Sapatos

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sapatos


sapatos RICARDO BUENO

1a EDIÇÃO QUATTRO PROJETOS

PORTO ALEGRE, RS, BRASIL NOVEMBRO DE 2013


PROJETO CULTURAL: QUATTRO PROJETOS PRONAC 101872

COORDENAÇÃO EXECUTIVA: FLAVIO ENNINGER QUATTRO PROJETOS I 51 3209.7568 www.quattroprojetos.com.br I quattro@quattroprojetos.com.br

COORDENAÇÃO EDITORIAL: RICARDO BUENO – ALMA DA PALAVRA TEXTOS: RICARDO BUENO E CLARISSA MARCHETTI (capítulos 5, 6 e 8 e subcapítulo “Curtumes”, do capítulo 4) REVISÃO: FERNANDA PACHECO – ALMA DA PALAVRA PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE: LUCIANE TRINDADE ILUSTRAÇÕES: NIK NEVES FOTOS: NABOR GOULART (PÁG. 8, 59, 60 E 61) E THINKSTOCK TRATAMENTO DE IMAGENS: KDPRESS CAPA: LUCIANE TRINDADE SOBRE ARTE DE NIK NEVES – SAPATO ALEXANDRE BIRMAN IMPRESSÃO: GRÁFICA E EDITORA PALLOTTI

PATROCÍNIO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B928h

Bueno, Ricardo. A história do calçado no Brasil / Ricardo Bueno – 1. ed. – Porto Alegre : Quattro Projetos, 2013. 120 p. : il. color. ; 28 x 28 cm. ISBN 978-85-64393-06-6. 1. Calçado – História. 2. Indústria Calçadista. 3. Indústria do Couro – Brasil. I. Título. CDU 646.46(091)

Ficha Catalográfica: bibliotecária Denise Pazetto, CRB 10/1216 – (51)98350780

REALIZAÇÃO




Quando da escolha do nome deste livro, ficamos em dúvida se daríamos preferência ao uso da palavra calçado ou do substantivo sapato. Quem consultar o dicionário verá que significam quase a mesma coisa, com o detalhe sutil de que “calçado” pode ser também um adjetivo, que designa aquele que calça alguma coisa. Uma das obras mais importantes para o desenvolvimento de nosso trabalho se chama O calçado e a moda no Brasil: um olhar histórico, de Eduardo Motta – a quem, a propósito, rendemos nossa homenagem, ao mesmo tempo em que agradecemos à Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal), editora do trabalho, que nos alcançou um exemplar do livro, de difícil localização. Pois como se vê (ou lê), Motta preferiu a palavra calçado. Nós optamos por sapatos, assim mesmo, no plural. Qual a razão da escolha? É difícil explicar, assim como é difícil entender (mas fácil de perceber) a paixão crescente que os sapatos despertam desde tempos remotos, em especial a partir do século XV.

SAPATOS

sempre SAPATOS

Pareceu-nos, intuitivamente, que a expressão “sapatos” combina mais com um livro que fala justamente dessa paixão por um objeto de desejo que, repare, nunca está só – seja pelo fato de que um sapato é sempre um par, seja pela constatação de que quem ama sapatos costuma tê-los em alguma quantidade. Da mesma forma, as mulheres (e alguns homens, vá lá) também nunca se sentem totalmente sós se estão calçando um de seus pares preferidos. Sapatos rimam com fascínio, fetiche, fixação, fissura. E definitivamente rimam com Brasil, país que abriga o maior cluster do planeta e que tem o privilégio de ser o único no mundo autossuficiente em todos os processos de produção de sapatos. Brasil que cada vez mais garante espaço para que estilistas e designers mostrem seu talento criativo, embebidos por uma nação rica em culturas que se fundem e se reinventam artisticamente há mais de cinco séculos. Vai daí que faz todo o sentido produzir um livro que, em essência, reconta a trajetória do sapato em terras verde-amarelas, mas indo além – porque falar de sapatos é sempre perder-se um pouco, desviar-se do rumo, como é típico dos apaixonados. Este livro, digase de passagem, não tem a pretensão de ser uma obra única, ao contrário. Temos, sim, a expectativa de que seja, de alguma forma, complementar a outras iniciativas semelhantes, as quais elencam outros pontos de vista, tantas e tão vastas são as percepções e leituras possíveis sobre este ícone do universo feminino. O ponto em comum com as centenas de livros, artigos, publicações, sites e revistas sobre o assunto é o desejo quase irresistível de tentar desvendar esse mistério. Mais do que isso, o intuito de oferecer a oportunidade de fruir do prazer de ler, ver, degustar conteúdos (fotos, textos) sobre sapatos. Assim mesmo, no plural. Afinal, eles são tantos, são múltiplos. São sapatos, sempre sapatos. OS EDITORES



A Bottero orgulha-se de suas raízes e de sua paixão pelo calçado feminino. Não é à toa que faz moda para os pés femininos há cerca de três décadas. Por este motivo, estar ao lado de um projeto como este se faz tão importante. Aqui, perpetua-se muito mais do que a história do calçado brasileiro. Fundada no dia 15 de janeiro de 1985, a Bottero é uma das maiores empresas do setor no país e faz moda em couro para mulheres que não abrem mão do conforto, da beleza e do estilo. Reconhecida nacionalmente e até mesmo no mercado externo, a empresa mantém sua sede e as sete filiais no Rio Grande do Sul, gerando mais de 4 mil empregos diretos.

a paixão POR SAPATOS Com o avanço da tecnologia e a disseminação da informação, a Bottero mantém um forte investimento, seja em seu maquinário ou em pesquisas, por meio de um minucioso trabalho realizado pela equipe de estilistas. As inspirações, aliás, vêm de pesquisas, viagens, desfiles internacionais, sempre com adaptação para o gosto da mulher brasileira, cheia de peculiaridade e detalhes. O resultado deste trabalho são peças desenvolvidas com todo o charme e glamour que a moda feminina exige, conquistando assim a confiança e a satisfação das consumidoras.

BOTTERO CALÇADOS


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ORIGENS DOS SAPATOS

PRIMÓRDIOS COLONIAIS

UM SÉCULO REPLETO

O MAIOR CLUSTER DO MUNDO

sumário


Os テュcones NA TERRA BRASILIS

CAMINHOS DO DESIGN

66 PAIXテグ POR SAPATOS

Os grandes

DESIGNERS BRASILEIROS

76

Os sapatos 86 INFLUENCIAM A CULTURA

FONTES CONSULTADAS

98 108 118



ORIGENS DOS

sapatos


O ORIGENS DOS

sapatos

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calçado nasceu da necessidade de prover proteção aos pés do homem para que pudesse se locomover sobre terrenos ásperos e em condições climáticas desfavoráveis. É bastante provável que os calçados pré-históricos fossem compostos por folhas de plantas, cascas de árvores, cipós, peles e couros de animais. Mas por incrível que pareça, ainda há países ao redor do mundo em que a maioria da população até hoje não utiliza o calçado em seu dia a dia, ficando reservado a ocasiões especiais. Alguns historiadores datam os primeiros calçados entre 3000 A.C. e 2000 A.C. no Antigo Egito, mas resquícios históricos encontram evidências sobre sua presença no Período Paleolítico, também conhecido como Idade da Pedra Lascada, sendo que estas evidências datam entre 14000 A.C. e 10000 A.C. Pinturas rupestres encontradas na Europa, em países como França e Espanha, fazem referências a utensílios utilizados para a proteção dos pés deste homem pré-histórico. O Homem de Cro-Magnon, por exemplo, caçava animais de grande porte, como mamutes e renas, utilizando para isso armadilhas montadas no chão. Já nesta época utilizavam-se alguns utensílios de pedra que serviam para raspar as peles, o que mostra que a arte de curtir couros é muito antiga. Já no Egito, por volta de 7000 e 6000 A.C. foram descobertas nos Hipogeus (monumentos funerários subterrâneos do período pré-Cristão) câmaras subterrâneas utilizadas para enterros, adornadas com várias pinturas que representavam os diversos estágios do preparo do couro e do calçado. Em 30 A.C. o Egito já está sob dominação estrangeira, transformando-se em uma província do Império Romano, após a derrota da rainha Cleópatra VII na Batalha de Ácio. Nessa época, era comum as pessoas andarem descalças, carregando as sandálias e usando-as apenas quando necessário (situação que iria se repetir com escravos libertos no Brasil colonial, conforme se mencionará mais adiante). Sabe-se que apenas os nobres da época possuíam sandálias. Mesmo um faraó como Tutancamon usava sandálias e sapatos de couro simples, apesar dos enfeites de ouro. Na Mesopotâmia, eram comuns os calçados de couro cru, amarrados aos pés por tiras do mesmo material. Os coturnos eram símbolos de alta posição social. Na Grécia Antiga, os gregos chegaram a lançar moda, como a de modelos diferentes para os pés direito e esquerdo. O dramaturgo Ésquilo exigia que seus atores que encenavam papéis heroicos nas tragédias gregas utilizassem calçados com grossos solados de cortiça, para parecerem grandes e imponentes, sendo que a partir daí, os artesões da Grécia Antiga criaram as sandálias artísticas. Na Roma Antiga o calçado indicava a classe social. Os cônsules usavam sapato branco, e os senadores, sapatos marrons presos por quatro fitas pretas de couro atadas a dois nós. Já os calçados tradicionais das legiões eram as botas de canos curtos que descobriam os dedos. Existiam também os “caligaes”, uma espécie de sandália bastante


Sandálias egípcias eram de palha, papiro ou fibra

MESMO O FARAÓ TUTANCAMON USAVA SAPATOS DE COURO SIMPLES, APESAR DOS ENFEITES EM OURO


IDADE MÉDIA MARCA UMA GRANDE MUDANÇA DE COMPORTAMENTO, TAMBÉM NA INDUMENTÁRIA

ORIGENS DOS

sapatos

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rústica de couro pesado e solado grosso, muitas vezes presos com taxas de bronze. Após os combates, era comum os “caligaes” receberem camadas de peles das faces de seus inimigos, que eram adicionadas aos seus solados, tradição herdada dos egípcios. Os soldados vitoriosos, ao voltarem das guerras, substituíam as taxas e adornos de seus “caligaes” de bronze por peças de ouro e prata. O período da Idade Média é marcado por uma grande mudança de comportamento, atingindo também a indumentária, onde os ensinamentos cristãos pregavam a não exposição dos corpos, diferentemente dos povos que os antecederam, como os egípcios, gregos e romanos, os quais se exibiam constantemente. Essa drástica mudança na indumentária atingiu também os calçados, onde as sandálias que exibiam os pés deixam de ser usadas, dando espaço a botas altas e baixas, atadas à frente e ao lado para os homens, enquanto para as mulheres reservam-se sapatos abertos que tinham uma forma semelhante à das sapatilhas. O material mais utilizado era o couro de gado, mas as botas de qualidade superior eram feitas de couro de cabra, embora pudessem ser bem mais desconfortáveis do que se possa imaginar. Mesmo assim, os calçados estavam entre os presentes mais procurados neste período. Tendo início as Cruzadas, veio o contato com o Oriente, e a influência deste causou mudanças nos estilos dos calçados, originando um sapato mais coerente e decorado. Surgem neste momento os sapateiros, profissionais responsáveis por calçados de qualidade. Durante a Idade Média nasce a padronização da numeração dos calçados, tendo sua origem na Inglaterra. Consta que por volta de 1305, durante o reinado de Eduardo I (1239 a 1307), foi decretado que fosse considerada como uma polegada a medida de 3 grãos de cevada, colocados lado a lado. Os sapateiros ingleses gostaram da ideia e passaram a fabricar, pela primeira vez na Europa, sapatos em tamanho padrão, baseados no grão de cevada. Desse modo, um calçado infantil medindo 13 grãos de cevada passou a ser conhecido como tamanho 13, e assim por diante.


Catarina de Médici,

a inventora ALGUNS CHOPINES ITALIANOS CHEGAVAM A ALCANÇAR 75 CENTÍMETROS DE ALTURA

AS ORIGENS DO SALTO ALTO Na Época Moderna, a moda europeia dos saltos altos teve início com os chopines italianos, sandálias com plataformas de altura variando entre 15cm e 42 cm.

acabou por introduzir a moda a dos saltos altos entre a aristocracia europeia. No século XVII, o parlamento inglês punia como

Algumas chegavam a alcançar 75 cm, e as mulheres

feiticeiras todas as mulheres que usassem sapatos de salto

que os calçavam tinham que se apoiar em bengalas ou

alto para seduzir ou atrair homens ao casamento. E por

bastões para conseguir equilíbrio ao andar. Em 1430

falar em sedução, Giovanni Casanova, em sua biografia,

os chopines foram proibidos em Veneza, mas como se

declarou seu amor pelos saltos altos que, segundo ele,

sabe, nada pode impedir uma tendência da moda.

levantavam as armações das saias-balão, usadas à época,

A história atribui a invenção dos saltos altos a Catarina de Médici, no século XVI. Devido a sua baixa

desta forma mostrando as pernas femininas. No século XIX, os saltos altos foram introduzidos

estatura, ela os utilizou quando se casou com Henrique

nos Estados Unidos importados diretamente dos

II, da França. Ao chegar a Paris, ela trazia em sua

bordéis de Paris. O sucesso destes sapatos na capital

bagagem uma série de sapatos com saltos produzidos

francesa era enorme, pois a maioria dos clientes preferia

por um artesão italiano para deixá-la mais alta. E, assim,

contratar os serviços de prostitutas que os usavam.


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SAPATOS DA IDADE MÉDIA ERAM FABRICADOS EM COUROS, VELUDOS, BROCADOS E BORDADOS EM FIOS DE OURO

Quanto mais alto o nível social, maior o bico das poulaines O Renascimento identifica o período da História da Europa aproximadamente entre fins do século XIII e meados do século XVII, quando diversas transformações em uma multiplicidade de áreas da vida humana assinalam o final da Idade Média e o início da Idade Moderna. Apesar destas transformações serem bem evidentes na cultura, na sociedade, na economia, na política e na religião, caracterizando a transição do feudalismo para o capitalismo e significando uma ruptura com as estruturas medievais, o termo é mais comumente empregado para descrever seus efeitos nas artes, na filosofia e nas ciências. É durante o Renascimento que os calçados tomam formas e alturas bastante interessantes, chegando a ser descritos como extremamente ridículos. Entre os séculos XIV e XV, surgem as poulaines, difundidas em toda a Europa e principalmente na França e Inglaterra. Este calçado caracterizava-se pelo estreitamento e alongamento das pontas, bicos. O comprimento do bico do calçado era proporcional à posição do indivíduo na sociedade: quanto mais alto o nível na escala social, maior o bico. Eram fabricados em couros, veludos, brocados e bordados em fios de ouro. Até as armaduras seguiram o gênero, com sapatos de ferro e bico revirado. Foi o rei Francisco I da França (1515 a 1547) quem decretou o fim deste tipo de calçado. Ainda no século XV, as pontas aguçadas também foram proibidas pelo rei da Inglaterra Henrique VIII (1509 a 1547), que por ter pés largos e inchados, achava o calçado inconveniente e doloroso. A partir daí, são aceitos os chinelos rasteiros com base larga e muito mais confortáveis.

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ORIGENS DOS

sapatos

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A ascensão da burguesia nos séculos XV e XVI, devido ao desenvolvimento do comércio, originou nova classe social. O desenvolvimento deste comércio trouxe diversidade de peças do vestuário, inclusive nos calçados, tornando-os mais diversificados, refinados e complexos. O calçado aparece como peça bastante trabalhada e indispensável no vestuário. Quase sempre cada roupa exige um calçado, e este é fabricado com os mesmos tecidos e ornamentos das vestimentas. Os calçados masculinos têm as formas quadradas e largas, mais cômodas que no século anterior, permitindo assim, maior transpiração e conforto para os pés. As botas, inicialmente exclusivas dos exércitos, chegavam a atingir a coxa. Em pleno século XVII, a fabricação de calçados com saltos resulta em produtos com pouca estabilidade, causando frequente falta de equilíbrio. Falhas principalmente na região de encaixe do salto causavam também problemas de emparelhamento. Embora desde o período Romano já se produzissem calçados para pés direitos e esquerdos, a parte traseira dos calçados não oferecia diferenças entre os dois pés. Então, para dar mais estabilidade aos calçados com saltos, iniciou-se uma maior preocupação com estes detalhes e diferenciações. Durante a Guerra Civil Americana, as botas dos exércitos passam a ser fabricadas com essa diferenciação entre os pés também na parte traseira, que foi muito bem aceita. Na França, acontece um fato importante e particular: durante o reinado de Luiz XIV e de Luiz XVI, há introdução nos modelos de calçados masculinos de um salto mais alto e quadrado e também de fivelas e fartos ornamentos. No século XVIII, a moda se estabeleceu de maneira sistemática e organizada como fenômeno cultural, social e de costume. São estabelecidas as variações do “gosto”. Período de muita evolução, os calçados em produção artesanal passam a atender as novas exigências de praticidade e funcionalidade. Ficam caracterizados diferentes ambientes (cidade, campo e estrada), e desta maneira surgem os calçados para o trabalho, para o passeio e várias novas exigências deste novo consumidor. O estilo predominante dos calçados femininos neste período são as botas em couro ou cetim e trabalhadas de maneira intensa, com saltos robustos e fechamentos laterais, nos quais aparece quase sempre uma carreira de pequenos botões ou amarrações com laços. Os calçados masculinos são todos em couro preto e com a presença do elástico, invenção deste período, que torna o calçar mais confortável. Neste momento a sola ainda era presa ao corpo do sapato com pregos, e toda costura era feita à mão. Com a chegada das Máquinas de Costuras Américas, de Isaac Merrit Singer, Elias Howe e Walter Hunt, no século XIX, o processo de costura não só acelerou a produção como levou à confecção de um calçado melhor e mais barato. Durante a Revolução Industrial, surgem as operatrizes especializadas, como a de McKay. Um fluxo incessante de máquinas sofisticadas revolucionou a indústria dos calçados, de tal modo que, no alvorecer do século XX, ela já entrara na era da produção em massa.


INTRODUÇÃO DAS MÁQUINAS, EM MEADOS DO SÉCULO XIX, SINALIZAVA PARA O INÍCIO DA ERA DA PRODUÇÃO EM MASSA

Século X V II: sapatos para traalho, campo e estrada



PRIMĂ“RDIOS

coloniais


N

PRIMÓRDIOS

coloniais

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ão restam dúvidas: os índios que habitavam as terras descobertas pelos portugueses por volta de 1500 andavam descalços. Além das caravelas, espelhos e contas coloridas, os nativos foram apresentados naquele momento às botas militares dos navegadores recém-chegados de além-mar. O contraste entre os hábitos naturais dos indígenas e os já sofisticados modos de calçar dos colonizadores terminou por transformar os sapatos em um símbolo de distinção social: usá-los era quase sinônimo de poder. Tão estranho lhes pareceu o artefato que os nativos tiveram que inventar palavras para identificá-lo: mbi-ubá e mbi-upã, ou ainda piubã ou piupã, em tupi-guarani, eram as expressões que serviam para designar tanto botas quanto sandálias, tamancos ou alpargatas. Aqueles homens esquisitos, e seus adornos ainda mais engraçados, vestindo em geral sapatos de bico largo, acabaram ganhando o apelido de emboabas, que significa galinha de calças. Como registra Eduardo Motta no livro O calçado e a moda no Brasil: um olhar histórico, os árabes mouros introduziram as técnicas de tingimento e curtimento do couro para produção de artefatos na Península Ibérica (Portugal e Espanha). As botas de couro atadas por cadarços ficaram conhecidas como borzeguins, enquanto a espécie de sapatilha usada com meias, com pontas muito finas e alongadas, eram denominadas chapins. Mas no Brasil, predominavam mesmo as botas de cano alto, reto ou virado, as botifarras, usadas pelos bandeirantes de então. Os borzeguins ficavam reservados aos oficiais superiores, enquanto os tamancos, que evitavam o contato com a neve (na Europa, obviamente), a lama e outras sujeiras, bem como os pés descalços, não eram incomuns entre os homens mais simples. Obviamente também na questão dos calçados houve influência dos missionários jesuítas que vieram trazer (ou tentar) a palavra de Cristo aos índios. Assim como buscavam convencer os indígenas a usarem vestimentas, por mais simples que fossem, para disfarçar a nudez que incomodava os missionários, também se recomendava o uso das humildes sandálias dos religiosos. Foi no extremo sul das terras recém-descobertas, onde o gado era abundante, que se desenvolveu com vigor o trabalho em couro, com a produção de sandálias em tiras. O clima de disputas permanentes entre portugueses e espanhóis, tendo os jesuítas e suas missões em muitos momentos como motivo das refregas, acabou por desenvolver a arte da selaria e da manufatura de outros artefatos de couro. Também a vigorosa indústria do charque, com a carne salgada sendo vendida para a região das minas, durante o ciclo do ouro, impulsionou em paralelo a indústria de selas e calçados. Uma peça emblemática do período das guerras cisplatinas é a bota de garrão de potro, artefato presente em muitas culturas indígenas primitivas. Como descreve Eduardo Motta, cortavam-se as patas dos cavalos mortos em combate, com o couro sendo extraído inteiro e aproveitado sem emendas ou costuras. Vestido como se fosse uma meia, em geral deixando à mostra apenas os dedos dos pés, o artefato era muito utili-


25 MISSIONÁRIOS CONVENCERAM MISSION ÍNDIOS A USAR ALGUM TIPO DE VESTIMENTA E DISSEMINARAM VESTIME USO DA SANDÁLIA DE COURO

Botifarras identificam o conquistador


26 escravos artesãos logo aprenderam o ofício

A BOTA DE GARRÃO DE POTRO É UM DOS SÍMBOLOS DO HOMEM DO CAMPO GAÚCHO E ADORNA ESTÁTUA DO LAÇADOR


zado por tropeiros, índios e gaúchos. Na estátua O Laçador, esculpida por Antonio Caringi, monumento que recepciona quem chega a Porto Alegre, nas proximidades do Aeroporto Internacional Salgado Filho, o pesquisador e folclorista João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes, que serviu de modelo, usa uma bota de garrão de potro, com os dedos à mostra. A estátua foi inaugurada em 1958 e é um dos símbolos da cultura rio-grandense. Também no Norte e no Nordeste do Brasil o couro foi trabalhado habilmente, desta feita pelas mãos dos sertanejos que tropeavam gado e deram origem ao artesão seleiro, que confeccionava peças de montaria e era também sapateiro. As sandálias e alpercatas dos cangaceiros, vestidos de couro da cabeça aos pés, transformaram-se em um ícone de nossa história. A contribuição dos negros, traficados aos milhões da África para o Brasil, aqui chegando desprovidos de quaisquer posses (portanto, descalços), se deu graças não apenas à sua habilidade em aprender e desenvolver as técnicas de manuseio do couro, como também na disseminação do uso de calçados, em razão da proximidade das escravas com as senhoras brancas. Eduardo Motta faz um interessante registro quanto aos negros alforriados, que usavam calçados para marcar seu status diferenciado em relação aos que seguiam escravos. Estes mesmos homens livres astutamente voltavam a andar descalços em épocas de recrutamento militar, fazendo-se passar por escravos (que não podiam ser convocados). Entre as primeiras mulheres brasileiras, predominavam as de origem e hábitos simples, muitas das quais inclusive se prostituíam. Havia uma classe privilegiada, a das europeias casadas com funcionários da Coroa, as quais passaram a importar para o país hábitos mais sofisticados, boa parte dos quais imitados pelas brasileiras de famílias que aqui haviam enriquecido. Ainda que na época os sapatos pouco aparecessem, encobertos por longos vestidos, há representações do uso de chapins, pantufas e tamancos abertos atrás, tipo chinelas, de gosto oriental. Com a transferência da Corte para o Brasil, em 1808, fugindo da dominação de Napoleão em terras europeias, o Brasil teve que, de forma um tanto forçada, atualizar-se sobre o que acontecia na moda e nos costumes além-mar. Até porque o choque cultural foi grande para todas aquelas figuras da nobreza que aportaram em um Rio de Janeiro então com pouco mais de 50 mil habitantes, em sua grande maioria escravos, transitando por ruas sujas, desprovidas de calçamento, ladeadas por casas insalubres e, obviamente, sem nenhuma loja onde adquirir as mais modernas peças da moda. A brusca transformação da colônia em metrópole resultou em um aporte de recursos em terras brasileiras sem precedentes. A paisagem se transformou rapidamente, com a construção de prédios públicos, calçamento, realização de bailes e festas, importação de roupas e produtos de beleza – e calçados, obviamente –, com predominância da influência inglesa, mas cada vez mais tendo Paris como referência. O problema era suportar a ansiedade até que chegassem ao país as novidades – em especial calçados – vindas da Europa. Foi assim que rapidamente se desenvolveu no Rio de Janeiro a atividade da sapataria, a cargo de artesãos livres ou escravos. Debret, o artista que visitou o Brasil juntamente com a Missão Francesa, não deixou de registrar seu espanto com o número de sapatarias no Rio de Janeiro, em 1816. Um tanto curiosa era a explicação para tal, em uma cidade com cinco sextos da população em condição de escravidão:

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“(...) as senhoras brasileiras [usavam] exclusivamente sapatos de seda para andar com qualquer tempo por cima de calçadas de pedras, que esgarçam em poucos instantes o tecido delicado do calçado (...) não podiam sair mais de dois dias seguidos sem renová-los, principalmente para fazer visitas.” Debret aponta ainda que as madames mais ricas faziam questão de calçar também as escravas que as acompanhavam. Mesmo as mulheres menos abastadas gastavam em sapatos com as filhas e uma ou duas escravas que possuíam. E acrescenta Debret: “A mulata sustentada por um branco faz questão também de se calçar com sapatos novos, cada vez que sai, e o mesmo ocorre com sua negra e seus filhos. A mulher do pequeno comerciante priva-se de quase todo o necessário para sair com sapato novo, e a jovem negra livre arruína seu amante para satisfazer essa despesa por demais renovada.” E não demorou para que os aprendizes negros e mulatos formados por mestres alemães e franceses, que trabalhavam no Rio de Janeiro abastecidos por couros vindos da Europa, rapidamente se tornassem rivais de seus patrões, abrindo suas próprias lojas, onde ofereciam toda espécie de calçados, perfeitamente confeccionados.

coloniais PRIMÓRDIOS

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O PAPEL DOS IMIGRANTES A chegada dos primeiros imigrantes alemães ao Brasil, em 1824, é um momento emblemático na história do calçado no Brasil. Entre os grupos heterogêneos que se estabeleceram no Vale do Rio dos Sinos, mais exatamente em São Leopoldo, havia um sem número de profissionais com habilidades artesanais, curtidores de pele e sapateiros que dominavam com maestria as técnicas europeias de produção de calçados. A capacidade de adaptação destes imigrantes a um cenário completamente distinto do que imaginavam encontrar levou a que se dedicassem ainda mais às suas tarefas, aproveitando-se da abundância do couro para desenvolver técnicas de artesanato. Meio século depois, em 1875, começam a chegar os imigrantes italianos, que se estabeleceram em bom número na Serra gaúcha, entre eles alguns sapateiros. Contingentes não menos numerosos optaram por permanecer em São Paulo, muitos dos quais recrutados para as lavouras de café. Entre eles se destacariam posteriormente artesãos que ajudariam a desenvolver em território paulista a produção de calçados, ao lado de ingleses e escoceses. Eduardo Motta reproduz em seu livro trecho da obra de Maria do Carmo Teixeira, A Cidade e a Moda, em que a autora explica a influência da moda europeia entre os brasileiros no século XIX e a influência que teria daí por diante: “A adoção da moda europeia pela ‘boa sociedade’ constituía-se no que Herbert Spencer qualificou de ‘imitação respeitosa’, pela qual se busca alcançar a simpatia de quem se imita. Como as modas vigentes são sempre as modas da classe dominante, seguir a moda representava para a ‘boa sociedade’, em primeiro lugar, um fator de integração, permitia aos membros dessa camada igualar-se à aristocracia portuguesa e à burguesia europeia. Mas seguir as modas europeias relacionava-se também a uma necessidade de novas distinções. Segundo Frédéric Mauro, o gosto pelas roupas europeias ‘estava ligado à vontade de diferenciar-se do escravo negro e até do índio, de guardar o selo da Europa, da civilização. Era a marca de um complexo de inferioridade inconfesso e inconfessável em relação ao europeu.”


29 Chegada da Corte: novos hábitos SEGUIR OU IMITAR AS TENDÊNCIAS EUROPEIAS ERA UMA FORMA DE SE IGUALAR À ARISTOCRACIA



UM SÉCULO

repleto


O

SAPATOS QUE DEIXAVAM O PEITO DO PÉ À MOSTRA SURGIRAM NA PRIMEIRA

repleto UM SÉCULO

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METADE DO SÉCULO XX

alvorecer do século XX tem a marca de imensas mudanças no Brasil e no mundo, no que se refere à moda, em geral, e ao calçado, em particular. E por uma razão muito simples: o comprimento dos vestidos diminuiu, deixando à mostra os sapatos, que a partir de então, ganhariam visibilidade, para nunca mais perdê-la. Com a ampliação do acesso à energia elétrica, a ampliação das ferrovias e a chegada das máquinas a vapor, a vida se tornava mais agitada, e andar bem calçado tornava-se sinônimo de status. Vem desse tempo o hábito das mães avaliarem os futuros genros observando o que calçavam. À medida que a comunicação se tornava mais ágil – ou menos lenta –, diminuía o hiato entre o lançamento das novidades nos mercados europeus e sua chegada aos trópicos, onde imperava ainda à época a produção quase que integralmente artesanal. Ainda assim, como refere Eduardo Motta, “o calçado para todas as horas era a botinha ou borzeguim de estilo vitoriano e salto encorpado. (...) tinham fechamento lateral, com fileira de botões (...) ou versões de amarrar, muito populares.” Em 1888, havia surgido, no Vale do Rio dos Sinos, a primeira fábrica de calçados do Brasil, formada pelo filho de imigrantes Pedro Adams Filho, que também possuía um curtume e uma fábrica de arreios. O processo de industrialização em terras gaúchas, como de resto em todo o país, foi lento e gradual. A substituição da manufatura em algumas etapas exigiu a adaptação de rústicas máquinas de costura. Em 1904, a Clark do Brasil, instalada no país com lojas desde o século XIX, inaugurou sua própria fábrica em São Paulo, produzindo 20 mil pares por mês. Três anos depois surge a Alpargatas, também em São Paulo, para dar início à fabricação do chamado sapato espanhol, de tecido e solado de cordas, empreendimento que muitos anos depois entraria para a história do calçado brasileiro com o lançamento das sandálias Havaianas. Também de 1907 é o pioneirismo de Oscar Kunz,empreendedor gaúcho que inventou as formas, que permitiram passar a diferenciar o pé direito do pé esquerdo. Nos anos 1920, a barra dos vestidos sobe um tantinho mais, e ainda que as confecções apostem em tons retos, conferindo um certo ar infantil às mulheres, simultaneamente passam a deixar à mostra os tornozelos. “Sapatos abertos, com tiras na parte traseira ou presos ao tornozelo, deixavam nu o peito do pé e encantavam a brasileira, que passava a sair às ruas, praticar esportes, frequentar bailes e teatros, cuidar do corpo e da saúde, atividades que exigiam calçados adequados”, aponta Eduardo Motta. Os saltos não ultrapassavam 3 centímetros de altura, e é desta época a implantação no


BORZEGUINS (AO LADO), POPULARES NO INÍCIO DO SÉCULO XX, AOS POUCOS DIVIDEM ESPAÇO COM NOVIDADES, COMO AS ALPARGATAS (NO ALTO), CONHECIDAS COMO SAPATO ESPANHOL


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colar a sola (em lugar de pregar): uma revolução


Brasil da tecnologia que permitia colar (e não mais pregar) a sola no corpo do calçado. E tal avanço permitiu que, em seguida, o tênis se popularizasse. Já nos anos 30 e 40, com o advento do estilo Art Déco em todo o mundo, os sapatos ganham saltos grossos e plataformas, e nestas o estilo de Carmem Miranda influenciaria gerações (confira mais detalhes no capítulo específico sobre os calçados e sua relação com a cultura). As estrelas do rádio brasileiro, que se manteriam no auge até o advento da televisão, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, transformavam hábitos via publicidade crescente e mais sofisticada em jornais e revistas, e os modelos com solas em gomos ou camadas, imitando as criações do italiano Ferragamo, eram a febre do momento. Os escarpins, nos anos 40, tinham bico redondo e curto. Ao mesmo tempo, ficava explícito o pequeno porte da fabricação nacional, focada na manufatura.

PÓS-GUERRA O otimismo que tomou conta do planeta ao final da Segunda Guerra Mundial também chegou ao mundo da moda. Ao mesmo tempo em que a elegância da silhueta feminina ganha espaço, em especial com a influência de Christian Dior, também é a era do rock’n’roll e da ascensão definitiva do tênis. Simultaneamente ao insight do francês Roger Vivier, que revoluciona os calçados ao embutir um pino de metal no corpo de plástico do salto agulha, libertando-o para alcançar alturas até então inimagináveis, sem se quebrar, o mocassim de origem americana ganharia o coração e os pés das brasileiras. Mais ainda das cariocas, embaladas pela Bossa Nova, que entraria os anos 1960 dividindo as atenções com outro ícone da moda: a minissaia. É dos anos 1960 outra inovação em terras rio-grandenses: a reativadora de adesivos desenvolvida por Harry Schmidt, que permitiu a adaptação da indústria à colagem de materiais sintéticos, então em alta.

SOLAS EM GOMOS OU CAMADAS IMITAVAM ESTILO DE FERRAGAMO E INFLUENCIAVAM GERAÇÕES

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Data de 1963 a realização da primeira Fenac, feira nacional de calçados sediada em Novo Hamburgo, que a partir de então passaria a abastecer lojas de todo o país. Se bem que a primeira Festa do Calçado do Rio Grande do Sul foi realizada dois anos antes, em 1961, em Campo Bom, tradicionalmente terra de muitas indústrias da cadeia produtiva do calçado e que desde 1956 realizava um animado Baile do Calçado. Nome de destaque na época foi o do estilista Rui Chaves: “Mesmo o mais simples de seus modelos é de sofisticação e delicadeza espantosos”, afirma Eduardo Motta. E é também dos anos 1960 um modelo que faria par com as minissaias: as botas de cano curto, que se popularizaram em especial na figura da cantora Wanderléa, uma das expoentes da Jovem Guarda e apresentadora do programa de TV de mesmo nome que ficou no ar de 1965 a 1969. O espírito libertário da época, marcada por transformações importantes, como a inauguração de Brasília, em 1960, e o golpe militar, em 1964, seguida de movimentos como o tropicalismo e a revolta dos estudantes contra a ditadura, dá personalidade à moda no Brasil, em que se destacam nomes de costureiros como Dener e Clodovil, mais Leila Diniz e Caetano Veloso como símbolos de novos valores na cena brasileira. Não por acaso o Conga rompe a restrição que até então havia ao uso de tênis e invade as escolas, enquanto em paralelo surgem as Havaianas, um dos maiores fenômenos do calçado brasileiro e mundial, cuja patente foi registrada em meados dos anos 1960.

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UM SÉCULO

repleto

A REVOLUÇÃO Foi graças ao espírito empreendedor de Claudio Strassburger que o Rio Grande do Sul deu seus primeiros passos para se tornar um dos maiores exportadores de calçados do mundo. Em 1968, uma carreata com sete caminhões do Expresso Rio Grande-São Paulo foi saudada por foguetes e sirenes em seu trajeto de Campo Bom a Porto Alegre, passando por Novo Hamburgo. Na capital gaúcha, o comboio contornou a Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini. A estrela do momento eram as sandálias Franciscano, que tinham como destino a Inglaterra, onde a British Shoe Corporation mantinha 2 mil lojas, além de outras 500 mundo afora. Em seguida, Canadá, Estados Unidos e a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) entraram na rota exportadora. O empresário Maurício Schmidt relembra das dificuldades enfrentadas naquele tempo: “Estávamos atrasados dois anos na moda e tivemos que em um pulo chegar a Nova York. A produção aqui era feita de maneira simples, utilizava-se material vagabundo. A plataforma, por exemplo, ninguém fazia, e fomos direto para ela utilizando técnicas manuais e cortiça, que era caríssima e difícil de ser manipulada. Não sabíamos fazer uma fatura, não sabíamos fazer uma etiqueta, nada.” Com a mudança na escala – os pedidos do exterior chegavam a 100 mil e às vezes a 150 mil pares de um mesmo modelo – , o processo de produção artesanal de um grande número de empresas, em geral de pequeno porte, que trabalhavam quase sem tecnologia, alterou-se radicalmente. “Isso permitiu à indústria se aparelhar, adquirir técnica avançada e acumular capital, equiparando-se aos melhores centros de produção do mundo”, ressalta Eduardo Motta. Na contramão das empresas alheias ao que de mais importante acontecia na moda e nas tendências, totalmente absorvidas pela produção de modelos importados para venda


Anos 1960 têm a marca da irreverência ren ipsis

RUI CHAVES MARCOU ÉPOCA ENTRE OS ESTILISTAS DA ÉPOCA, COM SAPATOS SIMPLES E SOFISTICADOS


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A partir de 1990, mercado se transforma radicalmente: aposta Ê na diversificação


no exterior, Eduardo Motta destaca o importante papel desempenhado por José Maria Carrasco, espanhol que chegou ao Vale dos Sinos em 1954, no que se refere à valorização da técnica e da criatividade: “Profissional dotado de uma visão completa do sistema produtivo e com domínio técnico perfeito, aplicou e transmitiu seu conhecimento por longos anos, tornando-se referência isolada, para o pequeno e para o grande fabricante brasileiro (...) foi um dos primeiros a patentear suas ideias, reivindicando inclusive a autoria do primeiro sapato injetado, em 1957”. Se nos anos 1970 surgiu um dos ícones do calçado brasileiro – as sandálias em full plastic Melissa, fabricadas pela Grendene –, foi só nos anos 1980 que se iniciou uma prática que permanece até hoje: as viagens de pesquisa ao exterior, em busca de tendências. Florença e Milão, em primeiro lugar, e depois Paris e Nova York, além de Londres e Tóquio, entraram definitivamente na rota de industriais e estilistas. “Ainda que em grande parte sustentado pela cópia, um surto do calçado de estilo tomou conta do país”, afirma Eduardo Motta. E cita a Czarina como perfil do trabalho realizado na década, em coleções que exploravam variações precisas do escarpin clássico, dividindo espaço com outras marcas de pequeno porte, com fabricação reduzida, mas alcançando grande repercussão, como Mênfis, Carraro, Max & Co, Francesinha e Para Raio. Novidade importante dos anos 1980 é a adoção da ferramenta CAD (sigla para Computer Aider Design), sistema que passou a ser usado como ferramenta na criação e na escalação de novos modelos, até então executados manualmente. Qualidade e agilidade na produção foram as marcas deste avanço tecnológico.

O CHOQUE E A REINVENÇÃO A década de 1990 foi traumática – para o bem e para o mal – na indústria de calçados brasileira. Com a equiparação da moeda nacional ao dólar e o surgimento de novos centros de produção, uma crise sem precedentes se abateu sobre o setor. A única saída: voltar-se para o mercado interno, agregando conceitos de moda, apostando na diversificação. Grandes exportadoras tiveram de se adaptar, passando a fazer concorrência às empresas de pequeno e médio porte, que por sua vez se viram diante de uma competição com adversários mais bem equipados e agora jogando o mesmo jogo. Esteiras concebidas para produção em larga escala passaram a produzir simultaneamente grandes e pequenos volumes, em sintonia com a moda e seus ciclos curtos de renovação de coleções e modelagem diversificada. Estilo passou a ser uma palavra-chave no processo de busca pela sobrevivência em um mercado em ebulição, em que o calçado autoral passava a ocupar seu espaço. O parque industrial do Vale do Sinos era mais uma vez desafiado a mostrar sua excelência e capacidade de adaptação, e não decepcionou, passando a dominar as maiores faixas de consumo nacional. Ressalta Eduardo Motta: “Em meio a este novo cenário, ponto para o Studio Arezzo, que sempre andou na contramão da cópia no design internacional, incrementando ainda mais sua aposta no talento de criadores nacionais, tanto em exposições como em desfiles. Walter Rodrigues, Alexandre Herchcovitch, Lino Villaventura, Reinaldo Lourenço, Ronaldo Fraga, Gloria Coelho, Fause Haten e Jotta Cyballena desenharam para a Arezzo.”

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mundo

O MAIOR CLUSTER DO


O MAIOR CLUSTER DO

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O

Brasil produziu 864 milhões de pares de sapatos em 2012, movimentando R$ 23,9 bilhões, alta de 9,6%, em relação a 2011, segundo o Relatório Setorial da Indústria de Calçados do Brasil, elaborado pelo Instituto de Estudos e Marketing Industrial (IEMI). Deste total, exportamos 113 milhões de pares, gerando US$ 1,1 bilhão com as vendas para outros países (em torno de 130 deles compraram calçados do Brasil). O principal importador de calçados brasileiros é os Estados Unidos, seguido por Argentina, França e Bolívia. O parque calçadista brasileiro é formado por cerca de 8 mil empresas e emprega diretamente 331 mil pessoas. O PIB do setor de couro e calçados brasileiro deverá crescer 2,61% em virtude da realização da Copa do Mundo de 2014. O impacto estimado é de R$ 242,7 milhões. Esse é um dos resultados das análises publicadas na série Brasil Sustentável, resultado de parceria da Ernst & Young com a Fundação Getulio Vargas (FGV), que traz como tema “Impactos Socioeconômicos da Copa do Mundo 2014”. O Brasil já é o terceiro maior produtor de sapatos do mundo, perdendo apenas para China, que produz cerca de 13 bilhões de pares por ano, e Índia, com aproximadamente 1,2 bilhão de pares, mas que exporta muito pouco. Apesar disso, as exportações brasileiras vêm caindo ano a ano. “A diferença na quantidade produzida é, sim, muito grande, mas o produto brasileiro ganha dos asiáticos não só em qualidade, como também em design”, explica Abdala Jamil Abdala, diretor da Associação Brasileira de Calçados (Abicalçados) e presidente da Francal (Feira Internacional da Moda em Calçados e Acessórios). Kirsten Deutemolser, diretora da GDS, feira alemã que é uma das mais importantes no cenário internacional, destaca a mudança no perfil do produto brasileiro: “A imagem dos expositores brasileiros tem melhorado muito desde o início. Nas últimas décadas, a maioria das fábricas mudou. Saiu da produção em massa para venda ao mercado norte-americano para uma estratégia global de venda para nichos de mercado. Hoje em dia, há várias empresas brasileiras que têm um desempenho tão bom quanto marcas italianas e espanholas consolidadas no mercado internacional, considerando as suas coleções, qualidade e imagem.” O Brasil trabalhou muito para criar sua independência na área produtiva, e hoje é o único país a apresentar autossuficiência em todos os processos da produção de calçados. Este processo se realizou porque o país desenvolveu: o maior conglomerado calçadista do mundo; rebanhos bovinos e curtumes para sua produção; indústrias responsáveis pela fabricação de qualquer componente utilizado na produção de calçados; instituições de ensino para a formação de recursos humanos; centros de pesquisas para desenvolvimento de novos projetos e tecnologias. Uma das iniciativas que vem contribuindo para mudar a imagem da produção brasileira no exterior é o Programa Brazilian Footwear. Desde o ano 2000, graças a uma parceria com


PRODUÇÃO DE CALÇADOS NO BRASIL POR GÊNERO % EM PARES (2011)

infantil bebê

20,2%

feminino

masculino

56,0%

21,0%

unisex Fonte: Brazilian Footwear

2,9%


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PRODUÇÃO DE CALÇADOS NO BRASIL TOTAL POR TIPO (MILHÕES DE PARES)

893,9 65,6 813,6 58,6 80,8

88,2

819,1

252,7

66,5 81,1

238,2

237,5

436,0

487,4

433,9

2009

2010

2011

Fonte: Brazilian Footwear

calçados de outro materiais calçados esportivos calçados de couro calçados de plástico e borracha


crescimento da classe C aqueceu mercado calçadista a Apex Brasil, o programa busca ampliar as exportações do calçado brasileiro, com foco em desenvolvimento de design, qualidade, valor agregado e marca própria. O projeto abrange a participação de empresas em eventos internacionais, como feiras e show-rooms, e realiza missões de prospecção em busca de novos mercados. Também convida importadores e formadores de opinião para conhecerem o Brasil. O Nordeste concentra a maior parte da produção nacional, pois lá estão reunidos os fabricantes de sandálias e chinelos, que estão entre os produtos mais vendidos. Entretanto, engana-se quem imagina que a região produza apenas produtos de baixa qualidade. “Tanto na Paraíba quanto no Ceará existem inúmeras empresas que há muito tempo deixaram de ser rudimentares”, afirma a jornalista Jussara Vieira, coordenadora e mediadora do Fórum de Lojistas e Industriais do Setor e apresentadora do Programa Valores, informativo semanal da indústria exibido pela Novatv, da Net Franca. “Os desavisados ficarão pasmos ao constatarem que a Paraíba e o Ceará possuem um parque fabril com maquinários de última geração e que adotaram avançadas tecnologias de processos produtivos. E nem poderia ser diferente, já que fabricam todo tipo de calçado. Ganharam fama com as sandálias injetadas, mas hoje conseguem, com maestria, produzir ao mesmo tempo sapatos femininos, masculinos, infantis e esportivos. Muitas fábricas, aliás, dispensaram o sintético e apresentam coleções belíssimas em couro, com design e qualidade compatível com as grandes marcas”, garante Jussara. A indústria calçadista foi um entre tantos segmentos beneficiados com crescimento da classe C no país, que aqueceu o mercado interno em 2012. De outra parte, o setor segue enfrentando a dura (e por vezes desleal) concorrência do mercado asiático, em especial da China. Depois de conseguir que o governo taxasse os produtos chineses, via práticas antidumping, o segmento agora lida com a chamada circunvenção, prática desleal de comércio em que países como Vietnã e Malásia, por exemplo, dão “carona” para que a produção chinesa chegue ao mercado brasileiro. Bem diferentes são as importações de calçados de países como a Itália, por exemplo, que em razão do alto valor agregado, podem inclusive contribuir para a manutenção da competitividade do produto brasileiro, via intercâmbio de know-how.

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OS POLOS MAIS IMPORTANTES RIO GRANDE DO SUL – possui um dos maiores clusters de calçados do mundo. Destacam-se os municípios de Novo Hamburgo, Sapiranga, Campo Bom, Parobé, Igrejinha, Nova Hartz, Três Coroas e Dois Irmãos. No Vale do Rio dos Sinos, concentram-se as principais instituições de ensino técnico e os centros de pesquisa e assistência tecnológica do país. Nesta região, concentram-se grandes indústrias calçadistas que se caracterizam, principalmente, pela fabricação de calçados femininos. SANTA CATARINA – é especializado na confecção de calçados femininos e seu principal polo é o município de São João Batista.

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SÃO PAULO – é um grande polo calçadista do Brasil, sendo reconhecido mundialmente pela qualidade dos calçados masculinos de couro produzidos na cidade de Franca. O município de Birigui lidera a produção brasileira de calçados infantis. Outro importante polo produtivo é Jaú, especializado em calçados femininos de couro. É na cidade de São Paulo, centro econômico do país, que ocorrem as duas principais feiras do Brasil em nível internacional: Couromoda e Francal. MINAS GERAIS – tem como principal polo produtor a cidade de Nova Serrana, cuja indústria é especializada na produção de calçados esportivos. Seu segundo polo produtor, Belo Horizonte, é reconhecido pela alta qualidade dos calçados femininos. A indústria mineira de calçados aposta na diversificação de produtos e estilos, fazendo do design um diferencial importante na competitividade do mercado. BAHIA – o estado se consolidou nos últimos anos como polo produtor de calçados, sendo um dos grandes exportadores do país. Alguns dos principais municípios produtores são Itapetinga e Jequié. PARAÍBA – é um importante polo exportador, com grande parte da sua produção voltada para o mercado internacional. Alguns municípios de destaque são Campina Grande, Santa Rita, Bayeux e João Pessoa. CEARÁ – é o segundo maior exportador de calçados do Brasil, e também tem importante papel econômico na geração de empregos. Sobral, Horizonte e Juazeiro do Norte são os principais municípios produtores. Um dos principais fatores competitivos do estado é a posição geográfica dos portos de Pecém e de Fortaleza/Mucuripe, pela proximidade com os mercados da América do Norte e da Europa.

Fonte: site Aprendendo a Exportar (www.aprendendoaexportar.gov.br)


MAPA DO CALÇADO NO BRASIL (2011) O BRASIL ESTÁ ORGANIZADO EM POLOS PRODUTORES ESPALHADOS EM DIVERSOS ESTADOS. O COMPLEXO INDUSTRIAL DE CALÇADOS NO BRASIL ABRANGE TODA A CADEIA PRODUTIVA COM MÃO-DE-OBRA ESPECIALIZADA: COUROS, COMPONENTES, MÁQUINAS E CALÇADOS

SUL

NORDESTE

produção em real produção em pares Fonte: Brazilian Footwear

SUDESTE

CENTRO-OESTE

exportação em dólar exportação em pares

NORTE

empresas emprego

0,1 %

0,2 %

0,02 %

0,02 %

0,1 %

0,1 %

1,2 %

2,8 %

0,4 %

0,5 % 0,5 %

PPRINCIPAIS RIN ESTADOS PRODUTORES: RIO GRANDE DO SUL, SANTA CATARINA, SÃO PAULO, MINAS GERAIS, BAHIA PARAÍBA, CEARÁ

1,3 %

25,9 %

48,4 % 6,7 %

29,6 %

23,6 %

11,6 %

7,7 %

35,8 %

41,7 %

42,8 %

35,0 %

37,1 %

21,5 %

40,9 %

46,1 %

33,0 %

34,0 %

71,3%

% DE PARTICIPAÇÃO SOBRE O TOTAL


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SUSTENTABILIDADE Ser o maior cluster do mundo também leva as empresas envolvidas a investir no meio ambiente e na saúde dos seus colaboradores. Muitas possuem, além do certificado ISO 9000, a importante ISO 14000, que dita as regras ambientais das empresas. As indústrias têm ainda forte atuação social junto às comunidades onde estão inseridas, apoiando ações que visam à constante melhoria da qualidade de vida de seus habitantes. O setor de curtumes brasileiro, com mais de 500 unidades, é considerado um dos menos poluentes do mundo (leia detalhes a seguir).O de componentes busca continuamente a eliminação dos resíduos sólidos, fornecendos às indústrias de calçados artigos já cortados ou em fase de finalização, e investe em pesquisas avançadas sobre produção e adesivos à base de água, eliminando a inalação de gases agressivos à saúde. A indústria de metais mantém rigoroso controle nos resíduos líquidos, tratando-os dentro das próprias empresas, enquanto o setor de máquinas e equipamentos desenvolveu sistemas de tecnologias limpas para evitar o desperdício na utilização de ferro, aço e alumínio. A importância da aplicação da sustentabilidade na gestão de resíduos na produção de sapatos foi a tônica do 1º Seminário de Resíduos Sólidos da Indústria Calçadista, que aconteceu no início de outubro de 2013, na Universidade Feevale, em Novo Hamburgo/ RS. O evento, promovido pela Feevale e Secretaria da Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico do Rio Grande do Sul (SCIT-RS), teve o apoio da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) e Associação Brasileira de Empresas de Componentes para Couro, Calçados e Artefatos (Assintecal). E como a sustentabilidade não pode ser apenas uma palavra “em moda”, mas vista como parte do processo global das cadeias produtivas, há mais de dois anos a Abicalçados e a Assintecal, em parceria com o Laboratório de Sustentabilidade (Lassu) da Universidade de São Paulo (USP) e do Massachusetts Institute of Technology (MIT), vêm trabalhando no Programa Origem Sustentável para o setor da moda. A certificação segue a escala Branco, Bronze, Prata, Ouro e Diamante e atesta que as empresas brasileiras já incorporaram a sustentabilidade em seus processos. O lançamento oficial do programa aconteceu em janeiro de 2013, quando as primeiras empresas dos setores de calçados e componentes foram certificadas por estarem alinhadas aos quatro pilares estabelecidos: ambiental, econômico, social e cultural.

produção sustentável não é apenas uma expressão em moda

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Em junho, a iniciativa foi contemplada com o Prêmio von Martius de Sustentabilidade 2013. O prêmio, criado em 2000 pelo Departamento de Meio Ambiente, Energias Renováveis e Eficiência Energética da Câmara de Comércio Brasil-Alemanha, contempla trabalhos de empresas, organizações não governamentais, indivíduos, governos e instituições nacionais que promovam o desenvolvimento econômico, social e cultural alinhado ao conceito de desenvolvimento sustentável. A Abicalçados e a Assintecal pretendem que as empresas da cadeia produtiva da moda tenham um maior engajamento em questões de sustentabilidade, o que resultará na ampliação das oportunidades no mercado de exportação para países que possuem regulamentação orientada à aquisição de produtos sustentáveis. Outro benefício do selo é a garantia de alinhamento da indústria de componentes e de calçados brasileira com iniciativas internacionais de sustentabilidade como SAC, Biocalce, DOW Jones Sustainability Index, ISE-Bovespa, entre outras. “Estamos buscando o compromisso das empresas em gerenciar e melhorar seus resultados em um processo global. O conceito de calçado sustentável, com certeza, abrirá mais o mercado internacional e dará mais competitividade. A Europa, por exemplo, não aceita mais o ingresso de determinados produtos”, cita o presidente da Assintecal, Marcelo Nicolau. Para o presidente da Abicalçados, Milton Cardoso, a iniciativa demonstra a preocupação da indústria em estar alinhada com os principais temas mundiais, não apenas como coadjuvante, mas como agente ativa. “A Abicalçados entende que o selo é uma iniciativa importante para a indústria calçadista, pois coloca no centro da discussão o seu futuro e sua relação com a sociedade em que vivemos.”

OS CURTUMES BRASILEIROS Desde o início da humanidade se tem notícias da arte de curtir peles e couros. Tal atividade começou quando o homem vivia nas cavernas e mastigava as peles dos animais abatidos para se alimentar. Essa prática humana amolecia as peles e permitia que elas fossem usadas para proteção do corpo. Ainda nessa época, notou-se que as peles jogadas acima das folhas e cascas secas demoravam mais para se deteriorar: assim se descobria o processo de curtimento vegetal do couro. Também pela observação, foi possível perceber que as peles de animais que ficavam em solos próximos aos rios perdiam os pelos, ficavam mais flexíveis e tinham seu processo de apodrecimento retardado, o que depois foi chamado de método de curtimento mineral. Atualmente, o curtimento do couro transitou dos métodos artesanais para a produção em escala industrial. No Brasil, não foi diferente. E, mais do que isso, o país está em 4º lugar na lista dos principais produtores de couro bovino, segundo relatório da Agência Brasileira do Desenvolvimento Industrial (ABDI). Em território verde-amarelo, a indústria do couro se concentra nas regiões Sul e Sudeste, principalmente nos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná e Minas Gerais.


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A região Sul do Brasil tem uma produção já tradicional. Desde o século XIX o Rio Grande do Sul é um grande provedor de couro e carne para todo o país, sendo que na década de 1960 o Estado já havia se tornado um importante exportador de couro para os EUA. Paulo José Fuga, proprietário do Grupo Fuga Couros (com matriz no RS e filiais espalhadas por várias regiões do país) dá o testemunho histórico dos empreendimentos coureiros vanguardistas na região: “Para se ter uma ideia de como começamos, em 1947, meu avô, junto com outros sócios, montou o curtume em Marau. Naquela época, eles produziam cerca de 20 couros por dia, com o auxílio de sete funcionários. Em 1955, o curtume realizou sua primeira exportação para os EUA. Hoje, graças à tecnologia e maquinário adequados, no curtume em Marau é possível produzir 2 mil couros por dia, com o apoio de 300 colaboradores.” Quando o assunto é matéria-prima, os curtumes brasileiros têm acesso ao couro de duas formas: couro verde (ou in natura) e couro salgado. A primeira, mais comum, é quando o couro é comprado diretamente dos frigoríficos após o abate. A mercadoria deve ser transportada para os curtumes em seguida, para evitar que o couro entre em putrefação. Já o couro salgado, hoje comercializado de forma reduzida, é o couro verde protegido com sal grosso, técnica que permite adiar o início do estado de deterioração da peça. Assim que a matéria-prima chega no curtume, logo é encaminhada para a produção. Até que o couro se torne um produto utilitário, como calçados, roupas e acessórios, por exemplo, ele passa por uma série de processos. Uma das características da indústria do couro é a natureza heterogênea de seu produto final, pois os curtumes podem produzir e fornecer o couro em diferentes estágios de acabamento. São eles: Couro Salgado: produto mais simples, de menor valor agregado, que resulta do processo inicial de salgamento do couro para permitir sua conservação, transporte e armazenamento. Couro Wet Blue: tem sua denominação em função de seu tom azulado e molhado, resultado de um primeiro banho de cromo, depois de ser despelado e passar pela remoção de graxas e gorduras.

tecnologia e maquinário ampliaram capacidade produtiva

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durabilidade, adaptabilidade e classe: diferenciais do couro Couro Semiacabado: conhecido também como couro crust, é fruto do processo de secagem do couro, que o torna um produto semi-acabado. Couro Acabado (etapa final): produto de superior valor agregado, que deriva do último estágio da produção de couro e incorpora as características mais específicas exigidas pelo comprador, que pode utilizá-lo diretamente na produção dos mais diversos produtos finais. Todos esses estágios de acabamento do couro ainda são objeto de comercialização, tanto no mercado brasileiro como no mercado internacional. Os três primeiros estágios de acabamento são vendidos para outros curtumes, dentro e fora do país. Eles compram para terminar o processo. Já na etapa final, as peças são ofertadas para players de outros segmentos de mercado, como fábricas de sapatos, bolsas, confecções, decoração, estofamentos, automóveis etc. Ao ingressarmos no setor de produtos finais, mesmo sendo uma atividade tradicional e consolidada, alguns fabricantes de couro apontam a concorrência com outros substitutos similares – materiais sintéticos – como entrave para o desenvolvimento e a continuidade do ofício. No universo dos sapatos, por exemplo, a substituição do couro por outros materiais tem ocorrido tanto em partes do produto como em sua totalidade, como nos calçados feitos de material plástico injetado. Entretanto, os mais otimistas afirmam que não foram ainda desenvolvidos materiais capazes de substituir perfeitamente o couro, incorporando suas principais características, como durabilidade, classe e adaptabilidade. Independente da concorrência, é necessário que o couro, enquanto matéria-prima para a indústria de utilitários, esteja em constante evolução, acompanhando as tendências de estampas, cores e efeitos que o mercado procura. O aprimoramento da qualidade e das características naturais do couro, associado ao esforço de diferenciação do produto, pode ser um caminho para ganhar mercados consumidores, com maior valor agregado. Inclusive, para obter mais consistência para conquistar o mercado externo.


ENTIDADES – QUEM É QUEM A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DE CALÇADOS (ABICALÇADOS) TEM COMO OBJETIVO REPRESENTAR OS INTERESSES DAS INDÚSTRIAS DE CALÇADOS, ATUANDO NA DEFESA DAS POLÍTICAS DO SETOR, ACOMPANHANDO E ENVOLVENDO-SE DIRETAMENTE EM QUESTÕES NACIONAIS E INTERNACIONAIS. FUNDADA EM ABRIL DE 1983. A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE COMPONENTES PARA COURO, CALÇADOS E ARTEFATOS (ASSINTECAL) É UMA ENTIDADE SEM FINS LUCRATIVOS QUE ESTÁ ESTRUTURADA E ORGANIZADA PARA ATUAR COMO AGENTE DE MUDANÇAS NO SETOR DE COMPONENTES PARA CALÇADOS. FUNDADA EM JUNHO DE 1983. O CENTRO DAS INDÚSTRIAS DE CURTUMES DO BRASIL (CICB) É A ENTIDADE QUE REPRESENTA OS INTERESSES DA INDÚSTRIA DE COUROS BRASILEIRA. FOI FUNDADO EM 1957. A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS INDÚSTRIAS DE MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS PARA COUROS, CALÇADOS E AFINS (ABRAMEQ) SURGIU EM 1992 PARA APOIAR O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E DE PROMOÇÃO COMERCIAL DAS EMPRESAS DO SETOR, CONSOLIDANDO SUA PRESENÇA NO MERCADO INTERNO E CONQUISTANDO NO MERCADO EXTERNO CONCEITO DE FABRICANTE DE PRODUTOS DE QUALIDADE GARANTIDA. A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LOJISTAS DE ARTEFATOS E CALÇADOS (ABLAC) É UMA INSTITUIÇÃO QUE TEM POR OBJETIVO SUSTENTAR E DEFENDER OS INTERESSES E AS ASPIRAÇÕES DE SEUS ASSOCIADOS, PROMOVER E INCENTIVAR O USO E CONSUMO DOS PRODUTOS RELACIONADOS COM O SEU MERCADO DE ATUAÇÃO E BUSCAR O APRIMORAMENTO E A EVOLUÇÃO PROFISSIONAL DO VAREJO CALÇADISTA BRASILEIRO. A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DA INDÚSTRIA DE ARTEFATOS DE COURO E ARTIGOS DE VIAGEM (ABIACAV) BUSCA REPRESENTAR E FORTALECER AS INDÚSTRIAS DE ARTEFATOS DE COURO, ARTIGOS DE VIAGEM E SIMILARES, DESENVOLVENDO E APRIMORANDO O SETOR TÉCNICO E DE MATERIAIS, INTEGRANDO EMPRESAS MANUFATUREIRAS DE TODOS OS PORTES, GERANDO ASSIM, UM CONTINGENTE DE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS, COM ALTA QUALIDADE PARA ATENDER OS MERCADOS NACIONAL E INTERNACIONAL.

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Entre diversas questões polêmicas que a atividade de exploração do couro suscita, principalmente no que diz respeito ao abate de animais, há um ponto do processo de curtimento da matéria-prima que anda intrigando diversos atores sociais. Atualmente, a substância mais utilizada pelos curtumes para acelerar (e consequentemente baratear) o processo de curtimento do couro é o cromo. Segundo dados do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT), aproximadamente 90% do couro manufaturado utiliza cromo no curtimento. Porém, mesmo beneficiando o processo, este produto é o maior vilão desta indústria: é tóxico e necessita de tempo considerável de degradação. Além disso, segundo a Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), os curtumes ainda são responsáveis por grande parte da geração de resíduos nocivos ao meio ambiente, tais como gases, aparas, serragem, lodos da estação de tratamento de efluentes líquidos. Nesse cenário, é importante que a indústria brasileira de curtumes e os seus profissionais estejam constantemente empenhados, não só em melhorar a qualidade do seu produto-fim, mas também em reduzir o impacto ambiental resultante do processo de curtimento. No setor brasileiro de componentes, a tecnologia ambiental vem ganhando cada vez mais espaço e oferecendo novas possibilidades. Uma bela oportunidade para que sejam implementadas atitudes que impactem na melhoria da qualidade da matéria-prima, no processo de tratamento do couro, na substituição de produtos químicos e no uso integrado e eficiente da água. Enfim, alternativas não faltam para que se cuide do meio-ambiente, sem abdicar da qualidade que os utilitários de couro têm a oferecer.

SISCOMPETE Uma das mais importantes iniciativas visando à qualificação do setor coureiro-calçadista brasileiro tem um nome tão grande quanto sua relevância: Sistema de Inteligência Competitiva da Cadeia Produtiva do Couro, Calçados e Artefatos, ou Siscompete. O sistema está estruturado e representado pelas entidades representativas da cadeia produtiva do couro, calçados e artefatos. Trata-se de uma plataforma de integração, conhecimento e suporte à tomada de decisões das empresas dos elos produtivos de calçados, artefatos, couros, componentes, máquinas e, ainda, o comércio varejista do setor. Uma equipe de profissionais dedica-se à coleta, armazenagem, tratamento, análise e divulgação das informações mais valiosas para os empresários e organizações. O Sistema disponibiliza os seguintes conteúdos: Biblioteca, com artigos, indicações, relatórios de mercado e muito mais. Acesso rápido e fácil às notícias e novidades da cadeia produtiva. Calendário de eventos nacionais e internacionais. Cadastro de empresas e produtos. Estatísticas com dados de comércio exterior, emprego e indicadores. Fórum para discussão. Colunas escritas por especialistas do mercado.

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PASSO A PASSO Design, modelagem, corte, costura, montagem e acabamento. Essas são as seis etapas que compõem o processo de fabricação de calçados de couro, caracterizado pela aplicação intensiva de mão de obra, pela descontinuidade do fluxo de produção e pela difícil mecanização, por ser dividido em estágios bem distintos e com operações variadas. “Essa divisão do processo de produção em etapas é genérica, pois na prática, dependendo do porte da empresa, sua especialização e público-alvo, as etapas ganham detalhamentos que tornam a indústria bastante heterogênea no que diz respeito ao seu processo produtivo”, explica Victor Prochnik, consultor do Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa (Sebrae). “Essa heterogeneidade possibilita a participação no mercado de empresas de diferentes tamanhos, operando em segmentos específicos. Isso significa que essas empresas podem se especializar em apenas uma fração do processo, podendo inclusive se tornar fornecedoras de outras empresas do ramo”, acrescenta Prochnik.

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DESIGN: o fabricante formula o projeto do produto, que engloba desde o desenho do calçado até a discriminação dos insumos necessários para a sua realização. Pela sua importância no restante do processo, pode-se dizer que nesta fase há a maior agregação de valor. MODELAGEM: o modelo é desenvolvido pelo modelista e são definidos os materiais e a numeração. Normalmente, as micro e pequenas empresas contratam serviços de modelistas, que também são responsáveis pelo desenvolvimento e conceito do produto. Uma importante função desta etapa é adaptar o produto projetado para sua manufatura, levando em consideração as especificidades dos materiais, capacidades das máquinas e também os custos envolvidos. O processo tradicional utiliza o pantógrafo, que faz a escala e corta a cartolina para os modelos. Mais recentemente, com o auxílio da tecnologia, os equipamentos CAD (Computer Aided Design) bi e tridimensionais criam, a partir de informações digitalizadas, modelos que podem ser visualizados e alterados no monitor dos computadores. Esse processo é mais custoso, porém aumenta a precisão e agilidade. Devido ao alto custo para a aquisição do equipamento, a ferramenta de modelagem em CAD acaba ficando restrita a empresas com maior porte. As empresas de menor porte têm como saída o subsídio do Sebrae e/ou do sindicato patronal local, que por vezes adquire o equipamento e o disponibiliza para seus associados. CORTE: com o modelo já preparado, o couro é cortado para formar as diferentes partes do calçado, compondo o cabedal. O processo tradicional utiliza facas e balancins (máquina para cortar materiais diversos, como couros, termoplásticos, sintéticos, espumas etc), que, por terem regulagem fina, possibilitam maior precisão, o que garante grande economia. Já os processos com maior aplicação de tecnologia utilizam o corte a laser ou jato de água, em geral de forma integrada com a modelagem por CAD, resultando em um nível mínimo de desperdício da matéria-prima (esse processo é chamado de CAM – Computer Aided Manufacturing). Esta etapa pode também englobar o corte da sola, que pode ainda ocupar uma seção específica, ou até ser adquirida de outra empresa (terceirização).


design, modelagem e corte

59 s達o as primeiras etapas


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costura, montagem e acabamento: as etapas finais COSTURA: as diferentes partes do cabedal, cortadas na etapa anterior, são unidas nesta etapa. As várias peças são costuradas, dobradas, picotadas ou coladas. Outros adornos e enfeites podem ser também aplicados, de acordo com as determinações do design. Dependendo do tipo de projeto, nesta fase podem ser utilizadas máquinas de costura de controle numérico (projetos de produtos mais padronizados possibilitam maior grau de automação). Contudo, como a união das peças é um trabalho com grande detalhamento e cuja forma de junção e costura varia muito de um produto para o outro, a automação deste processo é difícil e custosa. Muitas vezes essa etapa é feita parcialmente ou totalmente por trabalhadores subcontratados (são utilizadas estruturas terceirizadas, chamadas de ateliês ou de bancas de pesponto). MONTAGEM: o cabedal é unido ao solado. Essa tarefa pode ser feita por meio de uma nova costura, por colagem ou por prensagem. Depois de fixado o solado, são colocados o salto, a biqueira e a palmilha. ACABAMENTO: a última etapa é quando o calçado é retirado da forma e passa pelos últimos detalhes: colocação de forro, pintura, enceramento, colocação de etiquetas, entre outros. Geralmente é nesta etapa que acontece o controle de qualidade, por meio de uma verificação de todos os calçados que saem da linha.


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ENTREVISTA: EDUARDO MOTTA O mercado de calçados no Brasil esteve em ascensão, passou por um período de decadência, devido à entrada massiva de produtos asiáticos com menor preço, mas agora retoma uma nova fase. O Ceará, estado que mais exporta pares de sapatos do país, ganha destaque pela inovação de diversas empresas, principalmente no interior, como a região do Cariri e Canindé. Por conta dessa atenção voltada a essa nova forma de economia criativa, o Senac estadual contratou o designer e artista plástico Eduardo Motta para ministrar um curso durante o evento Dragão Pensando Moda, em abril de 2013. Formado em Artes Plásticas, com especialização em Design e Cultura, Motta é redator do site Radar Consultoria e autor do livro O Calçado e a Moda no Brasil: um olhar histórico, iniciativa da Assintecal. A seguir, entrevista concedida na época do curso ao site Profissão Moda (www.profissaomoda.com.br). Profissional viajado, além de consultor de moda em diversas Indústrias e designer de calçados, Motta fala sobre o mercado calçadista no Brasil e dá dicas para quem quer se lançar neste ramo.

COMO VOCÊ INGRESSOU NESTE RAMO E HÁ QUANTO TEMPO ESTÁ INSERIDO? Na realidade eu comecei trabalhando com moda de maneira geral, com vestuário e tudo mais. E sempre fui muito ligado na cultura de moda no Brasil, como uma necessidade que eu detectava que, ao invés de só lidar com o mercado, tinha que lidar também com a cultura de moda. Venho da área de cultura porque estudei Artes Plásticas, então entrei na moda com essa ideia de criação, com ideia de paz cultural, de referência. Em 2004 fui convidado para escrever um livro sobre calçados, porque sabiam que eu escrevia sobre moda com visão de cultura, então aceitei, criando O Calçado e a Moda no Brasil: um olhar histórico. Foi aí que fiquei muito associado ao sapato. Desenhei para várias marcas, produzi coleções e hoje faço coleções conceituais para um projeto do Instituto By Brasil, onde mapeamos a produção artesanal – vamos inclusive fazer no Ceará – e as transformamos em produtos reais, em coleções conceituais e viajadas Brasil afora. SUAS INSPIRAÇÕES VÊM GERALMENTE MUITO DA ARTE E DA CULTURA. COMO É ESSE PROCESSO? Eu trabalho muito com base na cultura, exatamente como se trabalha com moda no mundo inteiro. O Brasil tem essa relação de trabalhar mais com o produto pronto e de fazer pesquisas internacionais. No entanto, esse nunca foi o meu interesse particular, nem do meu escritório. Hoje a gente procura trabalhar nessa direção de referência própria.

“Trabalho com base na cultura, que é como se faz no mundo inteiro”

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“O designer tem que entender como a indústria funciona”

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COMO VOCÊ DEFINE A SITUAÇÃO DO MERCADO DE CALÇADOS NO BRASIL ATUALMENTE? O calçado tem uma história diferente do vestuário. O vestuário sempre teve uma relação muito mais clara de proximidade com a cultura do que o calçado. Ele chegou nisso agora, é muito recente. O calçado pode ser um produto que venha a ser considerado de um nível maior, com o sapateiro sendo alguém que tem algum status, que trabalha com Design de Sapatos. As indústrias de sapatos são muito fortes e com uma capacidade enorme, porém poucos designers realmente desenham. Essa é a realidade do mercado brasileiro: marcas fortes, mas na parte de design mesmo, existem poucos. EXISTEM CURSOS PROFISSIONALIZANTES OU CURSOS EXTRAS SOBRE ESSE MERCADO? Sabe o que acontece? O sapato é algo muito técnico. Calçado, se você não tem um maquinário básico para fazer o que a gente chama de esteira completa, ou seja, um giro completo do produto dentro de um esquema produtivo, você não consegue ensinar a parte técnica para ninguém. Eu, por exemplo, estou aqui no Ceará falando sobre o processo criativo. Tento que os alunos tenham a percepção das possibilidades criativas de desenhar um sapato, que são muito interessantes. Sapato tem a coisa da estrutura, do projeto arquitetônico e da sustentação, que acho muito excitante. Creio que o Senac daqui seja o primeiro que está abrindo esse curso de design de calçados. O curso, por sinal, mexe com a parte de criação, não a parte técnica, por não ter um maquinário e as devidas ferramentas. É por isso que não existem muitos cursos de design de sapatos. QUE CONSELHO VOCÊ DARIA PARA OS QUE ESTÃO DANDO OS PRIMEIROS PASSOS NESTE RAMO? Primeiro, procurar aproximar-se dos experts no assunto. Assim, se você tiver uma ideia muito particular de trabalhar com algo pequeno, com algo autoral, procure sapateiros, para aprender a técnica deles. Isso é possível e já é um caminho. Mas eu aconselho muito a procurar indústrias, a procurar entender realmente como a indústria funciona, ver o sapato em um esquema produtivo, ver a produção em série. Daí você tem a base técnica da forma, pois um milímetro de diferença pode acabar com todo o trabalho que a pessoa teve ao fazer o produto. Então, requer, além de muita atenção, aprender as técnicas. É possível você se interessar pelo design, onde aprende as funções de estrutura, a parte de cima do calçado. Entretanto, tem que ter a junção com as técnicas da indústria, se quiser algo bem feito. Se aqui em Fortaleza não tiver visita às indústrias, crie uma missão, vá com um grupo de alunos visitar uma empresa, aprender o processo, ver como funciona o produto, de como corta, como costura, como monta. Isso é o necessário para um bom designer de calçados.


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omo vimos no capítulo 1, a produção de sapatos talvez seja uma das atividades mais antigas conhecidas pela humanidade. Isto porque ela surge de uma necessidade essencial: proteger os pés. Da função prática, passando por símbolo de status, até se tornar acessório de moda, o sapato tem uma rica caminhada (sem trocadilho), cheia de nuances e singularidades. Seus primeiros modelos podem, até hoje, inspirar os designers contemporâneos. Logo, um resgate histórico de suas práticas contribui para clarear os caminhos da atividade de design de sapatos hoje e auxiliar na decodificação do que ainda está por vir. Para entendermos o que é realmente novo na produção de calçados hoje, é importante relembrar de que forma essa história evoluiu. Segundo Linda O’Keeffe, os sapatos sempre refletiram a condição social e econômica de quem os calçava, como era o caso dos saltos vermelhos, tendência de status na corte de Luís XIV, no século XVIII, ou das mulheres da aristocracia do século XIX, que usavam chinelos de brocado finíssimos, enquanto suas criadas trabalhavam com botas robustas de cabedal preto. Ou ainda, no período renascentista, observamos as poulaines – sapatos baixos com bicos pontudos, mais populares entre os homens – que mostravam o prestígio de seu usuário: quanto maior o seu bico, maior a posição social.

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OS MATERIAIS E A FORMA DE PRODUÇÃO Na segunda metade do século XIX, a melhoria das condicões econômicas da classe média fez com que os mais abastados procurassem por distinção no seu modo de vestir. Assim, nascia a alta-costura e os sapatos de luxo. No início do século XX, a introdução da industrialização no processo de produção do calçado, até então totalmente artesanal, e a difusão do uso de sapatos esportivos, principalmente nos Estados Unidos, foram grandes avanços para a indústria calçadista. Da mistura das duas tendências que se destacaram nesse momento histórico – sofisticação e esporte –, nasceram os calçados híbridos, unindo luxo e desempenho. Ali se firmara o ponto de partida da nova cultura do tênis como item de moda, e não mais só como artefato para a prática esportiva, que foi incorporada para sempre no mundo fashion. Ainda nos anos 1990, à medida que o mercado de sapatos de luxo se estabelecia como um negócio rentável e sedutor para um público bem específico, a produção de sapatos em geral começou a migrar da Europa para o Oriente, de olho nas grandes massas consumidoras. A substituição de materiais nobres, como o couro, por sintéticos, como a borracha e o plástico injetado, por exemplo, e a substituição de artesãos por uma mão de obra menos especializada, assessorada por máquinas, fez com que o volume de produção aumentasse e os preços diminuíssem significativamente. Assim surgiu o mercado do fast fashion, onde os sapatos de moda se tornaram mais acessíveis para um grande número de consumidores, tanto em distribuição quanto em valor.


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alta costura e sapatos de luxo surgem em meados do século X IX AS POULAINES INDICAVAM O STATUS SOCIAL DE QUEM AS USAVA: BASTAVA OBSERVAR O COMPRIMENTO DE SUAS PONTAS


102 POSTURA ECOFRIENDLY DENOTA O PERFIL DE UM NOVO CONSUMIDOR DE MODA: O CONSCIENTE

desafio do designer: demandas 茅ticas e ecol贸gicas


No início do século XXI, no contrafluxo desse consumo mais impulsivo, estimulado pelos modismos oferecidos pelas marcas, observa-se a chegada de um outro tipo de consumidor de moda: o consciente. Um perfil de público que exige uma postura ética e sustentável por parte da indústria calçadista. A exigência não é apenas pelo uso de materiais ecologicamente corretos e de métodos de fabricação, mas também pela melhoria de condições de trabalho dos funcionários envolvidos na produção, diminuição das emissões de gases poluentes no transporte dos produtos, produção de menos lixo. A gradativa adesão de mais e mais pessoas a esta corrente ecofriendly aponta para mais uma faceta a ser desenvolvida pelo designer de sapatos: a habilidade de lidar com demandas éticas e ecológicas. A marca de tênis masculinos holandesa OAT – uma das primeiras a oferecer um produto totalmente biodegradável – e Stella MacCartney – que evita o uso do couro em suas coleções de acessórios – são dois exemplos representativos de iniciativas comerciais, no universo do calçado, capazes de manter sua credibilidade ética e ao mesmo tempo oferecer produtos com grande aceitação. Enfim, em tempos de hipermodernidade sem fronteiras, com informação em todo lugar, culto excessivo à novidade e consumidores conscientes, mas com vontades efêmeras, o design de sapatos precisa de uma constante reinvenção. Assim, o cenário pós-moderno abre infinitas possibilidades e ao mesmo tempo lança desafios significativos aos designers de sapato contemporâneos: seus frequentes e rápidos avanços tecnológicos vão influenciar o tempo todo a sua capacidade de criar. E, para manter a tríade praticidade-conforto-beleza sempre atrativa, garantindo o posto de objeto de desejo e símbolo de status a esse acessório incensado nos vaivéns das coleções, vale tudo. Mais flexibilidade, permeabilidade, leveza, novas cores, menos desperdício, menos custo, mais personalização – sim, tudo. E muita, mas muita criatividade, pesquisa e uma incansável atualização do ofício, de forma a acompanhar a sede insaciável dos consumidores pós-modernos, ansiosos por calçados que emprestem aos seus usuários uma sensação de renovação e vanguarda.

COMO COMEÇOU O USO DO DESIGN NO SAPATO? O design está tão incorporado ao universo do calçado que, por vezes, não nos damos conta de que nem sempre eles andaram juntos. É inegável, se olharmos os primeiros modelos descobertos, que seus precursores arriscavam, timidamente, criar peças que fossem um pouco além de cobrir os pés. Mas foi no século XX que vimos despontar as primeiras criações que tinham características claras de design. Ícone do design de sapatos italiano, Salvatore Ferragamo (1898 – 1960) é reconhecido mundialmente como o pioneiro na arte de fazer sapatos inovadores. Sua ousadia e capacidade de improviso em experimentar materiais inusitados para fazer sapatos com cortiça, penas de animais, palha, náilon e até ouro são marcas registradas. O velho e conhecido salto Anabela, por exemplo, popular e muito reproduzido atualmente, foi inventado por ele em tempos de guerra, na perspectiva de fazer sapatos altos, mas leves. De Bonito, na Itália, o sapateiro das estrelas ganhou Holywood nas décadas de 1910 e 1920, e em 1927 retornou à sua terra natal para fundar seu império, em Florença.

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Até hoje sua busca de inspirações na cultura, na arquitetura, na arte e nas descobertas arqueológicas são fundamentais ao conceito de design de sapatos contemporâneo. Em sua autobiografia, Ferragamo afirmou: “Sinto-me muito feliz por ter transformado a humilde arte de sapateiro em uma atividade respeitável.” Nos anos 1950, o designer de sapatos francês Roger Vivier (1907 – 1998) e Salvatore Ferragamo lançaram o salto stiletto. Um salto alto e estreito, tipo agulha, que foi sucesso na época e é reeditado até os dias de hoje. Invenção que só foi possível em função dos avanços nas técnicas de composição obtidos no pós-guerra, pois antes os saltos eram feitos de madeira ou couro aglomerado. Durante 60 anos, Roger Vivier criou modelos alegres e decorativos, inspirados na estética do século XVIII, mas que dialogam com o nosso tempo. A estrutura de suas criações revela uma preocupação com a forma e a textura e baseia-se em modernos princípios de aeronáutica e de engenharia. Ele ficou conhecido principalmente por criar sapatos com saltos visualmente atraentes e diferentes, que ganhavam nomes baseados nas formas que evocavam: vírgula, rolo, bola, agulha, pirâmide ou caracol. Para Marlene Dietrich, ele criou um salto alto que atravessava uma bola de pedras. Quando questionado a respeito dos produtos que criava, Vivier afirmou: “Meus sapatos são esculturas tipicamente francesas. Uma alquimia parisiense de moda”. Sem dúvida, um legado francês para o mundo do calçados.

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NO BRASIL No Brasil, inevitavelmente, as inspirações para iniciativas na área do design de calçados vêm de fora. Mais especialmente da Itália e da França, berços da moda mundialmente instituídos. Se no velho mundo o design de calçados dá seus primeiros passos no início do século XX, por aqui os movimentos neste sentido começam a acontecer em meados dos anos 1970. Em 1972, em Belo Horizonte, surge a Arezzo, marca de calçados inicialmente masculina, uma história que nasce do desejo da família Birman de ligar suas produções à moda europeia da época. Conexão que fica evidente quando eles lançam seu primeiro calçado feminino, em 1979: uma sandália anabela, revestida de juta, inspirada no modelo original de Ferragamo. A sandália foi o primeiro sucesso de vendas da história da grife que hoje é referência no lançamento de tendências de calçados no país. Em 1982, o então arquiteto paulista Fernando Pires resolve experimentar uma incursão pelo mundo da moda, estimulado por uma cliente. Da união de seus conhecimentos de arquitetura e de seu talento intuitivo para a criação surge mais um dos grandes designers brasileiros de calçados. Um artista, um verdadeiro arquiteto dos pés, como ficou conhecido, principalmente pelas plataformas inusitadas que criou. Com sua produção artesanal e sua total dedicação a nos brindar com modelos impactantes e anatômicos, Fernando Pires é, com certeza, um precursor do design de sapatos no Brasil. Em 1995, Alexandre Birman, pertencente à terceira geração da família, usa toda a paixão por sapatos que herdou e lança a marca Schutz. Nesse momento, já é possível perceber um investimento significativo em pesquisa de tendências de material e tecnologia e uma intenção real de oferecer calçados com design. Em 2008, ainda mais imerso no mundo dos sapatos, Alexandre Birman lança sua grife homônima de sapatos exclusivos e se torna, em tempo recorde, um dos um dos principais designers de acessórios do atual cenário da moda mundial.


design

brasileiro nasce nos

anos 1970


106 APLIQUES E PEDRARIAS COMPARTILHAM ESPAÇO COM MATERIAIS E TECNOLOGIAS QUE PROPORCIONAM BEM-ESTAR

equilíbrio entre ergonomia e estética: marca do século X X I


Osícones NA TERRA BRASILIS Que os sapatos conquistaram os pés e os corações dos cidadãos mais antenados do globo todo, não

há mais dúvidas. No entanto, cada lugar tem os seus hits. No Brasil, a lista de febres é grande, mas existem aqueles que ganharam o título de must have para todo o sempre. Entra ano e sai ano, eles aparecem com novas roupagens e seguem arrancando suspiros. Confira a seleção dos queridinhos em solo verde-amarelo.


all star

uem diria que um calçado de lona e borracha – inicialmente pensado para o universo do basquete e somente na cor preta – iria ganhar fãs inveterados mundo afora? Essa é a história do tênis All-star, que surgiu em 1917, em Massachusetts, Estados Unidos, criado pela empresa Converse. Em 1922, seus idealizadores contrataram Charles “Chuck” Taylor, então estrela de basquete nos EUA, para promover o tênis. Manobra publicitária que foi o ponto de partida para o All-star ganhar fama e cair na graça, primeiro dos simpatizantes do esporte, depois dos entusiastas do mundo do rock e do grunge. Hoje, o tênis faz a cabeça das tribos mais distintas, é produzido com diversos materiais, como couro, camurça, vinil e denim, e está diponível em um número inimaginável de estampas e cores. No Brasil, milhares de usuários se renderam ao seu estilo descolado e, sem dúvida, o tênis está entre os sapatos mais icônicos e mais usados do país. Com quase 100 anos de existência, o All-star já conquistou o status de acessório de moda, digno de colecionador.

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galocha I

tem de vestuário cada vez mais recorrente no mundo fashion, as primeiras botas de e borracha tinham um uso bem prático: surgiram para proteger os pés dos soldados,, nas guerras, e dos agricultores, na sua lida diária. Por definição, galocha é uma bota a de borracha que se calça para proteger os pés do contato com a água, preservan-do-os da umidade. A palavra é derivada do termo em latim gallica solea (calçado gálico),, usada pelos romanos para descrever as botas rústicas utilizadas pelos guerreiros daa Gália. No Brasil, diz-se que a galocha foi trazida para a modernidade pelo empresário o americano Charles Goodyear, que descobriu, em 1839, o processo de vulcanização,, que torna a borracha mais forte e resistente. Atualmente, o circuito de moda pós-mo-derno apresenta diversas versões deste sapato, não só em borracha, mas também em m plástico, com design e criatividade, muita cor e estamparia, o que garante o seu título o de acessório de estilo, mesmo em dias de sol.


estilo

mesmo em dias de sol

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história da sandália Birkenstock começou em 1774, ano em que Johann Birkenstock instalou-se como sapateiro em Vettelschoss, na Alemanha. Quase 200 anos depois, em 1964, foram produzidas as primeiras unidades deste calçado, na forma que conhecemos hoje. Suas curvas anatômicas e materiais específicos surgiram com a promessa de trazer benefícios aos pés: conforto e auxílio na circulação. Seu solado é feito a partir da mistura de cortiça natural com látex e se amolda à forma e ao andar de cada pé.

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sandália birkenstock

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A simplicidade da peça e seu formato ultra minimalista, que a princípio pareciam deixá-la pouco atraente, foram os fatores-chave determinantes para que conquistasse uma legião de adoradores. A preocupação com o bem-estar de seus usuários e a consciência ambiental em seu processo de produção – é feita de material biodegradável – também contribuíram para a sua grande aceitação. Mais recentemente, aparições de estrelas do showbiz com estas sandálias nos pés, como Heide Klum, Naomi Watts, Drew Barrimore, entre outras, impulsionaram de vez a fama das Birkenstock e a promoveram, enfim, a acessório de moda. No Brasil, elas aparecem como uma ótima opção para quem quer unir moda e bem-estar e fazer um estilo clássico e casual, ao mesmo tempo. Perfeitas, inclusive, para as altas temperaturas do nosso verão.


havaianas A símbolo

alto-astral brasileiro

primeira Havaianas surgiu em 1962, inspirada em uma sandália japonesa chamada Zori, feita com tiras em tecido e solado de palha de arroz. Nos anos 1970, o produto lançou o slogan “As legítimas”, endossado por Chico Anysio, e se posicionou com força na cabeça do consumidor. No anos 1980, a sandália já era considerada parte da cesta básica do brasileiro, atingindo 80 mil pares de produtos vendidos. Daí em diante, cada vez mais o calçado foi caindo no gosto popular: todo mundo passou a usar Havaianas, independente da classe social, profissão ou estilo. No final dos anos 1990, a marca assumiu de vez a pegada fashion – que mantém até hoje – e passou a trazer coleções cheias de estampas, cores e modelos diferentes para o mercado. Na Copa do Mundo de 1998, por exemplo, a empresa criou um modelo que vinha com uma bandeira do Brasil na tira, que logo se tornou objeto de desejo no exterior, deixando as nossas Havaianas internacionais para sempre. Nos anos 2000, muitas parcerias bacanas entre a Havaianas e outras empresas do mundo da moda já aconteceram e renderam sandálias irresistíveis, como foi o caso da edição limitada com acabamento em ouro e diamantes, assinada pela joalheria H. Stern. Em 2009, toda a trajetória da marca é coroada com a criação da flagship da Havaianas em São Paulo, reforçando ainda mais a sandália como o símbolo do alto-astral brasileiro em qualquer parte do mundo.

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orgulho

plástico paixão nacional

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melissa M

elissa l é uma m linha h brasileira r ei de e calçados ç o de e plás p plástico sstico injeta injetado j aado muito popular, focada no público feminino, e n que qu teve e se seu pr primeiro ir modelo o o lançado nç o em 1979. 9 A peça recebeu o nome de “Aranha”, inspirada nas sandálias que os pescadores usavam na Riviera Francesa. Em 1986, a marca desenvolveu produtos também para o público infantil: as melissinhas. Após um período de estagnação, a Melissa se relançou no mercado com ousadia e inovação, adquirindo status de objeto de design no mundo fashion. Isso porque nos anos 1990 e 2000 a empresa investiu em parcerias com artistas renomados nacionais e internacionais e trouxe às suas consumidoras verdadeiras obras de arte para se usar nos pés, e a preços superacessíveis. Nomes como Karim Rashid, irmãos Campana, Vivienne Westwood, Alexandre Herchcovitch, Karl Lagerfeld, Jasom Wu, Pedro Lorenço e mais um time de alto nível assinaram as peças da marca. É do mundo das artes plásticas, da arquitetura, da música e da fotografia que a marca absorve influências para se recriar. Não é à toa que lançou sua flagship – a Galeria Melissa, que além de produtos, traz conteúdo e cultura – em 2005, em São Paulo, e mais recentemente, uma unidade da mesma em Nova York. Enfim, nesses mais de 30 anos, a Melissa criou mais de 500 diferentes modelos, fabricou mais de 50 milhões de pares, exportou outros 20 milhões para mais de 80 países. Orgulho e paixão nacional, sim!


sandália

carmen miranda O

solado de plataforma foi inventado primeiramente com uma função objetiva: manter os pés bem longe da sujeira. Entretanto, a partir de 1930, a plataforma entrou para o mundo da moda (e de lá nunca mais saiu!) como um truque perfeito para alongar a silhueta. Em 1935, instigado pela carência crítica de materiais na Itália, o designer de sapatos Salvatore Ferragamo teve a genial ideia de usar rolhas de cortiça para criar um solado leve e resistente, que poderia ser recoberto por diversos materiais mais nobres, como couro, por exemplo. Não precisa nem dizer que as plataformas cheias de bossa passaram a ser cobiçadas pelas celebridades da época. Desde então, Ferragamo criou diversos modelos customizados. Foi o caso das sandálias luminosas e altíssimas que ele desenhou exclusivamente para que Carmen Miranda pudesse contar aos quatro cantos do mundo o que é que a baiana tinha de tão especial. E assim, a plataforma fincou pé nas nossas raízes e nos nossos closets.

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crocs C

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rocs é mais uma releitura do clássico tamanco, feita de uma resina de alta aderência, despretensiosa, colorida e totalmente focada no conforto do usuário. Em 2002, esses calçados foram criados nos Estados Unidos, quando três amigos velejadores – Scott Seamans, George Boedecker e Lyndon Hanson – resolveram desenvolver um modelo antiderrapante e ventilado para usar nos barcos. O calçado, então, foi batizado de Crocs, por sua aparência lembrar um crocodilo. Em 2003, mesmo com uma certa rejeição inicial frente ao público consumidor, o Crocs logo se tornou um fenômeno universalmente aceito. Com seu viés saudável, enfim, ganhou a simpatia das pessoas com os mais diversos perfis e estilos de vida: jovens, idosos, alternativos, urbanos e esportivos. Em 2007, iniciou suas operações no Brasil, e aos poucos foi galgando o seu posto de queridinho do povo de mente aberta, espírito livre e estilo despojado. A fórmula do sucesso é simples: moderno, funcional e com preços acessiveis. Para completar, está diponível nas mais diversas cores e modelos, em mais de 80 países. Quem resiste? O Crocs é daqueles calçados indispensáveis para os momentos de relax no meio do nosso cotidiano acelerado pós-moderno. Os pés agradecem!

despojado funcional moderno


eja na Grécia antiga, ou no Velho Mundo, a história já deixou claro que os saltos altos muitas vezes foram utilizados como símbolo de diferenciação, de poder e de status. Nos anos 1950, na Itália, surgiu o salto stiletto, hoje também conhecido como salto agulha, trazendo mais uma função ao uso do salto alto: transmitir feminilidade e sedução. Nos final dos anos 1970, então, mulheres executivas passaram a adotar o salto fino como um acessório para projetar elegância e poder feminino. No Brasil, em 1978, as sandálias femininas de salto alto e fino foram eternizadas pela novela Dancin’ Days, de quem herdaram o nome. A trama, protagonizada pela atriz Sônia Braga, era uma crônica dos costumes da vida urbana moderna e dos valores da classe média. Contava a história de uma ex-presidiária que, após uma temporada na Europa, voltava para o Brasil para refazer sua história. Aproveitando a onda da disco music da época, em uma cena épica, Sônia Braga dá um show de dança na pista da fictícia discoteca Frenetic Dancing Days, usando sandálias de salto fino e meias de lurex. Sequência que marcava a reviravolta da personagem, um resgate do controle e do poder em relação ao seu próprio destino. A força da cena foi tamanha que em um piscar de olhos as sandálias Dancin’days correram da tela para as ruas e entraram para sempre para a história da moda brasileira.

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sandália

dancin’ days

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Os grandes DESIGNERS BRASILEIROS A moda urge em pleno século XXI. Como nunca antes, ela acessa a todas as camadas sociais e conversa com os quatro cantos do mundo em tempo real. Indiscutivelmente, o contexto aponta para um cenário muito favorável a esse universo fashion mágico. E claro, os sapatos, grandes vedetes desse acontecimento, passeiam das passarelas às vitrines a passos largos e firmes, fazendo a cabeça das mulheres e conquistando espaços nobres em seus closets. Entendendo os movimentos e as vontades femininas com precisão, atuam os maestros, as figuras que fazem do seu ofício um eterno criar de obras de arte. O Brasil e seu grande potencial de gerar mentes criativas esbanja excelentes designers de sapatos. Entre eles, quatro protagonizam a cena atual brasileira: Fernando Pires, Sarah Chofakian, Jorge Bischoff e Alexandre Birman.


saltos inusitados d達o brilho

ao caminhar

Fernando Pires


O ARQUITETO DOS PÉS á referimos este nome, ao mencionarmos o pioneirismo no design de calçados em solo brasileiro. Neste capítulo, em que o assunto são os grandes artistas contemporâneos da área, vamos falar mais uma vez em Fernando Pires. Nem poderia ser diferente, pois trata-se de alguém especial. É no início dos anos 1980 que este paulista, até então dedicado à arquitetura, resolve se aventurar na arte de fazer sapatos. Foi assim que surgiu o nosso arquiteto dos pés. Oito anos depois de sua estreia no novo ramo, Fernando Pires lançava sua marca homônima, e passava a oferecer às brasileiras verdadeiras obras de arte para usar nos pés. Ao melhor estilo do antigo ofício de sapateiro, e mesmo tendo sua própria equipe, Pires garante que se envolve em todo o processo de concepção do objeto, do desenho à produção – que é totalmente artisanal, a propósito. Segundo o designer, a tríade luxo, conforto e exclusividade é a base de todas as suas criações e permeia o escopo de cada nova coleção em seus aproximadamente 80 modelos, replicados em 3 mil pares. “Meus sapatos têm DNA próprio, são facilmente reconhecíveis”, diz ele. Desde o início, os saltos inusitados povoam suas coleções e emprestam ao caminhar das agraciadas que usam suas criações um estilo desconcertante. É inspirado no cinema, no show biz e no poder feminino de sedução que ele cria as plataformas que se tornaram marca registrada da grife, eternizadas nos pés de divas nacionais e internacionais como Marília Pera, Cláudia Raia, Hebe e Madonna. Nos seus 23 anos de carreira, fazendo objetos de arte para os pés, Pires encantou as mulheres com seus sapatos exóticos e de alta qualidade. “Considero as minhas criações como bens duráveis, pois todas são feitas em couro e materiais nobres, para durar uma vida inteira, na contracorrente do fast fashion”, afirma o designer. Suas clientes assinam embaixo. Saber que existem pessoas como Fernando Pires enriquecendo a cena autoral da moda brasileira dá uma sensação de que, entra ano e sai ano, bons ventos estarão soprando em território nacional, no que diz respeito à criatividade. Um alívio, uma glória termos esse brilhante patrimônio nacional.

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calçados exóticos com D NA próprio

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ULTRAFEMININA fascínio pelo estilo e pela atitude que cada sapato empresta à mulher foi a mola propulsora para que Sarah Chofakian transformasse seu ofício em paixão. Em 1997, com a proposta de explorar as inúmeras possibilidades da arte da sapataria, a designer lançou a etiqueta que leva seu nome. Como premissas, a marca carrega no seu DNA originalidade e feminilidade. O resultado? São 16 anos de sapatos incríveis, com cores, recortes e formas inusitadas, e, claro, para lá de femininos. “Quando iniciei o trabalho com sapatos, tudo que se encontrava no mercado eram modelos básicos, nas cores preta, café e, no máximo, um branco para casamento. Ou mesmo algumas cores como vermelho, para ocasiões muito especiais. O mercado de calçados não fazia parte do mercado de moda. A partir de então, cada vez mais os acessórios foram entrando no mercado fashion, em especial os sapatos, aos quais resolvi me dedicar, pois percebi que seria uma área de grande crescimento.” Criada para mulheres contemporâneas, que querem usar um par de sapatos autoral para enfrentar as mais diversas ocasiões no seu dia a dia, a marca apresenta moda com inteligência, unindo design e usabilidade. Segundo a artista, no final do anos 1990 ela trouxe para o mercado brasileiro uma plataforma muito confortável para mulheres cada vez mais ativas profissionalmente, que buscavam dois atributos em um só produto: altura e conforto. Além disso, cada criação da designer tem apresentação impecável, pois todos os produtos da marca são feitos à mão por artesãos empenhados em garantir qualidade e acabamento de alto nível. Para encher o nosso peito de orgulho, antes mesmo de completar 10 anos de existência, a grife vendeu suas primeiras peças fora do país. Desde então, conquistou notoriedade e respeito no mundo da moda e do cinema. Edições internacionais de revistas como Vogue e Marie Claire publicaram os produtos de Sarah Chofakian. Também, com uma artista tão apaixonada pelo que faz, tinha como ser diferente?

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Sarah Chofakian a paixão pelo que faz


81 moda com inteligĂŞncia, altura e conforto


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O MAGO DOS SAPATOS oda, design e elegância são palavras de ordem nas coleções de calçados e acessórios de Jorge Bischoff, artista incensado também fora do Brasil – além das 53 lojas exclusivas no Brasil, tem presença em 40 países. A ousadia e o glamour de suas criações, voltadas para o segmento de alto padrão, enchem os olhos dos mais exigentes e formam legiões de fãs espalhadas pelo globo. Nascido em Igrejinha, no Sul do país, região com tradição centenária na manufatura calçadista, desde a adolescência Bischoff está envolvido com a arte de fazer sapatos. Aos 12 anos, foi operário de uma fábrica de calçados, rodeado por peças de couro, pelo barulho das máquinas e pelo cheiro da madeira sendo trabalhada para criar os primeiros modelos de saltos. “É como nascer na Toscana, na Itália, e aprender a fazer os melhores vinhos”, afirma o designer. Assim, teve a oportunidade de atuar em todos as etapas do processo – da produção à administração da fábrica –, até finalmente ingressar no universo da criação e do desenvolvimento de coleções e lançar a sua marca homônima, em 2003. Hoje, é reconhecido como o mago brasileiro dos sapatos, unindo um conceito internacional à energia e à criatividade do Brasil. “A criação é o meu foco. Pesquisar estilos e conceitos, criar matérias-primas e coleções, acompanhar a produção e, por fim, ver as mulheres desfilando com os meus sapatos pela rua. Esta é minha grande paixão”, afirma o designer. A grife, que não vive só de tendências de moda, já estabeleceu uma identidade própria por meio da aplicação de metais. Eles aparecem sobre os sapatos, nos saltos ou até no solado. Inclusive, para comemorar os 10 anos da marca, foi criada a coleção Celebration, que traz como ornamento exclusivo uma grande peça de metal dourado, incrustada com uma drusa de ágata. Uma coleção luxuosa, composta de 5 peças – um peep toe de salto fino e alto, uma sapatilha de bico fino, uma bolsa, uma clutch e um chaveiro exclusivo –, que pretende eternizar toda a atmosfera de classe e sofisticação da Jorge Bischoff. E para isso, claro, ainda conta com mais um complemento de luxo: a sola dos sapatos é dourada e vem com a assinatura manuscrita do seu criador. Enfim, que essa vontade de compreender sempre e mais a alma feminina continue a inspirar esse designer de mente efervescente. Que ele siga transformando os nossos sonhos mais secretos em peças-desejo. E que, a cada nova coleção, os pés do mundo todo continuem sendo enfeitiçados pelo superpoderes do mago brasileiro dos sapatos.

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Jorge Bischoff

conceito internacional combinado cm a energia brasileira


Alexandre Birman 84

POTÊNCIA CRIATIVA erdeiro e vice-presidente do grupo Arezzo, precursor no negócio do calçado no Brasil, Alexandre Birman cresceu imerso no universo do sapato. “Fui criado em uma fábrica de calçados – isso não é marketing, é a verdadeira história da minha vida”, conta o designer. A carreira de Birman como shoe maker começou aos 12 anos, quando aprendeu a fazer o processo de criação do produto, desde a costura até o acabamento. Aos 15, quando estudava no exterior, desenhou seu primeiro modelo, e em 1995, aos 19 anos, criou a Schutz. Com a marca, Alexandre trouxe ao mercado o conceito de calçados com design. Uma real inovação para a cena calçadista nacional da época. Em 2008, o designer criou a grife de sapatos exclusivos que leva seu nome, com produção artesanal e foco nas mulheres sofisticadas que buscam luxo e inovação para todas as ocasiões. Desde então, seus sapatos super-elaborados figuram na wish list das mais exigentes. No DNA da marca, o couro de piton já virou marca registrada das criações de Alexandre Birman e aparece com novas roupagens em todas as suas coleções. No Brasil, a marca conta com duas flagships na cidade de São Paulo. Fora do país, suas peças estão em importantes lojas de departamentos, dividindo espaço com sapateiros consagrados, como Christian Louboutin, Manolo Blahnik e Jimmy Choo. O que só reitera a sua presença agressiva e exitosa em território estrangeiro – hoje a grife é vendida em 220 lojas multimarcas no exterior. Seu sucesso é tão reconhecido lá fora que já em 2009, pouco mais de um ano após o lançamento da marca, foi homenageado pela publicação americana Footwear News com o prestigiado prêmio Vivian Infantino Emerging Talent Award. Com apenas cinco anos de vida de sua marca, o designer já fez sapatos exclusivos para grandes estrelas internacionais, como Kate Hudson, Demi Moore, Anna Paquin, Jessica Alba e Katy Perry. E assim, Birman, que começou a trabalhar na empresa calçadista da família aos 12 anos, tornou-se, em tempo recorde, um dos mais requisitados designers de sapato entre as celebridades mundiais e um dos principais designers de acessórios do atual cenário da moda mundial. Um fenômeno criativo made in Brazil.

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produção artesanal com foco nas mulheres que procuram luxo e inovação



Os sapatos INFLUENCIAM A CULTURA O que é que Cinderela, Madonna e John Travolta têm em comum? Nem precisaria responder. São os sapatos em sua relação com a cultura, em especial com o cinema e a música, que estabelecem esta conexão entre mundos aparentemente tão distintos. Há um vasto leque de personas e personagens que poderiam ajudar a contar essa história, mas como uma publicação impressa é obviamente limitada, decidimos acrescentar ao trio citado aí em cima a originalidade de Lady Gaga e a imagem brasileiríssima e internacional de Carmem Miranda, que, cada uma à sua maneira, subiram nas plataformas para estabelecer parâmetros culturais e influenciar meio mundo. Sapatos e cultura têm tudo a ver e não vivem um sem o outro.


Cinderela


estilista Marc Jacobs gostaria que todas as mulheres se sentissem como princesas, ou seja, que mais cedo ou mais tarde fossem encontradas em algum momento por seus respectivos príncipes, bem ao estilo Cinderela. Foi com esse intuito que ele lançou em 2012 um sapato original, o Transparent Pump. A nova mania chegou às lojas vindo da Itália. Em lugar do cristal, PVC, mas quem se importa? Cada par do Transparent Pump equivale a um passaporte para um momento de sonho. Inspirado na mesma personagem, e graças a uma parceria com a Walt Disney Co., Christian Louboutin resolveu atender aos pedidos de fãs dos seus icônicos sapatos e criou uma promoção que premiou 20 privilegiadas com um par de scarpins de cristal produzidos e recriados em homenagem à Cinderela. A ação fez parte do plano de marketing do lançamento mundial, em blu-ray, da edição de diamante do filme da Disney, em 2012. Na versão contemporânea, Loboutin revisitou o mito e criou uma versão decorada com renda branca e cristais Swarovski. Para tornar a fantasia mais real, duas borboletas salpicadas com cristais coloridos foram aplicadas no sapato que, claro, tem o tradicional solado vermelho. “Cinderela não é apenas uma personagem icônica quando relacionada à beleza, à graça e ao amor, mas também quando o assunto são sapatos”, explicou o consagrado designer. Há quem diga que o mito em cima dos famosos sapatinhos de cristal teve origem em um deslize. Eles seriam, na verdade, de pelo de esquilo branco, matéria-prima considerada luxuosa no século XVII, quando foi escrita uma das versões mais conhecidas da história, de autoria de Charles Perrault. A exemplo dos Irmãos Grimm, este autor também recolheu e publicou diversos contos e lendas. Perrault teria interpretado mal a palavra vair (pelo de esquilo), da lenda medieval na qual se baseou, modificando-a para outra palavra pronunciada de forma semelhante, verre (vidro). O que Cinderela pode ter usado foi um sapato feito de ouro, prata ou qualquer outro material precioso recoberto com joias, mas nada de sapatos de cristal. O que pouca gente sabe é que a história é, inclusive, bem mais antiga do que a versão de Perrault. Há registros de uma versão chinesa escrita no século IX. Quanto ao número de versões, fala-se em pelo menos 500, mas há quem sustente serem mais de mil. O que ninguém discute é que a história de Cinderela é uma das mais reproduzidas nos cinco continentes, há centenas de anos, fazendo parte do imaginário de mulheres (e homens, por que não?) de diferentes culturas. Tal fenômeno se explica pelo conceito de arquétipos. Nas palavras de Nise Silveira, renomada psiquiatra brasileira aluna de Carl Jung, falecida em 1999, “a noção de arquétipos, base psíquica comum a todos os seres humanos, permite compreender por que em lugares e épocas distantes aparecem temas idênticos nos contos de fadas, nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia, nas produções do inconsciente de modo geral”. Dito de outra forma, dificilmente uma mulher não tem em seu inconsciente o desejo de encontrar seu príncipe, passando a compartilhar com ele uma vida em outra dimensão, a dos prazeres e da felicidade. E é isso que o sapatinho de cristal de Cinderela representa: uma espécie de redenção, revivida a cada vez que uma mulher calça seu par de sapatos preferido ou há muito desejado.

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vestir o par de calçados preferido é uma espécie de redenção

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Tony Manero

á se vão mais de 35 anos desde que o jovem John Travolta, então com 22 aninhos, vestiu um terno branco, camisa escura e sapatos de plataforma para viver Tony Manero, o dançarino-galã de Embalos de Sábado à Noite. Era 1977, e os jovens do mundo inteiro seguiram-lhe os passos, tomados pela febre das discotecas. A cena inicial do filme, ao som de Stayin’Alive, dos Bee Gees, é antológica, assim como o solo de mais de dois minutos de Travolta ao som de You should be dancing, também dos irmãos Gibbs. Laquê caprichado no cabelo – lembra da cena em que o personagem reclama dos tapas dados pelo pai, justamente porque poderiam desmanchar o penteado? –, ternos estilosos e camisas justas e de colarinho grande foram escolhas da figurinista Patrizia von Brandenstein, que fez uma pesquisa buscando vestimentas típicas de jovens de classe média baixa, como eram os personagens principais do filme. Os famosos sapatos plataforma, típicos para a dança, Patrizia encontrou aos montes em uma loja comum de Manhattan. O gênero musical ganhou corpo nos anos 1970 e teve a boate Studio 54, em Nova York, como ápice. O local era um templo construído para a diversão através da música, onde pessoas famosas e comuns podiam se encontrar na mesma pista de dança – teoricamente, já que, com a fama cada vez maior, o local passou a controlar quem entrava. Era comum ver toda semana notícias de celebridades que estiveram no Studio 54, que pouco a pouco se tornou uma lenda dentro do cenário da badalação novaiorquina. Um dos grandes acertos de Embalos de sábado à noite foi justamente capturar este cenário que aflorava em meio à juventude de Nova York. Tony Manero é o símbolo do jovem daquela época: pode ganhar um salário baixo e enfrentar inúmeros problemas em casa, mas não deixa de se produzir com a roupa da moda e um penteado caprichado para arrasar nas pistas de dança. No mundo, podia ser apenas mais um, mas ali ele era rei. Todos sonhavam ser admirados como Tony Manero. E cabe salientar que, graças ao empenho do próprio Travolta, que exigiu planos abertos em suas coreografias, seu personagem foi um dos raros entre papéis masculinos a ter o figurino cuidado literalmente da cabeça aos pés.

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no mundo, podia ser mais um, mas nas pistas, ele era rei



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Madonna


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la não sossega. Depois de lançar, juntamente com a filha, Lourdes Maria, a linha Material Girl, voltada para as jovens garotas estilosas (o projeto teve parceria da Iconix Brand Group), Madonna emplacou outra grife, a Truth or Dare, cujos sapatos em poucas semanas viraram sucesso de vendas na loja Selfridges. Em parceria com a MG Icon e produção da Aldo Group Inc, a linha teve como consultora criativa a premiada Arianne Phillips, que cuida da imagem da Madonna há mais de 10 anos. São mais de 60 modelos diferentes de calçados, entre botas e sapatos, com preços que variam entre 89 e 349 dólares. “A primeira coisa que fiz ao iniciar o trabalho foi lembrar de todos os sapatos que Madonna usou ao longo dos anos. Depois, selecionamos aqueles cujos estilos não podemos abrir mão. Aquilo que sempre terá uma qualidade, algo provocador e diferente, além de uma perspectiva muito feminina”, disse Arianne à época do lançamento. O nome Truth or Dare, por sinal, é o mesmo do documentário de 1991 que cobria a antológica turnê Blonde Ambition, com a qual Madonna ganharia o mundo. Mais recentemente, Madonna ousou novamente. Em setembro, ela e Steven Klein apresentaram #SECRET PROJECT Revolution, um curta-metragem de 17 minutos cujo contundente material é composto por imagens P&B. É uma espécie de manifesto da rainha do pop sobre a atual democracia em colapso. Madonna diz: “Há muita beleza no mundo para ser desperdiçada, há muito talento para não ser notado, há muita criatividade para ser engolida por negociações do mundo corporativo.” E o que é que isso tem a ver com sapatos? Tudo. O modelo Nikko que ela aparece vestindo no vídeo, e que já despertava curiosidade quando vazaram na web trailers do filme, é assinado por Gio Diev e foi lançado em 2012, em uma coleção que destacava couro preto e saltos de metal esculpidos. Fonte de inspiração para um sem-número de cantoras que surgiram depois dela, Madonna deu seus primeiros passos no mundo do cinema no início dos anos 1980, com o cabelo armado e o visual rebelde. Seu primeiro filme, Procura-se Susan Desesperadamente, arrebatou as adolescentes fashionistas da época. Um pouco depois, já na segunda metade da década, ela opta por um visual à la Jean Seberg, célebre atriz do cinema francês do final da década de 1950. A “febre latina” aparece um pouco depois, e é quando Madonna lança o hit La Isla Bonita: seus cabelos estão curtos e ela usa cores quentes que lembram a cultura latino-americana. Mas foi com Blond Ambition World Tour, em 1990, que Madonna explodiu de vez, ostentando o indefectível sutiã de cone. A peça, criada por ninguém menos que Jean-Paul Gaultier, tornou-se um ícone da cantora. Lingeries usadas como peças externas, saias justas, umbigo à mostra, saltos agulha, rendas... Essa audácia em trazer para o público uma atitude diferente faz de Madonna uma espécie de Maria Antonieta contemporânea, já que ambas desafiaram ideias estabelecidas. Vanguarda é a palavra-chave para definir Madonna, que continua sendo até hoje admirada e copiada, incontestavelmente um fenômeno cultural, um verdadeiro símbolo de moda, identidade e atitude. Capa de várias revistas e amiga de muitos estilistas e modelos, possivelmente tenha tirado deste círculo de amizades e de sua paixão por estrelas de cinema da Old Hollywood a inspiração para Vogue, canção em que cita grandes nomes como Marilyn Monroe, Jean Harlow, Bette Davis, Greta Garbo, entre outras. Não citou a si própria, como ícone fashion e da música, mas bem que poderia.

Ela é uma espécie de Maria Antonieta contemporânea, sempre a desafiar ideias

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LadyGaga e há uma mulher que definitivamente não desce do salto, é Lady Gaga. E que salto! Alguns desafiam a gravidade e ultrapassam 25 centímetros, quem sabe para compensar seus 1m55cm de altura. Mas não é só pelo tamanho do salto que os sapatos da cantora pop chamam a atenção – os formatos, esses sim, são para lá de exóticos. Curiosamente, o modelo que virou marca registrada de Gaga é um sapato sem salto, o phantom criado pelo designer japonês Noritaka Tatehana. A parceria dele com a cantora começou em 2010 e, de lá para cá ela já adquiriu mais de 10 pares diferentes, apresentados nos shows e nos red carpets de premiações. No MTV Video Music Awards de 2010, a cantora foi mais uma vez o centro das atenções. Primeiro, por ser a recordista de indicações da noite e ter faturado oito troféus. Depois, porque usou um vestido longo e sapatos assinados por ninguém menos que Alexander McQueen. O estilista, aliás, já era o responsável pelo mesmo modelo usado por Gaga no clipe da música Bad Romance. Entre as maiores polêmicas provocadas por Gaga, está a criação de Franc Fernandez. O vestido de carne é considerado o mais provocativo já usado pela cantora – até para os mais acostumados às suas extravagâncias. E os sapatos, claro, foram feitos com o mesmo material – de acordo com o designer da peça, o calçado foi costurado com o fio de algodão usado para fazer rolos de carne. Lady Gaga está na origem de várias modas que desfilaram na última temporada: das mangas e ombros volumosos aos coturnos no meio da canela, sem falar no bralet. Nascida Stefani Joanne Angelina Germanotta no dia 28 de março de 1986 em Yonkers, Nova York, ela escolheu o nome artístico em homenagem ao sucesso Radio Ga-Ga, do Queen. Aprendeu a tocar piano aos quatro anos, escreveu a primeira musica aos 13 e fez a primeira performance em um night club em Nova York aos 14. A cantora vive pela moda. Ao compor suas canções, pensa como vai se vestir ao interpretá-las. O time de estilistas da Haus of Gaga materializa todas as suas fantasias. Foi nela, a propósito, que o já citado Marc Jacobs pensou ao desfilar sua coleção da primavera-verão de 2010 com perucas afro. Com ela na cabeça, McQueen criou, também na coleção do verão 2010, botas bestiais, desafiando os limites entre a moda e o corpo humano. Grace Jones, o músico alemão Klaus Nomi, conhecido por suas performances e seu estilo extravagante, Leigh Bowery, artista performático australiano baseado em Londres e superinfluente até hoje, e David Bowie são inspiradores para Lady Gaga. Mas como ela, só ela.

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a cantora vive pela moda, pensa no que vestir para interpretar suas cançþes


CarmenMiranda


á ouviu falar na artista nascida em Portugal chamada Maria do Carmo Miranda da Cunha? Não? Ouviu, sim, só que talvez não saiba que esse é o nome de batismo de um dos mais importantes ícones da cultura brasileira em todos os tempos. Nascida em 1909 em solo português, mas vindo para o Brasil com apenas 10 meses, Carmen Miranda teve uma vida breve, mas intensa e repleta de luz e talento. O apelido Carmen foi o pai quem deu, pois ela gostava desde criança de cantar e ele amava óperas. Com 20 anos, ela começou a cantar em clubes e teatros. A música Pra você gostar de mim, mais conhecida pelo refrão ‘Taí’, foi o grande sucesso de carnaval de 1930, vendendo 36 mil cópias, um marco para época. Não demorou para que a carreira da pequena notável – tinha 1m53cm e ganhou o apelido do radialista César Ladeira – decolasse. Gravou músicas de vários compositores e iniciou turnês, incluindo Argentina, Chile e Uruguai, sempre com shows lotados. Das rádios para o cinema foi um pulo. Em 1939, atuou em Banana da terra, onde apareceu pela primeira vez caracterizada de baiana e cantando a clássica O que é que a baiana tem?, de Dorival Caymmi. Durante uma apresentação no Cassino da Urca, o empresário norte-americano Lee Schubert, encantado com sua performance, convidou-a para se apresentar na Broadway. Eram os prenúncios de uma carreira internacional fulgurante. Já em 1941, ela se tornou a primeira artista latino-americana a imprimir suas mãos e os saltos-plataforma no Teatro Chinês, em Hollywood – absoluta consagração. “Ela é o único mito brasileiro cuja imagem é imediatamente associada aos calçados”, atesta Eduardo Motta. “Suas plataformas eram espetaculares, uma reinvenção das chopines renascentistas. Sob sua influência, a plataforma transformou-se no solado nacional por excelência até os dias de hoje”, afirma Motta. De acordo com o designer, Carmen acompanhava passo a passo a criação de todo o seu figurino, sendo particularmente cuidadosa com os calçados, a maioria deles confeccionada por sapateiros americanos, mas sempre levando sua marca inconfundível. Em 1946, Carmen Miranda foi a artista mais bem paga e a mulher que mais pagava impostos nos Estados Unidos. Até que conheceu e se apaixonou pelo americano David Sebastian, com quem se casou e viveu anos conturbados. Álcool e barbitúricos entraram em sua rotina, e com o desgaste inevitável gerado pelo relacionamento, passou a ter crises de depressão. No dia 4 de agosto de 1955, ela se apresentou no programa Jimmy Durante, quando passou mal. Foi para casa, e lá teve um fulminante ataque cardíaco, já na madrugada do dia 5. Estava com 46 anos. Uma vida curta, que graças ao seu talento, eternizou-se em mito, muito bem assentado em inesquecíveis plataformas.

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a pequena notável é o único mito do Brasil cuja imagem é associada diretamente aos sapatos



sofisticação também

rima com conforto

Independente se no Brasil ou no mundo, é possível notar, olhando para história, que a habilidade de aplicar o design na criação de objetos está inerente aos seres humanos. Uma capacidade que tem o poder de enriquecer e complexificar todas as nossas produções. No universo do calçado, a chegada do design só traz benefícios e possibilidades infinitas. Que venham mais mentes inquietas a nos brindar com inovação!

DESIGN X CONFORTO No século do hedonismo, prazer, conforto e bem-estar são palavras de ordem. Depois de uma longa e repressora ditatura da beleza, e todos os sacrifícios que ela exigia, a pós-modernidade trouxe consigo um movimento, com cada vez mais adeptos, dos amantes do bem-estar. Não importa a hora, nem o lugar, existe um grupo de pessoas querendo, cada vez mais, sentir-se bem, sem abrir mão do fruir estético, claro. Na moda, grande intérprete dos movimentos contemporâneos, a tradução dessa vontade de conforto aparece com força. No vestuário feminino, por exemplo, historicamente rígido com seus espartilhos e armações de ferro, percebemos a chegada das roupas amplas, das malhas leves. No universo dos sapatos, não poderia ser diferente. Nunca se viu como agora tantos modelos de calçados voltados para oferecer conforto ao usuário, somado aos seus atributos estéticos e de uso prático. Uma verdadeira invasão de flats ameaça o reinado dos saltos altos, com seus apliques e pedrarias que nada deixam a desejar no quesito sofisticação. Mas é evidente que os saltos também se reinventaram, afinal, há quem não abra mão de viver nas alturas. Pensando nisso, os fabricantes também trouxeram soluções que prometem uma versão equilibrada entre ergonomia e estética. É a tecnologia a serviço da saúde, trazendo materiais sintéticos, mais macios do que o próprio couro, e com facilidades vantajosas nas questões de produção e custo. Solados flexíveis, saltos e calçados mais anatômicos, enfim, não há limites para trazer para o universo do calçado duas vontades latentes dos protagonistas da cena contemporânea: beleza e bem-estar.

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paix達o POR SAPATOS


Q paixão

POR SAPATOS

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ue mulheres são doidas por sapatos, todo mundo (inclusive elas) já sabe. Mas afinal de contas, o que é que efetivamente acontece? Como explicar este fascínio? Coco Chanel, um dos ícones da moda mundial e sinônimo de elegância feminina, definiu: “Uma mulher elegantemente calçada nunca será feia.” Serão os sapatos uma espécie de bálsamo, que torna as belas ainda mais belas, mas que faz com as que nem tão belas se sintam encantadoras? Fernando Pires, estilista de calçados e queridinho de muitas celebridades brasileiras (veja mais sobre ele no capítulo 6), arrisca uma síntese: “A mulher não tem paixão por sapatos, mas sim obsessão! É uma peça tão forte em um visual que muitas vezes as pessoas nem prestam atenção à roupa. Uma entre tantas explicações seria que o sapato é a única peça do armário que a mulher sempre vai encontrar no seu número. Ela pode não encontrar o número 46 da roupa que ela quer, mas o sapato número 36 ou 37 e daí por diante vai encontrar. Ela pode estar mais cheinha, magra, ser alta ou baixinha, mas o calçado vai caber e ela vai se sentir linda. O sapato é o grande salvador da pátria”, explica Pires. A cantora canadense Celine Dion é uma assumida integrante do exército de mulheres fissuradas em sapatos. “Se você tem 600 pares de sapatos, você é considerada fanática? Eu tenho cerca de 3 mil... Veja bem, alguns usam drogas. Eu compro sapatos”, justifica-se Celine. Os saltos altos são sua grande preferência, por deixarem o look mais elegante. No livro Sapatos, Linda O’Keefe reuniu, em 500 páginas no formato 10cm x 15cm, mais de mil fotografias. E atesta: “Os sapatos são um impulso de mudança, uma forma de deixar o passado para trás e de seguir rumo ao futuro. (...) Os olhos podem ser as janelas da alma, mas os sapatos são a entrada para a mente feminina.” E cita a crítica de moda Holly Brubach, quando diz: “Um par de sapatos novos pode não curar um coração despedaçado ou aliviar uma enxaqueca, mas atenua os sintomas e afasta a tristeza.” As explicações sobre o porquê dos sapatos despertarem tamanha paixão nas mulheres costumam convergir, ainda que haja variações para a resposta à pergunta “de onde vem esse magnetismo que emana em especial dos saltos altos, cujo prazer estético muitas vezes se sobrepõe ao conforto físico?”. A sexóloga Laura Müller, por exemplo, responde assim: “Sapatos atraem a atenção feminina, atiçam a imaginação masculina e se tornam objeto de fetiche para todo mundo. Fetiche é um aspecto da nossa sexualidade; é essa atração que a gente sente por uma parte do corpo ou uma peça do vestuário. No dicionário etimológico, significa feitiço. É um objeto ao qual a gente atribui poderes mágicos, um amuleto, algo que nos encanta.” Segundo a sexóloga, cada pessoa tem o seu fetiche, mas há uma lista de coisas que seduzem um número grande de homens e mulheres, como lingerie, espartilhos, fendas e amarrações. Sapatos de salto alto encabeçam essa lista. Não é para menos.


sapatos s達o a porta de entrada da alma feminina

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o encontro do pĂŠ com o sapato seria uma alusĂŁo ao


“Saltos elevam o bumbum, os seios, a postura; deixam a mulher mais erótica. E quando a gente se sente assim, de fato fica mesmo, porque a sensualidade vem de dentro”, observa a sexóloga. Não é por outra razão que a tara por saltos passou a ser compartilhada também com os homens, que ficam enlouquecidos quando veem um belo par de pernas com salto agulha, por exemplo. Algumas pesquisas calculam que aproximadamente 30% da população masculina mundial sente fascínio por sapatos femininos.

SEX, CITY & SHOES Laura Müller vai adiante: “Toda forma pontuda é um objeto fálico; remete ao masculino. E toda forma arredondada, à sexualidade feminina. Os pés são pontudos; o sapato, como um todo, um invólucro acolhedor. O encontro do pé com o sapato seria uma alusão ao encontro amoroso, ao encaixe perfeito”, observa Laura, sugerindo um viés diferente à história do príncipe, da Cinderela e dos sapatinhos de cristal. Já o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, diretor do Centro do Cérebro e da Cognição da Universidade da Califórnia e autor do livro Fantasmas do Cérebro, acredita que a explicação para esta fissura das mulheres pode estar na proximidade entre os circuitos neurais que são relacionados à nossa imagem corporal. As áreas do cérebro associadas aos órgãos genitais e aos pés estariam muito próximas, sendo facilmente estimuladas entre si, e isso explicaria a relação fetichista entre os pés e a sensualidade. A personagem Carrie Bradshaw, vivida por Sarah Jessica Paker no seriado Sex and the City, virou um clássico quando se fala em paixão por calçados (os favoritos dela são os modelos criados por Manolo Blahnik). Rachelle Bergstein, autora do livro Do tornozelo para baixo – a história dos sapatos e como eles definem as mulheres, faz referência a Carrie: “A história dos sapatos nos últimos mais de cem anos é a história das mulheres contada dos tornozelos para baixo. Reflete uma tendência que começou com as bem-sucedidas sufragistas nos anos 1910, explodiu na década de 1960 com o movimento de libertação das mulheres e continuou pela década de 1980 com a luta por melhores cargos e igualdade salarial no mercado de trabalho. Culminou na década de 2000, quando as mulheres estabeleceram sua autossuficiência. A cultura pop nos apresentou Carrie Bradshaw: uma mulher solteira, bem-sucedida, financeiramente independente, que se recusava a se contentar com o homem errado e se dava o direito de gastar com sapatos caros. As mulheres têm lutado por mais liberdade e mobilidade – e tem vencido essa luta.” Rachelle Bergstein vai adiante: “Se você perguntar a uma mulher por que ela ama sapatos, a resposta será que eles a fazem se sentir bem, que são bonitos, que têm a capacidade de transformar uma roupa, de simples jeans e camiseta a um conjunto espetacular de parar o trânsito. Essas são apenas algumas razões pelas quais as vendas de calçados continuam crescendo, enquanto o varejo de maneira geral despenca.”

encontro amoroso, ao encaixe perfeito

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UMA MULHER POSSUÍA CENTENAS DE PARES DOS MINÚSCULOS SAPATOS, QUE VARIAVAM DE ACORDO COM A OCASIÃO

OS SAPATOS DA VERGONHA A expressão acima é o título de um dos capítulos

iniciação gin lien de sua filha, que acontecia entre os 3

do livro Sapatos, de Linda O’Keefe. Dedicado ao

e os 8 anos de idade. Depois de lavar e tratar os pés da

fetiche, traz um relato da abominável prática do

criança, quatro dos dedos eram curvados para trás e bem

enfaixamento dos pés, que durante séculos vigorou na

apertados com uma faixa enrolada à volta do pé. O dedo

China, até cair em desuso, em 1912 (oficialmente, o

grande não era dobrado para que o pé tivesse um formato

enfaixamento foi proibido por Mao Tsé-Tung em 1949).

de meia-lua. Após cada banho, o pé, ao ser enfaixado,

Diferentemente do Ocidente, onde os saltos muito

era sempre apertado um pouco mais e calçado com um

altos foram costumeiramente associados aos fetiches

sapato de um número abaixo. O que se esperava alcançar

masculinos, no Oriente o erotismo vinha do tamanho

com esse processo era uma raridade cultural: um ‘Lótus

dos pés femininos. Consta que, por volta do século

dourado’, um pé que medisse 7,5cm.”

X, as bailarinas exóticas da corte costumavam usar

Apesar da aparência disforme, os pés de lótus

meias muito apertadas, para que seus pés parecessem

eram considerados a parte mais erótica do corpo de

pequenos. Dali para a popularização do costume entre

uma mulher, e os delicados sapatos ou botinas que os

as classes mais altas, foi um pulo, de forma a que se

cobriam não eram menos deleitáveis aos olhos. Uma

tornou um rito de passagem. Conta Linda O’Keefe:

mulher possuía normalmente várias centenas de pares,

“Era através da astrologia que uma mãe de elevada condição social determinava a data apropriada para a

que variavam segundo a região e a moda, e passavam longas horas bordando-os com símbolos de fertilidade,


mesmo disformes, os pés de lótus eram considerados eróticos longevidade, harmonia e união. Os sapatos usados na

Anos depois, Chi’en, diante do sofrimento de sua mulher

noite de núpcias apresentavam frequentemente explícitas

por ter tido os pés enfaixados e deformados na infância,

cenas eróticas que serviam de instrução à virgem noiva.

revelaria sentir ódio por aquela situação.

No romance Filha da Fortuna, que se passa por volta

Já o filósofo Kwame Anthony Appiah, que esteve

de 1850, a escritora chilena Isabel Allende dedica um

no Brasil em 2013, como conferencista do programa

capítulo para a história de Tao Chi’en, um jovem médico

Fronteiras do Pensamento, mostra, em seu livro O código

chinês que embarca para Hong Kong, onde pretende

de honra, como o conceito de honra foi central para

seguir carreira, mas também se casar. “Alimentava a

pôr fim a práticas mortais e abomináveis e impulsionar

ambição de adquirir uma jovem delicada e dona de belos

revoluções morais no passado, a exemplo da tardia

pés. Seus lírios (lótus) dourados não poderiam ter mais

proibição da amarração dos pés na China. O filósofo

de seis ou oito centímetros de comprimento, e deveriam

também aborda os duelos na Inglaterra, a escravidão no

ser gorduchos e delicados ao tato, como os de um bebê

Novo Mundo e o assassinato de meninas e mulheres no

de poucos meses. Sentia-se fascinado pelo modo de

Paquistão. Appiah revela que o apelo à razão, à religião

andar das jovens de pés minúsculos, com seus passos

ou à moralidade não é suficiente para causar uma

curtinhos e vacilantes, aparentando estar sempre a ponto

mudança de fato na sociedade. Essas práticas imorais

de cair, as ancas projetadas para trás (...) Detestava os

e desumanas perpetradas contra homens e mulheres só

pés das camponesas – grandes, musculosos e frios.”

são erradicadas quando entram em conflito com a honra.


PESQUISA

paixão

POR SAPATOS

116

Um estudo recente realizado pela agência Giacometti Comunicação ajuda a colocar luzes na reflexão sobre a paixão feminina por sapatos. Foram entrevistadas 400 mulheres das classes A, B e C, de 18 a 40 anos, em São Paulo. O trabalho concluiu que a relação das mulheres com os sapatos parece irracional mesmo, pois elas dizem gostar da peça simplesmente por gostar. Mesmo não havendo motivo ou explicação lógica, o fato é que o sapato é um componente do visual tão importante quanto a roupa. Os sapatos de salto, especialmente, têm uma dimensão simbólica de poder, elegância e sensualidade para a mulher. O salto impõe, marca presença, emagrece, dá poder, melhora a postura, deixa elegante, é feminino, é chique, muda o visual. A pesquisa da agência Giacometti sugere que os sentimentos experimentados pela mulher no momento da compra de um sapato são o desejo de ficar mais atraente e de ser reverenciada, e não devido à funcionalidade do objeto. O estudo apresentou dados quanto à frequência de compra: estima-se que as mulheres adquiram um novo sapato por mês, no mínimo. As brasileiras têm, em média, o mínimo de 15 e o máximo de 110 pares de sapato. Um closet ou sapateira dignos de uma centopeia fazem parte dos sonhos dessas mulheres, que preferem escolher os modelos pela vitrine mesmo: é o que 68% delas reponderam. Para 44% das entrevistadas, na hora de qualquer compra o bom mesmo é levar um belo par de calçado para casa. Mas, afinal de contas, qual é o motivo que faz as mulheres amarem sapatos? A resposta de 45% das entrevistadas foi clara: “Porque amo sapatos”. Parece não haver mesmo uma lógica nesse amor desenfreado. Na análise, as mulheres de diferentes idades e classes sociais revelaram hábitos parecidos, como não comprar pela internet porque preferem provar o modelo; e a baixa fidelidade a uma marca específica, porque gostam de variar e escolhem pelo design do calçado, sem se preocupar com conforto ou marca – nenhuma das entrevistadas tinha mais de três pares da mesma marca. E aquela velha mania de combinar sapato com bolsa está mesmo saindo de moda por decisão das próprias consumidoras, aponta a pesquisa: para 66% das mulheres, os sapatos devem combinar é com a roupa; apenas 14% delas acreditam que os sapatos ainda devem ser combinados com a bolsa. O presidente da Giacometti e coordenador do estudo, Dennis Giacometti, explica que teve algumas surpresas com os resultados da pesquisa e destacou que uma das mais importantes ocorreu durante estudo etnográfico, no qual pesquisadores visitaram as entrevistadas em casa. “Constatamos que em pelo menos um terço da amostra as mulheres se manifestavam sobre os sapatos como se possuíssem uma coleção, algo valioso; e ao falarem sobre esta coleção, os olhos brilhavam.” E não bastasse tanta influência, o sapato agrada à mulher também por oferecer melhor possibilidade de adequação. Segundo o estudo, as mulheres reclamaram que as roupas, muitas vezes, não servem, não caem bem, enquanto com os sapatos isso não acontece. Formatos variados e numeração diversificada calçam mais tipos diferentes de pés, basta escolher o modelo e experimentar para ver se ficou bom. Para o coordenador da pesquisa, esse comportamento feminino em relação aos calçados diz muito sobre a mulher moderna. “Para a maioria delas, o sapato é um fetiche e em essência representa a possibilidade de essa ‘guerreira’, batalhadora de si própria, manifestar o seu estilo, a sua identidade”, destaca Dennis Giacometti. Em síntese, os sapatos guardam mais mistérios que a roupa. Mistérios e paixões.


os sapatos de salto alto têm uma dimensão simbólica de poder, elegância e sensualidade


FONTES CONSULTADAS

referências bibliográficas e/ou iconográficas Bergstein, Rachelle. Do tornozelo para baixo. Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2013. Chocklat, Aki. Design de sapatos. São Paulo : Senac SP, 2012. Design Museu. Cinquenta sapatos que mudaram o mundo. Lisboa : Autêntica Editora, 2010. Fundação Cultural de Campo Bom. A história do sapato: nos passos de Campo Bom. Porto Alegre : Pacartes, 2011. Motta, Eduardo. O calçado e a moda no Brasil: um olhar histórico. Novo Hamburgo : Assintecal, 2004. O’Keeffe, Linda. Sapatos. Lisboa : H.F.Ullmann, 2008.

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SITES: http://www.sapatosite.com.br/portugues/historia.htm#historia-brasil http://pt.wikipedia.org/wiki/Sapato www.fiemg.com.br www.arezzoco.com.br www.oestilo.com.br alexandrebirman.com.br luxusmagazine.com.br http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexandre_Birman www.alexandrebirman.com.br www.schutz.com.br www.arezzo.com.br http://www.abdi.com.br/Estudo/Relatório%20Calçados%20Couro.pdf http://jaqueta-de-couro.info/mos/view/Processo_de_curtição_do_couro/) http://www.gabrielspaniol.com.br/industrializacao-do-couro) http://www.brasil.gov.br/ciencia-e-tecnologia/2011/09/brasil-apresenta-inovacoes-do-setor-de-componentes-de-couro-em-evento-na-china


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