa. Queria levar o gerente de setor preso de qualquer forma ou aplicar, ali mesmo, um corretivo nos moldes do auge da Ditadura. – Na minha antiga repartição, houve um problema assim. Uma funcionária muito bonita, chamada Alice foi trabalhar na empresa. Ela não era casada, tinha uma filha com um rapaz do município de Ouros, no sul do estado, e namorava outro rapaz. Um gerente de setor, que era casado, ofereceu inúmeras coisas a ela, dizendo que rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


iria se separar da mulher para ficar com ela, que tinha casa, que poderia colocá-la para coordenar o setor junto com ele. – Mas o que houve? – perguntou o João. – Eu não sei muito bem, só o que sei é que pouco tempo depois ela havia sido transferida de setor. Nem ficou na empresa e decidiu sair, talvez devido ao assédio que vinha sofrendo por parte do gerente. – Deve ser. Nesse caso que eu estava contando, como virou caso de polícia, o gerente de lá se viu obrigado a dar uma solução, conversou com todos os gerentes de setor e disse que se ficasse sabendo de algum assédio às mulheres na repartição iria demitir ou transferir o acusado para um lugar longe de casa como medida punitiva. O amor proibido é fogo que arde no corpo! Um desejo de ter aquilo que os olhos primeiro observam e o cérebro acha agradável. Muitas vezes, o indivíduo tem mulher e filhos, e a esposa é até bonita e agradável, mas surge algo novo! Algo que não é da posse e usufruto e, somente por ser inacessível, provoca o desejo consumista no homem. E o Deivisson começou a dar pequenos agrados à Adalgisa, tais como chocolates, doces e até um ursinho de pelúcia, que mandou trazer da cidade. Nós sabíamos que até trocavam alguns beijos, às escondidas. Em algumas vezes, até tiritando os dentes, ou de frio ou de medo de serem descobertos, atrás de uma árvore ou na sala de palestras, localizada no interior da clínica, junto ao pátio, próxima do refeitório. Contava as peripécias à noite, sempre que ia levar café. Falava dos encontros às escondidas e da sensação de estar fazendo algo proibido, o que provocava mais ainda o desejo.

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O TROTE – Socorro, tia! Acabei de sofrer um acidente de carro, estou muito machucado. – Onde está? O que aconteceu? – Não estou conseguindo falar direito. Estou muito machucado. Vou passar para o mecânico que está aqui me ajudando. – Alô? Quem fala? – O que houve com meu sobrinho? Diga? – Olha, dona, ele estava indo pra casa num carro emprestado pela clínica devido ele ter apresentado bom comportamento, porém houve um acidente aqui na fazenda Rosário. O carro está muito estragado e precisarei que deposite um valor em dinheiro numa conta que vou passar, mas é urgente, afinal tenho de atender outros clientes. – Espere. Vou ligar para a família dele. Precisam saber que sofreu acidente. – Não posso esperar mais. Há uma viatura aqui prestando apoio e sinalizando o acidente, mas eu não posso começar o conserto do carro sem o valor depositado. – Tudo bem! Passe-me o número da conta que deposito já o dinheiro.

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– Naiara, aqui é sua tia. Como está seu irmão? – Boa tarde tia! Ele continua internado na clínica. – Não, Naiara, falei com ele há pouco. Ele estava vindo para casa num carro emprestado pela clínica, mas o carro bateu perto de uma fazenda. O mecânico que está arrumando o carro me pediu pra fazer um depósito. – Olha, isso foi um trote! Ele não teve alta médica ainda, liguei pra lá agora e falei com ele no telefone da assistente social. Não podia ter feito o depósito, não. Alguém conseguiu o telefone da mercearia e se passou por ele. Na verdade, as falsas ligações de estelionatários se fazendo passar por parentes, amigos, filhos ou sequestradores têm evoluído muito nos últimos anos! Esses golpistas se aproveitam da fragilidade alheia e estudam suas vítimas antes do golpe ser aplicado. Imitam a voz da pessoa, falam com propriedade sobre fatos que são do conhecimento da vítima, induzem ações ou omissões, tudo metodicamente elaborado para garantir o sucesso do empreendimento delituoso. Após o trote, foi feito o registro de ocorrência na polícia daquela cidade, sendo passado o número da conta que o golpista informara, os valores depositados e as demais informações necessárias para a investigação do caso. Há tantas pessoas que vivem da ilusão aos outros! Por isso, o comércio está quebrado. Ninguém mais confia. Quando o cliente chega para comprar um carro ou uma casa, por exemplo, o vendedor, disfarçado em pele de cordeiro, já vai logo pedindo sinal adiantado, sem nem mesmo saber se haverá condições de o negócio ser concretizado. Quando há algum problema que impossibilita o negócio, o golpista já até usou o dinheiro pago no sinal para outros fins, e o comprador ou recorre à justiça ou a faz por suas próprias mãos. O certo é que dificilmente verá o dinheiro novamente, pois quem aplica esse tipo de golpe já está cheio de processos semelhantes e rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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já não faz questão de andar conforme a lei, antes disso aprendendo com o tempo várias artimanhas para ludibriar a justiça, que já é cega. Há muitos casos em que os golpistas tiram todos os bens do nome, passando para o de parentes ou conhecidos de confiança, para não terem o que ser confiscado pela justiça em eventuais processos. Enganadores estão em toda parte, sempre sobrevivendo às custas de enganar o povo, se aproveitando da inocência e fragilidade alheia, ou talvez do desejo consumista na realização de um sonho material. É um produto defeituoso que o vendedor já sabe que trará problemas, um plano de telefonia ou de internet que é aquém do estabelecido em contrato, o plano de saúde que se paga a vida inteira e quando se precisa dele, não cobre o procedimento, seguros, enfim, o comércio está aí para enganar, e foram os próprios comerciantes que criaram esse estado deplorável de confiança da população.

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A PEGADINHA DO BONECO

Sabino era cachaceiro! Chegou de repente no quarto, sedado e ficou dormindo por três dias, sob o efeito dos remédios. Quando acordou já foi logo pedindo cachaça, não se preocupando em estar internado se tivesse cachaça para beber. – Moço, o que eu vou fazer sem cachaça? – Bom, Sabino, aqui na clínica você não vai conseguir cachaça, não. – E o que eu vou arrumar da vida? Acho que vou comer alguma coisa e depois dormir de novo, então. Ele dormia, acordava na hora do café da manhã, depois voltava para o quarto para a soneca de antes do almoço, a qual era pesada e nada o acordava. Como se tivesse um relógio biológico, levantava-se pontualmente na hora do almoço e chegava antes de todos à fila do refeitório. Sempre que era servido, pedia para que colocassem mais ainda, e pegava um prato separado só para a salada. Após o almoço, fumava um cigarro e dizia sempre que queria uma cachaça para as enfermeiras do posto. Com as respostas que recebia sobre a impossibilidade, exibia uma expressão de descontente e tome outra soneca antes do lanche das quinze horas! Sempre recebia a negativa com a mesma frase: – Ô, lasqueira! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Uma acordada rápida, o deslocamento ligeiro até a cantina e uma voltinha curta pela área externa, só pra esticar os músculos e lá vai mais uma soneca. Na hora do jantar, costumeiramente era um dos primeiros da fila, e um dos últimos a sair do refeitório, sempre pedindo para repedir o prato. E de onde o infeliz tirava sono para dormir à noite inteira acho que nem a ciência conseguiria explicar. – Ele está dormindo de novo, João? – Esse aí não tem jeito. Só come e dorme, come e dorme. – Amanhã vou fazer uma brincadeira com ele pra ver se ele faz alguma coisa. – Rá! Rá! Rá! Conhecendo bem o seu jeito brincalhão, até imagino o tipo de coisa que vai aprontar. – Eu acho que deveríamos colocá-lo pra dormir com o bumbum de veludo. – E já vem com essa palhaçada de bumbum de veludo de novo. Não tem outra coisa pra fazer, não? – Ei, essa ideia é ótima! – O quê? Já vai começar com as piadinhas também? Exatamente! Amanhã vou pôr um boneco de pano para dormir com ele! – Rá! Rá! Rá! Rá! Você não vale nada! O que vai fazer? Espere ele sair pra tomar café, amanhã, e verão. – E a noite passou bem rapidinho, afinal todos queriam ver mesmo a brincadeira do boneco. Sabino acordou pontualmente, pedindo cachaça: – Será que hoje vão me deixar beber uma cachaça? Já tem cinco dias que estou aqui. – De novo essa história, Sabino? Olha só, João, ele ainda insiste na cachaça. Rá! Rá! Rá! – Pede lá na cantina, de repente eles te dão. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Nossa! Por falar em cantina está na hora do café. Preciso correr pra não pegar fila, acabei de acordar e já estou com sono outra vez. Então, todos olharam para mim e deram uma boa risada, assim, bem estridente que ecoou pelo corredor. Assim que Sabino foi para o refeitório aguardar o café, peguei alguns cobertores, esparadrapo, uma faixa e um par de óculos que Fausto emprestou. Enrolei os cobertores e, com o esparadrapo, fui delineando braços, pernas e dorso. O rosto foi feito com algumas roupas e com a faixa, por fim adornado com os óculos. Corri até o refeitório e disse: – Sabino, chegou um paciente novo. Está operado na cabeça e também é cego. O enfermeiro chefe falou que ele terá que ficar em sua cama até conseguirem um leito. – O quê? Mas como foi acontecer uma coisa dessas? Vou lá ver isso agora. Eu tiro esse infeliz da minha cama agora mesmo. – Não, homem! Você não pode mexer nele, afinal está sedado e operado. O jeito vai ser você ir pra terapia ocupacional na parte da manhã ou ficar aguardando na área externa, fazer uma caminhada, sei lá! Dormir será impossível! – Eu vou lá ver esse gaiato agora mesmo. Nesse momento, não consegui segurar o riso e achei melhor ficar no refeitório enquanto passava a crise de gargalhadas. No corredor, vários pacientes ficaram vendo o Sabino passar com um copo de café com leite na mão direita e metade de um pão na esquerda. Todos já sabiam da brincadeira e não conseguiam segurar o riso. João falou que o Sabino entrou no quarto, xingou o boneco de folgado e ainda deu um cutucão no boneco esperando que acordasse. Ao voltar estava desolado, pois perderia o sono da manhã antes do horário do almoço. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Moço e agora? Chamei o folgado lá na cama e ele nem se mexeu. Se ele cismar de dormir muito eu não sei o que vai ser de mim. – Bom, por que não faz uma caminhada, então? Respira um ar puro! Está louco? O que eu mais queria agora é uma cachaça e depois tirar um cochilo. Só de pensar em fazer alguma coisa me dá sono. – E por que veio pra cá? – Moço, nem te conto. Eu estava em casa tomando uma cachaça muito boa! De repente, veio um pessoal do outro lado da rua querendo que eu abaixasse o som, aí peguei meu vinte e dois e dei três tiros para o alto. Saiu foi gente correndo! – Mas não deu nenhum problema não? – Que nada! Meu padrasto é fazendeiro. Ele que empresta a casa que serve pra polícia lá na cidade. Se alguém mexer comigo, ele cria caso. E lá é assim mesmo. Outro dia, não transferiram um novato porque ele multou o filho da prefeita da cidade? O moleque é um diabo! Não tinha carteira para andar de moto e estava empinando a moto que comprou. Isso foi na praça, bem no centro da cidade. – Sério? E o que houve? O policinha foi lá e apreendeu a moto, esvaziou um bloco de multa em cima do filho da prefeita e o levou pra delegacia. Ela foi reclamar com o chefe de polícia, e uma semana depois haviam transferido o novato pra uma cidade que fica uns duzentos quilômetros de lá. – Que coisa! Hoje em dia ainda existem situações assim? – É o que mais tem. Mas aí o meu padrasto me internou aqui pra que eu desse um jeito nessa cachaçada em que estou. – E o que está achando daqui? – Nem sei, só como e durmo. Aliás, eu não vou fazer caminhada coisa nenhuma. Vou lá dormir...

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– Rá, rá, rá, rá, rá, rá... – Não foi possível me conter, cheguei a babar do tanto que ri quando ele falou. – O que foi? – Nada, desculpe interromper, mas eu não aguentei. Diga-me: vai dormir onde? Na minha cama, ora. Ele chegou depois. Os incomodados que se retirem. E o Sabino foi andando pelo corredor. Olhei para o João e para o Fausto e nenhum dos três conseguiu conter o riso. Logo a clínica inteira estava sabendo, e fomos todos para a porta do quarto ver se ele perceberia que era um boneco. Empurrou o boneco para o canto da parede e deitou na beirada. Puxou o cobertor e ainda falou que o boneco era muito folgado e espaçoso. Fomos todos para a área externa e uma hora depois chega o Sabino. – Então, Sabino, não quis dormir? – Moço, não dá pra dormir perto daquele homem não. – Por quê? O que houve? – Bom, ele solta gases e ronca. Até aí tudo bem, mas fica batendo na gente e isso não dá pra aceitar não. Cheguei a falar com ele que estava me incomodando, pra ele sair do quarto e procurar a enfermagem pra conseguirem outra cama. – E o que ele fez? – Fingiu que não estava me ouvindo e continuou dormindo feito uma pedra. Sabino não havia percebido que era um boneco, e não sei se por delírio ou exagero imaginou coisas. Passara tanto tempo sem sua cachaça que já estava tendo problemas de abstinência. Se fosse um maconheiro eu diria que a que ele usou era da boa, mas o desejo dele era somente sono, comida farta e cachaça. Então eu me pergunto: precisa dizer mais alguma coisa? rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Ele deu uma volta na área externa da clínica, fumou alguns cigarros, visitou a terapia ocupacional e depois foi até a horta para pegar algumas couves, comendo tudo ali mesmo como um furão invasor de plantação. Depois acabamos contando que era um boneco, e ele sorriu com a brincadeira. Acabou percebendo que estava dormindo demais e começou a dar uma voltinha pela área externa após cada refeição, antes do seu cochilo.

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O PRESENTE – Monsenhor! Desculpe desviar, nessa reunião tão importante, o foco do nosso propósito para esse encontro, mas tenho que levar ao conhecimento dos senhores irmãos alguns fatos que entre nós será mantido no mais absoluto segredo, mas será necessária uma intervenção no sentido de solucionar algumas particularidades que fogem à luz da legalidade e da igualdade. – Tem a palavra aberta. Traga o que o aflige para que possamos, com sabedoria, compreender e auxiliar da melhor forma, se os demais presentes estiverem de acordo. – O que vou relatar, porém, é algo que precisará ser metodicamente avaliado pelos senhores irmãos devido ao fato de que a influência que temos será um fator de decisão para a melhor solução de tudo o que está acontecendo. – Continue! Tem a palavra... – Senhor Lino! Obrigada por me atender! – Boa tarde, senhora! – Sei que vim em momento inoportuno, mas o assunto de que vim tratar é urgente! Não poderia esperar mais essa entrevista para debatermos sobre o caso. – Não há de quê, senhora Flávia! A que devo a honra de sua visita? Pode falar abertamente! Estou à sua inteira disposição! Vim tratar de assunto relacionado a um de seus funcionários. Na verdade, um funcionário diferenciado, cujo trabalho temos acompanhando com o passar dos anos. Vários fatos chegaram ao rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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nosso conhecimento e queremos saber, da parte de sua repartição, o que tem sido feito para ajudá-lo. – Já sei até do que se trata. Ele ainda está internado em outra cidade, mas estamos oferecendo todo o suporte necessário. O problema é que ele passou por muitas situações inadequadas na repartição onde trabalhava, e isso vinha abalando seu estado emocional há vários meses. Quando chegou aqui, há mais ou menos um mês, já não estava bem. No dia em que tudo aconteceu, eu estava fora, participando de um congresso. Fui saber do incidente no metrô por meio dos jornais. Ao ligar para o setor onde trabalhava, disseram que ele até chegou a vir para o serviço no dia, mas que seu estado emocional não era outro senão o de mais profunda depressão! – Ele é uma pessoa muito querida entre nós! No meu caso, como sabe, estou representando mais do que uma grande equipe de militantes, grandes amigos que ele angariou ao longo dos anos. Todos estão muito apreensivos e até descrentes quanto à empresa pelos fatos que o levaram a tentar suicídio e pela ineficácia de algumas das repartições em atender à demanda de ordens de serviço. Há muita coisa fora dos padrões de aceitação e a responsabilidade sobre isso não pode cair senão nas costas dos gerentes. – Entendo que há muito para ser melhorado sim! Pelo pouco que o vi trabalhando percebi que é uma pessoa de valorosos princípios! Um profissional extremamente eficaz na elaboração de seus projetos! Pode ter certeza que, da minha parte, estou sempre apoiando suas pesquisas profissionais e seus trabalhos, que são de fato muito interessantes! – Trouxe aqui alguns panfletos sobre um novo trabalho que estamos elaborando, que espero ser do seu agrado. Irei também comunicar aos outros membros o que foi aqui discutido, mas é bom saber que, da parte dessa gerência, há um novo posicionamento em relação a ele. Chegamos a nos manifestar diretamente ao gerente Barcelos sobre a nossa insatisfação com determinadas condutas rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


que, além de desaprovadas pelos acionistas, são rejeitadas por todos aqueles que estão ligados aos serviços aqui prestados. – Não tenha dúvidas de que estamos nos empenhando para promover muitas melhorias internas. Algumas questões fogem à minha alçada, mas o que posso fazer para melhorar as coisas para os meus funcionários e para o público, isso tenho feito constantemente. Não podemos oferecer um produto de qualidade se não nos preocuparmos com quem está na linha de produção. – Obrigada pela atenção, senhor Lino! Muito bom saber que podemos contar com pessoas como o senhor! – Tenha um ótimo dia, senhora Flávia! E muito obrigado pela sua visita!

– Senhor Bretas! Que bom vê-lo novamente em meu gabinete! Sua presença é sempre muito agradável! – Deputado Freitas, boa tarde! O assunto que me traz até aqui é algo que requer a sua atenção para uma intervenção decisiva e imediata. Trata-se de um incidente que vem se arrastando há vários anos, e não há momento mais oportuno para cobrar seu apoio e deliberação junto à Casa Legislativa do que agora. – Conte-me o que está acontecendo, se estiver ao meu alcance solucionar. – Um instante. Deixe-me mostrar os documentos que trouxe comigo na pasta, pois comprovam todo o teor do assunto que vim relatar, para o qual solicito sua intervenção. – Sim, isso é interessante! Vou chamar minha assessora, Rosina, para acompanhar o que tem a relatar e providenciar um despacho, se for o caso. – Isso é o desejo de todos aqueles que me indicaram para trazerlhe essa demanda, que necessita de intervenção urgente e decisiva por parte de Vossa Excelência, tendo em vista a gravidade dos fatos e todas as consequências que podem surgir de um caso como esse. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Já ouvi algo a respeito, mas até o momento procurei não interferir porque achei que o caso já estava sendo solucionado pelo Deputado Juarez. Além do mais, eu não queria entrar em conflito com os comunistas, pois poderiam interpretar mal as minhas intenções. – Ele não fez muito para solucionar essa situação. Antes disso, se esquivou. E agora, antes que o rapaz termine a internação, quero viabilizar uma forma de trazê-lo para esta cidade, ou então, em último recurso, providenciar sua alta imediata, tendo em vista que a internação foi arbitrária e compulsória, não dando a ele o direito de escolher o melhor tratamento. Segundo o Genaro, o rapaz chegou a reclamar várias vezes de que a internação traria prejuízos, inclusive não tendo dado a ele a oportunidade de ao menos buscar roupas em sua casa. – Sem dúvida, uma situação lamentável de falta de respeito ao ser humano! – Com licença, senhores! Posso entrar? – Pois bem, vamos então começar a reunião. – Sim! Pedi para que a Ester trouxesse bolachas e um cafezinho.

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– Grande companheiro Genaro! É sempre um prazer recebê-lo em minha sala! Ainda mais para um assunto de tamanho interesse como esse! Fiquei muito satisfeito ao receber sua ligação, e certo de que poderei ser muito útil! – O prazer é todo meu, Excelência! – Ontem, quando me adiantou tudo por telefone, vou confessar quefiqueichocadocom tudo isso! Algome despertou umsentimento íntimo de revolta e insatisfação que me fez perder o apetite. – Pois é! Eu acompanhei todos os passos e quero uma avaliação de todo o material que tenho em mãos para que possamos viabilizar rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


este assunto o mais rápido possível, e digo isso independente da vontade do homem! Estou disposto a passar por cima da arrogância dele e levar o fato até o Congresso, se for o caso. – Claro! Isso também é do meu extremo interesse! Mas, e o rapaz? Já está melhor? – Eu o conheço bem! É um militante! Um pensador! Teve o seu brio ferido, é apenas uma questão de tempo para renascer das próprias cinzas, da sua desilusão, e se tornar uma arma poderosa contra o assédio moral! – Já ouvi falar muito dele! É realmente um idealista! – Como sabe, agora estou aliado a antigos representantes políticos. Abandonei de vez a assessoria jurídica do Deputado e estou com novos projetos em mente, voltados para a ética e cidadania, e para confrontar situações como essa. Na verdade, estou com uma atuação mais ampla do que antes, e isso tem me proporcionado mais condições de aplicar medidas mais enérgicas contra os abusos cometidos contra o ser humano em seu local de trabalho. – Essas fotografias são recentes? Sim! Todas são. Condizem com a verdade dos fatos e, nos documentos, também há todo um conjunto de provas. – Isso, entretanto, é uma faca de dois gumes. E quero deixar claro que o posicionamento que eu adotar não será reversível. – É o que também espero e, antes de tudo, quero deixar claro que a Frente do movimento também atuará no mesmo sentido e com toda a influência que temos para erradicar de vez esse tipo de situação. O país está estremecendo de cima a baixo com a revolta popular e as manifestações públicas. Se nós, que somos organizados, não pactuarmos da mesma filosofia de mudanças na forma de conduzir este país, ficaremos para trás. Exatamente! O povo já não aceita a corrupção que se instalou em todo lugar, o abuso de poder ou de autoridade, a imposição e a restrição dos seus direitos. As pessoas querem pão e cachaça, leite rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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e saúde, dinheiro e dignidade! É como se um gigante acordasse para pisotear os salteadores. E nós, mesmo que sejamos pessoas importantes e influentes, não podemos ficar alheios a tudo isso. Precisamos participar do processo de mudanças desde já.

– Que coisa mais triste aconteceu, não é Edmara? – Todos gostam muito dele! Deveríamos fazer alguma coisa para que ele pudesse voltar. – Talvez se mandássemos uma carta a alguma autoridade, essa situação pudesse ser amenizada. Os membros da sociedade têm poder para cobrar das autoridades! Precisamos usar isso para ajudar quem é parceiro dos nossos trabalhos e sempre nos ajudou. – Ele sempre nos ajudou muito! É verdade! Sempre alegre e prestativo! Perdi a conta das vezes que nos atendia até mesmo nos dias em que estava de folga. Vamos, sim, fazer alguma coisa. Vamos reunir todo mundo hoje após o expediente e debater a respeito, o que acha? – Gostei da sua sugestão! Podemos marcar para as dezoito horas. – Tenho certeza de que todos irão se sensibilizar com o caso, afinal não podemos permitir que coisas assim aconteçam, nem com ele nem com qualquer outra pessoa. – As pessoas não respeitama lei. Sóquandocaem em um processo é que passam a dar valor. Temos que combater essas atitudes com pesos e medidas iguais, se não esses absurdos envolvendo chefes e empregados continuarão indefinidamente.

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– E isso é tudo, Monsenhor. Após muito pensar, essa foi a solução que encontrei para o assunto e quero propô-la para votação dos demais. – Que os fatos verdadeiros que são trazidos a essa Irmandade, na data de hoje, não escapem de uma solução, a menos que algum dos senhores tenha opinião em contrário. – Seja feito conforme proposto, Monsenhor! – Não há aqui nenhum dos irmãos que deseja o contrário!

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LEMBRANÇAS DA ROÇA

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Sentado num banco, tendo no ambiente o cheiro maravilhoso da dama-da-noite, estava apreciando a leitura de O Tronco do Ipê, de José de Alencar. Um romance bem simples e de fácil compreensão! Confesso que não gostei muito quando o personagem Mário tira de uma árvore um ninho de anus, encantado com a beleza dos ovos azuis, para mostrar à sua amiga de infância, e mais que isso, uma pessoa que estaria ligada a ele por toda a vida em momentos fantásticos de predileção do destino! O personagem Benedito, um preto velho, tido por muitos como um ente cuja ligação com o outro mundo se torna notória até hoje em alguns cultos da umbanda, aparece na obra com simplicidade e sabedoria, demonstrando a decência do povo escravo. As matas, a natureza, os detalhes da paisagem como um elo com a essência humana mais uma vez se mostram presentes na obra tão bem escrita por José de Alencar! Então se aproximou o fazendeiro. Foi chegando tímido e se sentou no outro banco. Dei uma respirada mais forte para perceber se não estava cagado. Continuei lendo o livro e, por algum tempo, não dei importância à sua presença até que ele puxou assunto. – Hoje, lembrei-me do primeiro dia em que fizemos o parto de uma vaquinha lá na fazenda do Tião Ozório, há muitos anos. Estranhei que ele falou com muita sobriedade! E, ao interromper a leitura do livro, olhei para ele e apenas disse: rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Sério? E quem é Tião Ozório? Na verdade, eu não esperava resposta; afinal ele tinha tantas alucinações. – Tião Ozório foi um dos grandes amigos que tive na vida! Passamos a infância juntos na fazenda. Ele era pobre e morava numa casinha com os pais. – É mesmo? – Sim! Isso foi há muitos anos! Um tempão atrás! Tu nem era nascido e ainda nem podia foliá as folhas de um livreto. Quando era hora de ir pra escola, meu pai passava pela estradinha, e ele tava lá indo a pé. Magrinho que só! A mochila veia nas costas fui eu que dei de presente quando tinha seis anos só, na festa de aniversário. Então, o pai velho parava e dava carona pro meu amigo de infância. Nós gritava, pulava no carro, e o pai sempre fazia festa! Derrapava o carro nas poças de água, brincávamos e a cantoria se estendia pelo caminho. – Que interessante, senhor Bento! Depois de um tempo a famía dele comprou umas terrinha lá pros lados do riachão. Fiquei ouvindo o que dizia o velho Bento, enquanto seus olhos pareciam querer penetrar no tempo e voltar aos anos que já viveu. Talvez essa seja a sua vontade de fugir, de voltar a ter uma vida que a idade e a loucura lhe tiraram. – Depois que a gente cresceu e formou famía me chamou mais minha muié pra padrinho. Ele que já era meu cumpadre, quase um irmão sempre foi muito boa pessoa que com muito custo conseguiu as coisas! Era um tempo tão bonito! Eu, todas as manhãs, acordava cedo, dava um beijo na minha veia antes mesmo dela se levantar pra me preparar o café. Eu ia pra minha roça cuidar dos bois que não paravam de parir. E o Tião, meu grande amigo, admirava de todo as suas prantação de milho e café. Não tinha experiência com gado. – E como foi o parto? rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Ah, foi uma doidura! Tião chegou correndo em casa, gritando pra eu ir ajudar a sua vaca a parir. Corremos pra lá num galope! A vaca dele tava deitada no estábulo prestes a parir. O bicho sentia as dor do parto, e eu já tava muito bem acostumado. O Tião que num tava muito tranquilo com tudo aquilo, mas deu tudo muito certo. – E depois? O que houve? Ah, um bezerrinho muito formoso! Gordo que só! Que tempo aquele, eu fui muito feliz! Eu prestando atenção no velho, quando, de repente, ele se levantou e saiu pelo corredor para juntar seus bois, arrastando os tapetes que encontrava pelo caminho. A vida até parece um abismo! Cada pessoa, independente do que viveu, é um livro repleto de histórias! O que torna o destino de alguns mais cruel do que o de outros? Há tantas pessoas que aplicam golpes nos outros, que enganam justamente quem está em busca da realização de um sonho e acreditam que a justiça jamais virá bater em sua porta e levar mais do que se possa pagar naquele momento. E ela vem furtiva, num dia em que não se espera receber visitas. Um dia em que se acha que o expediente será tranquilo, e de repente a imposição do momento não dá o direito de escolha, e nem mesmo os gritos ou as palpitações do coração podem salvar do destino já ajuizado. Fiquei impressionado com as lembranças do velho fazendeiro num dos seus raros momentos de lucidez que pude perceber nesse tempo de internação. Depois, voltei a ler o livro, folheando páginas repletas de cultura! O boqueirão realmente era onde Iara seduzia com o olhar e o sorriso, convidando os desavisados para morrer nos encantos de uma enganação de sereia. Na verdade a vida é assim mesmo! As seduções convidam os desavisados a errar. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


As pessoas enganam com muitas falsas propostas, tiram o dinheiro dos outros e, já experientes na arte de enganar, não temem a ira que se esconde lá adiante. E há pessoas que sempre foram fiéis e acabam num abismo de loucura e desgosto, como o velho fazendeiro, milionário e infeliz, lembrando da vida com lucidez e saudade, e vivendo dias de loucura, sendo talvez esse o remédio encontrado por seu coração para minimizar a dor dos últimos dias que antecedem o descanso já tardio. A vida é difícil! Lutamos até vencer.

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A IGREJINHA

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Já estava decidido que eu sairia da clínica no sábado. Houve pressão muito grande das pessoas que sempre confiaram em meu trabalho, e um acordo impositivo foi feito para que eu pudesse fazer o tratamento fora do ambiente de internação. Na realidade, ainda não sabia que a Irmandade se envolveria no assunto, uma vez que não sou membro, mas já esperava que o bloco comunista entrasse no mérito. São muitos amigos que conquistei ao longo dos anos! Pensadores, ambientalistas, políticos e, embora eu não tenha muita coisa, senão um salário ridículo para o tanto que trabalho e umas contas a pagar, possuo um reconhecimento pessoal muito satisfatório. É muito gratificante ser querido pelas pessoas! Ser uma imagem positiva de liderança e confiabilidade! Saber que há sempre quem nos apoiará nos momentos das dificuldades! Mais umavez deixei de tomar o medicamento. Queria participar da caminhada, pois, desde que havia chegado, a única atividade que fazia era terapia ocupacional. Contudo, já não havia mais espaço para novos desenhos nas paredes e não havia vontade de produzir nenhuma peça de artesanato. Simplesmente cansado de trabalhar a mente e o espírito, ansiava para que o corpo pudesse de novo saborear a sensação de produzir suor e odor. Quando a área externa foi aberta, comprei um refrigerante para refrescar o calor que fazia naquela manhã. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A terapeuta ocupacional passou chamando os pacientes para que fossem para aárea de terapia e eu fiqueiaindaum tempo próximo à cantina, aguardando o coordenador da caminhada chegar. Lembro que éramos nove pessoas participando da caminhada: a Zuleide, uma paciente que tinha problemas com uso de drogas e fazia tratamento na clínica há mais de um ano. Ela sentia tremores nas mãos o tempo todo, como é comum nos pacientes com o seu quadro. Era ela a garota que eu vi logo nos primeiros dias com as mãos bem trêmulas devido à abstinência; o Fabrício, que na verdade nunca falou soube o motivo de estar na clínica; o Chico, que também não falava muito sobre os motivos que levaram à sua internação. Ele não se desgrudava do seu aparelho de som, sempre ouvindo músicas de periferia. Os outros participantes eram a Silviane, uma mulher mais velha; o senhor Pascoal; Baltazar; Rosa e o coordenador Sérgio. O caminho era de terra! Uma estradinha curta de chão batido que dava acesso a um pequeno povoado. Passamos por um local onde havia muito gado pastando numa grande área verde. Mais a frente havia uma vistosa plantação de milho. Um lençol verde e amarelo, cores do Brasil! Gralhas lá no meio da plantação, saboreando algumas espigas, lembraram-me do tempo em que eu levava frutas para as maritacas, e estas vinham buscar em minhas mãos a oferenda saborosa. As casas dos moradores contrastavam com a paisagem das montanhas repletas de eucaliptos. Chegamos a uma igreja pequena, onde havia uma mina d’água nos fundos. Devido ao calor intenso, fomos todos até lá saciar a sede. A água era fria e pura, muito boa! Até o barulho dela, tocando nas rochas, significava pureza e frescor! O dia estava quente, e por isso molhei os cabelos e os braços naquela água tão refrescante e límpida! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Enchi as mãos de água, e, num gesto de libertação, jogava a água para o ar na direção da grama do descampado, com a intenção de molhar o ambiente ao meu redor, inclusive a mim. Depois, enquanto todos descansavam, fui até a porta da igrejinha para ver o seu interior, mas as portas estavam trancadas. Sérgio falou que naquela igreja não havia padre. Que, de tempo em tempo, vinha um padre do município vizinho para rezar a missa. Na porta lateral, havia uma fresta e, ao olhar o interior da igreja, vi enfileirados vinte bancos de madeira, todos muito empoeirados. O ar que exalava de dentro era de casa fechada há muito tempo! Senti como se os cantos dominicais ecoassem no interior daquela construção, evidenciando o passado. O altar da igrejinha era simples, muito simples! Havia uma mesinha com um lenço branco por cima. Duas cortinas de cor bege estampavam as paredes do altar e em tudo havia bastante poeira! Depois ao olhar em volta, notei que havia, do outro lado da igreja, outro descampado repleto de grama. Chico falou que quando era pequeno, no bairro onde morava, costumava descer um descampado como esse com pranchas feitas de papelão. Que ele e seus amigos não possuíam brinquedos e, por isso, as diversões preferidas eram a descida do descampado, as pipas e o jogo de futebol. Foi só isso. Não falou mais nada. Ele, por algum motivo, se sentia mal ao falar de seu passado. E chegou o momento de voltarmos à clínica pelo mesmo caminho. O sol estava muito forte, provocando até marcas da blusa nos braços, o que me fez tirar a blusa para queimar igualmente todo o dorso e não apenas os braços. Passando pelo coqueiral, Fabrício começou a gritar, admirando o eco de sua voz voltar das matas que cobriam a montanha bem distante, após os imensos coqueiros. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Chegamos a fazer piadas sobre uma resposta diferente daquela que esperava, provocada por alguém que estivesse nas matas. Gargalhadas! Suor pela caminhada! Contato com a natureza! Chegamos à clínica no horário da palestra, e eu estava um pouco cansado pelo exercício! Muito suado, após a palestra achei melhor tomar um bom banho. Foi a primeira vez que cheguei atrasado para almoçar, contrariando o horário; entretanto, não havia filas, e não precisei ficar esperando que ninguém fosse servido. Havia gostado do passeio! Foi bom conhecer um lugar diferente! Exercitar um pouco o corpo. Isso ajuda a mente a aliviar o stress deixado pelos problemas do cotidiano e proporciona mais saúde. Ainda mais com o soninho bom que tirei depois do almoço, só vindo a acordar quando um enfermeiro foi até o quarto dizendo que havia uma ligação para mim de uma das mulheres que ligavam para a clínica se identificando como parente, pedindo notícias minhas.

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VISITA À ALA DOS LOUCOS

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Era o penúltimo dia na clínica. Haveria um culto evangélico no salão principal, e a terapeuta Claudete pediu que eu fosse com ela fazer a arrumação do salão. Fiquei interessado em ir, pois passaria por dentro de outra ala da clínica onde ficavam os pacientes crônicos, aqueles que possuíam um grau muito mais elevado de distúrbios mentais. Uma porta verde separava o ambiente da administração da ala dos crônicos. Ao passar pela porta, um cheiro forte de mofo e cigarros impregnava o corredor que dava acesso às escadas. Nas paredes havia marcas de mãos, fezes ressecadas, pichações e tocos de cigarros enfiados em buracos. O chão, embora estivesse limpo e ainda molhado, devido à limpeza das faxineiras, já exibia algumas cinzas de cigarro nos cantos. Um paciente passou correndo, segurando uma boneca bem velha e até esbarrou na Claudete, e logo em seguida vieram outros pacientes dizendo que iam pegar o ladrão e que eram da polícia, que iriam prender o ladrão e proteger a todos. Outro paciente olhava fixo para a parede, como se fosse uma estátua, e, de repente, deu um grito eufórico e começou a chorar deitado ao chão, contorcendo-se. Claudete falou que esses comportamentos eram normais no dia a dia daquela ala, onde os pacientes precisavam ter certa rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


autonomia para se desprender do stress da internação e viver um mundo onde a realidade não importa tanto quanto ter um pouquinho de felicidade e prazer. Nas paredes de um dos quartos, deparei com a pintura mais surreal que meus olhos já puderam ver! Havia, de uma extremidade a outra, inúmeros rostos com expressões que iam do ódio ao desejo de perdão e ao amor mais puro do mundo! Claudete contou que o artista que pintou a imagem com todos aqueles rostos se matou logo após terminá-la, e que nenhum paciente até então havia tocado naquela parede, pois acreditavam que quem nela tocasse também morreria. Por isso, ela estava tão limpa e conservada, diferente das demais. Subindo as escadas, uma paciente, chamando-me de pai, se apegou em minhas mãos e foi abraçada comigo até a entrada do salão, enquanto outra ficava perto, apenas observando. As cadeiras estavam fora do lugar, alguns bancos virados, as janelas sujas de batom e papéis rasgados espalhados pelo chão. Em pouco tempo, enquanto Claudete varria o chão, tirei as cadeiras e bancos do caminho e, em seguida, fui colocando tudo no lugar, de forma organizada. Arrumei as cortinas do altar e forrei de novo o lençol da mesa. Separei o lugar para os músicos e limpei a janela próxima da porta, enquanto Claudete ficou por conta da outra janela. Claudete foi falando sobre sua vida, que era casada e tinha uma filha. Que sentia solidão pelo fato de seu marido ser doente, e que o tratamento era muito doloroso para a família. Ao contar sobre os anos em que trabalha na clínica, falou de pacientes que chegaram e que cativaram a todos com seu jeito alegre, outros, com as manias ou loucuras inerentes à doença e, com muito carinho, falou da filha e dos brinquedos de que gostava. Tinha uma expressão alegre e saudosista! Falava com voz um pouco triste, melancólica, porém cercada do liquor da vida, e rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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dizia estar vivendo por um motivo muito especial! Dedicava-se às pessoas. Após terminarmos, ela ainda me ofereceu um pedaço de doce que trazia na bolsa. Sentamo-nos num dos bancos e continuamos a conversar por alguns minutos. Uma paciente chegou à porta, mas, ao nos ver, foi logo embora. O tempo foi passando e deixamos tudo arrumado antes de sair. Fechamos a porta do salão para que nenhum paciente entrasse e revirasse tudo novamente. Havia uma paciente jogando roupas pela janela e dessa vez Claudete a impediu. A paciente, então, começou a gritar, falando vários palavrões e saindo em seguida, a passos fortes no chão. Claudete contou que aquela paciente jogava as próprias roupas fora, queimava ou rasgava, deixando tudo espalhado pelos corredores. Que não tinha problemas mentais, mas era viciada em drogas de maneira compulsiva! Que sua família a internou com medo de que traficantes do lugar onde mora continuassem a abusar dela devido ao vício, e ela aparecesse grávida em casa, após oferecer o corpo em troca de entorpecentes. Ao passar pela parede com a pintura, novamente olhei para aqueles rostos. Pareciam sair da parede, retratando não só uma inspiração artística surreal, mas também um infortúnio muito grande! O paciente, ao se expressar, deixou sair todos aqueles espíritos de sua alma, e os rostos desses espíritos estavam cheios de sonhos inacabados, de tristezas com a vida, de lágrimas roladas devido a um sofrimento de vida que passa pelo profissional, pelo pessoal e familiar. Crianças estampadas na parede com rostos de fome e frio, e adultos com a expressão do desgosto. Os que sorriam eram poucos, com traços mais distantes, mais frágeis! O artista se empenhou em deixar esse testamento de sua alma! É como se ele quisesse mostrar que a alegria até existiu em sua vida, mas estava muito distante dos últimos momentos. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Antes que pudesse sair pela porta, veio um último paciente até mim e, esbarrando em meu braço, falava algo que não dava para entender. Ainda insisti em perguntar-lhe o que era, mas ele saiu correndo pelo corredor aos gritos e batendo com as mãos na cabeça. Depois de algumas horas, fui tomar o café da tarde. Da mureta da cozinha, fiquei olhando aqueles pacientes que todos os dias eu via tomando o café nos bancos da ala dos crônicos., Mas não imaginava que a ala onde ficavam era um lugar tão cheio de problemas! E mais ainda, que em meio a tantos problemas, eles simplesmente não têm preocupações e vivem uma vida de desapego e anarquia. Quem poderia imaginar que essas pessoas tão quietas e anestesiadas moralmente na mesa de café possuíssem a sua própria anarquia social, sem regras e sem exceções!

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SEGUE A SUA ESTRADA Quando saí, os pacientes que estavam na área externa vieram se despedir. Abraços, beijos e desejos de um bom retorno, de felicidade e de sorte. Na verdade, nunca fui de confiar muito na sorte, mas agradeci pelo carinho de tantas pessoas. Penso que o que conduz alguém às vitórias é a preparação e não a fé ou a sorte. O mundo lá fora sempre será uma torrente de desgostos e desilusões, tanto para mim quanto para todos que resolvem lutar por um mundo melhor, ou que já nascem com essa chaga em seu rosto, de ser um ente defensor da cidadania e da legalidade. Ou eu decidia renascer das próprias cinzas em que minha vida se transformou e novamente fazer das brasas da minha justiça o delineador das arbitrariedades e do assédio moral, ou ficaria aqui para sempre, apagado e em cinzas. Antes de sair, deixei o seguinte recado fixado na parede em frente ao posto de enfermagem:

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Caros amigos! Desejo toda a felicidade do mundo a vocês! Todos vocês são uma parte da minha história e estarão eternizados para sempre no livro da minha vida! Obrigado a todos os funcionários que souberam me respeitar e ajudar no que estava ao alcance, nos dias em que aqui fiquei. Desejo muita luz a todos e espero que todos fiquem em paz! Obrigado por tudo! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Caminhei pela estradinha de terra até passar pela ponte que atravessa o riachinho, e, ao chegar à rodovia, fiquei no acostamento esperando por um ônibus. Um ônibus do município não demorou muito a parar, como se já soubesse que eu o aguardava. Rotina de pessoas do interior, já acostumadas a se cumprimentarem pelos nomes a cada manhã, a caminho da cidade. Enfim, conheci o município de Balancena, lugar onde fiquei internado de forma compulsória, chegando aqui sedado e morto de espírito, numa ambulância, somente tendo sido viabilizada minha liberação depois que várias pressões externas e o bom relacionamento que adquiri junto à equipe médica se tornassem fatores decisivos para minha alta. O tratamento condicional externo foi aceito, tendo em vista que eu precisava voltar, pois ainda havia muita coisa para ser resolvida. Balancena manifestou aos meus olhos como uma cidade em crescimento, com bom acesso à rodovia e ruas ligando os bairros ao comércio de maneira fácil e rápida, indicando ser uma cidade de serviços e com grande mobilidade urbana! Chegando à rodoviária desse município de cerca de noventa mil pessoas, como foi dito pelo cobrador do coletivo, conferi se a cópia do boletim de ocorrência do assalto e o sumário de alta estavam na bolsa, pois eram os únicos documentos que eu levava comigo. Parei numa lanchonete da rodoviária, comprei refrigerante, coxinha e pastel de queijo. Estava com fome, pois já era meio-dia e o café que tomei na clínica foi às sete horas da manhã, como todos os dias. Comprei a passagem e fui aguardar na plataforma pelo ônibus, que só iria sair de Balancena às treze horas. Quando o ônibus chegou apresentei a passagem e entrei para aguardar o horário de saída na cadeira reclinável de número vinte e sete. Estava um pouco cansado do trajeto de vinte quilômetros que fiz de ônibus, em pé, até a rodoviária. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Na volta pra casa, antes de sair da rodoviária, o motorista do ônibus avisou que seria necessário mudar o percurso pelo município de Pedras Negras, devido à manifestação popular em Congados, em retaliação contra as autoridades pelo pedido de construção de uma passarela na rodovia, onde muitos eram atropelados, e contra a corrupção que assolou o país. A participação popular no processo democrático tem crescido muito! As pessoas já não aceitam simplesmente ser alvo de todo tipo de abuso e se lamentar em silêncio, ostentando medo e ignorância no rosto. Ao contrário, as classes mais humildes estão buscando cada vez mais informação e lutando pelos seus direitos. O acesso à informação aumenta a cada dia. A imposição cultural e a influência tendenciosa dos homens que usam terno está esmaecendo cada vez mais, e até mesmo aqueles que trabalham na informalidade já têm uma conta de acesso às redes sociais. As cidades e rodovias estão em chamas! Populares ateiam fogo em pneus e trancam a rua, impedindo o fluxo de veículos em ambos os sentidos. A democracia é do povo! Pertence ao povo, mas os integrantes de poder público tomaram o país por muitos anos como sua posse, seu despojo. As manifestações se mostram como a revolta dos verdadeiros donos do poder. As pessoas querem ser ouvidas! Querem respostas do poder público às necessidades básicas como segurança pública de qualidade, construção de novos centros de saúde, melhorias urgentes na educação, construção de passarelas para evitar os constantes atropelamentos em rodovias, distribuição de verbas, punição à corrupção e melhor qualidade de vida. Nas cidades, organizam-se marchas com centenas de milhares de pessoas carregando faixas, pintando o rosto, provocando barulho e parando o trânsito.

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As pessoas querem ser vistas pelos políticos! Não são mais os meros fantoches que a cada quatro anos são lembrados e depois esquecidos por mais quatro. Querem que seus direitos constitucionais sejam respeitados! As pessoas querem cidadania e já não aceitam a truculência do poder público, pois são os cidadãos que o sustentam, desde a educação, saneamento básico, segurança pública, saúde e todas as regalias que por anos foram usufruídas pelos representantes da população, e que agora enfrentam um gigante irredutível que não tem liderança formada. É o desejo democrático em sua manifestação plena! No caminho de volta, avistei na rodovia um caminhão de lixo recolhendo pedaços de pneus, partes de carros, e até mesmo um sofá, que foi jogado à beira do asfalto. Pensamentos enleados, mas havia algo de humanitário na ação dos catadores! Não sei se estavam fazendo aquilo por mera obrigação ou pela consciência de terem uma rodovia mais limpa e sem o risco de acidentes provocados pelo lixo que é abandonado no trecho da cidade de Balancena. Mais à frente, havia uma ferrovia à direita da rodovia e um trem enorme passava por ela! Olhando da janela aquela locomotiva com mais de sessenta vagõescarregados, foi bom ter uma lição prática do desenvolvimento humano, transformando o mundo, escoando a produção pelos trilhos cujas imagens ilustravam os livros de história nos tempos de escola. Conselheiro Leopardo, que cidade agradável com feitios de cidade grande e o modo característico do povo quietinho da terra desse estado tão carismático! Povo que adormece e deixa a cidade sob a suave brisa e cheiro das flores! Lembro-me que o ônibus passou por uma avenida repleta de comércios, porém, no modo de vestir das lindas mulheres que andavam pelas calçadas, uma tradição tão apaixonante quanto o próprio ar que se respirava pela janela ao colocar a cabeça para o rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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lado de fora do ônibus para apreciar, mais de perto, tanta formosura! Município de Pedras Brancas! Que paz! Quantas flores ao longo da passagem! A maioria de cor roxa. O ônibus passava por ruasrepletas de ipêsque, de tão carregados de flores roxas, formavam nas calçadas um lençol de flores jogadas, tal qual nas cenas de cinema! Muitas pessoas tiravam fotografias para levar de lembrança. Chegaram até a pedir ao motorista para passar mais devagar por uma rua onde, nos dois lados, os ipês-roxos disputavam olhares admirados e cheios de uma ternura que há muito tempo não se via. Coisa de olhar de criança, desses que, depois que chega a idade adulta e as mazelas sociais e sentimentais roubam os sorrisos e o prazer, já não se revelam mais, manchados de desgosto pelos pecados alheios, surrados de lágrimas! Os ipês perfilados, enquanto o ônibus passava revistando com muitos olhares uma perfeição que somente a natureza sabe oferecer! Em compensação, na Praça Sagrada Cruz, no centro da cidade, o ônibus demorou a passar, pois havia dezenove carros estacionados em local proibido. Não havia sequer um dos motoristas que pudesse comparecer ao local para tirar o veículo. Foram necessárias várias manobras para que a viagem pudesse continuar, formando um congestionamento com vários veículos. Nem é necessário comentar a beleza que é o município de Pedras Negras, pois todos já sabem! É um lugar maravilhoso! Lindas construções do Barroco e ladeiras de pedras! As montanhas parecem pepitas de ouro bem escuro, talvez preto! Sim, várias pepitas de ouro preto jogadas do céu, formando uma cortina de montanhas que a visão chega a ficar ofuscada de tamanha admiração! Um cheiro agradável de café invadiu uma das ruas onde passamos! Um sentimento de doce saudade e de simplicidade! Na varanda de uma casa, uma senhora de idade já avançada jogava muitas sementes para os pombos que tomavam conta da calçada.

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O ônibus deixou a cidade e o mato esverdeado foi se revelando nos dois lados da rodovia. Depois de uma cortina de palácios naturais onde a mão do homem não pôde bulir, a visão da metrópole! Com um céu cinzento de tanta poluição e uma infinidade de prédios de cores escuras! Nem mesmo o sol da estação penetra em suas frestas onde raio algum tem espaço. Não há luz natural, de fogo que queima tal qual o sol e oferece calor, somente as luminárias que iluminam a escrivaninha do escritório e os postes da rua onde os carros se enfileiram e as pessoas passam umas por cima das outras. Não há ventos e nem mesmo a chuva consegue passar pela cortina de poluição que o amor não pode abrandar. As cinzas queimando, deixando no ar a fumaça negra, tornando o lugar seco e sem vida. Ali nem mesmo os cactos querem crescer, pois o ar é pesado! Nesse momento, meus olhos se acenderam como fogo e pude sentir o calor com que queimaram. Essa era a resposta natural do renascer das cinzas. Percebi que eu estava vivo e pronto para a guerra contra qualquer um que ousasse, em qualquer momento, se armar de maldade contra os ideais puros, fortes, valentes e dignos que sempre levei em meu coração, e os transformei em ações. Ao entrar nos domínios da metrópole, o ar, que era puro, tornou-se ruim e pesado! Senti pena das pessoas nos pontos de ônibus lotados. Todas tão humildes! Trabalhadores que alimentam o sistema social. No rosto, a expressão de cansaço, depois de um dia inteiro trabalhando. Devido ao horário de grande fluxo de veículos, o ônibus demorou a chegar à rodoviária. Ao passar por um bar, tomei um trago de Salinas e acendi um cigarro, esperando minha prima trazer as chaves de casa, pois quando fui internado ela as guardou até o dia de meu retorno. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Ela contou que tomou conta dos animais enquanto fiquei internado, e que, como era noite e eu estava cansado, seria melhor ir para casa descansar que no outro dia levaria embora os pequenos. Foi bom saber que tudo estava bem! Sempre gostei muito dos animais, das plantas, da natureza e do meio ambiente! Trato os meus animais de estimação como se fossem filhos e não aceito que qualquer animal seja maltratado em minha presença. Ao chegar a minha casa, tudo estava muito organizado! A prima falou que veio aqui fazer faxina para que, quando eu chegasse, não tivesse com o que me preocupar. Dentro do armário havia vários pacotes do meu salgadinho preferido e na geladeira, sucos e leite. A Célia, que tem um bar na rua, chamou-me para comer bolinhos que estava preparando. Tomei um banho, passei gel nos cabelos, fiz a barba que já estava grande, passei meu perfume, que ficou para trás naquele dia em que fui trabalhar, e fui lá um pouco. Muitas pessoas disseram que ficaram preocupadas ao ver as notícias no jornal. Todos os que me viam no bar paravam para saber das novidades. Fiquei um pouco no bar, tomei duas cervejas e depois dormi um sono muito pesado, provocado pelo cansaço da viagem.

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O DESPERTAR Havia um comunicado para eu comparecer ao serviço imediatamente após ser liberado da clínica de tratamento psiquiátrico no município de Balancena. Recebi a correspondência em casa, entregue por um agente dos Correios, com aviso de recebimento que eu havia de assinar. Estava assinada pelo gerente Lino e não tratava de nenhum assunto específico, apenas pedia meu comparecimento. Após o banho, vesti uma roupa social e fui até o ponto de ônibus aguardar o coletivo. O trânsito estava intenso naquela manhã, com muitas buzinas e pessoas apressadas para chegar ao trabalho. Tudo devido à iminência nunca avisada de manifestações populares que interrompiam o fluxo de veículos. Quando cheguei à repartição, fui diretamente até a recepção, a fim de evitar ser notado pelos demais funcionários. Sei que muitos deles parariam os afazeres para vir fazer perguntas, e eu queria apenas saber do que se tratava a convocação e ir embora. Afinal, estava licenciado de qualquer atividade laboral. Não é fácil ser um renascido! As pessoas olham como se estivessem diante de um ente ou do céu ou do inferno, olham com surpresa, medo ou curiosidade. Ao ser encaminhado pela recepcionista até a presença dele, notei um olhar de pessimismo em seu rosto. – Sente-se! Precisamos conversar. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Sim, e o que deseja, senhor Lino? – Antes de mais nada, saber como está. – Estou em recuperação devido a todos os transtornos que o serviço me causou. – E o assalto? Está mais tranquilo agora? – Se eu falasse que sim, estaria mentindo. Não se esquece simplesmente das coisas ruins que acontecem conosco assim tão facilmente. – E em relação à antiga repartição? Você guarda alguma mágoa? – Senhor Lino, não estou entendendo aonde o senhor quer chegar com essa conversa. – Só estou querendo te dar bons conselhos. Você sabe que o sistema é assim, em todos os lugares: nos hospitais, numa grande montadora de automóveis, na polícia, nos governos. Tudo gira em torno de um interesse comum e, por isso, alguém vez ou outra se sentirá restringido em seus direitos. Mas é prudente ao homem avaliar as consequências dos seus atos! – Senhor Lino, o senhor está querendo defender alguém com seus conselhos? Ou será que estou entendendo errado? – Sim! Estou. Pelo bem da empresa, pela imagem e pela sua própria segurança. Você é o elo mais fraco, e, justamente por acreditar no seu potencial como profissional, estou querendo oferecer-lhe uma segunda chance. Uma oportunidade única para esquecer tudo o que se passou e começar do zero. – Desculpe-me, mas acho que o senhor ainda não entendeu muito bem, ou talvez não tenha assimilado as coisas que aconteceram comigo ao longo dos últimos três anos, por isso vamos desconsiderar que me disse essas palavras. – Você tem certeza disso? – Quando se provoca o brio de uma pessoa como eu, os efeitos podem ser devastadores! Não que eu não tenha vontade de me vingar de todo o sistema, eu tenho, mas tenho também a minha ideologia bem arraigada! Eu não escolhi ser um intelectual a lutar rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


pela ética e pela constitucionalidade, isso está em mim como parte perene do meu ser! – Eu sei, e admiro sua ideologia! Só estou querendo minimizar... – Desculpe-me interrompê-lo, senhor Lino, mas creio que nossa conversa não chegará a lugar nenhum. Meu último esforço para evitar a adoção de medidas mais drásticas já se esgotou. Se eu pudesse descrever o que tenho sentido nesses últimos dias, relataria ao senhor o despertar de um vulcão repleto de ânimo para alcançar, de qualquer forma, os objetivos a que me propus. Deverei carregar a minha cruz e o peso dela será lutar pela dignidade e pela honra do meu caráter, dia após dia. Em todos esses lugares que o senhor citou, também existem pessoas que, como eu, não aceitam a injustiça e o assédio moral. Sei que assim como eu despertei, outros haverão de despertar e, em todo lugar onde houver qualquer ilegalidade contra o homem, ali haverá revolta e mudança! É isso que toda nação está descobrindo com todas essas manifestações que estão parando o país. Ninguém aceita mais a ilegalidade e o abuso. Percebi que o gerente fitou os olhos em mim e observava tudo que eu dizia, surpreso ou com ódio, naquela situação difícil em que era obrigado a atuar, supostamente orientado ou ordenado pelo gerente do bloco intermediário, senhor Barcelos. – Na verdade, senhor Lino, a gota d’água foi quando o gerente Wladmir interferiu em minha segurança pessoal e nas minhas condições de trabalho. Ele não está acima da lei e em hipótese alguma irei permitir que se faça de juiz sem ter justiça em seu espírito. Só lhe peço uma coisa, senhor Lino, e agora falo como funcionário da sua repartição: que não interfira, que sua repartição não interfira, pois a minha ira não é contra essa repartição, e o que quer que ocorra, será resolvido unicamente entre mim e a outra repartição, a justiça trabalhista, a mídia e o governo. Não pretendo trazer nenhum transtorno para essa repartição, mas já não me pertencem os limites das minhas ações, pois tudo já está em nível global! Não sou eu como pessoa que estou iniciando uma guerra, é rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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a própria cidadania se manifestando em mim, e digo que ela não irá refrear o seu desejo. – Está bem! Eu tentei ajudar. – Está cumprindo sua função, senhor Lino. Não o culpo por isso. É um profissional exemplar! Como o senhor disse, em todos os lugares existe o sistema, contudo, se olharmos no que se transformou o bloco intermediário, veremos que há uma blindagem aos gerentes e chefes de setor, enquanto os demais funcionários recebem diariamente todo tipo de represálias e punições. Há um surto de assédio moral que mancha qualquer relação social ou trabalhista, que deveria ser pautada na ética, na honra, no caráter, no profissionalismo e na Constituição Federal, pois foi devido a muita luta e sangue derramado que ela se consolidou, após a Ditadura Militar. Os gerentes e chefes de setor não estão acima da lei nem são infalíveis. Ao contrário, têm cometido erros injustificáveis na presença de todos, expondo a carência de limites aos seus atos de abuso de poder, ao passo que não existem punições ou castigos a quem está na linha de comando. Isso, senhor Lino, denuncia a fragilidade de direitos a que os funcionários de escalão mais baixo estão submetidos, e se isso, conforme relatou, existe em todas as organizações de trabalho, é um câncer a ser combatido constantemente e com todas as forças necessárias até que a cura se manifeste e seja aplicada com rigor. Costumo dizer que a gameleira é uma árvore que não cura nenhuma doença, por isso esperar uma solução vinda da gameleira é ilusão eterna. Ao me despedir do senhor Lino e deixar sua sala, por intuição, sabia que ele iria ligar para o gerente do bloco intermediário para cientificá-lo do teor da conversa. Eu estava decidido a fazer frente ao problema. O assédio moral precisa acabar, e uma pessoa que nasceu com o espírito revolucionário jamais se calaria perante a opressão moral e o abuso de poder. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Contudo, havia outras coisas para resolver naquele momento. Durante a internação, a conta de um parcelamento bancário ficou em atraso, e o banco, além de encaminhar meu nome para o serviço de proteção ao crédito, bloqueou o pagamento do mês a título de recuperação de crédito em atraso. Fui falar com o advogado Wagner, que é conhecido há algum tempo, a fim de lhe pedir orientações sobre o caso. Queria aproveitar que estava no centro da cidade para resolver tudo que estivesse pendente. Após falar com ele, fui até a unidade da polícia que possui circunscrição sobre o endereço da agência e solicitei o registro dos fatos com todo o amparo legal, tendo em vista que o banco, ao realizar o bloqueio do pagamento, que já é uma miséria, impediu que alguns medicamentos fossem comprados e que fossem pagas as contas de água e de energia. Saindo de lá, fui até o juizado de relações de consumo para abrir a ação contra o banco. Levei as cópias dos documentos e a síntese dos fatos, constantes no embasamento legal fornecido pelo advogado. Na verdade, o Wagner é um profissional confiável, sempre muito solícito e profundo conhecedor da lei, notadamente sobre a proteção dos interesses individuais e difusos. Após entrar com a ação, parei num restaurante popular para almoçar, tendo em vista que havia passado a manhã toda em reunião com o senhor Lino, depois fui visitar o advogado e de lá fui direto ao juizado dar entrada na ação indenizatória contra o banco. Minha ideologia estava renovada! Por muito tempo estive envenenado por víboras, e não havia esperanças de receber remédio da gameleira. E deixando de esperar pela cura contra o veneno, de uma árvore tão passiva como a gameleira, foi necessário morrer espiritualmente para que, no renascimento, um ser mais forte e valente surgisse. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Despertado de ânimo, corpo, alma e ideais, naquela manhã fiz uma importante ligação para o Genaro, para que me acompanhasse na reunião já marcada com um representante parlamentar, o Deputado Freitas. Meu novo estado espiritual era decidido! Forte, valente e digno! Eu já havia passado por inúmeras privações de direitos, muitas tentações ao corpo e ao caráter. Já não havia sentimento, senão uma revolta moral contra o sistema em sua manifestação mais singular e objetiva. Heureca! Eu sou um pensador com ideais revolucionários! Invendível! Irredutível! Endêmico!

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DESVIANDO O OLHAR Já havia se passado muito tempo desde a última vez que vi a luz da justiça clarear meus olhos já incrédulos na sociedade humana, tendenciosa e materialista. Nesse tempo, vivi um período de arbitrariedades das quais não tem noção o mais injustiçado dos homens de boa fé e dignidade de caráter. Hoje pela manhã, recebi uma ligação do serviço, avisando que o funcionário Fábio, da antiga repartição, exigia a minha presença naquele local, a fim de responder a um apenso produzido pelo gerente Wladmir. Embora o antigo gerente já não fosse mais meu chefe, e eu estivesse disposto a levar para a esfera judicial qualquer coisa que ousasse fazer contra mim, compareci à repartição para saber do que se tratava. A ilegalidade do apenso era evidente, mas eu não poderia esperar outro comportamento, pois com o tempo aprendi que ali os homens, quando desejam poder, ousam passar por cima da lei para alcançar seus objetivos, sendo necessário o amparo da própria lei para frear-lhes o impulso hedonista. A reunião foi inquisitiva por parte do Fábio, havendo duas testemunhas presentes no local, uma saleta de reuniões e despacho de documentos da repartição. – Estou aqui a mando do senhor gerente de repartição Wladmir, com o objetivo de produzir um apenso em seu desfavor, pelo fato de, quando foi assaltado, ter usado indevidamente o nome desta rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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repartição, causando-lhe prejuízo de imagem. Quero saber o que tem a relatar. – Ora, Fábio, não tenho nada a declarar para o senhor, ou melhor, para você. E, como já deveria saber, digo que nem deveria ter vindo aqui participar de tudo isso. Um verdadeiro teatro em que nós somos os fantoches e aquele gerente ordinário, o público. – Como assim? Está depreciando o gerente? O espanto foi geral no interior da sala, onde se esperava uma postura amedrontada, e de repente houve uma resposta seca e fria, que ecoou como som desagradável. – Diga ao seu chefe que eu não tenho nada a declarar para ele, pois ele é o seu chefe, e não meu. Não estou trabalhando para ele e, sendo assim, somente presto contas sobre o serviço à repartição onde trabalho e ao público. Ainda mais, sobre sua inquisição, na condição de cidadão, acho conveniente somente prestar contas à autoridade competente. Nesse momento, desviando os olhos e olhando fixo e com expressão confusa para o computador, fitei os olhos nele esperando dele o mesmo. Contudo, minha expressão era irredutível! Eu já estava no limite da aceitação. Já havia se esgotado qualquer fragilidade do corpo. Olhos de fogo queimam os que olham para ele. – Tem certeza de que não quer expor os seus motivos? Esses apensos podem provocar sua demissão. – Eu insisto que não tenho nada a declarar ao seu chefe de repartição. E, além disso, caso queira anotar o que estou dizendo, eu o acuso de estar agindo em retaliação à minha condição de profissional, criando um documento sem validade jurídica– unicamente para me trazer o transtorno de sair da minha casa... Uma tosse forçada de um dos presentes interrompeu o que eu dizia, mas nem mesmo essa pausa abrandou minha ira naquele instante... – E como eu estava dizendo, estou acusando-o de agir em retaliação à minha condição profissional, criando um documento rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


sem validade jurídica unicamente para me trazer o transtorno de sair da minha casa e vir até aqui, pois ele já estava sob investigação judicial quando elaborou esses apensos, e, mais que isso, já se encontrava sob suspeição da casa legislativa por causa dos assédios profissionais que há muito tempo vem exercendo. Eu não tenho nada a declarar para vocês dois. – Bem, mas em relação ao assalto que sofreu? Isso foi veiculado na mídia. O que tem a dizer? – Eu não tenho nada a declarar, Fábio, já disse. O processo que está sendo movido contra ele irá adiante, independente de quantas pessoas estejam envolvidas. Sempre pactuei que a lealdade de um profissional para com a chefia não deve, em hipótese alguma, significar fidelidade cega e plena aos desejos e aspirações do chefe. Mais uma longa tosse interrompeu o que eu dizia... E continuando: – Antes disso, o funcionário deve ser dotado de idoneidade moral, deve ter o direito de pensar e agir conforme a lei. A imposição jamais conduzirá esse país a melhores condições de existência e nossa sociedade, recém-acordada com as manifestações populares, está se tornando irredutível! Pouco a pouco as formigas estão percebendo que, se estiverem juntas, nem mesmo o maior dos animais poderá enfrentá-las. Um gigante que acorda! Assim é o desejo do povo, e quem não partilhar dele, em algum momento será esmagado juridicamente, ou agora, ou daqui a um mês, um ano ou mais. O tempo do abuso de poder já acabou! A sociedade brasileira já se cansou de ser limitada e um novo tempo de mudanças já começou. Com dificuldade, ele digitava tudo e, no interior do seu ser, havia concordância com o que eu dizia, mas a fidelidade cega o impedia de demonstrá-la, fosse em palavras ou simplesmente em olhar nos olhos do seu adversário. Suava frio e denotava nervosismo. Ele não conseguia acordar e contrariar o sistema. Sentiase orgulhoso de ser fiel a qualquer preço, pois achava que esse rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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comportamento lhe traria uma carreira de sucesso. Eu até o entendo. Muitas pessoas têm medo da pobreza. Têm medo de ter que economizar o pão por carência de recursos. Numa sociedade interesseira. somente quem tem dinheiro fala com coragem e aquele que depende dela abaixa a cabeça para responder e não olha nos olhos. – Sobre o emprego, senhor Fábio, nessa vida somente não alcança o sucesso quem não se empenha para chegar até ele. Não devemos temer o futuro, e sim nos prepararmos dia após dia para tempos em que haja escassez de recursos. Não podemos avaliar nossa situação profissional pelo medo de perdermos o emprego, pois isso é justamente o que move toda uma trama de influência e torna o homem escravo do sistema. Quem está agindo conforme a lei deve aguardar o amparo dela e isso é justamente o que eu sempre fiz, pois, de outro modo, o gerente Wladmir já teria concretizado todos os seus planos contra mim. Não foi em vão eu ter-me rebelado socialmente contra ele e seus homens de confiança, porque isso destruiu o espírito de divindade que foi criado naquele lugar. Eles são homens, você é homem. Devemos respeitá-los como chefes do serviço e não nos curvarmos como se fossem dotados de poderes sobre-humanos. – Está bem! Creio que não há mais nada para eu fazer aqui. Espero que melhore e que fique bem! Sua insubordinação ainda vai conduzi-lo ao fracasso. – Desejo o mesmo ao senhor! Que melhore... e, antes de mais nada, tenham a bondade de ir para o quinto dos infernos! Saí da saleta de reuniões, bati a porta com força e, no interior da sala, como se não houvesse ninguém lá dentro, reinava um silêncio absoluto! Antes de ir embora, fui falar sobre o ocorrido com o Donato, gerente de setor. Na verdade, eu deixava claro que estava na repartição para executar o meu trabalho, porém já havia se esgotado a situação de rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


harmonia entre a antiga repartição e eu, e no que estivesse ao meu alcance, não traria problemas para a nova repartição, mas também não poderia deixar de ir atrás dos meus direitos. Quando provam o poder, as pessoas costumam ficar cegas a ponto de mudar o modo de pensar e agir, a colocação das palavras e os círculos de amizades, se é que as pessoas poderosas possuem amigos. Isso é uma coisa que não me importa muito descobrir. Sei que possuo amigos e o poder não me agrada, afinal, gosto de sorrir e receber sorrisos verdadeiros em retribuição. Se eu tivesse poder, perderia esse bem precioso e somente receberia sorrisos falsos e bajuladores. E depois, fui embora. Fui para casa descansar, afinal, estando em tratamento médico, não é bom que uma pessoa fique exposta ao stress profissional de maneira tão brusca como ocorreu hoje. Às vezes, mandar alguém ir para o quinto dos infernos produz automaticamente um inimigo a mais, ou até dois, afinal, até o tinhoso anda reclamando das mercadorias que lhe são oferecidas, só que o grande ensinamento que se tira disso tudo é que eu não estou nem aí !

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A DEMOCRACIA É DO POVO Era linda a manhã do dia da Independência do Brasil! Um sol forte, no céu sem nuvens, clareava o dia. Tomava meu café da manhã com bolos, biscoitos, gemada com canela, que adoro, uma banana amassada com aveia e pão integral. Tudo parte da dieta que comecei a fazer para entrar em forma. No jornal da manhã, o repórter alertava os motoristas sobre o trânsito, devido à concentração da maior manifestação popular já vista em todo o mundo! Pessoas do país inteiro se reuniram com um único ideal democrático: manifestar a indignação contra a corrupção política, o abuso de autoridade dos órgãos públicos, a falta de médicos e de unidades de saúde em todo o país. E exigir melhorias na educação, melhores condições de saneamento, mais saúde, melhores condições de vida, efetividade na prestação de serviços públicos, creches, escolas, dignidade e cidadania. Em todas as cidades, em cada estado, milhões de pessoas nas ruas, de rostos pintados, apitando, soltando foguetes, levando cartazes, faixas e bandeiras. A repressão policial, em seu nível mais elevado, atuava para conter as depredações, de um lado repudiada pela massa popular, e de outro, como último escudo dos políticos do país. É o despertar de uma nação que já não suporta ver o dinheiro público sendo gasto pelos políticos e desviado de obras que nunca terminam, sendo sempre superfaturadas.

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Um gigante que saiu do seu leito, e não há quem o faça parar. Despertou e agora tem fome e sede. Os governos convocam as forças policiais para reprimir o povo, masaté por eles está lutando a população, exigindo uma equiparação de salários em nível nacional, aumento de efetivo e melhores cursos de preparação dos servidores. Claro, sempre existem vândalos infiltrados nas manifestações, porém são uma minoria que se aproveita desses momentos para saquear lojas, furtar objetos e fazer arrastões. Pouco a pouco, a rua fica cheia! Todos os meus amigos estão indo para a manifestação. Apósalimentar os animais de estimação, quesãoaminhamelhor companhia, e subir no telhado para jogar sementes e migalhas dos restos do café para os pássaros, fui até lá conversar com eles, e me chamaram para subir no caminhão junto com todos. O rosto pintado, borrado de tinta até os cabelos, a blusa já rasgada numa das golas, aos gritos até mesmo as gotas de saliva quaram o ar. Sob foguetes e gritos de ordem, o caminhão deixa a rua de casa com cerca de cinquenta pessoas na caçamba, segurando faixas e gritando sons de revolução. No trânsito, os motoristas buzinando, participam daquele movimento novo de revolta social. Pessoas dispostas a eliminar o câncer do maquiavelismo humano, que se instalou em todos os setores públicos, objetivando subjugar a justiça, o caráter e a honra para poder agir visando exclusivamente aos interesses pessoais. Pouco tempo depois, já não havia condições de o caminhão transitar. Havia uma multidão de milhares de pessoas bloqueando a passagem até a Avenida Antônio Charles, que dá acesso ao centro da cidade. Eram muitas pessoas! A avenida, mesmo larga, não comportava aquela imensidão de gente. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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Descemos do caminhão e continuamos andando a pé entre os carros até chegar à avenida. Muitas faixas, canções, gritos ensaiados, rostos pintados e barulho. Pessoas soltavam foguetes, outras, enchendo balões de gás da varanda de casa, soltavam balões com frases contra a corrupção do governo, a precariedade do setor de saúde, a defasagem da segurança pública, os impostos elevados e a falta de transparência dos órgãos governamentais. Em pouco tempo, o céu estava repleto de balões com faixas de protesto. Havia um aparato considerável de policiais garantindo a segurança nos locais por onde aquela imensa massa de pessoas passava, mas como atuar contra o povo? A polícia, a guarda, os agentes de trânsito ou até mesmo os seguranças particulares. A população sempre se manifestou de forma desorganizada, fazendo quebradeiras, ateandofogoempneusemateriaisdiversos, entrando em conflito com os órgãos de defesa social. O poder público, nos últimos meses, deparou com algo inesperado: a manifestação pacífica e sem liderança definida. As pessoas simplesmente lotam as ruas e, sem quebrar um só galho de árvore ao longo do percurso, exprimem o desejo democrático de tomar para si o que foi subtraído pelos governantes e representantes políticos. Não há um arruaceiro, uma liderança definida para ser pressionada pelas autoridades a cessar a manifestação. Os manifestantes relatam que é o desejo único de todos pelas reformas cobradas. Se não há dano algum ao patrimônio, se não há violência ou ilegalidades cometidas pelos populares, o governo não tem como proibir que o povo vá para as ruas e demonstre todo o furor do seu descontentamento. Fazia um tempo que não me sentia assim tão vivo! Pelo suor de minha pele, muitas mágoas sem solução eram eliminadas e queimadas pelo vento. A tristeza porejava e esmaecia, e a felicidade, como ar puro, penetrava nos pulmões que se inflavam. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Pessoas ao longo da minha vida tentaram reduzir o brilho que sempre ardeu em meus olhos. Cheguei a morrer sentimentalmente, mas hoje posso dizer que renasci das minhas próprias cinzas, tal qual um pássaro de fogo que, ao se apagar, volta mais forte, valente e digno do seu calor vital, temível e irredutível ao se fazer proprietário do céu em que voa. A manifestação chegava ao centro da cidade e havia muita correria, de pessoas e de carros. Uns queriam fugir do imenso tumulto, que, anunciado pelas autoridades, chegava a quatrocentos e cinquenta mil pessoas. Um imenso telão, colocado por um comerciante na fachada de seu comércio, na Rua dos Gabirus, bem na esquina com a Rua Coritiba, num prédio verde, mostrava os atos de manifestação em todo o país, transmitidos ao vivo por uma rede de televisão. Aquilo inspirava as pessoas! Demonstrava que a luta por dignidade e respeito havia tomado conta de todo o país. Subi num dos palanques da manifestação e lá de cima cantávamos e gritávamos, incentivando as pessoas a fazer barulho. A cada hora, um se revezava ao microfone, quando a voz, já rouca, impedia de continuar a falar. Lá de cima não era possível ver o final da manifestação, que se estendia por todos os quarteirões da Avenida dos Paraíbas até a Praça Raul Sóbis. A Avenida Principal estava tomada! A grande quantidade de manifestantes roubou o brilho do desfile da Independência. As câmeras de televisão foram posicionadas para o possível ponto de confronto entre o aparato de segurança e a frente da manifestação popular. Nos prédios, pessoas agitando bandeiras, soltando balões e gritando. – A vida é bonita! Nós temos de lutar! – A vida é bonita! A gente luta até vencer! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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– Somos todos guerreiros trazendo flores nas mãos e ideais consolidados. A população já não aceita ver a Constituição Federal ser devorada por quem está no poder, nos seus diversos níveis, como se ela fosse um pão açucarado e macio que satisfaz somente a fome de quem pode usufruí-la. Uma voz calada jamais verá justiça. Se não houver luta, mesmo que a custa de muitas feridas, a ilegalidade sempre existirá. Da vitória, porém, não gozam os que dormem e se calam. Eu decidi que, se perdesse minha identidade, jamais poderia lutar pelos meus sonhos. Eu renasci das cinzas para fazer história! A minha história! Ideologia que marca os batimentos do meu coração. Eu não abri mão dos ideais nem mesmo quando a opressão roubou lágrimas dos meus olhos e até mesmo quando houve a desistência da vida. Eu sou a imagem dessa grande quantidade de vozes que está nas ruas, e agora eu sei que tudo que fiz foi por amor! Sim, amor! Amor à justiça e à igualdade! Um sentimento puro que não se mancha pela pressão, pela opressão ou pelo assédio. . Estava renovado de forças e sentia uma felicidade imensa no coração por estar no meio do povo, unindo os ideais para verdadeiramente promover a Independência do Brasil. Eis que, enquanto eu gritava, um me passou o microfone do palanque, já cansado e rouco, e me disse: – Fala alguma coisa aí que já não aguento mais gritar. Voz! O povo tem voz, mas para ser ouvido deve falar com propriedade! Sem medo ou receio. Eu sempre acreditei na justiça! Segurei o microfone, voltei para a multidão o meu olhar queimando e o corpo retinto, brilhante de suor, e comecei a falar. E o que eu disse... rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Bem, isso é segredo do povo, de todos aqueles que estiveram comigo na manifestação. Uma grande nação que, acima de qualquer dificuldade da vida, luta até obter a vitória! Também o sabem as autoridades presentes, mas amanhã já não será segredo. Sairá em todos os jornais, de todos os Estados do país. Decidi ser feliz, e isso ninguém poderá me tirar!

Fim! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA

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