Dos Cafezais Nasce um Novo Brasil

Page 1

A HISTÓRIA DA ECONOMIA BRASILEIRA

PATROCÍNIO

APOIO

REALIZAÇÃO

Dos

cafezais

nasce um novoBrasil


PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS REALIZAÇÃO: QUATTRO PROJETOS RIMOLI ASSOCIADOS COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO CONSULTORIA: HISTORIADOR VOLTAIRE SCHILLING EDIÇÃO: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA TEXTOS: RICARDO BUENO E VOLTAIRE SCHLLING (O CAFÉ E O ILUMINISMO) REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

APOIO

PATROCÍNIO

REALIZAÇÃO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CIP ) B928h Bueno, Ricardo. A história da economia brasileira e sua inflência na cultura e na sociedade / Ricardo Bueno. – 1. ed. – Porto Alegre : Quattro Projetos, 2011–. 2 v. 128p : ils. col. ; 20 x 30 cm. Conteúdo: v. 1. Dos cafezais nasce um novo Brasil – v. 2. Seiva amazônica tipo exportação alimenta cultura regional. ISBN 978-85-64393-02-8 1. Economia - Brasil. 2. Ciclo do café. I. Título. II. Dos cafezais nasce um novo Brasil. III. Seiva amazônica tipo exportação alimenta cultura regional. CDU CDU 398(816.5) Bibliotecária Responsável: Denise Pazetto CRB-10/1216 – (51)30297042


Do Brasil mito

ao Brasil real

A Case New Holland, fabricante de máquinas agrícolas e de construções, tem grande orgulho de participar há mais de 60 anos da história do desenvolvimento deste imenso território que é a nação brasileira. O que no passado era motivo de receio, por vezes até de questionamentos, hoje se comprovou ser motivo de grande destaque no panorama global. O antigo “mito” de celeiro de mundo se provou realidade. E realidade exemplar, pois o Brasil é hoje o maior produtor de diversos gêneros alimentícios de primeira necessidade para consumo humano e animal, com índices de produtividade, tecnologias de primeira linha. Acima de tudo, é capaz de fazê-lo e ainda expandir-se, sem aumentar desmatamentos e com técnicas de preservação de ponta. Mas, como se fosse pouco, sob os nossos pés ainda repousam os maiores aquíferos do mundo, um bem valioso que abençoa ainda mais esta nação. Aliado a tudo isso, a cada dia se abrem novos caminhos e se constroem melhorias significativas na infraestrutura, tornando realidade um sistema produtivo equilibrado entre a agricultura e a indústria, capaz de promover um cenário econômico, social e ambiental referencial para o século XXI. Quando, há mais de 500 anos, Pero Vaz de Caminha relatou o que via e vislumbrou um futuro próspero para o novo território, ao escrever na primeira carta “nesta terra, em se plantando tudo dá”, certamente não imaginava a dimensão real de suas sábias palavras. Por isso, além de participar ativamente do processo de desenvolvimento sustentável do Brasil, acreditamos que uma outra parcela de retribuição que devemos ao “país do futuro e à terra em que tudo dá” são os projetos sociais e culturais que promovemos, valorizando de forma responsável a Lei Federal de Incentivo à Cultura. Como no caso dessa coleção sobre a história da economia brasileira e sua influência na cultura e na sociedade, este ano com o lançamento do livro e da exposição sobre o café – Dos cafezais nasce um novo Brasil –, retratando a história e a importância da cafeicultura no cenário econômico-social da nação brasileira. Um projeto que está levando ao público de todas as camadas sociais e faixas etárias, de forma gratuita, tanto pela distribuição do livro, quanto pela visitação à exposição, um contato direto com a história do país. Estes são alguns dos motivos pelos quais a Case New Holland sente orgulho de participar do processo de construção não apenas desta nação, mas do futuro do nosso planeta. Boa leitura!

VALENTINO RIZZIOLI PRESIDENTE DA CASE NEW HOLLAND E VICE-PRESIDENTE EXECUTIVO DA FIAT PARA A AMÉRICA LATINA


sumário

café:as

origens

o café e o iluminismo

o ciclo do

o café nas artes

café no Brasil

e na cultura

18

26

50

100

introdução 14

os cafés do Brasil 120

obras consultadas 126


Certos hábitos estão tão arraigados em nosso dia a dia que dificilmente conseguimos o distanciamento necessário para perceber sua verdadeira dimensão sociológica e cultural. Tomar um cafezinho após as refeições, por exemplo. Ou servir um café para o visitante que chega, quem sabe para os clientes com os quais se negocia. Quantas pessoas sabem que a planta que dá origem a esta hoje popularíssima bebida foi descoberta provavelmente em meados do século XIV, início do XV, ou seja, há pouquíssimo tempo, em relação à história da humanidade?

uma história que ainda não terminou POR RICARDO BUENO

Quantos brasileiros têm a exata noção de que o singelo cafezinho de todo dia faz parte de um ritual, assim como no Japão e na Inglaterra se preserva o costume do chá? Quantos de nós temos a percepção de que o hábito de consumir esta infusão de cor escura há não muito espalhou-se mundo afora, e que desde o início do século XX quem mais abastece o planeta são os grãos plantados e colhidos em território verde-amarelo, há algum tempo o maior produtor mundial, tendo chegado, no alvorecer do século XX, a ser responsável por nada menos que 75% de tudo o que se produzia na época? Mas como foi mesmo que chegamos a este importante posto na economia cafeeira global? Onde tudo começou, por que percalços passamos, que influências esta atividade deixou na nossa sociedade e na nossa cultura, a partir dos homens e mulheres que a transformaram em esteio de transformações econômicas impactantes? Há tantas e tão ricas perspectivas a partir das quais se pode perceber e tentar compreender este fenômeno chamado café que editar um livro sobre o assunto necessariamente significa encarar o complexo desafio da síntese. No volume que agora chega às suas mãos, como parte da série que pretende recontar a história da economia brasileira e sua influência na cultura e na sociedade, nossa pretensão foi a de recontar os principais aspectos que dizem respeito à introdução do


introdução cultivo do café no Brasil, a partir da qual se desencadeou um ciclo econômico de poderosa influência na história do país. Como não poderia deixar de ser, buscamos, complementarmente, situar o leitor, apresentando informações sucintas sobre a origem do grão e, de forma um pouco mais alentada, no delicioso texto do professor e historiador Voltaire Schilling, relembrar como foi que os iluministas encontraram na bebida o combustível para suas geniais produções, ao mesmo tempo em que as coffee-houses iam tomando o lugar das tavernas como ponto de encontro das inteligências europeias da época. Por sua vez, o agrônomo e pesquisador Celso Luis Rodrigues Vegro, do Instituto de Economia Agrícola, atendendo convite da Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), parceira institucional deste projeto, apresenta, ao final do livro, um artigo em que se propõe a situar o atual momento do que ele chama de "Os Cafés do Brasil" e suas perspectivas futuras. O recheio desta história tangencia o século XVII, quando um certo sargento-mor de sobrenome Palheta traz para o Brasil os primeiros grãos e as mudas que dariam origem à nossa produção, transita por todo o século XIX, primeiramente no período colonial, depois no primeiro e segundo reinados e, mais ao final, com a proclamação da República, chegando ao século XX, que em sua primeira metade assistiu a uma explosão produtiva sem precedentes, seguida da crise devastadora causada justamente pela superprodução, que desencadeou um desequilíbrio no mercado mundial e a queda vertiginosa dos preços, levando uns tantos produtores à ruína. Como força motriz da lavoura que veio a substituir a produção de pedras preciosas, então em decadência, e a exemplo do que já se verificara no cultivo extensivo da cana-de-açúcar, foi a mão-de-obra escrava quem primeiro labutou de sol a sol nos imensos cafezais do Vale do Paraíba, seja em território fluminense, seja já em terras da então província de São Paulo. Com o movimento global contrário à manutenção do trabalho escravo, ao qual o Brasil lenta e tardiamente aderiu, ocorreu aos grandes fazendeiros paulistas a possibilidade de substituírem a força de trabalho dos negros cativos pela do imigrante europeu remunerado, em especial os italianos do Norte, que em seu país enfrentavam dificuldades para conseguir emprego. Foi com sua chegada, simultânea à vinda de outros tantos milhares de portugueses, espanhóis e japoneses, que dos cafezais nasceu um novo Brasil. Uma história que ainda não terminou. Boa leitura.

NEGROS, ITALIANOS, ESPANHÓIS E JAPONESES FORAM ALGUNS DOS BRAÇOS QUE FIZERAM NASCER, DOS CAFEZAIS, UM NOVO BRASIL


cafĂŠ as origens 18


café: as origens

Em toda e qualquer publicação que se dedique a contar a história do café, o capítulo inicial, sobre as origens da bebida, é o que carrega mais incertezas. A começar pelo fato de que mapear a descoberta da planta é uma das tarefas, enquanto tentar localizar no tempo o momento em que se descobriu a infusão, nos moldes como é conhecida hoje, é bem outra. Em meio a documentos e depoimentos tecnicamente questionáveis, do ponto de vista do registro histórico, ainda há as lendas em profusão que foram passadas de geração em geração, ao longo dos séculos.

A LENDA DAS CABRAS DE CALDI (ABAIXO) E EMPREGADA TURCA SERVINDO CAFÉ (AO LADO)

O italiano Pietro Della Valle, por exemplo, nascido em Roma em 11 de abril de 1586, enviou uma carta ao amigo Mario Schipano, médico e humanista, na qual defendia a tese de que a poção misturada por Helena na bebida servida a Telêmaco, no palácio de Menelau, era café. De outra parte, nos idos de 1700, um certo Paschius imprimiu em Leipzig um tratado em que supunha estarem, entre os presentes dados por Abigail a David, cinco medidas de café, mesmo presente que teria sido dado por Boaz a Ruth, em outra passagem bíblica.

A mais famosa lenda, entretanto, teria sido divulgada por Banésio, escritor do século XVII, segundo a qual um pastor árabe ou etíope, possivelmente de nome Caldi, estranhou o comportamento de algumas cabras de seu rebanho. Em determinadas situações, os animais pareciam estar agitados demais, inclusive no período da noite. Teria o pastor pedido ajuda a um amigo monge, de um mosteiro próximo, no sentido de auxiliá-lo a diagnosticar o porquê da agitação dos animais. Depois de um breve período de observação, veio o surpreendente veredito: as cabras se agitavam após a ingestão dos frutos ou das folhas de um arbusto, característico das montanhas da Abissínia, ao norte da Etiópia, na África. A propósito da Abissínia, há também outra pequena confusão. Como havia por lá uma província chamada Kaffa, onde os cafeeiros eram encontrados em estado selvagem, muito se especulou que a palavra café teria tido ali sua origem. Em verdade, café vem do árabe qahwah, qahua, cahwe ou qahwa (mesma palavra para vinho), todas originárias do turco kaveh, kahvet. O fato é que, de início, por volta do século XV, o café era consumido apenas em cerimônias religiosas ou indicado por médicos. Era usado para tratar uma grande variedade de problemas, como pedras nos rins, gota, varíola, sarampo e tosse. O botânico Prosper Albinus, em um tratado de finais do século XVII, sobre remédios e plantas do Egito, afirma: “É um excelente remédio contra a cessação dos fluxos das mulheres, e elas fazem muitas vezes uso dele quando o seu fluxo não é tão rápido quanto desejariam”. É também de Alpinus a descrição de como se preparava o café, en-

NO SÉCULO XV, O CAFÉ ERA UTILIZADO EM CERIMÔNIAS RELIGIOSAS OU INDICADO POR MÉDICOS COMO CURA DE DIVERSAS DOENÇAS

20

21


café: as origens EM POUCO TEMPO, O ATO DE BEBER CAFÉ FIXOU-SE EM GRANDE PARTE DA ARÁBIA, ESPALHANDO-SE PARA O OCIDENTE, EGITO E SÍRIA

AO LADO, BEDUÍNO PREPARA O CAFÉ SEGUNDO MÉTODOS TRADICIONAIS DOS ÁRABES

22

tão: “A decocção, fazem-na de duas maneiras: uma com a pele ou o exterior do referido grão, e outra com a própria substância do grão. A que é feita com a pele tem maior poder do que a outra. (...) O grão é colocado em um instrumento de ferro, firmemente fechado com a tampa; por este instrumento introduzem um espeto por meio do qual o voltam no fogo, até que fique bem torrado; depois do que, tendo-o amassado até ficar um pó muito fino, se pode fazer uso dele, proporcionalmente ao número de pessoas que o vão beber: a terça parte de uma colher para cada pessoa, e deitea num copo de água a ferver, juntando também um pouco de açúcar. E depois de ter fervido um pouco, deve deitá-lo em pires de porcelana ou de qualquer outro tipo e deixar bebê-lo aos poucos, o mais quente que se possa suportar.” Da Etiópia, via comerciantes ou mercadores de escravos, a planta teria chegado à Arábia, e, depois, à Europa. Não sem antes passar por Meca, na Arábia Saudita, a cidade de onde partem todos os caminhos e que é considerada a mais sagrada do mundo entre os muçulmanos. Além de sua posição estratégica, pois ali chegavam inúmeras caravanas, das mais diferentes regiões da civilização de então, Meca proporcionava ao café um prestígio incomum, já que Maomé proibiu os islâmicos de ingerirem qualquer bebida de álcool. Como aponta Jane Pettigrew, “à medida que o café tornou-se cada vez mais popular, salas especiais nas casas dos mais abastados foram reservadas para se tomar café, e casas de café começaram a aparecer nas cidades. A primeira teria sido aberta em Meca, e embora originalmente fossem lugares de reuniões religiosas, esses amplos saguões, onde os clientes se sentavam em esteiras de palha ou colchões sobre o chão, rapidamente tornaram-se centros de música, dança, jogos de xadrez, gamão, conversas em locais em que se faziam negócios”. Na condição de centro espiritual do mundo muçulmano, as práticas sociais e culturais de Meca costumavam ser rapidamente assimiladas em outras paragens. Foi assim que, em pouco tempo, o ato de beber café fixou-se em grande parte da Arábia, espalhando-se não apenas para o Ocidente, mas também para o Egito (a cidade do Cairo teria posteriormente relevante papel no comércio do grão) e Síria. E há ainda quem defenda que o hábito do café enraizou-se na Pérsia ainda antes de chegar à Arábia. Dizia-se que os guerreiros persas, quando expulsaram os etíopes, frustrando sua tentativa de se instalar no Iêmen, não deixaram de apreciar as bagas de café que cresciam nas árvores plantadas pelos inimigos. Desde muito cedo, a maioria das cidades persas abrigava cafeterias elegantes e espaçosas, situadas nas melhores zonas urbanas. Já na Turquia, as primeiras duas cafeterias teriam surgido por volta de 1554, quando um casal sírio montou estabelecimentos finamente decorados, antecipando-se em oferecer um produto que

23


café: as origens

ACIMA, THE COFFEE BOILER, CAFETERIA VIENENSE DE 1840

FOI JAMES DOUGLAS QUEM BATIZOU O JARDIM DE AMSTERDÃ COMO “O BERÇO UNIVERSAL DO CAFÉ”

24

rapidamente cairia nas graças do povo. A propósito, viajantes europeus se declararam surpresos com a quantidade de café sorvida diariamente em Constantinopla. Em residências de famílias abastadas, havia inclusive um funcionário com a tarefa exclusiva de preparar e servir o café. Havia todo um cerimonial a ser cumprido, e não raro o café era servido em tabuleiros de prata ou de madeira pintada. Se nos lares mais simples tornou-se um hábito oferecer café às visitas, sendo considerado má-educação recusá-lo, também nos banquetes formais oferecia-se café aos convidados logo que chegavam, e mesmo durante o desenrolar das festas, que em algumas situações chegavam a durar oito horas. Se há quem defenda a tese de que os cafés vienenses foram os primeiros dignos de nota na Europa (confira texto a seguir, assinado pelo historiador Voltaire Schilling), o fato é que Veneza, na Itália, também cumpriu papel relevante nesta trajetória, uma vez que em 1600 teria ali desembarcado o primeiro carregamento comercial do então chamado “vinho da Arábia”. O café logo passou a ser opção no cardápio de bebidas oferecidas nas ruas pelos limonáji (vendedores de limonada que comercializavam também suco de laranja, chocolate e infusões de ervas), e não tardou a conquistar o paladar dos italianos e viajantes. Há quem atribua ao Café Florian, inaugurado em 1720, a condição de mais famosa cafeteria da Europa. Já o Café Grecco, em Roma, terminou por ser ponto de encontro da nata da música erudita da época, recebendo visitas regulares de Mendelssohn, Rosetti, Liszt e Toscanini. O comércio com os venezianos foi, durante quase um século, atividade estratégica para mercadores árabes, que vigiavam dia e noite suas plantações de café, além de ferverem ou secar os grãos colhidos, tentando assim impedi-los de germinar. Buscavam garantir a exclusividade do cultivo da planta e do consequente abastecimento da Europa, cada vez mais sequiosa pela bebida. Até final do século XVII, os árabes tiveram sucesso, mas então os holandeses, maiores comerciantes do globo, com seus navios mercantes, resolveram que era hora de acabar com o monopólio. E então conseguiram que um dos seus roubasse uma muda de café em Mocha e, com orientação de botânicos, levasse a planta intacta para solo europeu. Em paralelo, os holandeses desenvolviam tentativas de cultivo da planta em Java, e por volta de 1690 há registros de que estavam sendo bem-sucedidos em Sumatra, Timor e Bali. Em 1706, finalmente chega a Amsterdã a primeira remessa de café cultivado pelos holandeses em Java. Solenemente, um cafeeiro foi plantado no Jardim Botânico da capital holandesa. Amsterdã iniciava, assim, sua trajetória como centro comercial do café, inclusive para o Novo Mundo. Foi o dr. James Douglas, cientista do século XVIII, quem batizou o jardim de Amsterdã como “o berço universal do café”.

KAFFE-KANTATE A cantata é um gênero de composição musical vocal e instrumental, estruturado em árias, coros, recitativos e árias de câmara como duetos, trios etc. Johann Sebastian Bach, por volta de 1732-1734, compôs uma cantata muito espirituosa, baseada em um texto satírico do poeta alemão Christian Friedrich Henrici (Pseudônimo: Picander [1700-1764]), chamada Schweigt stille, plaudert nicht (Silêncio! Não conversa!), conhecida por Kaffe-Kantate ou Cantata do café (BWV211). A cantata fala da discussão entre pai (Schlendrian) e filha (Liesgen) sobre o consumo do café. O pai quer a todo custo que a filha deixe de tomar café, oferecendo-lhe em troca todo o tipo de propostas para que ela possa deixar de tomá-lo. Esta, porém, tudo recusa, à exceção de um marido, mas como ela mesma diz, tem que ser um marido que lhe permita tomar café! A ária mais interessante da cantata é "Ei, wie Schmeckt der Coffee süße", na qual Liesgen expressa seu gosto por café: Ei! wie schmeckt der Coffee süße, (Ah! Quão doce é o gosto do café,) Lieblicher als tausend Küsse, (Mais amado que mil beijos,) Milder als Muskatenwein. (Mais suave que vinho moscatel.) Coffee, Coffee muss ich haben, (Café, eu tenho que ter café,) Und wenn jemand mich will laben, (E se alguém quiser me dar algum deleite,) Ach, so schenkt mir Coffee ein! (Ah!, Apenas me dê café!)

25


o cafĂŠ e o

iluminismo

26


o café e o Iluminismo

Nenhum outro grão colhido pelo homem nestes últimos séculos provocou tamanho impacto na inteligência da Humanidade. Mal sendo ingerido, depois de devidamente torrado, o café sorvido produz, de imediato, uma ativação do cérebro. Excita-o a trabalhar, a refletir e a divagar, também. Os fatores que o compõem, como a xantina e a cafeína, têm o compromisso de não deixar ninguém ser vencido pelo sono, e até o cansaço físico ele, por vezes, consegue impedir, ativando o coração com maior impulso. Historicamente, observa-se que sua infusão se tornou a bebida favorita dos filósofos, dos escritores e dos poetas, da gente criativa e pensante em geral, sendo o combustível fundamental para a eclosão da Revolução Iluminista que emergiu a partir do século XVIII. A ORIGEM DOS CAFÉS EUROPEUS Ainda que fartamente distribuídos pelo Oriente Médio, denominados pelos persas como Qahveh Khaneh, os cafés europeus que começam a ser abertos no século XVII pouco têm em comum com eles. Fosse em Istambul (onde o primeiro café, denominado Kiva Kan, foi aberto em 1474), em Damasco, em Jerusalém, em Riad ou no Cairo, eles se estendiam da porta para a rua, onde os clientes, sentados ao ar livre, escutavam o som da cornetinha mizmar e da flauta nay, ou jogavam em um tabuleiro seus passatempos, gamão ou xadrez, enquanto o sorviam. Visando entretê-los, havia nos cafés otomanos a presença de um meddah, contador de histórias que, eventualmente, era interrompido por um dervixe amante dos sermões. Todavia as autoridades religiosas de Meca, sempre atentas aos perigos do livre pensar, decidiram, entre 1512 e 1526, fechar os cafés, porque eram espaços perigosos e, portanto, um desafio à ortodoxia religiosa da capital do Islã. Coube ao sultão de Istambul fazê-las retroceder. A quase inexistência de chuva permitia que tudo ocorresse em céu aberto, bem ao contrário do ambiente europeu, onde, desde o início, trataram-se os cafés como uma espécie de templo do lazer e saudável retiro do corre-corre das grandes cidades. Somente era possível colocar mesas e cadeiras na parte da calçada em semanas muito limitadas, devido ao rigor do frio. Os cafés eram, portanto, um local onde se poderia ficar por horas e horas sem ser perturbado

AO LADO, VENDEDOR AMBULANTE DE CAFÉ PELAS RUAS DE ISTAMBUL

29


o café e o Iluminismo NO MEIO DA PARAFERNÁLIA DE TAPETES, PRATARIAS, ROUPAS DE SEDA, DIVÃS, ESPADAS E MOSQUETES ABANDONADOS ÀS PRESSAS, UM TANTO ESQUECIDOS POR TODOS ENCONTRAVAM-SE 50 SACOS DE GRÃOS DE CAFÉ

por ninguém, desde que se solicitasse, ao sentar, uma taça de café, que era servida com um copo de água. O CERCO DE VIENA O café tornou-se moda na Europa entre 1670 e 1690, e curiosamente foi uma invasão dos turco-otomanos que finalmente o consagrou. Viena, capital do Sacro Império Romano-Germano, encontrava-se sitiada por um enorme exército comandado pelo grão-vizir Kara Mustafá Pachá (supremo ministro e comandante militar do império otomano). A Hungria já havia capitulado em 1660-63, e agora era a vez de a Áustria sentir o peso da potência do Sultão Mehmet VI e do seu belicoso grão-vizir. No alto verão de 1683, o imperador Leopoldo I, assustado, abandonou sua capital e refugiou-se em Passau, com medo dos 90 mil soldados que os turcos mobilizaram contra ele, sendo que primadamente 10 mil eram os temidos tártaros. Por detrás das espessas muralhas da capital, quem ficou no comando da defesa foi o conde Ernst Rudiger Von Starhemberg, que tinha a sua disposição apenas 16 mil homens, mais o apoio da milícia de cidadãos e de cerca de 700 estudantes. Bem pouca gente para enfrentar um dos maiores poderios da Europa e da Ásia Menor daqueles tempos. Naquelas circunstâncias dramáticas, com a possibilidade de uma cidadela cristã capitular frente ao inimigo muçulmano, o papa Inocêncio IV lançou um apelo aos príncipes europeus, para que acorressem a salvar Viena e a dinastia Habsburgo que a governava, visto que se tratava de uma “Guerra Santa”. Grande parte alegou que estava com problemas internos, negando qualquer apoio. Todavia, esta não foi a posição do rei da Polônia, Jan III Sobievski, que passou a comandar uma força de coalizão na qual contava com bávaros, francônios, suábios e saxões, além, naturalmente, da sua poderosa cavalaria dos Hussardos. O cerco que começara em 15 de julho de 1683 estava prestes a alcançar a vitória no começo de setembro, quando o exército dos cristãos, descendo dos altos de Kahlenberg, nas cercanias de Viena, na madrugada do dia 12 de setembro de 1683, desbaratou completamente o exército otomano, matando 10 mil deles e pondo Kara Mustafá em fuga. Jan Sobievski, vitorioso, enviou então uma carta ao papa, anunciando: “Cheguei, vi, e Deus venceu!!!”. A Europa suspirou aliviada. O grande botim para os cristãos foi ter encontrado o acampamento turco praticamente intacto. E no meio daquela parafernália de tapetes, pratarias, roupas de seda, divãs, espadas e mosquetes abandonados às pressas, um tanto esquecidos por todos encontravam-se 50 sacos de grãos de café. O PRIMEIRO CAFÉ DE VIENA Das tantas histórias que corriam a respeito do verdadeiro fundador do primeiro café vienense, uma delas faz menção a um tal George Franz Koltschitzky (falecido em 1694), intérprete do rei Jan que te-

30

CARICATURA DE CAFETERIA EM VIENA, DE ANDREAS GEIGER (1837)

JAN SOBIESKI, VITORIOSO, ENVIOU ENTÃO UMA CARTA AO PAPA, ANUNCIANDO: “CHEGUEI, VI, E DEUS VENCEU!!!” 31


o café e o Iluminismo ria percebido o valor daqueles sacos encontrados, a respeito dos quais ninguém sabia o que fazer. Também são mencionados Isaak de Luca e o grego Johannes Diodato. Consta que os otomanos, além do consumo pessoal, davam os grãos de café aos seus camelos, para deixálos mais dispostos e ativos. Seja como for, ele tornou-se uma dádiva da última cruzada do Ocidente contra o Islã. Koltschitzky logo aprendeu como lidar com o produto e abriu uma Kaffeehaus, naquele mesmo ano da fuga otomana – ela teria sido inaugurada em 12 de setembro de 1683 –, e imediatamente teve sucesso. Para atenuar a amargura da bebida, passou a servi-la com generosas doses de creme chantilly (o costume de adoçá-lo com açúcar somente surgiu mais tarde, na França). Mal sabia ele que seu estabelecimento estava dando início a uma verdadeira revolução dos costumes. Não demorou muito para que a capital dos austríacos ficasse conhecida pela quantidade e qualidade dos seus cafés, que serviam a bebida e ofertavam uma variada confeitaria (tortas, bolos e doces das mais diversas procedências), atraindo uma clientela diversificada, majoritariamente de pessoas envolvidas com a cultura e com as artes (escritores, artistas, cantores de ópera, maestros e compositores, empresários das artes, celebridades da sociedade, sem esquecermos os poetas e os jornalistas de todos os quadrantes). Durante muito tempo, mulheres não foram admitidas.

O CAFÉ SPERL, EM VIENA, EM FOTOGRAFIA DE 1910

CONSTA QUE OS OTOMANOS DAVAM GRÃOS DE CAFÉ AOS SEUS CAMELOS, PARA DEIXÁ-LOS MAIS DISPOSTOS E ATIVOS 32

MUITOS CAFÉS PASSARAM A OFERECER ESPAÇO PARA SEÇÕES LITERÁRIAS, NAS QUAIS JOVENS ESCRITORES E POETAS APRESENTAVAM-SE

CENTRO DE LEITURAS Faz parte da lenda dos primeiros cafés vienenses a história de que coube a um desconhecido fazer do café um ponto de leitura. Tinha ele o hábito de levar um jornal e deixá-lo sobre a mesa, depois de pagar a conta. Com o tempo, os demais fregueses, acreditando ser uma cortesia da casa, passaram a exigir os diários para lê-los antes de seguir para a vida. Outro efeito do gesto foi atrair gente atrás de notícias do mundo político ou para ler de perto a crítica teatral e musical, muito ativa a partir do século XVIII. Como era inevitável, graças à busca por cultura dos frequentadores, muitos cafés passaram a oferecer seu espaço para seções literárias, nas quais jovens escritores e poetas podiam apresentar-se. Os escritores Stefan Zweig, Theodor Herzl (fundador do sionismo), o inventor Siegfried Marcus (precursor da fabricação do automóvel, em 1883), os ficcionistas Franz Kafka, Herman Broch e Arthur Schnitzer, este o favorito de Sigmund Freud, faziam e refaziam seus textos nos cafés da cidade, onde também estavam presentes os pintores modernistas Egon Schiele e Gustav Klimt. Os arquitetos Adolf Loos e Otto Wagner (urbanista que reformou Viena no século XIX) eram assíduos daqueles pequenos mundos, onde quem valia a pena conhecer quase sempre aparecia. Entre eles, o famoso dramaturgo e satírico Karl Krauss, que redigia grande parte dos artigos da sua revista Die Fackel (A Tocha) em uma das mesas do seu café favorito. Se nos começos do século XIX a cidade dispunha de 150 33


o café e o Iluminismo

ACIMA, À ESQUERDA, CAFETERIA INGLESA DO SÉCULO XVII. À DIREITA, A CAFETERIA OFFEYS, DE LONDRES

34

cafeterias, em 1900 saltaram para 600 as Kaffeehäuser, proporcionando uma excelente qualidade de vida aos súditos da monarquia Habsburgo. Era um espaço extraordinário de convívio aberto ao público e que se tornara um abelheiro de ideias, uma “usina de sonhos”, onde também se forjavam partituras musicais para ópera e operetas (como os regentes Strauss, pai e filho, imortalizados pelas valsas, e claro, o grande Gustav Mahler), livros, quadros e novas cenografias teatrais, fazendo de Viena um dos principais núcleos da cultura ocidental, uma espécie de Paris da Europa central. Um excelente testemunho da ambientação e da vida cultural produzida nos cafés dos anos 20 e 30 se encontra nos livros autobiográficos de Elias Canetti: A língua absolvida (Die gerettete Zunge, 1977); Uma luz em meu ouvido (Die Fackel im Ohr, 1980) e O jogo dos olhos (Das Augenspiel, 1985). Era comum, escreveu o Prêmio Nobel de 1981, que um mecenas enviasse um mensageiro para, discretamente, entregar a um poeta, cujo talento prometia, uma certa importância em dinheiro para ele se desafogar dos desconfortos cotidianos e melhor poder entregar-se às musas.

DA TAVERNA AO CAFÉ Ainda que não desconhecessem a existência do café, os ingleses do tempo de Shakespeare eram assíduos frequentadores das tavernas de Londres. A maioria delas estavam espalhadas pelas margens do porto, tendo todas nomes de animais: Cabeça de Leão, da Águia, do Falcão, da Raposa etc. Estima-se que isto se devia ao fato delas serem espelho das antigas tavernas teutônicas ou saxãs, originalmente frequentadas por caçadores ou pescadores, que se reuniam depois da labuta para alegrar a vida com canecos de cerveja e vinho ou tragos de aquavita (águaviva, bebida escandinava de altíssimo teor alcoólico equivalente à vodka dos russos). Os mais variados espécimes de caça, servidos em largas travessas de madeira, eram então oferecidos como acompanhamento. O bardo imortalizou a taverna Cabeça de Javali (Boar’s Head Tavern), local preferido pelo bufão sir John Falstaff, que por um bom tempo privou da amizade do príncipe Hal, o qual, mais tarde, quando ascendeu ao trono da Inglaterra como Henrique V, o ig-

AINDA QUE NÃO DESCONHECESSEM A EXISTÊNCIA DO CAFÉ, OS INGLESES DO TEMPO DE SHAKESPEARE ERAM ASSÍDUOS DAS TAVERNAS

35


o café e o Iluminismo COM A FARTURA DE BEBIDA E OS ÂNIMOS EXALTADOS, ERAM INEVITÁVEIS GROSSAS PANCADARIAS E O CHOCAR DOS FLORETES

AO LADO, ILUSTRAÇÃO DE CAFETERIA ALEMÃ DE 1880 RESERVADA APENAS A MULHERES

36

norou. Amante da garrafa e da vida boêmia, Falstaff, um glutão gorducho e bem-humorado, era o típico frequentador de tavernas, as quais também acolhiam punguistas, pecadoras profissionais e ladrões de ocasião, o que não dava boa fama para aquele tipo de estabelecimento. Brigas eram comuns: altercações e desaforos terminavam com facas entrando em ação em meio à intensa fumaceira dos cachimbos dos marinheiros e de velhos lobos do mar. Era um lugar perigoso. Tanto assim que um conhecido autor teatral e poeta, o jovem Christopher Marlowe, amigo e rival de Shakespeare, terminou sendo assassinado aos 29 anos em uma taverna das docas de Depford, em maio de 1593, sendo que o próprio Shakespeare morreu na sua cidadezinha natal – Stratford-upon-Avon –, em março de 1616, provavelmente devido ao excessivo abuso de bebida forte, segundo alguns historiadores. Sobre a sua tumba, na Holy Trinity Church, o epitáfio dizia: “abençoe o homem que preservar estas pedras/amaldiçoe aquele que tentar tocar nos meus ossos”. Victor Hugo, por sua vez, registrou no seu Nossa Senhora de Paris (Notre-Dame de Paris, 1831), romance histórico que se passa na capital da França medieval, uma viva impressão sobre uma taverna da época, a Pomo de Eva, na qual “[ela] cheia de luzes flamejava como uma forja nas sombras: ouvia-se o barulho dos copos, das comezainas, das pragas, das questões, que saía pelos vidros partidos (...) ouviam-se gargalhadas sonoras”. Edgar Allan Poe, por sua vez, frequentador assíduo da Court-house Tavern, em Richmond, na Virginia, usava-lhe o endereço como referência para receber algum socorro financeiro do amigo John Allan (correspondência de 1827), e também fez das tavernas o centro tenebroso de uma série de contos. TAVERNAS E ESTALAGENS As tavernas, ao tempo que foram entendidas como as antepassadas dos atuais pubs ingleses, tinham grande afinidade com as estalagens. Construídas nas principais vias das cidades grandes europeias, elas também proliferavam pelo interior do país. Ainda que, em geral, fossem abrigo de comerciantes e mercadores viajantes, isto não evitava que a violência eclodisse a qualquer momento. Alexandre Dumas, bem no início da sua célebre novela Os três mosqueteiros (Les Trois Mousquetaires, 1844-46), fez uma perfeita descrição do ambiente onde se dá o desentendimento do jovem espadachim d’Artagnan com um dos mosqueteiros do cardeal Richelieu, com quem mais tarde duelou. O clima da estalagem era praticamente o mesmo da taverna. Com a fartura de bebida e os ânimos exaltados, era inevitável que grossa pancadaria e o chocar dos floretes contribuísse para o encerramento de uma noitada.


o café e o Iluminismo

BALZAC (ACIMA) DIZIA QUE “O BALCÃO DO CAFÉ É O PARLAMENTO DO POVO”

38

O CAFÉ E A SABEDORIA Não sem razão o primeiro café a ser fundado na Inglaterra, por um tal de Jacob, em 1650 ou 1652, batizado como O Anjo, instalouse em Oxford, nas vizinhanças da célebre universidade. A data coincide com o governo dos puritanos de Oliver Cromwell (1648-1658), que eram profundamente hostis à existência de tavernas – centros de beberagens e de devassidão, para eles –, assim como de teatros e outros locais de divertimentos tidos por licenciosos. Os devotos do ditador não tinham nenhum senso de humor. O café de Oxford logo tratou de atrair os acadêmicos e estudantes em busca de um espaço livre para as discussões (as universidades da época não deixavam muita margem para manifestações dos alunos, nem para transgressões dos acadêmicos). Aproveitando-se da situação favorável à difusão dos cafés, pois os puritanos consideravam-nas como espaço dos “virtuosos”, várias coffee-houses foram abertas em Londres, acolhendo basicamente o mesmo tipo de público mais culto e informado, contando ainda com a presença de políticos e negociantes da City. Os partidos ingleses, Whigs e Tory, como ocorreu na França na época da Revolução de 1789, elegeram cada um o seu café preferido para seus acertos informais, o mesmo ocorrendo com os letrados, poetas e artistas em geral. Esta função, de serem “centros de politização”, é que levou Honoré de Balzac a dizer mais tarde que “o balcão do café é o parlamento do povo”. Exatamente por servirem como uma área de livre circulação das ideias e das ideologias, o governo de Carlos II (reinou de 1660 a 1685) decidiu fechar algumas das coffee-houses, em 1675, por entender que abrigavam “pensamentos subversivos”, senão que “seminários da sedição”. Houve forte reação contra isto, obrigando a monarquia a recuar. Desde então, seus frequentadores passaram a considerá-las como fundamentais na conquista das “liberdades inglesas”. Mas a abertura das coffee-houses não significou que se limitassem a ser um abrigo da inteligência. Modificou igualmente a estrutura dos centros urbanos, fazendo com que uma série de outras edificações importantes surgissem próximas a elas. Sedes de partidos e de clubes masculinos, a famosa Lloyd, a empresa de seguros de projeção mundial, e até a bolsa de valores da City, de Londres, assim como a de Nova York, estabeleceram-se nos arredores dos cafés. Também serviram, segundo demonstrou Lawrence Klein, como um dos primeiros núcleos de civilidade fora da vida na Corte, ao tempo em que atraíram, com sua configuração interna (uma sala para correspondência, outra para reuniões, um espaço para escritório e a cafeteria propriamente dita), os pequenos comerciantes, que lá podiam tranquilamente dar encaminhamento aos seus contratos e negócios sem ter que despender dinheiro em aluguéis ou compra de escritório.

ACIMA, ILUSTRAÇÃO DE AUTOR DESCONHECIDO, DATADA DE 1668, RETRATANDO CAFETERIA INGLESA

AS COFFEE-HOUSES FORAM UM DOS PRIMEIROS NÚCLEOS DE CIVILIDADE FORA DA VIDA NA CORTE, ATRAINDO OS PEQUENOS COMERCIANTES 39


o café e o Iluminismo

O CAFÉ E A RAZÃO CLÁSSICA Interessa observar que estudos preliminares sobre os efeitos do café já haviam sido feitos pelo notável filósofo e cientista inglês sir Francis Bacon (falecido em 1626), que decidiu alertar o público, em um ensaio intitulado Historia Vitae et Mortis, de 1620, para os perigos do seu consumo, ainda que tivesse méritos para a reativação cerebral. Mesmo assim, graças a um criado turco vindo de Smyrna, chamado Pasqua Rosee, que fundou seu estabelecimento também no ano de 1652, em Londres (batizado como Cabeça de Turco), as cafeterias começaram a multiplicar-se notavelmente a partir daquela data, em função de outro fenômeno: a emergência do Movimento Racionalista. Se consideramos sir Francis Bacon como um dos precursores do moderno racionalismo, o século XVII – denominado como O Século da Razão Clássica – conheceu ainda outros gigantes do pensamento, como Descartes, Baruch Spinoza, Gottfried Leibniz e Isaac Newton (que simplesmente revolucionou a concepção do Cosmo). A marcada origem turca dos cafés de Londres ensejou que inúmeras coffee-houses abertas mantivessem denominação que claramente as identificava com a região do Levante. Além de haver 57 Cabeças de Turco, outras se chamavam Jerusalém Coffee-house, Divã Oriental, Cabeça do Sultão, Sultanesa, Soliman coffee-house, Morat, o grande, e assim por diante.

ACIMA, GRAVURA DE CAFETERIA TURCA DO INÍCIO DO SÉCULO XIX

ORIGEM TURCA DOS CAFÉS DE LONDRES LEVOU À ESCOLHA DE NOMES QUE REMETIAM À REGIÃO DO LEVANTE 40

AS COFFEE-HOUSES FORAM APELIDADAS DE “UNIVERSIDADES DE UM CENTAVO”, POIS NELAS SE PODIA OBTER MUITO CONHECIMENTO AO CUSTO DE UM SIMPLES CAFÉ

DE BACCO A APOLO A taverna estava umbilicalmente ligada ao álcool e ao empanturramento, era a morada de Bacco. Por conseguinte, não servia para duelos de inteligência, bem ao contrário das coffee-houses, refúgio do luminoso Apolo. E assim foi que a Razão finalmente transformou-as em sua morada definitiva. Devido à sua sobriedade, elas chegaram a ser apelidadas na Inglaterra de "universidades de um centavo" (penny universities), porque, frequentando-as, era possível se obter muito conhecimento ao conviver com a elite pensante, ler e inteirar-se das novidades da época, e tudo pagando-se apenas o valor de uma porção mínima de café. Esta função, de serem "centros de politização", é que levou Jonathan Swift a se convencer de que "as informações que os poderosos possuem não são mais verdadeiras ou trazem mais luzes do que as discussões políticas de um café". Deste modo, gradativamente as tavernas entraram em decadência, sendo superadas por um novo espaço de sociabilidade, muito mais civilizado e refinado, aberto pelos cafés, tornando muitos deles símbolos de uma sociedade requintada. As enormes mesas rústicas e os bancos coletivos das tavernas, onde a bebida era servida em canecos de latão ou estanho, deram lugar aos cafés decorados com cuidadoso bom gosto. Móveis Thonart, especialmente em Viena, toalhas de mesa limpas, copos de cristal ou de vidro trabalhado, taças de porcelana resistente, eram comuns de serem encontrados nas Kaffeehaus de Munique, de Frankfurt ou de Nice.

41


o café e o Iluminismo

ACIMA, À ESQUERDA, TÍPICO CAFÉ ALEMÃO EM CARICATURA DO SÉCULO XIX. À DIREITA, KARLSPLATZ, EM VIENA

42

Na Alemanha, país de compositores, coube ao romântico Robert Schumann, autor de incontáveis lieder (peças de piano e canção) tornar célebre o Zum Arabischer coffe baum, ou simplesmente Coffe Baum (árvore do café), fundado em 1720, em Leipzig, capital da Saxônia. Que igualmente contou com a presença de outras celebridades, tais como o rei Augusto, o Forte, Johann S. Bach, Gotthold E. Lessing, J.F. Goethe, E.T.A. Hoffmann, Franz Liszt e Richard Wagner. Em Berlim, a primeira Kaffeehaus teve suas portas abertas em 1721. Todavia, o rei da Prússia Frederico II, o Grande, ordenou, ainda que fosse um monarca esclarecido, que seus vassalos dela se afastassem. Ele não estava disposto a que os alemães trocassem a cerveja por um produto importado de tão longe. Mas com o tempo, e mais ainda com os bons proveitos tributários que advinham do monopólio do arábico, ele voltou atrás. Desde então, como em outras capitais europeias, os cafés berlinenses se transformaram em “centros de comunicação”, onde as pessoas de todas as camadas sociais e grupos ocupacionais discutiam ao redor de uma chávena de café quente as questões políticas, econômicas e culturais do momento. O fato de que beber café fazia com que os súditos deixassem de acordar envoltos em uma nuvem de torpor e inércia, e logo ficassem despertos e atentos, com a mente afiada, assustou diversos outros príncipes alemães, que o entenderam como um tipo de licor altamente

suspeito, possível de engendrar um espírito crítico, senão que a própria sedição. Hoje, a Alemanha é o terceiro maior mercado consumidor de café, onde 150 litros de café são bebidos per capita e cerca de 500 mil toneladas de grãos de café verde são processadas. O COMBUSTÍVEL DO ILUMINISMO “Sapere aude”, ouse saber, respondeu o filósofo alemão E. Kant, ele também um admirador inveterado dos efeitos da cafeína, a um amigo que lhe perguntara: o que, afinal, era o Iluminismo? Em um pequeno texto que rapidamente foi traduzido e logo circulou no meio culto ocidental, o pensador conclamou a todos que pensassem com sua própria cabeça. Que deixassem de agir apenas cumprindo as ordens dos sacerdotes e dos monarcas e colocassem o cérebro a funcionar por si. O que importava era a liberdade de pensamento. Segundo suas próprias palavras: “Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento”. (Was ist Aufklärung?, 1783).

O FATO DE QUE BEBER CAFÉ FAZIA COM QUE OS SÚDITOS FICASSEM DESPERTOS E ATENTOS, COM A MENTE AFIADA, ASSUSTOU DIVERSOS PRÍNCIPES ALEMÃES

43


o café e o Iluminismo Nenhuma outra fonte de estímulo superou o café naqueles anos em que a Razão passou a ser hegemônica, tornando-se, assim, o mais recorrente instrumento da vitória da Ilustração contra o Despotismo e a Superstição. Em suas Confissões, Jean-Jacques Rousseau comentou: "Voltaire tem a reputação de beber 40 taças de café por dia para permanecer desperto, para pensar e pensar, pensar a maneira de lutar contra os tiranos e os imbecis". E, como não poderia deixar de ser, fez sucesso de imediato na capital da inteligência europeia: Paris. Lá, o precioso líquido chegara vindo de Marselha, o grande porto francês no Mediterrâneo e, desde 1661, o principal importador dos grãos vindos do Egito. A sua sede principal tornou-se o Café Le Procope (nome derivado do seu proprietário, o siciliano Francisco Procópio, que o fundou em 1686), até hoje estabelecido na Rue de l’Ancienne Comédie, 13, no bairro de Saint Germain-des-Prés. Além dele, como sítio que abrigava a vanguarda intelectual, existiam o Café de la Régence (no Palais Royal, aberto em 1718) e o Café Gradot (hoje desaparecido). A história do Procope se identifica por sua íntima associação com o Iluminismo, pois foi frequentado por Voltaire, pelo naturalista Buffon, pelo escritor e filósofo JeanJacques Rousseau, pelo matemático D´Alembert e por Dennis Diderot, o pai da Enciclopédia (edição iniciada em 1750). Também acolheu os líderes jacobinos George Danton e Paul Marat nos dramáticos acontecimentos que sacudiram a capital nos momentos tormentosos da Revolução de 1789. Foi ainda no Procope que Benjamin Franklin, então embaixador da jovem república americana, redigiu a minuta do pacto FrancoAmericano de apoio do governo de Luis XVI aos revolucionários de 1776. Consta que Thomas Jefferson, quando foi sua vez de ser representante diplomático na França, por ocasião da Revolução, teria feito o esboço das Dez Primeiras Emendas à constituição americana numa das mesas do Procope, consagrando-o como um dos templos informais da Razão.

NENHUMA OUTRA FONTE DE ESTÍMULO SUPEROU O CAFÉ QUANDO A RAZÃO PASSOU A SER HEGEMÔNICA. TORNOU-SE, ASSIM, O MAIS RECORRENTE INSTRUMENTO DA VITÓRIA DA ILUSTRAÇÃO CONTRA O DESPOTISMO E A SUPERSTIÇÃO

O TESTEMUNHO DE DIDEROT Além de Voltaire, Denis Diderot também era freguês assíduo dos cafés da Cidade Luz. Eis aqui um testemunho dele sobre o seu costume de aparecer no café, depois de flanar pelas ruas da capital: “Fizesse bom ou mau tempo, era meu hábito sair às cinco da tarde para um passeio até o Palais-Royal. Eu ia sempre só (...) entretendo-me comigo mesmo com a política, o amor, o gosto ou a filosofia. Abandonava meu espírito a toda libertinagem. Deixava-me levar pela primeira ideia sábia ou louca que se me apresentasse. (...) Meus pensamentos são minha distração. Se o tempo estava muito frio eu me refugiava no Café de La Régence. Lá eu me entretinha a ver jogarem xadrez. Paris é o centro do mundo, e o Café de la Régence é o sítio de Paris onde se joga o melhor deste jogo.”

AO LADO, VENDEDORA DE CAFÉ EM PARIS, GRAVURA DE M. ENGELBRECHT, DE MEADOS DE 1735

45


o café e o Iluminismo BALZAC ESCREVEU: “O CAFÉ PÕE O SANGUE EM MOVIMENTO, FAZ DESPERTAR OS ESPÍRITOS MOTORES, EXCITAÇÃO QUE PRECIPITA A DIGESTÃO, AFASTA O SONO E PERMITE POR UM LONGO TEMPO O EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES CEREBRAIS."

46

Interessante também foi a história de Emilie, a marquesa de Châtelet, nascida em 1706 e amante de Voltaire. Mulher extremamente inteligente e culta, a moça desde muito cedo – para espanto e preocupação da família – se decidira pela ciência e pela aprendizagem de línguas (dos 12 aos 20 anos dominou o latim e o grego, além do italiano e do alemão). Era conhecida por estudar de oito a 12 horas por dia, além de ser admiradora da filosofia natural de Newton. Faminta por conhecimento, contratou as boas cabeças da cidade que estavam dispostas a ensiná-la sobre o que dissesse respeito às novidades da química, da matemática, da física ou da botânica. Entre seus mestres estava o filósofo e matemático Pierre Louis de Maupertuis, membro da Academia de Ciências, um habitué do Café Gradot. Como aqueles estabelecimentos eram interditos às mulheres, Emile, antecipando deste modo, com um século de antecedência, a romancista George Sand (nascida Lucile Aurore Dupan), não teve receio em se vestir como homem para poder estar junto com o mestre e participar de suas discussões com os demais pensadores e cientistas que lá se faziam presentes. Voltaire disse dela que "era um grande homem que havia nascido mulher!". Quem, entretanto, usou e abusou da negra bebida foi o romancista Honoré de Balzac: obcecado em retratar a sociedade do seu tempo, tratou de recorrer a doses impressionantes dela. Ele mesmo saía pela cidade para comprar, em vários bairros diferentes, os grãos necessários para abastecê-lo. Testemunhos amigos disseram que a poção preparada pessoalmente por ele parecia tão consistente quanto um caldo escuríssimo ou uma sopa. Prestava-se como um infalível energético, fundamental para ele poder trabalhar de maneira ininterrupta, de 10 a 14 horas por dia, na sua extensa obra A comédia humana (La comédie humaine), 26 volumes perfazendo mais de 10 mil páginas, que publicou entre 1829 e as vésperas da sua morte, em 1850. Escritor infatigável, Balzac deixou um ensaio sobre os modernos excitantes: a aquavita, ou álcool em forma de licor, o açúcar, o chá, o café e o tabaco (in Traité des excitants modernes, 1838). Neste texto, ele inspirou-se em um famoso livro do epicurista francês J.A. Brillant-Savarin, autor do Fisiologia do gosto (Physiologie du gout), editado em Paris em 1825. O escritor foi considerado como um dos fundadores do ensaio gastronômico, onde se encontram suas preciosas observações sobre o arábico. Mesmo alertando para os perigos da sua ingestão excessiva, Balzac enfatiza que a função maior daquela bebida é excitar o despertar dos espíritos (ainda que, disse ele, não faça efeito em gente aborrecida que, mesmo o sorvendo, continua aborrecida!). O café, escreveu, "põe o sangue em movimento, faz despertar os espíritos motores, excitação que precipita a digestão, afasta o sono e permite por um longo tempo o exercício das funções cerebrais." Ele alcança a massa cinzenta "por meio de irradiações imperceptí-

ACIMA, O CAFÉ DE FLORE, EM PARIS, QUE DESDE 1933 PREMIA O MELHOR ROMANCISTA DO ANO

A MARQUESA DE CHÂTELET VESTIU-SE DE HOMEM PARA PODER ESTAR COM SEU MESTRE NO CAFÉ GRADOT 47


o café e o Iluminismo

veis e que escapam a qualquer análise (...) podemos supor que um fluido nervoso é o condutor da eletricidade que libera esta substância que ela encontra e põe em ação dentro de nós." (Traité, pág. 11). O compositor Giacomo Rossini confessou-lhe que doses de café tomadas com certa regularidade permitiam que ele compusesse uma ópera em apenas 15 ou 20 dias.

ACIMA, À ESQUERDA, O LENDÁRIO LE PROCOPE. À DIREITA, LE DEUX MAGOTS, UM DOS PREFERIDOS DE SARTRE E SIMONE

48

O CAFÉ PARISIENSE NO SÉCULO XX Quem de modo mais radical assumiu a tradição dos iluministas em sua fidelidade aos cafés foi a geração dos escritores existencialistas de Paris do após-1945. Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir tornaram célebres os cafés de Flore, Le Deux Magots e Clos de Lilas. O famoso casal, invariavelmente, deixava as horas correrem escrevendo e trocando ideias naqueles estabelecimentos, onde ainda podiam se encontrar com o romancista Albert Camus, o jazzista Boris Vian, a novelista Françoise Sagan e o poeta Paul Eluard. Simone, por sua vez, deixou uma notável descrição do que os cafés representavam na vida do seu grupo no seu volumoso Os Mandarins (Les Mandarins, 1954), livro que lhe proporcionou o Prêmio Goncourt. Ernest Hemingway, bem antes, na década de 1920, então jo-

vem fenômeno das letras norte-americanas, morando na capital francesa com poucos recursos, confessou, no seu delicioso depoimento intitulado Paris é uma festa (A moveable feast, publicado postumamente, em 1964), que gastando apenas uns trocos era possível passar as tardes preenchendo a lápis seus inúmeros cadernos com anotações que viriam a se transformar nas novelas que, tempos depois, circulariam com sucesso pelo mundo. Era fácil, desde o século XIX, encontrar nos cafés celebridades do mundo das letras e das artes, tais como o pintor Ingres, o escritor norte-americano Henry James, que optara por viver na Europa, o poeta e ensaísta Chateaubriand, o fabuloso Picasso, o poeta Apollinaire e os revolucionários russos exilados Lenin e Trotsky, sempre vistos disputando partidas de xadrez. Como também a protetora dos escritores americanos que viviam na capital francesa, a famosa Gertrude Stein. Ainda hoje, muitos deles procuram atrair a freguesia culta proporcionando encontros literários ou espaços para declamações de poemas, sendo que o Café de Flore chegou a instituir, desde 1933, um prêmio ao melhor romancista do ano. Não há melhor indicador da estreita ligação quase que universal dos cafés com as letras e com a inteligência.

AINDA HOJE OS CAFÉS FRANCESES DÃO MOSTRAS DE SUA LIGAÇÃO QUASE QUE UNIVERSAL COM AS LETRAS E COM A INTELIGÊNCIA

49


o ciclo do

cafĂŠ no Brasil

50


O ciclo do café no Brasil

Não são poucas as singularidades que caracterizam o ciclo da cultura do café em terras brasileiras. A começar por sua perenidade ao longo do tempo. A rubiácea, como é chamado o grão em diversos livros de história e economia, chegou ao Brasil em pleno período colonial, ainda no século XVII; foi contemporânea da passagem da família real portuguesa pelo país; assistiu à declaração de independência da colônia em relação à matriz; cruzou os reinados de Pedro I e Pedro II; vivenciou as transformações geradas pela abolição da escravatura e, finalmente, a partir da instalação do regime republicano (tudo no século XIX), ganhou novo fôlego, em especial no que diz respeito ao poder da classe dominante paulista, que a partir de então passou a ostentar ainda maior grau de autonomia – até chegar a crise dos anos 30, já no século XX. Anos depois, a cultura retomou seu vigor, e hoje o Brasil busca, além da condição de maior produtor mundial, também o posto de maior consumidor.

NA PÁGINA AO LADO, ILUSTRAÇÃO COM NOME CIENTÍFICO DO CAFÉ (COFFEA ARABICA), QUE PERTENCE À FAMÍLIA DAS RUBIÁCEAS

52

O café, talvez como nenhuma outra cultura na história do país, influenciou e foi influenciado por fatores sociológicos e culturais. Um dos mais significativos diz respeito à atração de imigrantes europeus, em substituição à mão-de-obra escrava nas lavouras, visto que os negros, ao longo de todo o século XIX, acompanharam o movimento lento e gradual em direção à liberdade formal, até que chegasse a abolição definitiva, em 1888. Como recurso alternativo, os fazendeiros e governantes paulistas desenvolveram programas para atrair centenas de milhares de imigrantes, a maioria vinda do Norte da Itália, os quais desembarcaram no porto de Santos em busca de uma nova vida. E ainda que nem tudo tenha sido flores, com muitos deles retornando para seu país de origem, uma significativa parcela se estabeleceu para sempre em território brasileiro, colaborando na explosão produtiva do


O ciclo do café no Brasil oeste paulista, e em paralelo absorvendo a cultura do país, ao mesmo tempo em que a influenciavam, transformando-a e condicionando-a para sempre, geração após geração. O começo da saga brasileira daquele que viria a ser conhecido como “ouro verde” remonta a 1727, momento associado a um nome, em particular, mas também a algum mistério, lenda ou fantasia. O consenso está no fato de que o sargento-mor Francisco de Melo Palheta, baseado em Belém, no Pará, foi convocado para uma missão diplomática na Guiana Francesa, então conhecida como Caiena. O Tratado de Utrecht, após uma série de conflitos fronteiriços, havia sido assinado em 1713, obrigando a França a reconhecer a soberania portuguesa sobre aquele território. Quem cuidava dos interesses franceses na região era o Governador Geral Claude D'Orvilliers, que em 1723 proibira seus compatriotas de cruzarem a fronteira e pisarem em solo brasileiro. A visita de Palheta tinha como objetivo oficial justamente fiscalizar se o tratado estava sendo cumprido. Até aí, nenhuma dúvida. A forma como Palheta teria dado conta de alcançar outros objetivos, não declarados, é que suscita alguma dúvida. Há registros de que ele recebeu como missão adicional (ou seria a principal?) trazer para o Brasil mudas ou sementes de café. Mas como teria procedido para alcançar tal intento? Conforme apuraram Bruno Bortoloto do Carmo e Pietro Marchesini Amorim, assistentes de pesquisa do Museu do Café, em Santos, a versão romanceada da história dá conta que, durante um passeio em Caiena, Madame D'Orvilliers, mulher do Governador Geral, seduzida pelos encantos de Palheta, teria sorrateiramente colocado no bolso do sargento-mor brasileiro algumas sementes de café. Tal possibilidade até poderia fazer sentido, considerando que há documentos dando conta que as instruções do oficial seriam as seguintes:

HÁ REGISTROS DE QUE O SARMENTO-MOR RECEBEU ORDEM EXPRESSADE TENTAR TRAZER DE CAIENA GRÃOS E MUDAS DA RUBIÁCEA

Se acaso entrar em quintal ou jardim ou roça aonde houver café, com pretexto de provar alguma fruta, verá se pode esconder algum par de grãos com todo o disfarce e com toda a cautela.

ACIMA, A VISÃO DE H. CAVALLEIRO SOBRE O MOMENTO EM QUE PALHETA RECEBIA SUA MISSÃO À GUIANA

SEDUZINDO OU NÃO A MULHER DO GOVERNADOR GERAL, FOI PALHETA QUEM APRESENTOU O CAFÉ AO BRASIL EM 1727 54

Esta versão romanceada foi publicada em 1868 por Camilo Castelo Branco, sendo intitulada Memórias de frei João de São José Queirós, bispo do Grão-Pará. O livro narra as visitas pastorais do frei pelo interior de sua diocese. Em uma das passagens, contava o frei que Palheta, o governador e sua mulher saíram a passeio e, generosamente, Madame D'Orvilliers teria colocado no bolso da casaca do oficial brasileiro uma mão cheia de sementes de café – e tudo sob as vistas do marido. Considerando que o relato do frei é de 36 anos depois da efetiva entrada do cafeeiro no Pará, deduz-se que ele se baseou na história contada (ou inventada) pelos velhos agricultores da região. O "porém" a ser colocado nesta hipótese reside no fato de que, até aonde se sabe, em seu retorno ao Brasil Palheta teria pedido que lhe fossem concedidos 100 casais de escravos e mais 50 indígenas de al55


O ciclo do café no Brasil

deias vizinhas, de forma a que pudessem cuidar da lavoura de "mil e poucos pés de café e três mil de cacau". Teria dito ainda o sargentomor que haviam sido trazidas de Caiena

ACIMA, O ARTISTA PLÁSTICO H. CAVALLEIRO IMAGINA O MOMENTO EM QUE PALHETA TERIA RECEBIDO OS GRÃOS E, DEPOIS, PLANTANDO A PRIMEIRA MUDA

56

mil e tantas frutas que entregou aos oficiais do senado (vereadores da câmara municipal) para que o repartissem com os moradores, como também cinco plantas, de que já hoje há muito no Estado. (Francisco de Melo Palheta, 1727) Como se deduz, algumas poucas sementes furtivamente colocadas no bolso de Palheta não poderiam ter dado origem às primeiras lavouras de café do Brasil. O mito, entretanto, perpetuou-se ao longo do tempo. Mas em 1927, Basílio de Magalhães esclareceria: A intervenção, lendária ou real, dessa mulher, no caso da introducção do café em nossas plagas, [...] seria tão somente um motivo poético. Palheta adquiriu em Cayena cinco pés de cafeeiro

e muito maior porção de sementes do que as que a tradição attribue á fidalga mão dadivosa de Mme. Claude D'Orvilliers. Como, porém, não se exalçaria a tradição, se a aformosentasse um gesto feminino! [...] A PRIMEIRA FASE Tendo ou não havido jogos de sedução, o ano de 1727 marca a entrada do café no país. Já em 1731 há registros da entrada na alfândega de Lisboa de café brasileiro cultivado no Maranhão. Somente por volta de 1760, em razão das enormes distâncias e precários meios de transporte de então, o café teria chegado ao Rio de Janeiro, e daí para sua entrada na história da economia e da cultura do país, foi um passo. Inicialmente também utilizado como planta de quintal pelos frades barbadinhos, que tinham o costume de usá-lo como ornamentação nas janelas, quem primeiramente produziu café em escala comercial teria sido o holandês João Hoppmann, em uma chácara do arraial de Mata-Porcos (onde hoje fica o bairro do Estácio). Dali, o

LISBOA REGISTRA EM 1771 A CHEGADA DE CAFÉ BRASILEIRO CULTIVADO NO MARANHÃO

57


O ciclo do café no Brasil café teria vivenciado sua expansão, inicialmente em pequenos sítios em Botafogo, Urca, Tijuca, Andaraí e Jacarepaguá. Por volta de 1790 há registros de que os cafeeiros teriam chegado um pouco mais longe, mais exatamente à localidade de Areias, distrito da Vila de Lorena, e em seguida a Resende, etapa que marcaria o início de sua trajetória ao longo da margem do rio Paraíba do Sul. A região, mais comumente conhecida como Vale do Paraíba, cobre enormes porções do norte e oeste do Rio de Janeiro, do sul de Minas e estende-se ainda mais a sudoeste, chegando a São Paulo. À época, tudo mata fechada. A produção em terras fluminenses, de início, era modesta. Estima-se que em 1800 tenham sido produzidas pouco mais de 55 mil arrobas do precioso grão. Mas alguns fatores externos viriam a contribuir para que o mercado internacional se abrisse e a cultura tomasse impulso em território brasileiro. A partir de 1791, com a revolta da população negra no Haiti, em paralelo à abolição da escravatura nas Antilhas e nas colônias francesas, a produção mundial de café passaria por drástica redução, uma vez que eram estes os principais núcleos da lavoura cafeeira. Em paralelo, ocorria na Europa um impressionante aumento do consumo da bebida. No Brasil, a chegada da família real em 1808, que veio acompanhada de um séquito estimado em 15 mil pessoas, traria mudanças profundas na economia interna do país, com o florescimento de novas atividades de comércio para atender demandas até então inexistentes. O país ainda passava por um período de estagnação econômica, em razão do encerramento do ciclo do ouro. Havia, portanto, alguma disponibilidade de recursos, a mão-de-obra escrava aí incluída, e o desejo dos capitalistas de encontrarem uma nova alternativa para seus investimentos. Por essa época, inicia-se lenta e gradualmente a migração de antigos exploradores das minas, em direção ao Vale do Paraíba e norte de São Paulo. Consta que o Príncipe Regente Dom João VI teria incentivado o plantio de café, tendo inclusive mandado trazer de Moçambique sementes, que então germinavam em estufas. Nobres portugueses, franceses exilados, partidários de Napoleão e até mesmo o bispo do Rio de Janeiro aderem ao cultivo da planta. Na época, chega ao país um experimentado cafeicultor francês, que tivera plantações em Santo Domingo e em Cuba. François Lecesne adquire terras na Gávea e ali instala a Fazenda São Luís, passando a ser um nome de referência no que diz respeito às melhores técnicas de cultivo do grão em terras fluminenses. Em 1808, a produção brasileira já teria ultrapassado as 80 mil arrobas. Estava, assim, se iniciando o primeiro momento da lavoura cafeeira no Brasil, que seria marcado pela repetição do modelo produtivo da cana-de-açúcar: cultura extensiva, mantida com trabalho escravo, tendo a fazenda como unidade produtiva de referência. A necessidade de muitos braços para dar conta das lavouras de café faria aportar em território fluminense um volume con-

LAVOURA CAFEEIRA REPETE, DE INÍCIO, MODELO DA CANA: CULTURA EXTENSIVA, MÃO-DE-OBRA ESCRAVA E A FAZENDA COMO UNIDADE PRODUTIVA

NA PÁGINA AO LADO, OBRA DE FREDERICO BRIGGS, INTITULADA

CARREGADORES DE CAFÉ , DE 1845

59


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, A OBRA

COMBOIO DE CAFÉ, DE AUTORIA DE DEBRET (1835)

60

siderável de escravos, tanto via intensificação do tráfico quanto pela mobilidade interna, já que o ciclo do ouro havia se encerrado e havia mão-de-obra escrava ociosa em Minas Gerais e no Nordeste. As crescentes pressões da Europa pela extinção do tráfico, entretanto, colocariam em risco a sobrevivência das lavouras do Rio de Janeiro a médio prazo, ameaça que mais tarde viria a se confirmar, com a proibição definitiva da importação de escravos, em 1850, e efetivamente com a Abolição da Escravatura, em 1888. Em sua fase paulista, já próximo do final do século XIX, a cultura do café encontraria uma alternativa em relação a este dilema enfrentado pelos grandes proprietários de terras do Rio de Janeiro: a força de trabalho escrava seria substituída pelo braço do imigrante europeu, em atividade remunerada. Estabeleceria-se, assim, uma diferença fundamental. Nas palavras de Paula Beigelmann, "enquanto na economia açucareira o cultivo da cana e o fabrico do açúcar constituem praticamente a atividade essencial única, a economia cafeeira, no auge da expansão, dá nascimento a um complexo no qual se inserem rudimentos de uma cultura de alimenta-

ção e de uma indústria". E complementa: "O complexo cafeeiro passa a incluir uma pequena componente que tem como fulcro a presença de um trabalho que conjuga ao braço a capacidade de consumo". Bem antes disso ocorrer, a província do Rio de Janeiro seria a principal protagonista do mercado do café no Brasil. Com vistas a atender ao crescente mercado europeu, o escoamento da produção do Vale do Paraíba se dava estrategicamente pelo porto da capital. Tratava-se de uma tarefa árdua, com o transporte sendo feito de forma lenta e penosa, em razão das distâncias e dos terrenos acidentados do vale, a serem percorridos em lombos de burros e mulas. Quem conduzia as tropas eram tropeiros escravos ou um guia, chamado arreador, que percorriam várias vezes por ano os caminhos que iam do Vale do Paraíba à capital. Como aponta Boris Fausto, "embora o hábito de consumir café se generalizasse no Brasil, o mercado interno era insuficiente para absorver uma produção em larga escala. O destino dos negócios cafeeiros dependia, e ainda hoje depende, do mercado externo". Foi a classe média, cada vez mais

PRODUÇÃO DO INÍCIO DO SÉCULO XIX TINHA COMO FOCO PRINCIPAL O MERCADO EXTERNO

61


O ciclo do café no Brasil

NA PÁGINA AO LADO, A COLHEITA DO CAFÉ NO INÍCIO DO SÉCULO XIX, NA VISÃO DE LAURENT DEROY

62

numerosa, nos Estados Unidos e na Europa, quem sustentou durante anos a fama que até hoje o café brasileiro possui. Se por um lado a produtividade alcançada pelo grão nas terras do Sudeste brasileiro surpreendia, de outro as técnicas de cultivo do café eram bastante rudimentares, a tal ponto que enxada e foice eram considerados os artefatos essenciais para os cuidados na lavoura. Em decorrência, à medida em que as terras viam reduzidas sua capacidade produtiva, pela erosão ou exaustão, a lavoura extensiva levava à expansão das fronteiras, com a derrubada de novas florestas – inclusive a da Tijuca, no Rio de Janeiro, que perdeu sua cobertura natural, a qual recuperaria só bem mais tarde, a partir de 1853, com a desapropriação de fazendas, plantações, sítios e chácaras. Foi em decorrência desse movimento expansionista, rumo ao sudoeste do Rio de Janeiro, que o café chegou a São Paulo, primeiramente na porção paulista do Vale do Paraíba, passando por Guaratinguetá, São José dos Campos e Taubaté, e em seguida à região do planalto, por volta de 1850, mais especificamente Campinas, Jundiaí e Mogi-Mirim, onde o grão encontraria condições topográficas bastante privilegiadas - e então se consolidaria definitivamente como "ouro verde". De comum em ambas as províncias, registre-se o fato de que, à época, a posse de terras, do ponto de vista formal, era assunto dos mais complexos, uma vez que as grandes extensões, herança do modelo de doação de capitanias e sesmarias, seguidamente provocavam rixas em razão de apropriações ilegais. Nas palavras de Boris Fausto, prevalecia a lei do mais forte: "O mais forte era quem reunia condições para manter-se na terra, desalojar posseiros destituídos de recursos, contratar bons advogados, influenciar juízes e legalizar assim a posse de terras". É de 1850 a Lei de Terras, primeiro instrumento legal no sentido de estabelecer a compra como único meio legítimo de ocupação das chamadas terras devolutas. Mas a falta de aparelhamento administrativo adequado à fiscalização não logrou impedir o avanço das ocupações de fato. Apesar das técnicas rudimentares, é preciso dizer que os investimentos para se estruturar uma fazenda eram significativos, pois incluíam a derrubada da mata, o preparo da terra, o plantio, as instalações e a compra de escravos. Como alerta Boris Fausto, "se o cafeeiro é uma planta perene – ou seja, o plantio não precisa ser renovado a curto prazo –, de outra parte as primeiras colheitas só ocorrem após quatro anos". Segundo o historiador, ao que tudo indica, os recursos para se implantar uma fazenda se originavam, principalmente, da poupança obtida com a grande expansão do comércio, após a vinda de Dom João VI para o Brasil. "Posteriormente, foram os lucros obtidos com a própria cafeicultura e os capitais liberados pela extinção do tráfico que se tornaram fonte de investimento", explica Fausto. Ao tempo em que as lavouras de café se espalham em território paulista, a porção fluminense do Vale do Paraíba segue sua

APESAR DAS TÉCNICAS RUDIMENTARES, ESTRUTURAR UMA FAZENDA EXIGIA INVESTIMENTOS CONSIDERÁVEIS 63


O ciclo do café no Brasil trajetória vertiginosa de crescimento. Se no decênio 1821-1930 o café representava 18,4% dos oito principais produtos de exportação no Brasil (juntamente com açúcar, cacau, erva-mate, fumo, algodão, borracha e couros/peles), na década seguinte este percentual subiria para 43,8%. No decênio 1851-1960, com a produção no Rio de Janeiro atingindo seu ápice, o café passaria a representar 48,8% do perfil exportador do país, chegando ao seu ponto máximo no século XIX entre 1891 e 1900, com 64,5%. Não é à toa que surgiu a expressão "o Brasil é o vale." Dizer que a produção do Rio de Janeiro atingiu seu ponto máximo por volta de 1860, iniciando a partir daí sua decadência, pode dar a ideia de que o processo de depauperamento das lavouras e consequente empobrecimento dos fazendeiros fluminenses foi repentino e imediato, o que não corresponde à verdade. Rio de Janeiro e São Paulo, e em escala menor Minas Gerais e Espírito Santo, estiveram lado a lado, durante muitas décadas, compartilhando a riqueza gerada pelo café, ainda que a província fluminense lenta e gradualmente tenha perdido espaço para a emergente São Paulo. Até porque, ainda que a incidência de pragas, a exaustão das terras e a iminente abolição da escravatura de fato tenham contribuído para a diminuição da produtividade, surgem, a partir da segunda metade do século XIX, diversas máquinas e equipamentos que, além de permitirem a dispensa de parte da mão-de-obra escrava, facilitavam o beneficiamento do café. Brunidores, ventiladores, despolpadores e os famosos engenhos Lidgerwood invadiram o mercado brasileiro após 1862, e contribuíram para que o Rio conseguisse se manter com alguma dignidade no mercado do café. Também nessa época foram realizadas grandes exposições, nacionais e mesmo internacionais, uma delas na Argentina, em 1882. Nestas últimas, o Brasil se fez representar por produtos extrativistas da Amazônia, mas principalmente com a produção da agricultura de larga escala. Em 1876, por exemplo, o centenário da Independência dos Estados Unidos foi festejado com uma grande exposição na Filadélfia. Nada menos que 1.140 expositores brasileiros se fizeram presentes, e por lá também esteve o imperador Dom Pedro II, que festejou a conquista de dois diplomas especiais: um para o café e outro para as essências florestais. Além disso, outros 34 prêmios foram conferidos aos expositores de café brasileiros, dos quais dez eram do Rio de Janeiro, dez de São Paulo, cinco de Minas Gerais, três de Santa Catarina e um do Paraná. É curioso constatar que também na exposição internacional de Amsterdã, em 1883, mesmo com as lavouras fluminenses estando a caminho da extinção, foram alguns municípios do Rio de Janeiro os melhor sucedidos na avaliação de amostras. Todas as medalhas de ouro foram conferidas a fazendeiros do Vale do Paraíba fluminense, enquanto das 11 medalhas de prata, seis ficaram com produtores do Rio de Janeiro, que ganharam, ainda, oito das 15 de bronze. Paraíba do Sul, Vassouras e Juiz de Fora foram os municípios que mais se destacaram.

64

LAVOURA FLUMINENSE, MESMO DEPOIS DE INICIADA SUA DECADÊNCIA, SEGUIU RECEBENDO PREMIAÇÕES NAS EXPOSIÇÕES INTERNACIONAIS

NA PÁGINA AO LADO, CASCATA DA

TIJUCA, DE LOUISJULES-FRÉDÉRIC (1835). FLORESTA SERIA DEVASTADA

65


O ciclo do café no Brasil

NO ALTO, À ESQUERDA, VISÃO DA PRECURSORA FAZENDA PAU D’ALHO. À DIREITA, CASA DE MÁQUINAS DA FAZENDA RESTAURAÇÃO

66

AS FAZENDAS Em meio à abundância de recursos, as antigas e modestas sedes das primeiras fazendas do início do século XIX aos poucos vão sendo superadas, e surgem residências notáveis, com dez, 12 ou até mais janelas na fachada, muitas delas assobradadas, embasadas em pedra, de solidíssima taipa e pau-a-pique. A partir de 1830, quando o café toma a dianteira como principal produto na pauta de exportações do Brasil, estes estabelecimentos se transformam em centros quase autônomos de produção. Surge, assim, a especialização como ferramenta gerencial dos núcleos produtivos. A força de trabalho passa a ser dividida em tarefas, como derrubada das matas, destocamento, preparo da terra, cuidado com os viveiros, plantio das mudas e colheita. Um outro grupo se dedicava às operações de lavagem, despolpamento, brunimento, catação, secagem nos terreiros, ensacamento e armazenamento em tulhas. Segundo o arquiteto e historiador Luís Saia, a Fazenda Pau d'Alho, em São José do Barreiro, no alto Vale do Paraíba, teria sido o primeiro estabelecimento agrícola da Capitania de São Paulo especialmente

montado para atender as necessidades e programas de uma fazenda de café. Todas as atividades da fazenda, cercada por um muro de alvenaria de pedra, voltavam-se diretamente para os terreiros, e apenas a sede era isolada por jardim e pátios. A senzala havia sido construída no ponto mais alto, em posição dominante. Na comprida tulha alpendrada, à direita do terreiro, eram executadas as tarefas de seleção e armazenamento. Em sua extremidade, um telheiro abrigava os equipamentos destinados ao beneficiamento, como uma bateria de pilões, acionada por roda d'água. À esquerda do terreiro localizava-se a residência do capataz ou administrador, e no mesmo alinhamento haviam outros compartimentos de trabalho onde possivelmente se localizavam engenhos de serrar, tendas de ferreiro, oficinas e olarias. Nesta fazenda teria se hospedado o Príncipe D. Pedro, em sua viagem a São Paulo, em 1822, ano em que seria declarada a Independência do Brasil. Adquirida pelo Instituto Brasileiro do Café em 1970, a fazenda foi inteiramente restaurada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), e nela se pretendia instalar o Museu Nacional do Café, projeto que não se concretizou.

AUMENTO DA DEMANDA OBRIGOU FAZENDAS A ADOTAREM A ESPECIALIZAÇÃO E DIVISÃO DO TRABALHO

67


O ciclo do café no Brasil CERCA DE 90 FAZENDEIROS PAULISTAS DE CAFÉ FORAM DISTINGUIDOS COM TÍTULOS NOBILIÁRQUICOS ENTRE 1846 E 1889

NA PÁGINA AO LADO, FAZENDAS EM BANANAL, GUARATINGUETÁ E PINDAMONHANGABA, NA VISÃO DE DEBRET

68

A complexidade das tarefas transformou o braço escravo em esteio destas organizações econômicas, que chegaram a reunir 350, 400 e até 600 cativos, como aconteceu nas fazendas Senhora do Carmo e Fortaleza, do Visconde de Guaratinguetá; do Resgate, do Comendador Manuel de Aguiar Valim; Boa Vista, do seu sogro, o Comendador Luciano José de Almeida, em Bananal, e na própria Fazenda Pau d'Alho, em São José do Barreiro, da família Ferreira de Sousa Airosa. Vem daí a expressão “O Brasil é o café, e o café é o negro”. A jornada de trabalho de um escravo começava antes de clarear o dia, por volta de 4 ou 5 da manhã. Às 10h, o sino da fazenda anunciava o almoço, constituído basicamente de feijão, angu e farinha de mandioca. Às vezes, um pedaço de abóbora ou inhame, e raramente um pedaço de carne-seca ou toucinho. Às 13h, novo intervalo para o café, adoçado com rapadura, ou uma dose de cachaça, nos dias chuvosos; finalmente, às 16h, jantava-se o que havia sobrado do almoço. A concessão de títulos de nobreza a fazendeiros, em paralelo, representava o reconhecimento de sua importância do ponto de vista social. Desta forma, eles passavam a figurar ao lado de políticos, financistas, banqueiros, comerciantes e, em menor escala, médicos, professores e escritores, membros do corpo diplomático, oficiais do Exército e da Marinha. Alfredo Taunay, um dos mais destacados historiadores do café, calcula que no sudeste brasileiro se poderiam contar até 300 titulares entre o nobiliário imperial, o que corresponderia a cerca de 30% da nobreza formada pela Coroa, incluindo-se aí lavradores, comissários e banqueiros de fazendeiros. O primeiro título de nobreza concedido a um fazendeiro paulista do café teria sido concedido em 1846 ao sargento-mor Manuel Marcondes de Oliveira e Melo, o Barão de Pindamonhangaba. Comandante da Guarda de Honra de D. Pedro que acompanhou o príncipe em 1822, por ocasião da proclamação da Independência, o barão foi grande fazendeiro do café em na Fazenda Mombaça, em sociedade com seu irmão, o monsenhor Inácio Marcondes de Oliveira Cabral. Cerca de 90 fazendeiros paulistas de café foram distinguidos com títulos nobiliárquicos entre 1846 e 1889. A respeito da vida nas fazendas, Maria Paes de Barros, filha de um cafeicultor de meados do século XIX, descreveu os costumes da época, sob o ponto de vista dos fazendeiros, em um livro chamado No tempo de dantes. Segundo a autora, as famílias passavam o ano na cidade, mas no inverno, na época das colheitas, deslocavam-se para as fazendas, carregando remédios, açúcar, farinha, esteiras, roupas e chapéus. Os jovens iam a cavalo, e as senhoras, de banguê. As crianças levavam uma vida mais solta, apesar de continuarem com aulas de francês com mademoiselle. A autora conta que foi trabalhoso convencer o pai a comprar tapetes para a fazenda, pois ele achava desnecessário. As famílias ficavam nas fazendas até que se acabasse o plantio e o alinhamento do café. Enquanto isso, comiam feijão e milho plan69


O ciclo do café no Brasil tados no local, carne de porco salgada e bebiam o café torrado e socado no pilão pelas escravas. Como os fazendeiros possuíam mais de um estabelecimento, a família se deslocava de uma para outra fazenda. Na região de Campinas, antigas fazendas ainda hoje conservam sinais de sua glória passada. Os pesados sobrados de então tinham pouca mobília, grandes mesas de madeira, serviços de porcelana europeia, da Companhia das Índias, objetos de prata, cortinas com tecidos caros, lustres de cristal da Boêmia e chão de largas tábuas de madeira.

EM CAMPINAS, ANTIGAS FAZENDAS AINDA CONSERVAM SINAIS DOS SEUS TEMPOS DE GLÓRIA NO PASSADO 70

QUE PAÍS ERA AQUELE Antes de entrarmos na análise mais profunda dos dois fatores que foram determinantes na explosão da produção cafeeira paulista, na segunda metade do século XIX – o surgimento das ferrovias e a substituição da mão-de-obra escrava pelo braço do imigrante europeu –, é interessante apresentar uma breve radiografia do Brasil à época do primeiro e segundo reinados. Do ponto de vista da população, os 4,6 milhões de habitantes registrados em 1819 passaram a 9,93 milhões em 1872 e para 14,33 milhões em 1890. Em 1872, Minas Gerais continuava a ser a província mais povoada, com aproximadamente 2,1 milhões de habitantes, seguida da Bahia, com 1,38 milhão. Os mulatos representavam 42% da população, os brancos ficavam com 38% e os negros, 20%. Ainda no censo de 1872, apurou-se que somente 16,85% da população entre 6 e 15 anos frequentava escolas. Havia apenas 12 mil alunos matriculados em colégios secundários, mas em contrapartida estima-se que 8 mil pessoas tinham educação superior, o que denota o abismo entre a elite letrada e a massa de analfabetos ou com educação rudimentar. À época da chegada da família real, surgiram escolas de medicina e engenharia na Bahia e no Rio de Janeiro, onde Dom João VI se estabeleceu. "Mas do ponto de vista da formação da elite, o passo mais importante foi a fundação da Faculdade de Direito de São Paulo (1827) e de Olinda/Recife (1828). Delas saíram os bacharéis que, como magistrados e advogados, formaram o núcleo dos quadros políticos do Império", assegura Bóris Fausto. Cabe acrescentar, ainda, que o Rio de Janeiro, com 522 mil habitantes em 1890, era o único grande centro urbano. Ali ficava o núcleo dos divertimentos, bem como dos investimentos em transportes, iluminação, embelezamento da cidade. A seguir, vinham Salvador, Recife, Belém e só então São Paulo, com modestos 65 mil habitantes. São Paulo, entretanto, viria a crescer a taxas geométricas anuais de 3%, entre 1872 e 1886, e de 8%, entre 1886 e 1890. Voltando-se a 1828, Maria Luiza Marcílio, citada por Mário Jorge Pires, explica por que São Paulo, impossibilitada à época de tornar-se um centro de agricultura de exportação, acabou por transformar-se em local de depósito para as mercadorias da Europa e, ao mesmo tempo, entreposto de passagem para os produtos do interior da província: "Sua excepcional posição geográfica foi-lhe

O RIO DE JANEIRO, COM 522 MIL HABITANTES EM 1890, ERA O NÚCLEO DOS DIVERTIMENTOS, BEM COMO DOS MAIORES INVESTIMENTOS

NA PÁGINA AO LADO, MULHER

PILANDO CAFÉ , DE JOSÉ WASTH RODRIGUES (REVISTA ILUSTRAÇÃO

BRASILEIRA , 1927)

71


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, A FAZENDA PARAÍBA DO SUL, EM TRABALHO DE H. CLERGET (1861)

72

vantajosa. Pela cidade transitavam as grandes tropas, que dos territórios do Viamão e de Curitiba dirigiam-se para os mercados do Rio de Janeiro e zonas mineiras, das Gerais. A produção de açúcar das vilas do interior da Capitania (particularmente de Itu, Porto Feliz, Campinas e Piracicaba) passava pela Capital rumo ao porto de Santos. No sentido inverso, as mercadorias provenientes de Portugal e de outras partes da Europa chegavam a São Paulo por intermédio do Rio ou de Santos: elas eram destinadas, ora à própria cidade, ora à provisão do interior". Mário Jorge Pires acrescenta que, segundo a mesma autora, "esse foi o motivo pelo qual acabou desenvolvendo-se na cidade uma classe de mercadores, por vezes até poderosa, e assim nasceu o espírito de empresa entre os habitantes de São Paulo." Curioso apontar também que em 1809, segundo Alcântara Machado, não havia nomenclatura nas ruas e numeração dos prédios da cidade. Foi nesse ano que, de ordem do Ouvidor Geral e com o propósito de facilitar o lançamento da décima urbana, a Câmara mandou numerar os prédios e inscrever nos logradouros públicos

os nomes por que eram conhecidos. Aparentemente a ordem não foi cumprida, pois em 1846, segundo aponta novamente Mário Jorge Pires, o Marechal Lima e Silva "recomendou numerar todas as casas e intitular-lhes as ruas, consoante a prática adotada em todas as cidades civilizadas." É nesse momento histórico, ou seja, a segunda metade do século XIX, em que o Rio de Janeiro ainda segue pontificando como mais importante núcleo urbano do país, que começam a surgir as ferrovias, as quais transformariam completamente o cenário urbano e econômico do Centro-Sul. A sobrevida do Vale do Paraíba como centro produtor e exportador de café, por exemplo, se deve em grande parte à inauguração, em 1858, da primeira estrada de ferro do país. A Sociedade de Estradas de Ferro Pedro II, que daria origem à atual Central do Brasil, ligava as fazendas do Vale do Paraíba, do sudeste de Minas Gerais e do norte de São Paulo ao porto do Rio de Janeiro. Como aponta Mário Jorge Pires, "as cidades formadas à margem do rio Paraíba sempre estiveram mais vinculadas ao Rio de Janeiro do que a São Paulo, e isto vale não só

SURGIMENTO DAS FERROVIAS TRANSFORMOU COMPLETAMENTE OS CENÁRIOS URBANOS DO PAÍS

73


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, DUAS VISÕES DE CARLOS LINDE SOBRE A ESTRADA DE FERRO D. PEDRO II. NA PÁGINA AO LADO, UMA VISTA GERAL DA IMPERIAL CIDADE DE SÃO PAULO, EM 1870

74

para Vassouras, Pati do Alferes, Barra do Piraí, em terras fluminenses, como também para Bananal, Areias, Lorena e tantas outras, já em território paulista e próximas à capital". Com a inauguração da ferrovia, primeiramente ligando Barra do Piraí ao Rio, o vínculo destas localidades com a Corte tornou-se ainda mais estreito. O escoamento da produção das cidades paulistas, que era feito quase que exclusivamente pelos portos do litoral norte da província, e só depois chegando à então capital do país, para dali seguir para a Europa, tornou-se ainda mais intenso graças à ferrovia. Com uma mudança importante, do ponto de vista cultural e social: como o preço de uma passagem de trem era insignificante e a viagem, bastante rápida, os fazendeiros do Vale do Paraíba, sediados tanto em território fluminense quanto paulista, começaram a passar férias no Rio, fazendo lá suas compras, indo à ópera e comprando ou mesmo mandando construir residências particulares na sede da Corte. Fenômeno semelhante se daria em São Paulo, a partir da construção da São Paulo Railway, em 1866. A estrada de ferro ligava Santos à capital paulista, e foi resultado de investimento de capital inglês. Já no ano seguinte, a extensão da ligação da capital até Jundiaí fomentaria a concentração das atividades urbanas em São Paulo. Como para os ingleses não havia interesse em prolongar a ferrovia além daquele ponto, coube a fazendeiros e capitalistas financiarem novos trechos. Estava nascendo, assim, a Companhia Paulista, que em 11de agosto de 1872 inaugurava o trecho ligando Jundiaí a Campinas, numa extensão de 45 quilômetros. Os barões de Itapetininga, de Limeira, de Piracicaba, de Cascalho, de Tietê, de Atibaia, de Souza Queiroz, de São João do Rio Claro, de Antonina e de Itatiba, ao lado dos viscondes de Vergueiro e de Indaiatuba, mais Martinho Prado, Luiz Antonio de Souza Barros, os irmãos Souza Aranha, Antonio Pompeu de Camargo, Floriano de Camargo Penteado, entre outros, são nomes que surgem nas reuniões preliminares de fundação da empresa. A febre de escoamento da produção cafeeira por via férrea toma conta, por essa época, de toda a província. Em 1873, é inaugurada a ferrovia Ituana, ligando Itu a Jundiaí, tendo à frente, entre outros, os fazendeiros José Elias Pacheco Jordão e o Conde Parnaíba (Antonio de Queiroz Telles); em 1875, é a vez da Sorocabana e da Mojiana, a primeira ligando São Paulo a Sorocaba e a segunda entre Campinas e Mogi-Mirim, por iniciativa das famílias Souza Aranha e Queiroz Telles. Em paralelo, uma interessante malha rodoviária servia como apoio para que a produção chegasse mais celeremente até o porto de Santos, que vai suplantando o do Rio de Janeiro ao longo do tempo. Como bem explicita Mário Jorge Pires, em sua obra Sobrados e barões da velha São Paulo, "a ferrovia ampliou o comércio de outros bens e, principalmente, reduziu a distância da capital até a fazenda. Antes, as comunicações eram tão precárias que se tornava difícil para um mesmo proprietário supervisionar duas ou mais la-

AS FERROVIAS DIMINUÍRAM AS DISTÂNCIAS EM RELAÇÃO À CAPITAL E INCENTIVARAM O COMÉRCIO DE OUTROS BENS 75


O ciclo do café no Brasil vouras um pouco distantes entre si. Isso obrigava os fazendeiros a residirem grande parte do tempo nas próprias terras ou nos grandes sobrados construídos nas cidades". Por essa época, como aponta Thomas H. Holloway no imprescindível estudo Imigrantes para o café, "o telégrafo, que acompanhou as ferrovias, permitiu que a elite de fazendeiros e comerciantes se comunicasse rapidamente, vencendo as distâncias que separavam a fronteira do café, a Capital e o porto de Santos. Jornais locais e conversas ao pé-de-ouvido, da venda da roça ao Jockey Club, serviam para estender a rede de comunicação. Mudanças no preço do café, a abertura de uma nova linha ferroviária, um contrato do governo estadual para subsidiar mais imigrantes, os danos da geada na zona da Alta Sorocabana, a escassez de mãode-obra da Mogiana, a chegada de um navio de imigrantes – tudo se tornava parte de um corpo comum de conhecimentos no planalto ocidental." Ademais, a estrada de ferro revolucionou o transporte e expandiu grandemente a área de fácil acesso à costa. "O oeste de São Paulo, antes uma selvagem área de fronteira cruzada pelos bandeirantes, parcamente povoada por índios e lavradores brasileiros, que produziam alimentos, gado e algum açúcar, tornou-se o centro dinâmico da lavoura cafeeira do Brasil. Do ponto de vista da escala de produção, a era do Vale do Paraíba empalidece, em comparação com o desenvolvimento no oeste de São Paulo nas décadas subsequentes." O estabelecimento da ligação direta entre São Paulo e Rio de Janeiro, concluído em 1877, traria impactos que ultrapassariam as questões produtivas. É importante ressaltar que a possibilidade de contar com transporte e escoamento mais ágil das safras contribuía na melhoria da qualidade do café exportado, com a consequente valorização dos preços. Acontece que, no plano da cultura e da sociedade, passa a haver uma mais rápida circulação de livros, jornais e revistas editados, até então privilégio quase que exclusivo de quem morava na Corte. Aqueles que se dedicavam às artes e aos espetáculos agora podiam deslocar-se em rápidas viagens de apenas 15 horas entre Rio e São Paulo, onde podiam encontrar novos públicos. Para se ter uma ideia do impacto cultural que a ligação férrea proporcionou, apenas de 1877 a 1888 a cidade de Pindamonhangaba, então com pouco mais de 15 mil habitantes, recebeu a visita de uma companhia lírica italiana, uma companhia espanhola de zarzuelas, uma companhia inglesa de panMAPA DO RIO E DE SÃO PAULO MOSTRA O TRAÇADO DA FERROVIA LIGANDO OS DOIS ESTADOS, ENTÃO PROVÍNCIAS

AQUELES QUE SE DEDICAVAM ÀS ARTES PODIAM DESLOCAR-SE

76

EM VIAGENS DE APENAS 15 HORAS ENTRE RIO E SÃO PAULO

77


O ciclo do café no Brasil

tomimas, com 80 crianças, um circo e quatro companhias profissionais de teatro declamado, fato notável para a época e para uma pequena localidade como aquela.

ACIMA, DUAS VISÕES DA FAZENDA IBICABA. À ESQUERDA, DESENHO LITOGRAFADO. À DIREITA, QUADRO DE HENRIQUE MANZO

A ERA PAULISTA E OS IMIGRANTES Do ponto de vista da produtividade das lavouras paulistas, Holloway enfatiza que as condições naturais do oeste de São Paulo eram (e ainda são) excelentes para o café. Uma camada de lava diábase, que um dia cobriu grande parte da área, se decompôs num solo poroso, rico em ferro e potássio, de que a planta do café precisa. Em algumas áreas de maior concentração, tal solo adquire uma aparência purpurina. Essa é a terra roxa, pela qual São Paulo se tornou famoso entre as regiões cafeeiras do mundo. "Apenas cerca de 2% do planalto, no entanto, são cobertos pela verdadeira terra roxa. Uma área muito maior tem solos vermelhos, chamados massapê e salmourão, quase tão bons quanto a terra roxa. (...) Mesmo nos solos menos férteis o clima é favorável ao café". Foi na região da Alta Mogiana, a propósito, que surgiram as mais

extensas e produtivas fazendas de café do mundo. Em Campinas, as culturas estendiam-se em largas superfícies uniformes, cobrindo a paisagem a perder de vista e formando os famosos "mares de café". Por ser uma região plana, a cultura cafeeira sofria menos com o esgotamento do solo. Na zona de Ribeirão Preto, Francisco Schmidt, que chegou ao Brasil em 1858 com nove anos de idade e trabalhou como colono, chegou a possuir 50 fazendas. Sua fortuna só seria fortemente abalada no século XX, com a crise mundial de 1929. Do extremooeste paulista, o café chegaria posteriormente também ao Paraná. Ferrovias implantadas e terras produtivas à parte, acontece que a escravidão no Brasil estava com os dias contados. A partir de 1850, havia sido proibido o tráfico de escravos da África, e desde 1871 os filhos de cativos nascidos no Brasil eram considerados libertos (Lei do Ventre Livre). Com a iminente alteração nas relações de poder entre senhores e escravos, o que poderiam fazer os fazendeiros para seguirem prósperos e abastados, imaginando-se que perderiam quase que de sopetão a enorme força de trabalho necessária para manter produtivas suas lavouras, a exemplo do que já acontecia no Rio de Janeiro?

ABOLIÇÃO IMINENTE DA ESCRAVATURA OBRIGOU FAZENDEIROS DE SÃO PAULO A BUSCAREM ALTERNATIVA DE MÃO-DE-0BRA


O ciclo do café no Brasil

NA PÁGINA AO LADO, FOTO DA HOSPEDARIA DE IMIGRANTES, COM 4 MIL VAGAS E LOCALIZADA EM PONTO ESTRATÉGICO

80

Pois os paulistas encontraram uma solução que não apenas facilitou a transição do período da escravatura para o da sociedade livre, como também tornou possível uma tremenda expansão da lavoura cafeeira nas décadas seguintes. A imigração em massa de trabalhadores vindos especialmente do Norte da Itália para a fronteira ocidental de São Paulo era esta saída, possibilidade que não era viável para os fazendeiros fluminenses, por falta de recursos. O precursor nas experiências com mão-de-obra imigrante havia sido o senador Nicolau Vergueiro, proprietário da Fazenda Ibicaba, em Limeira. Foi ele quem, por volta de 1840, contratou, em regime de parceria, imigrantes portugueses, alemães, suíços e de outras nacionalidades, para trabalhar em suas terras. Poderia ter sido o início bem-sucedido da imigração dirigida para São Paulo, mas nem tudo deu certo. Dívidas resultantes das despesas de viagem, de compras de gêneros adquiridos no armazém da fazenda, mediante o pagamento de juros, o custo do transporte do café em lombo de burro, bem como a desorganização, a falta de planejamento e o comportamento autoritário do proprietário nas relações com os colonos, motivaram muitas denúncias de uma relação desigual, provocando revolta e indignação na Europa, ao ponto de alguns países terem decidido proibir a imigração para o Brasil. Apesar desta tentativa frustrada, outras iniciativas mais consistentes de fomento à imigração foram surgindo, e isso ainda antes do anúncio oficial do fim da escravidão. Em agosto de 1871, surgiu em São Paulo a Associação Auxiliadora da Colonização e Imigração. Leis provinciais autorizarvam um apoio financeiro de até 900 contos de réis para apoiar ações que visassem a atrair imigrantes. Já em 1881, a Assembleia Provincial organizou uma comissão para planejar a instalação de uma hospedaria para receber os imigrantes. O prédio, adquirido no bairro do Bom Retiro, apesar de ter sido remodelado em 1883, tinha capacidade para apenas 500 pessoas e estava localizado em ponto distante das ferrovias. Dois anos depois, foi liberada nova verba, desta feita de 100 contos de réis, para a construção daquela que viria a ser a Hospedaria de Imigrantes, inaugurada em 1888, com capacidade para abrigar 4 mil imigrantes e localizada em um ponto privilegiado: a junção das estradas de ferro que penetravam na cidade de São Paulo, vindas do Rio de Janeiro e de Santos. Como desde o início da década de 1880 já havia críticas à maneira como os imigrantes eram tratados no Brasil, inclusive com a edição de uma circular assinada pelo governo italiano descrevendo São Paulo como "terreno inóspito e insalubre", em 1886 foi criada a Sociedade Promotora da Imigração, cujo sucesso se deve em grande medida a Martinho Prado Júnior, seu primeiro presidente. Senhor de escravos, fazendeiro de café, com simpatias políticas republicanas e representante da zona da Mogiana, que se encontrava em franca expansão e, portanto, estava muito necessitada de mão-de-obra, Prado Júnior foi figura-chave na transição para o trabalho livre assalariado. Uma das primeiras iniciativas para reverter a imagem ruim do

A EXPERIÊNCIA FRUSTRADA DE VERGUEIRO NÃO IMPEDIU QUE SURGISSEM OUTROS MODELOS DE RELACIONAMENTO 81


O ciclo do café no Brasil ABAIXO, TRANSPORTE DE SACAS DE CAFÉ NO PORTO DE SANTOS. NA PÁGINA AO LADO, IMIGRANTES EM FRENTE À HOSPEDARIA

Brasil na Europa foi a edição de um folheto de 60 páginas, com capa colorida e brilhante, tendo no miolo um grande mapa desdobrável de São Paulo. Foram impressas nada menos que 80 mil cópias, nas versões em português, italiano e alemão. Além de afirmar que em São Paulo "a maneira de vestir, mobiliar as casas e alimentar-se" estava em consonância com os costumes europeus, o material arrolava as facilidades que estariam à disposição dos imigrantes, como transporte do Rio de Janeiro ou de Santos até São Paulo, comida para até oito dias e alojamento na hospedaria recém-inaugurada, incluindo tratamento médico gratuito e transporte ferroviário também inteiramente custeado até o destino final dos viajantes, no interior da província. Como aponta Holloway, as entradas anuais de imigrantes eram em média inferiores a 6 mil no período entre 1882 e 1886. Com as medidas anunciadas, chegaram mais de 32 mil deles em 1887, número que pulou para quase 92 mil em 1888. Era apenas o começo: "De 1889 ao início do século seguinte, chegaram quase 750 mil estrangeiros a São Paulo, dos quais 80% subsidiados. Da abolição à depressão de 1929, entraram perto de 2,25 milhões de imigrantes na província, que em 1886 contava com uma população de 1,25 milhão de habitantes", aponta Holloway. Nem tudo correu às mil maravilhas na hospedaria, como, aliás, seria de se imaginar, diante de tal volume de viajantes recém-chegados. A desorganização imperava, e não foram poucos os casos de óbi-

DA ABOLIÇÃO À DEPRESSÃO DE 1929, MAIS DE 2 MILHÕES DE IMIGRANTES DESEMBARCARAM NO BRASIL


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, IMIGRANTES TRABALHAM NA COLHEITA. NA PÁGINA AO LADO, O TRABALHO DE SEPARAÇÃO DOS GRÃOS EM FAZENDA

SUBSÍDIOS PARA IMIGRANTES QUE BUSCAVAM OS CONTRATOS DE TRABALHO ERAM RESTRITOS ÀQUELES QUE FAZIAM PARTE DE UNIDADES FAMILIARES 84

tos, em especial de crianças, devido às más condições de higiene do local. Ainda assim a hospedaria cumpriu relevante papel. Diante do excelente retorno da propaganda feita na Europa, tecendo loas às condições de vida e perspectivas de trabalho no Brasil – que encontrou acolhida em especial na Itália, país que passava por uma forte crise de emprego no final dos século XIX –, surgiu um dilema: como os fazendeiros poderiam ter certeza de que os imigrantes que aportavam em Santos ou no Rio de Janeiro efetivamente seriam produtivos nas lavouras? De que forma poderiam assegurar-se, por exemplo, que entre os viajantes não haveria cidadãos oriundos de zonas urbanas, em busca de melhores condições de vida em relação ao que se passava na Europa, de economia deprimida? Na prática, não havia de fato como comprovar se a declarada profissão de agricultor correspondia à realidade. Foi assim que se decidiu estabelecer alguns critérios, a partir do atendimento dos quais seriam garantidos aos estrangeiros os subsídios financeiros prometidos: todos aqueles que pretendessem vir para o Brasil sob contrato de trabalho deveriam fazer parte de unidades familiares cuidadosamente definidas. Só eram admitidos, portanto, casais com menos de 45 anos sem filhos; casais com filhos ou pupilos, com ao menos um homem em idade ativa por família, e viúvos ou viúvas com filhos ou pupilos, com pelo menos um homem em idade ativa por família. Entre os dependentes da família que podiam ser incluídos na passagem subsidiada estavam pais, avós, irmãos solteiros e cunhados e sobrinhos órfãos do chefe da família. Uma vez instalados nas fazendas paulistas, haviam alguns ou-


O ciclo do café no Brasil A CHAMADA CLÁUSULA DE CULTIVO DE ALIMENTOS ERA UM INCENTIVO PARA QUE MAIS E MAIS FAZENDAS SURGISSEM

NA PÁGINA AO LADO, VISÃO DO TERREIRO DE UMA FAZENDA DE CAFÉ DO INÍCIO DO SÉCULO XX

86

tros pontos sensíveis a serem atacados para que a relação de parceria prosperasse. Como salienta Holloway, "a renda monetária do trabalhador dependia da produtividade dos pés de café sob seus cuidados, mas também dos preços do café no mercado. Embora os contratos previssem que os parceiros dividiriam igualmente as eventuais perdas na lavoura, na prática apenas em condições muito severas o dono da terra perdia parte do seu investimento. O parceiro agricultor, bem ao contrário, por mais que se empenhasse, dificilmente conseguia exceder o nível da subsistência, e logo caía em débito com os proprietários das terras. Para os recém-chegados italianos, uma geada violenta ou eventual baixa de preços no mercado cafeeiro não significavam apenas lucros menores ou perda de investimento: eram de fato uma ameaça a seu meio de vida". Portanto, para que a política de atração de imigrantes efetivamente desse resultados, de pronto os proprietários das fazendas perceberam que a lógica de relacionamento com aquela mão-de-obra estrangeira teria de ser completamente distinta do modelo escravocrata. Em lugar de coerção, era preciso investir em uma política de incentivos adequados. Foi assim que uma reivindicação bastante comum entre os colonos terminou por ser atendida – e ao mesmo tempo estimulou que as fronteiras do café se expandissem continuamente. Como mencionado anteriormente, os ganhos decorrentes da dedicação exclusiva dos colonos ao café eram instáveis, pois eles estavam perigosamente sujeitos às variações de mercado, oscilações de preço, de clima etc. Em compensação, se lhes fosse dado o direito de plantar milho e feijão entre as fileiras de pés de café, poderiam assegurar ao menos sua subsistência e, quem sabe, algum excedente. Além disso, como um cafeeiro em geral precisa de quatro anos até a primeira safra, momento a partir do qual o pé de café passa efetivamente a competir pelos nutrientes da terra, de tempos em tempos os imigrantes se dispunham, e em alguns casos até mesmo exigiam, mudar de terras, de maneira a que fosse possível reiniciar o ciclo em outras fazendas que viessem a ser adquiridas pelos grandes proprietários, onde poderiam manter novas lavouras de subsistência em meio aos cafezais. A chamada cláusula de cultivo de alimentos, assim, operava como incentivo para que os fazendeiros implantassem novos estabelecimentos, a fim de seguirem atraindo e mantendo uma força de trabalho que, mesmo sendo abundante – mais e mais imigrantes seguiam chegando a Santos –, era, de outra parte, móvel. Os trabalhadores do café já instalados no Brasil conheciam a reputação individual dos fazendeiros, sabendo distinguir aqueles que efetivamente cumpriam sua palavra dos que ainda se apegavam ao modelo de coerção do tempo da escravatura, e, assim, não tinham pudores em romper os contratos, caso as condições de trabalho não fossem as mais adequadas, buscando outros parceiros. Se de um lado o crescimento da economia cafeeira era visível até mesmo ao observador mais casual, menos óbvia foi uma mudança qualitativa resultado da experiência imigratória no oeste paulista. Como


O ciclo do café no Brasil

MULHERES PENEIRAM O CAFÉ JUNTO AOS CAFEEIROS

ESTRUTURA SOCIAL RURAL APRESENTAVA CRESCENTE NÚMERO DE SÍTIOS PEQUENOS E MÉDIOS AO LADO DAS FAZENDAS 88

descreve Holloway, "ao lado dos brasileiros proprietários de grandes fazendas, a estrutura social rural apresentava um crescente número de sítios pequenos e médios, adquiridos por imigrantes de primeira geração". Alguns estrangeiros residentes, bem-sucedidos no comércio ou na indústria, adquiriram propriedades rurais, mas também muitos dos imigrantes que se tornaram proprietários de fazendolas operadas pelo trabalho começaram provavelmente como colonos do café". Nascia, assim, diferentemente do modelo baseado na mão-de-obra escrava, o embrião de um mercado consumidor cuja renda significaria o fomento de toda a economia da província. Em paralelo ao nascimento desta classe de pequenos e médios proprietários, uma boa parte dos imigrantes optou por se dirigir para os núcleos urbanos.

A CONTRIBUIÇÃO DOS

PARA ALÉM DOS ITALIANOS NAS LAVOURAS O senso comum costuma associar o fluxo imigratório do final do século XIX e início do século XX aos italianos, o que não deixa de corresponder aos fatos, pois estes se constituíram no maior grupo de uma única nacionalidade. As estatísticas apontam, entretanto, que entre 1887 e 1930, os italianos representaram menos da metade de todos os imigrantes, ainda que fossem o grupo preponderante – eles eram 46% de todos os imigrantes (percentual fortemente influenciado pelo período 1887-1900, quando chegaram a corresponder a 73% do total). Se contabilizado apenas o período 1900-1930, é possível verificar que a distribuição das nacionalidades foi mais diversificada. Os italianos eram 26% do total, enquanto os portugueses eram 23% e os espanhóis, 22%. As outras nacionalidades alcançaram 28%. Na última categoria, o mais importante grupo foi o de japoneses, que começaram chegando em pequeno número, em 1908, e se transformaram em uma corrente contínua, depois de 1917. Entre 1911 e 1930, cerca de 96 mil japoneses imigraram para São Paulo, juntando-se a portugueses, espanhóis e italianos no trabalho nas fazendas de café. Outro grupo com papel relevante foi o dos sírios-libaneses, que entre 1911 e 1920 chegaram em número de 18 mil a São Paulo. Alguns deles sem dúvida trabalharam nas lavouras, mas os sírios eram mais comumente identificados com o comércio itinerante de miudezas. Forneciam boa parte dos utensílios domésticos e outras mercadorias que os trabalhadores das fazendas consumiam. A contribuição de imigrantes de diversas nacionalidades, que teve como resultado o enriquecimento dos fazendeiros paulistas, se deu também de forma marcante nos núcleos urbanos, em especial na capital. Sobretudo a partir da proclamação da República, em 1889, São Paulo valeu-se da autonomia adquirida a partir dos conceitos de federação. Assim, a "europeização" da elite paulista, que já se verificava mesmo antes da inauguração das vias férreas ligando a capital a Santos ou ao Rio de Janeiro, intensificou-se. A paisagem urbana passa a sofrer as influências de imigrantes arquitetos, mestres de obras (os capomastri), artífices qualificados de várias nacionalidades, que afluíram para a cidade.

MARCANTE NOS

IMIGRANTES NO ENRIQUECIMENTO DOS FAZENDEIROS PAULISTAS SE DEU TAMBÉM DE FORMA

NÚCLEOS URBANOS

89


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, À ESQUERDA, RESIDÊNCIA DE MARTINHO PRADO JR EM SÃO PAULO. À DIREITA, O PALÁCIO DE VERIDIANA SILVA PRADO

90

No que tange aos grandes fazendeiros, há registros de que boa parte deles costumava passar o inverno na Capital com suas famílias, dispendendo grandes somas naquela que era o centro da vida espiritual, social e comercial do estado. Lenta e gradualmente, as famílias ricas começam a dedicar mais tempo a São Paulo, em especial filhos e netos dos primeiros barões do café. Com sua presença, a cidade ganha ares mais sofisticados. Como atesta Mário Jorge Pires, "entre os novos hábitos estava o de empregar extensa criadagem estrangeira: governantas alemãs e francesas, pajens, mordomos, criados para diferentes e específicas funções. O requintado costume europeu de passear a cavalo tinha seus mais frequentes apreciadores em São Paulo entre os netos e bisnetos do Barão de Iguape que, segundo consta, saíam pela Avenida Higienópolis, subiam a Consolação ou a Avenida Angélica, para daí atingirem a Paulista." E acrescenta Pires: "Esse grupo de Higienópolis introduziu, por meio de seu prestígio social, várias novidades na cidade, como o ciclismo, o futebol, o automobilismo (...) e os esportes aéreos. Antonio Prado Jr. e os filhos do Conde Álvares Penteado, Silvio e Armando, tinham um apartamento perto

de Saint-Cloud para praticar esportes aéreos, efetuando vários voos em balões e aeroplanos. É no final do século XIX que nasce a moda de morar com requinte. Foi o caso de Veridiana Silva Prado, filha do Barão de Iguape, cuja família morava em uma casa de taipa do século XVIII, encostada à igreja da Consolação. Pois em 1884 Veridiana manda construir um enorme palácio em Higienópolis. "A moradia passou a representar, de forma saliente, o símbolo pelo qual os fazendeiros expressavam sua incontestável posição de elite econômica, social e, pela adoção do novo estilo de vida, também cultural", atesta Pires. E complementa: "Alemães, franceses, italianos e demais imigrantes de outras nacionalidades edificaram residências com bases nos mais variados estilos. (...) São Paulo tornou-se cosmopolita não apenas porque nela vivia grande quantidade de imigrantes de várias nacionalidades, mas porque a aparência da cidade também tornou-se eclética, dada a variedade arquitetônica que ocorreu, principalmente, no final do período do café.". Ainda segundo Mário Jorge Pires, não há dúvida de que muitos

A MORADIA PASSOU A REPRESENTAR O SÍMBOLO PELO QUAL OS FAZENDEIROS EXPRESSAVAM SUA INCONTESTÁVEL POSIÇÃO DE ELITE ECONÔMICA E SOCIAL

91


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, À ESQUERDA, A RECÉM-INAUGURADA AVENIDA PAULISTA. À DIREITA, COMENDADOR LUCIANO JOSÉ DE ALMEIDA E MARIA JOAQUINA DE ALMEIDA, EM RETRATOS DE 1849

92

descendentes de fazendeiros mudaram-se para bairros como Campos Elíseos e Higienópolis, assim como para a Avenida Paulista, mas o autor argumenta que as três regiões estavam longe de ser um reduto exclusivo dos fazendeiros do café. Especificamente no caso da Avenida Paulista, inaugurada em 8 de dezembro de 1891, Pires assevera que, desde o início, a avenida manteve a tendência de tornar-se um reduto, não de fazendeiros, mas de todo e qualquer imigrante enriquecido. "Apesar de nela residir em 1903 o então rei do café, Francisco Schmidt, considerado, em certa época, o maior produtor de café do universo, segundo Afonso de Taunay, a avenida abrigou, sobretudo, as fortunas de estrangeiros e seus descendentes, saídas da indústria, do alto comércio e da prestação de serviços". Também a respeito dos imigrantes que preferiram os núcleos urbanos, atesta Bóris Fausto que "tiveram papel fundamental nas empresas manufatureiras da capital, nas quais, em 1893, 70% de seus integrantes eram estrangeiros. Na indústria do Rio de Janeiro, a porcentagem era menor, mas, mesmo assim, muito expressiva: 39% em 1890". Ainda segundo Fausto, "o caminho do imigrante para a condição de indus-

trial teve variantes. Alguns partiram quase do nada, beneficiando-se das oportunidades abertas pelo capitalismo em formação em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Outros vislumbraram oportunidades na indústria, por serem importadores. Essa atividade facilitava contatos para importar maquinaria e era uma fonte de conhecimento sobre onde se encontravam as possibilidades de investimento mais lucrativo. Os dois maiores industriais italianos de São Paulo – Matarazzo e Crespi – começaram como importadores."

OS IMIGRANTES

A CRISE DA SUPERPRODUÇÃO A explosão da produção do café nos inícios do século XX era inevitável, e foi decorrência da incidência de diversos fatores econômicos e sociais: os grandes proprietários estavam capitalizados e portanto não havia por que deixarem de investir na aquisição de novas terras; o volume de imigrantes que escolhiam o Brasil para trabalhar seguia crescente, garantindo-se, assim, mão-de-obra abundante; o oeste paulista, onde o café encontrou excepcional condição geográfica e climática, seguia oferecendo áreas ainda

MANUFATUREIRAS DA

TIVERAM PAPEL DECISIVO TAMBÉM NAS EMPRESAS

CAPITAL. EM 1893, EM 70% DELAS HAVIA ESTRANGEIROS

93


O ciclo do café no Brasil

NA PÁGINA AO LADO, IMAGEM DO PREGÃO DOS NEGÓCIOS NA BOLSA DE SANTOS

94

não exploradas. Com isso, a produção brasileira, que havia pulado de 3,7 milhões de sacas de 60 quilos, em 1880-81, para 5,5 milhões, em 1890-91, alcançaria nada menos que 16,3 milhões, em 190102. Nas palavras de Celso Furtado, "as condições excepcionais que oferecia o Brasil para essa cultura valeram aos empresários brasileiros a oportunidade de controlar três quartas partes da oferta mundial desse produto. Essa circunstância é que possibilitou a manipulação da oferta mundial de café". Mas como seria possível alcançar-se a valorização dos preços, diante de tão abundante oferta? Furtado acrescenta: "Os empresários brasileiros logo perceberam que (...) tudo de que necessitavam eram recursos financeiros para reter parte da produção fora do mercado, isto é, para contrair artificialmente a oferta. (...) A ideia de retirar do mercado parte desses estoques amadurece cedo no espírito dos dirigentes dos estados cafeeiros, cujo poder político e financeiro fora amplamente acrescido pela descentralização republicana." É neste contexto que surge o famoso Convênio de Taubaté, celebrado em fevereiro de 1906, quando se definem as bases da política de "valorização" do produto. Sinteticamente, o convênio previa que o governo compraria os excedentes da produção, e que o financiamento dessas compras se faria com empréstimos estrangeiros. O serviço destes empréstimos seria coberto com um novo imposto cobrado em ouro sobre cada saca de café exportada. Por fim, o documento previa que, a fim de solucionar o problema a longo prazo, os governos dos estados produtores deveriam desencorajar a expansão das plantações. Como em um primeiro momento os preços do café voltaram a patamares atraentes, e considerando que não havia melhor opção de investimento, os capitalistas brasileiros seguiram aportando recursos na produção de café. E assim criou-se um círculo vicioso. Com as medidas artificiais de proteção que se sucederam, a produção exportável de café vivenciou nova explosão. Entre 1925 e 1929, ano da crise mundial, o crescimento foi de quase 100%: aumentou de 15,761 milhões de sacas para 28.942 milhões. Uma festa que duraria pouco, mas ainda assim geraria muita riqueza. Em meio ao conturbado período, surgiu em Santos, desde finais do século XIX o maior porto exportador de café do país, a Bolsa Oficial de Café. O projeto se iniciou em 1914. A Bolsa começou a operar efetivamente a partir de 28 de abril de 1917, inicialmente em salão alugado no centro da cidade. O expediente envolvia aspectos ligados à organização e centralização de operações comerciais, informações e registros de negociações realizadas pelos corretores de café no mercado e serviço de classificação do produto. O período de funcionamento na parte térrea do edifício situado na esquina das ruas XV de Novembro e Santo Antônio (atual Rua do Comércio) foi de poucos anos. Apenas o suficiente para a conclusão das obras da grandiosa sede própria da Bolsa, inaugurada pelo Governo do Estado de São Paulo em 1922.

COM AS MEDIDAS ARTIFICIAIS DE PROTEÇÃO, A PRODUÇÃO EXPORTÁVEL DE CAFÉ VIVENCIOU NOVA EXPLOSÃO 95


O ciclo do café no Brasil

ACIMA, À ESQUERDA, VISUAL CONTEMPORÂNEO DA BOLSA DE SANTOS. AO LADO, A CAFETERIA, CUJA QUALIDADE É RECONHECIDA PELA ABIC

96

A construção revela a arquitetura típica do ecletismo que caracterizou as mais importantes obras do período. Cúpulas de cobre, grandes figuras escultóricas, vitrais, mosaicos de mármore e robustas colunatas de granito são expressões de riqueza e prosperidade do ciclo cafeeiro no país e, ao mesmo tempo, representam a materialidade do desejo de converter o edifício da Bolsa no "Palácio do Porto de Santos". Nos dias atuais, a imponência arquitetônica da edificação se mantém. Apesar do adensamento urbano ocorrido na região nas últimas décadas, a Bolsa segue sendo o edifício mais suntuoso e emblemático da Baixada Santista. A elevada torre do relógio, com mais de 40 metros de altura, se impõe, à frente do porto, como importante referência paisagística e temporal da cidade. O edifício passou por restauração, concluída em 1998, a qual tornou o prédio um efetivo monumento histórico. Dentro de uma concepção moderna e versátil, o local passou a oferecer instalações adequadas inclusive para o funcionamento do Museu do Café e de uma cafeteria. No dia 12 de março de 2009, o Palácio

da Bolsa Oficial de Café foi oficialmente tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Com fluxo diário de 600 pessoas e venda de aproximadamente 450 xícaras de café por dia, a Cafeteria do Museu é premiada pela Associação Brasileira da Indústria de Café (Abic) com o status Premium, dentro do programa Circulo do Café de Qualidade, de abrangência nacional. Com a revolução de 30 e a chegada ao poder de Getúlio Vargas, de início à frente de um governo provisório, mais tarde na condição de ditador, o Brasil passa a se debater entre a continuidade do poder regional e a tendência à centralização das decisões. Apoiado pelos tenentes, Getúlio assume o Poder Executivo e também o Legislativo, ao dissolver ainda em 1930 o Congresso Nacional, os legislativos estaduais e municipais. Todos os antigos governadores, com exceção do de Minas, foram demitidos, e em seus lugares foram nomeados interventores federais. No que se refere a São Paulo, em maio de 1931 o controle da política do café passa do Instituto do Café do Estado de São Paulo

COM GETÚLIO NO PODER, TENDÊNCIA À CENTRALIZAÇÃO DAS DECISÕES ENCERRA PERÍODO DE AUTONOMIA REGIONAL

97


O ciclo do café no Brasil

À ESQUERDA, GRÃOS COLHIDOS EM MINAS GERAIS. À DIREITA, GRAVURA DE 1932 RETRATA CAFÉ SENDO JOGADO AO MAR

PRODUÇÃO DE CAFÉ ARÁBICA SE CONCENTRA NO CENTRO-SUL DO PAÍS, ENQUANTO O CAFÉ ROBUSTA É CULTIVADO NO ESPÍRITO SANTO E EM RONDÔNIA 98

para o Conselho Nacional do Café (CNC), órgão que acabou sendo extinto em 1933 e substituído pelo Departamento Nacional do Café, que, este sim, significou a efetiva federalização da política cafeeira. Antes disso, ainda em 1931, um decreto estabeleceu que o governo federal compraria todos os estoques existentes no país em 30 de junho de 1931, ao preço mínimo de 60 mil-réis. Uma parcela do produto seria destruída fisicamente, a exemplo do que já havia sido feito na Argentina, com a uva, e na Austrália, com rebanhos de carneiros. Além de lavouras inteiras terem sido abandonadas e milhares de pés de cafeeiros arrancados do solo, o café também foi queimado e jogado ao mar. Como ressalta Bóris Fausto, "o esquema brasileiro teve longa duração, embora alguns de seus aspectos tenham sido alterados no correr dos anos. A destruição do café só terminou em julho de 1944. Em 13 anos, foram eliminados 78,2 milhões de sacas, ou seja, uma quantidade equivalente ao consumo mundial de três anos". Atualmente o Brasil é o maior produtor mundial de café, sendo responsável por 30% do mercado internacional, volume equivalente à soma da produção dos outros seis maiores países produtores. É também o segundo mercado consumidor, atrás somente dos Estados Unidos. As áreas cafeeiras estão concentradas no Centro-Sul do país, onde se destacam quatro estados produtores: Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Paraná. A região Nordeste também tem plantações na Bahia, e da região Norte pode-se destacar Rondônia. A produção de café arábica se concentra em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia e parte do Espírito Santo, enquanto o café robusta é plantado principalmente no Espírito Santo e em Rondônia.


o cafĂŠ nas

artes e na cultura

100


o café nas artes e na cultura Tendo o café brasileiro ultrapassado os séculos XVIII, XIX, XX e chegado ao século XXI em pleno vigor, com altos e baixos, do ponto de vista econômico, mas sempre perfazendo uma trajetória plena de histórias reais ou fantasiosas, adornada por personagens e tipos os mais interessantes, é de se admirar que o grão e tudo o que envolve seu cultivo e comercialização não tenham gerado uma considerável produção artística, em especial na literatura. Podem-se contar nos dedos os romances que de alguma forma têm o ambiente das lavouras de café como pano de fundo. Mesmo nas artes plásticas, não são muitos os nomes de destaque que se dedicaram a pintar o café e seu universo, com exceção, obviamente, de Cândido Portinari, o maior pintor brasileiro em todos os tempos.

Pois entre os artistas plásticos que foram atraídos para o Brasil e suas belezas tropicais no século XIX (excetuados os naturalistas, obviamente), um dos que deixou maior quantidade de obras relacionadas ao café foi Antonio Ferrigno. Italiano da região de Salermo, chegou a São Paulo em 1893, com 30 anos de idade. Pintor feito e já reconhecido em sua terra-natal, Ferrigno veio à procura de novos temas e paisagens. Depois de pintar algumas obras sobre a cidade de São Paulo, o italiano recebeu uma encomenda de Manoel Ernesto da Conceição para pintar a Fazenda Bom Jardim. O quadro acabou indo para Paris, onde Conceição mantinha uma loja de exportação de café. Antes de cruzar o Atlântico, a obra integrou uma mostra com outros trabalhos que retratavam vistas de cafezais, colheitas e o panorama de uma colônia. Atualmente, há seis obras de Ferrigno no Museu do Ipiranga, representando a Fazenda Santa Gertrudes e todas as fases do tratamento do café. Os colonos, provavelmente italianos, são retratados nos mais diversos ambientes, de forma didática, de maneira que observando-se as obras tem-se uma exata noção de como se cultivava o café, o tipo de terreno e a disposição das plantas. No Rio de Janeiro, o alemão George Grimm foi um dos maiores expoentes em pintura de paisagem. Convidado a lecionar na Academia de Belas Artes, inovou, levando seus alunos para pintar ao

ABAIXO, IMAGEM DO QUADRO

O LAVADOURO , DE ANTONIO FERRIGNO


o café nas artes e na cultura

ACIMA, COLHEDORES DE CAFÉ , TELA DE CLOVIS GRACIANO (1954). AO LADO, A FAZENDA SANT'ANNA DO CALÇADO, PINTADA PELO ALEMÃO GEORGE GRIMM, PINTOR DE PAISAGENS

GEORGE GRIMM INOVOU AO LEVAR SEUS ALUNOS PARA PINTAR AO AR LIVRE. ACABOU TENDO QUE SAIR DA ESCOLA DE BELAS ARTES

ar livre, o que terminou por resultar em seu afastamento da instituição. Grimm era encantado pelas paisagens brasileiras, que reproduzia com grande fidelidade e realismo. Depois que deixou a academia, mudou-se para Minas, retornando mais tarde à região cafeeira fluminense, na região de Valença, Bemposta e São José do Rio Preto. Realizou diversas telas das fazendas com seus cafezais, sedes enormes e amplos terreiros. Entre os brasileiros, José Wasth Rodrigues faz parte do time de pintores documentaristas do começo do século XX. Ao retornar de estudos em Paris, dedicou-se a pintar paisagens realistas do interior brasileiro, trabalhando com os contrastes de luz e sombra, cores vivas, especialmente nos verdes e na terra roxa. Já Manabu Mabe, o premiadíssimo pintor japonês que se naturalizou brasileiro em 1960, é um exemplo típico de como os japoneses se integraram à cultura brasileira, via lavoura do café, ainda que esta temática não tenha sido diretamente responsável por sua consagração. Mabe nasceu em 1924, na localidade de Takara, na vila e atual cidade de Shiranui. Quando completou 10 anos, seu pai, Soichi Mabe, em companhia da mulher, Haru, e dos cinco filhos (Mabe era o primogênito), viajou para o Brasil. A família inicialmente se instalou em Birigui, interior de São Paulo, mas logo depois mudou-se para Guararapes, e dois anos mais tarde, em 1939, para Lins. "O que nos esperava era um serviço novo e desconhecido. Mas havia uma missão a cumprir. Nós, imigrantes, buscávamos no Brasil um mundo novo", escreve Manabu em sua autobiografia. As


o café nas artes e na cultura plantações de café fizeram parte das paisagens que o garoto admirava e gostava de retratar. "Desde criança sempre gostei de desenhar, e trouxe para o Brasil os crayons que usava na escola primária do Japão. (...) Voltei a desenhar novamente. Isto era possível apenas nas horas de folga do serviço de cafeicultura, como nos dias de chuva ou aos domingos". Manabu relembra que foi apenas em 1945 que teve sua primeira experiência com tinta a óleo. "Naquele ano, uma intensa geada arruinou toda a plantação de café, e fomos forçados a descansar. Vi uma caixa de tinta em uma livraria da cidade e não resisti à vontade de experimentar", recorda o artista. A partir de 1956, Manabu produz seus primeiros trabalhos não-figurativos, ao mesmo tempo em que a administração do cafezal, que havia comprado em 1948, exigia-lhe demasiada atenção. Decide, então, vender as terras e mudar-se para São Paulo, onde daria início a uma carreira consagradora. Foi um quadro pintado ainda na época da fazenda que abriulhe as portas dos mais importantes salões de exposições da época: Natureza morta com moinho de café, de 1951. Sobre o trabalho, Mabe escreveu: "A cidade de Lins fica a 400 km a nordeste de São Paulo, e a minha fazenda de café ficava a 30 km da cidade. Esta é a obra que levei à exposição nacional no Rio de Janeiro e foi selecionada. Naquela época, o meu desejo era expor em três exposições por ano: o Salão Nacional de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Salão Paulista de Arte Moderna e a Exposição da Colônia, os dois últimos em São Paulo". Em 1955, com 31 anos, Manabu pinta sua primeira obra abstrata, e a partir de então sua carreira decola. Anos mais tarde, na década de 1970, Manubu relata a alegria de passar seu aniversário em família, e recorda seus tempos na lavoura de café. "No dia 14 de setembro toda família se reúne. É meu aniversário. Esta data me enche de prazer e evoca recordações sobre a minha vida. Aqui, no hemisfério sul, invariavelmente chove. Quando isso ocorria, nos tempos do cafezal, não se trabalhava, e eu podia pintar à vontade. Assim, a chuva deu origem ao pintor Manabu Mabe. Com certeza, é uma dádiva ser agraciado por ela no dia do meu aniversário, como sempre acontece. (...) Não me ocorre a lembrança de ter comemorado um aniversário sequer quando trabalhava na lavoura de café". Manabu Mabe faleceu em 1997, e atualmente sua família dirige o Instituto Manabu Mabe. ACIMA, NATUREZA MORTA COM MOINHO DE CAFÉ (1951), QUE ABRIU AS PORTAS DOS GRANDES SALÕES PARA MABE

QUANDO CHOVIA, NÃO ERA POSSÍVEL TRABALHAR NO CAFEZAL. E MANABU MABE APROVEITAVA PARA PINTAR 106

O HOMEM QUE DIZIA TER NASCIDO EM UM PÉ DE CAFÉ O mais genial de todos os pintores brasileiros teve sua vida intimamente ligada ao café. Filho de imigrantes italianos, Cândido Portinari nasceu e viveu em meio às lavouras e cafezais, no início do século XX. Paisagens e tipos humanos que compunham estes cenários condicionaram para sempre sua vida e sua obra. O texto da professora Angela Ancora da Luz, da Universidade

NO ALTO, DESENHO

SOBRE CAFÉ, OBRA DE MANABU MABE REALIZADA EM 1950

107


o café nas artes e na cultura

ACIMA, CENA RURAL (1954). AO LADO, DETALHE DA OBRA CAFÉ, PREMIADA NA EXPOSIÇÃO INTERNACIONAL DO INSTITUTO CARNEGIE, PITTSBURGH, EM 1935

Federal do Rio de Janeiro, faz uma síntese bastante interessante de como o café esteve presente na vida de Portinari.

A VIDA RURAL ERA A GRANDE MOTIVAÇÃO DE PORTINARI. ERA COMO SE OS PÉS DE CAFÉ E OS HOMENS BROTASSEM DO CHÃO, COMO IRMÃOS 108

"Foi na fazenda de café onde nasceu que Portinari (1903-1962) viu os tipos que constituíram sua rica fábula dos retirantes, tão característica de sua obra. Na propriedade, localizada em Brodósqui, no interior de São Paulo, estavam as imagens que povoaram sua infância, marcada pela presença da lavoura do café – os nordestinos maltrapilhos e famintos e os leprosos que pediam esmolas. Os retirantes que entravam na cidade ficavam acampados, à espera de dias melhores, de trabalho na lavoura e de alguma comida. Candinho, apelido carinhoso do pintor, gostava de visitá-los, apesar da recomendação materna de não se aproximar daquele acampamento. Ali, viu um enterro na rede, observou as crianças pançudas e sentiu o drama da seca. Quando a crise econômica mundial atingiu a economia do café, em fins de 1929, Portinari já havia se dado conta de quanto o produto era importante para o país. A vida rural era sua grande motivação. Ele sentia o gosto da terra dentro dele, como chegou a afirmar. Era como se os pés de café e os homens brotassem do chão, nascendo como irmãos. O Brasil de Portinari surge do solo pelos braços dos lavradores. No desenho Cena Rural, de 1954, ele faz uma síntese dos elementos que povoam sua alma e lhe dão o sentido de vida. Com traço rápido e preciso, Portinari constrói os tipos encontrados ao longo de sua produção: a nordestina com o filho no colo e a trouxa na cabeça


o café nas artes e na cultura

ACIMA, OBRA DE PORTINARI COM A TEMÁTICA DO CAFÉ, REALIZADA EM 1960 E PINTADA SOB ENCOMENDA DO BANCO DE BOSTON

NO ALTO, OBRA EXECUTADA PARA A EQUITATIVA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL (1951). ACIMA, UM CLÁSSICO: TERREIRO DE CAFÉ, DE 1959

110

– que também está em Retirantes –, o cavalo e o carneiro, presentes em muitas outras, e o espantalho, que o acompanhou desde cedo. À direita, há sacos de café empilhados, tendo ao lado o esboço de uma figura agachada, e ao fundo, a perder de vista, toda a plantação. Todo o desenho apresenta fragmentos de outros trabalhos do artista. Portinari destaca aqueles que lavram, a mulher que peneira o grão e o homem que levanta ou repousa a saca de café. O realismo expressivo do pintor põe em evidência o homem e a terra. Nas três figuras centrais, percebe-se uma atitude de reverência diante do solo de onde vem a riqueza. Do ponto de vista da regra de composição, ele se mantém fiel à tradição, mas na forma se projeta como artista moderno, como expressionista. Ele seguia as regras de composição clássica de acordo com o espaço perspectivado, mas a forma era trabalhada fora das proporções exatas, com distorções expressivas, como um artista moderno. Apesar da visão crua da realidade social, ele alcança o homem além da aparência física. Procura sua interioridade, a expressão das figuras que se unem à terra através de pés nodosos, planos e torturados, mostrando tendões e ossos sob a pele. As mãos que seguram a enxada e a peneira são extremidades reveladoras do interior da alma humana. De igual modo, observamos que ele mantém as mesmas preocupações do lavrador com a terra na tela Café, premiada na exposição

APESAR DA VISÃO CRUA DA REALIDADE SOCIAL, PORTINARI ALCANÇA O HOMEM ALÉM DA APARÊNCIA FÍSICA

111


o café nas artes e na cultura

NO ALTO, DA ESQUERDA PARA A DIREITA: PINTURA A ÓLEO DE 1940; O

LAVRADOR DE CAFÉ (1934); COLHEITA

DE CAFÉ (1960); PENEIRANDO CAFÉ (1957)

112

internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, Estados Unidos, em 1935. Esta é uma pintura que lembra as composições renascentistas dos teóricos da perspectiva no século XV, quando estes iniciaram o processo de construção do espaço em três dimensões. A linha do horizonte foi elevada acima do limite do quadro. Homens e pés de café se alinham ao longo da composição ocupando este espaço. A paisagem integra todos os elementos da tela, contrapondo o verde do cafezal a uma variada gama de cores terrosas, marcando a fase marrom de Portinari. É o café que pontua os cromatismos, ou seja, o colorido é ditado pela cor do café: mais claros, quase pardos, para os corpos dos trabalhadores; mais acentuados e luminosos nas sacas do grão; com tom vermelho, mais quente, para os pés dos lavradores e para a terra. Neste particular, a cor revela a identidade do artista que afirmava ter vindo ‘da terra vermelha e do cafezal’. As figuras parecem esculturas, robustas, congeladas na ação do trabalho, com mãos e pés enormes e pele rugosa. Os rostos desaparecem sob o peso das sacas, poucos revelam seus traços individuais. Sob o olhar do capataz de gesto militar, os homens trabalham. A colona sentada, que nos faz lembrar as sibilas que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina, repousa brevemente, enquanto a riqueza da terra circula pelos braços dos lavradores e pela imaginação de Portinari. Esta visão social do artista traz a afirmação racial dos negros e

mestiços, seus tipos preferidos, na construção dos trabalhadores rurais. Suas convicções políticas, reforçadas pelos ideais do líder comunista Luiz Carlos Prestes (1898-1990), estão implícitas na força do trabalho coletivo como instrumento transformador do mundo. Portinari sonhava com a reforma agrária anunciada por Prestes e chegou a pertencer ao Partido Comunista. Os problemas sociais estão evidentes também em Terreiro de Café, obra de 1959. Na tela, os homens espalham o café para a secagem dos grãos, cuidando para que sua distribuição seja uniforme e cobrindo a terra na área determinada, destacando a importância do trabalho coletivo. Há também uma grande superfície quase negra, que se recorta do vermelho, uma referência ao colorido do solo. As casas, preenchendo alguns espaços no lado direito do quadro, são meros detalhes na composição. A evidência está no fundo verde da plantação, que faz o contraste simultâneo com o vermelho da terra, dirigindo nosso olhar para aquele ponto em que é possível captar a extensa área que se perde no horizonte. No primeiro plano da composição, vários homens e mulheres estão executando atividades diversas com as cabeças cobertas por chapéus de palha, panos ou trouxas. Portinari trabalha com a pincelada solta nesta obra, eliminando a linha, dando autonomia à cor na construção da imagem. O artista utiliza o branco para iluminar os braços do trabalhador em primeiro plano, ao centro, bem como muitos outros detalhes, como a bandeira,

SUAS CONVICÇÕES POLÍTICAS, REFORÇADAS PELOS IDEAIS DO LÍDER COMUNISTA LUIZ CARLOS PRESTES, ESTÃO IMPLÍCITAS NA FORÇA DO TRABALHO COLETIVO COMO INSTRUMENTO TRANSFORMADOR 113


o café nas artes e na cultura

cujo mastro em diagonal acentua a ação do braço humano. É um branco brilhante que dispara a luz nos corpos. Filho de um casal de imigrantes italianos, Portinari fez apenas o curso primário. Ainda jovem, veio para Rio de Janeiro estudar na Escola Nacional de Belas Artes, onde iniciou seu aprendizado no final de 1918. No entanto, muito mais do que o ensino formal, o que marcou mesmo as telas do artista foram as lembranças da infância, que jamais se apagariam de sua memória. Já no fim da vida, abreviada pelo contato com o chumbo das tintas que usava, Portinari escreveu, em um pequeno poema: Minha memória já não alcança / aqueles cafezais. Começa / no passado. Antes há lembranças entrelaçadas / e sonhos. Mesmo se prolongando / até lá, vejo esfumaçado. Os poemas foram publicados em 1964, dois anos após a morte do pintor. Ele os via esfumaçados, em meio às lembranças. Em outro momento, fez uma análise de sua vida dizendo que nascera num pé de café e reafirmou que devia ter vindo por engano, pois o material usado em sua fabricação provavelmente se destinava a folhas de árvore e água. A terra avermelhada em que correu e jogou bola se misturou, com o tempo, à poeira levantada pelos pés dos nordestinos que abandonavam a seca e chegavam até Brodósqui."

NA PÁGINA AO LADO, MESA COMPLETA DE CAFÉ DA MANHÃ, PRODUZIDA PELAS ARTESÃS DE IGARAÍ

114

O CAFÉ E A CULTURA POPULAR O café e o ambiente das lavouras têm servido como tema para duas iniciativas sociais que utilizam o artesanato e a cultura popular como ferramenta de inclusão social, uma delas localizada em São Paulo (Café Igaraí) e outra, no Rio de Janeiro (Toque de Mão). Distrito do município de Mococa, na região norte de São Paulo, Igaraí tem uma população estimada em apenas 2.500 pessoas na área urbana (e talvez outras mil nas fazendas em torno). É nesta pacata localidade que funciona a modesta, mas organizada sala de uma instituição dedicada ao artesanato. Batizada Café Igaraí, a associação congrega mulheres que se dedicam ao crochê, ao bordado e à pintura em porcelana para retratar uma histórica atividade econômica da região, explícita em seu nome: o cultivo do café. Igaraí fica bem na divisa com Minas Gerais, na região que durante algumas décadas, mais exatamente entre 1898 e 1930, foi protagonista da famosa política do café com leite, que estabeleceu um revezamento entre políticos paulistas, plantadores de café, e mineiros, produtores de leite, no comando dos rumos do país. Se o eixo da produção de café tipo exportação atualmente se deslocou para o norte de Minas e até para Goiás, ficou a tradição em Igaraí, onde muitas fazendas seguem recebendo visitantes, em programa-


o café nas artes e na cultura

ACIMA, O BORDADO COM TEMAS DA FAZENDA, DE IGARAÍ. NO ALTO, PORTINARI COMO INSPIRAÇÃO PARA AS ARTESÃS DO RIO DE JANEIRO

116

ções do tipo turismo rural em um roteiro batizado, é claro, "Café com Leite". Parte do público que adquire os produtos artesanais da associação Café Igaraí está justamente neste nicho. Um aspecto que foi bastante estudado no planejamento do projeto foi a paleta de cores. Durante a florada do café, entre setembro e outubro, as plantações ficam brancas como a neve. Depois, os tons mudam para amarelo ou vermelho, dependendo da variedade. Há ainda os tons do terreiro utilizado para secagem dos grãos, e, ainda, as cores da terra propriamente dita. Para o tingimento dos tecidos, a técnica utilizada é japonesa, e inclui sutilezas como adicionar leite de soja nos panos de algodão, pois a proteína ajuda na absorção do pigmento. O consultor do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas), Renato Imbroisi, foi quem sugeriu que, aos trabalhos em bordado e crochê, se agregasse a pintura em porcelana, de forma a que se pudesse montar uma mesa de café da manhã completa, da louça à toalha e descansapratos, passando pelos guardanapos, todos com motivos da região. Maria Aparecida Arcas Costalonga, a Cida, 64 anos, morou e

NO TINGIMENTO DOS TECIDOS, A TÉCNICA UTILIZADA É JAPONESA, E INCLUI SUTILEZAS COMO ADICIONAR LEITE DE SOJA NOS PANOS DE ALGODÃO

117


o café nas artes e na cultura

REALIZAR RELEITURAS DE GRANDES PINTORES É UMA DAS PREFERÊNCIAS DAS ARTESÃS DO RJ

trabalhou em fazendas a vida toda. Viúva, tem 10 filhos e 18 netos. "Apenas três não ajudei a criar", ela faz questão de enfatizar. Trocou a rotina de carpir, plantar, colher e descascar o café pelo bordado e, basicamente, crochê, que já dominava. Mineira de Guaxupé, quando voltou a morar em Igaraí dedicou-se ao vagonite, um tipo de ponto do bordado. É comum encontrarmos entre as pessoas que se dedicam a uma atividade artística uma personalidade pincelada com traços de ousadia, irreverência e até mesmo alguma petulância. Quase todo artista gosta de romper barreiras, ultrapassar limites, derrubar convenções. Eunice da Ressurreição Matos, 59 anos, moradora do bairro Santa Teresa, no Rio de Janeiro, talvez até não se considere uma artista, mas seu trabalho como artesã assim a qualifica. Pois Eunice não tem o menor pudor em afirmar: "O nosso Abaporu ficou até mais bonito que o original; tem mais cores, mais volume". Ela se refere nada mais, nada menos, que à tela pintada por Tarsila do Amaral em 1928 e que hoje é considerada a obra de arte brasileira mais importante e mais valiosa em todos os tempos (foi adquirida por um colecionador argentino por US$ 1,5 milhão). Acontece que o quadro foi "recriado" por Eunice e suas colegas do projeto Toque de Mão, iniciativa cujo embrião remonta aos anos 2000 e desde então vem oportunizando a um grupo de mulheres em situação de alta vulnerabilidade social expressar seus dotes artísticos através da pintura, do bordado e da costura. Realizar releituras das obras de grandes pintores brasileiros, em especial em bolsas e almofadas, é uma das preferências das artesãs. Di Cavalcanti e Candido Portinari, além da já citada Tarsila do Amaral, são alguns deles. Em novembro de 2010, por exemplo, as artesãs estavam às voltas com a produção coletiva de uma enorme tela inspirada no quadro Café, de Portinari (citada anteriormente). Os grãos da planta que aparecem na imagem, por exemplo, estavam sendo feitos em rococó. Entre os produtos em exposição para venda, havia uma almofada inspirada no quadro O mestiço, também de Portinari.

NA PÁGINA AO LADO, RELEITURA DE O MESTIÇO, EM ALMOFADA DO PROJETO TOQUE DE MÃO: PORTINARI INSPIRANDO A CULTURA POPULAR

118


Brasil, país do futuro. Este é o título do livro publicado em 1941 pelo prolífico escritor austríaco Stefan Zweig, que se radicou em Petrópolis, no Rio de Janeiro, para se afastar do genocídio da Segunda Guerra Mundial. A expressão acabou se tornando mundialmente célebre. Sob essa crença, algumas gerações de brasileiros foram acalentadas. Porém, décadas se passaram, e esse futuro promissor teimava em não chegar. A imagem do gigante adormecido em “berço esplêndido” parecia ser mais apropriada para a nação.

O momento dos

Cafés do Brasil

Havia, entretanto, um segmento da economia que exibia entusiasmo ímpar. No agronegócio, os Cafés do Brasil, mesmo sob os percalços decorrentes da extinção do Instituto Brasileiro do Café (IBC) e do continuado ciclo de cotações insuficientes para cobrir os custos com a atividade, vivenciavam período sem igual em sua longa história de presença no país. Seus protagonistas jamais estiveram apáticos ou sonolentos; ao contrário, mantiveram-se ativos na busca de alternativas que tornassem o segmento ainda mais vibrante. A escalada das cotações iniciada em meados de 2010 veio trazer a consagração aos agentes desse negócio. Os cafeicultores passaram a receber “preço justo” pelo esforço de seu trabalho; os industriais decidiram apostar ainda mais na qualidade do produto e por em prática inovações que o segmento demandava, apoiandose em novas tecnologias; os exportadores se viram diante da possibilidade concreta de fecharem mais e mais negócios com clientes ávidos por um produto de qualidade; por fim, os apreciadores puderam ser surpreendidos pelo grau de excelência dos Cafés do Brasil. O promissor cenário que ora se instaura não é obra do acaso. O longo ciclo de preços baixos praticados para o café verde foi muito bem aproveitado pelos cafeicultores, industriais e exportadores, que se empenharam, ainda mais, em incrementar a produtividade e a qualidade do seu produto ou serviço. A introdução da tecnologia de descascamento do café e a redescoberta do Bourbon Amarelo, verdadeiras maravilhas brasileiras, trouxeram nova reputação ao produto, conquista na qual poucos acreditavam. Esses fenômenos, combinados, conferiram enorme tenacidade aos Cafés

POR CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO NA PÁGINA AO LADO: EMBARQUE DE CAFÉ NACIONAL EM UM PORTO BRASILEIRO

121


o momento dos Cafés do Brasil do Brasil, pois o segmento passou a exibir competitividade em preços e qualidade difícil de ser suplantada por qualquer outro concorrente. Recentemente, o Brasil passou a deter quase a metade das exportações mundiais de arábica. A escalada das cotações proporcionará o necessário saneamento financeiro dos cafeicultores ainda endividados. Com a recapitalização já se processando, pode-se imaginar um cenário em que a busca por tecnologias se intensificará, trazendo novos ganhos de produtividade e qualidade. Tais esforços se tornam ainda mais eficazes dentro de esquemas cooperativos como o implantado pela Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), que oferece ágio de preços nas aquisições de café verde dos cafeicultores já formalmente certificados. Esse otimismo com relação ao agronegócio Cafés do Brasil reflete, em parte, sua estrutura de governança. No âmbito do Conselho Deliberativo de Política Cafeeira (CDPC), foram criados programas e ações públicas bem-sucedidas, como a de pesquisa e a de marketing específico para o café. Não há país concorrente capaz de ombrear a excelência científica da produção brasileira. Novas variedades e métodos de manejo da lavoura, irrigação e mecanização são tendências irrevogáveis na cafeicultura brasileira. Também não há nenhum outro lugar no mundo onde ocorram tantos e tão variados encontros de cafeicultores, locais em que muitas dessas tecnologias são compartilhadas com seus principais interessados e usuários. No capítulo do marketing, depois de carregar a pecha de produto inferior, o café brasileiro recupera seu prestígio, voltando a compor parcela expressiva do blend médio internacional. O respaldo concedido pelo CDPC aos gestores das políticas públicas na operacionalização dessas ações foi precioso. Nas duas edições em que o governo ofereceu ao mercado as opções públicas, o resultado foi altamente positivo, tanto para os cafeicultores aderentes como para o Tesouro Público que, por meio dessa ação estratégica, rentabilizou as existências financeiras do Funcafé. A excepcionalidade do momento atual se confirma com os resultados dos certames internacionais de qualidade do café. A origem brasileira surpreende a maior parte dos provadores, e os lotes oferecidos nesses torneios conquistam posições de destaque no ranking dos melhores cafés. Nos concursos regionais, estaduais e nacional, o último deles realizado pela Abic, os cafés têm apresentado qualidades incomparáveis, sendo acirrada a disputa em leilão pelos lotes oferecidos aos torrefadores neles interessados.

NA PÁGINA AO LADO: PLANTAÇÃO DO CAFÉ TIPO ROBUSTA

122

CONCURSOS REGIONAIS, ESTADUAIS E NACIONAL, ESTE ORGANIZADO PELA ABIC, APRESENTAM CAFÉS COM QUALIDADES INCOMPARÁVEIS


o momento dos Cafés do Brasil

NA PÁGINA AO LADO: PROGRAMA DE CAFÉS ESPECIAIS DESENVOLVIDO PELO INSTITUTO AGRONÔMICO DE CAMPINAS

NO AGRONEGÓCIO DOS CAFÉS DO BRASIL, O FUTURO PROMISSOR SEMPRE FOI ALGO PALPÁVEL E INVEJÁVEL

O Brasil se prepara para amealhar o posto de maior mercado consumidor de café do globo. Tal título se somará aos de maior produtor e maior exportador. Essa nova conquista será fruto de longo trabalho e investimento desenvolvido pela liderança dos torrefadores, que não se furtaram em assumir, privadamente, desde 1989, o programa de controle da pureza do café, até então capitaneado pelo IBC. Em 2010, foi superada a barreira dos 5 kg per capita/ano por habitante, faltando pouquíssimas gramas per capita para suplantar os estadunidenses na liderança mundial do consumo da bebida. O país caminha para se tornar a mais completa plataforma em negócios envolvendo o café! O aceite da Bolsa de Nova Iorque em certificar cafés brasileiros lavados e descascados abrirá ainda mais o campo para negócios, refortalecendo a imagem de excelência do produto verde e amarelo. Oferecendo alternativa ao produto tradicional aos torrefadores internacionais, os Cafés do Brasil reassumem sua mais legítima identidade. A agenda visando a aprimorar o segmento não se esgotou. Carecemos de mecanismos que protejam os cafeicultores dos riscos climáticos, e ainda há que se encontrar uma fórmula para assegurar a continuidade da importantíssima indústria da solubilização. Por sua vez, os industriais da torrefação precisam estruturar seus negócios valendo-se de transações intermediadas por bolsa de valores, oferecendo liquidez ao mercado de títulos financeiros (especialmente no de opções) e, por meio dessa iniciativa, preservando-se das naturais oscilações de preços. O agronegócio Cafés do Brasil jamais esteve adormecido, embalado em berço esplêndido. O êxito das ações envolvendo parcerias público-privadas, combinado com a produção de conhecimentos e tecnologias situadas na fronteira do conhecimento existente e com a sagacidade dos agentes econômicos que atuam nesse segmento, constitui o alicerce da pujança atual. No agronegócio Cafés do Brasil, o futuro promissor sempre foi algo palpável e invejável, tanto aqui como por parte de nossos concorrentes. A grandeza dos Cafés do Brasil permite que se viva o futuro em pleno presente!

CELSO LUIS RODRIGUES VEGRO, ENGENHEIRO AGRÔNOMO, PESQUISADOR DO INSTITUTO DE ECONOMIA AGRÍCOLA (IEA)

125


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.