Revista jurídica
publicação periódica
nº 27 Out./Nov./Dez. 2013 – ANO XXXV
Revista jurídica
nº 27 Out./Nov./Dez. 2013 – Ano XXXV ÍNDICE Artigos Científicos
Directores João Frazão Francisca Soromenho Gonçalo Cardão Conselho Científico Carlota Pizarro de Almeida Sílvia Alves Eduardo Paz Ferreira Guilherme W. d’Oliveira Martins Miguel Nogueira de Brito Rui Gonçalves Pinto Fotocomposição AAFDL Paginação Fátima Rocha AAFDL Impressão e Propriedade Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa
ISSN 2182-9039
– Despedimento por Inadaptaçaõ vs Princípio da Segurança no Emprego ................... David Falcão – Da Revogação da Decisão de Contratar: Questões decorrentes da decisão de contratar ............................................... André Matias – Da Coligação do Contrato de Compra e Venda e de Crédito nas Relações de Consumo. Reflexos do Incumprimento do Vendedor na Esfera do Finaciador ..... Rui Bello da Silva – Da (In)constitucionalidade dos privilégios Creditórios Gerais do Estado ................ Rui Miguel R. R. Lopes da Cruz – A Programação Orçamental: Objecto de Auxílio e Imposição ao decisor orçamental Português .............................................. Nuno Saldanha de Azevedo
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Crónicas da Atualidade – Um Novo Futuro para a Universidade de Lisboa e para a sua Associação Académica ............................................ 97 André Machado – O Novo Regulamento de Avaliação: Desistir ou Avançar? ............................. 103 Afonso Brás – Em Nome de Uma Mudança................. 111 João Serras de Sousa
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ARTIGOS CIENTÍFICOS
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Despedimento por Inadaptação vs Princípio da Segurança no Emprego
ARTIGOS CIENTÍFICOS DESPEDIMENTO POR INADAPTAÇÃO VS PRINCÍPIO DA SEGURANÇA NO EMPREGO por David Falcão1
PALAVRAS-CHAVE “Despedimento por inadaptação”, “segurança no emprego”, “justa causa”.
Introdução Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 23/2012 de 25 de Junho no Código de Trabalho, o regime jurídico do despedimento por inadaptação sofre alterações de fundo2. Alterações que inclusive desvirtuam o que histórica e juridicamente foi o referido regime até então. Por outro lado, levanta-se a questão da inconstitucionalidade do regime do despedimento por inadaptação, por violação do Princípio da Segurança no Emprego previsto no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa, uma vez no referido regime se prevê causa de despedimento que ultrapassa as previstas no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa.
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Doutor em Direito e Professor do Ensino Superior. As alterações introduzidas pela Lei nº 23/2012 relativas ao despedimento por inadaptação resultaram do acordo celebrado a 11 de Maio de 2011 entre a Troika e o Governo Português na sequência do pedido de ajuda financeira feito por Portugal. O regime laboral actual prevê então que o empregador possa proceder a despedimento por inadaptação mesmo sem a introdução de alterações no posto de trabalho. 2
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Este estudo pretende, pois, provar a inconstitucionalidade do regime do despedimento por inadaptação previsto no Código de Trabalho Português em vigor justamente por violação do Princípio da Segurança no Emprego. Para o efeito iniciamos com a análise do Princípio da Segurança no Emprego e noção de justa causa no âmbito laboral, seguidamente com a caracterização do regime do despedimento por inadaptação antes e após a entrada em vigor da Lei nº 23/2012 e, por fim, após se ter cruzado os dois regimes alerta-se para a inconstitucionalidade do regime actual do despedimento por inadaptação.
1. Princípio da Segurança no Emprego – A consagração constitucional de justa causa de despedimento O artigo 53º da Constituição da República Portuguesa, cujo artigo 338º do Código de Trabalho é reflexo, consagra o Princípio da Segurança no Emprego. Neste sentido, são “proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”. Cabe, pois, aferir o que se entende por justa causa uma vez que, como refere Gomes Canotilho e Vital Moreira3, o conceito de justa causa em Portugal é relativamente aberto pois permite despedimentos com base em critérios objectivos para além do despedimento disciplinar ou com base em critérios subjectivos. O que, sem dúvida, a Constituição exclui são os despedimentos discricionários ou arbitrários. Pode considerar-se uma dupla dimensão do conceito de justa causa: a justa causa subjectiva e a justa causa objectiva. No que concerne à justa causa subjectiva ou disciplinar, dependendo, por sua vez, de comportamento culposo imputável ao trabalhador, legitima o despedimento desde que tal comportamento torne imediatamente impossível a subsistência da relação laboral (artigo 351º, nº 1 do CT). Desta forma, como explica João Pedro Regêncio “a função tuitiva do Direito do Trabalho impõe a exigência de justa causa para o despedimento, não consentindo, desse modo, a dissolução
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Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 709.
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ad nutum da relação laboral pelo empregador”4. No que diz respeito à justa causa objectiva, a lei, taxativamente, consagra situações que apesar de externas ou exógenas à relação laboral e, portanto, não imputáveis nem ao trabalhador nem ao empregador podem conduzir ao despedimento. Desta forma, cumpridos determinados requisitos o empregador pode colocar fim à relação laboral mesmo não existindo qualquer comportamento culposo por parte do trabalhador. A consagração legal da justa causa objectiva prende-se fundamentalmente com a adequação do regime laboral a determinadas realidades económicas. Neste sentido, a dissolução do vínculo laboral com base em justa causa objectiva apenas pode ter por base motivos de mercado, estruturais ou económicos. A lei consagra taxativamente três formas de cessação do contrato de trabalho com base nos referidos motivos de natureza objectiva: Despedimento colectivo (artigo 340º, alínea d) do CT), despedimento por extinção do posto de trabalho (artigo 340º, alínea e) do CT) e despedimento por inadaptação (artigo 340º, alínea f) do CT). Na sequência do que se realçou no primeiro parágrafo deste capítulo, e atentos os motivos expostos, pode concluir-se que a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 53º alude a um conceito relativamente amplo de justa causa5 que prevê não só o despedimento por facto imputável (justa causa subjectiva) ao trabalhador mas igualmente o baseado em justa causa objectiva6. Em entendimento semelhante dispõe igualmente o artigo 30º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. O que a Constituição proíbe são os despedimentos arbitrários, sem justa causa.
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Cfr. João Pedro Regêncio, Da inadaptação do Memorando de Entendimento ao Direito Laboral Português, artciencia.com, year VII, Number 15, May 2012 – November 2012, p. 2. 5 Cfr. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13ª ed., Almedina, 2008, p. 556; cfr. Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 3ª ed., Almedina, 2006, pp. 873 a 875. 6 Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 64/91, Processo nº 117/91, “(...) O conceito constitucional de justa causa é susceptível de cobrir factos, situações ou circunstâncias objectivas, não se limitando à noção de justa causa disciplinar (...).
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2. Despedimento por inadaptação antes e após a entrada em vigor da Lei nº 23/2012 de 25 de Junho Historicamente o despedimento por inadaptação surge pela primeira vez como regime jurídico autónomo em 1991, em concreto por via do DL nº 400/91 de 16 de Outubro mantendo-se na essência, por sua vez, nos Códigos de trabalho de 2003 e de 20097. Como não pretendemos debruçar-nos sobre a evolução histórica do despedimento por inadaptação, focalizar-nos-emos apenas no estudo do regime antes e após da entrada em vigor das alterações produzidas pela Lei nº 23/2012 de 25 de Junho. Antes das alterações, o despedimento por inadaptação baseava-se na inadaptação superveniente do trabalhador em virtude de alteração introduzida no posto de trabalho8. Neste sentido, o artigo 373º do Código de Trabalho considerava justamente despedimento por inadaptação a “cessação do contrato de trabalho promovida pelo empregador e fundamentada em inadaptação superveniente do trabalhador ao posto de trabalho”. Por sua vez, o despedimento por inadaptação só poderia ter lugar quando, cumulativamente se verificassem os requisitos previstos no artigo 375º ou seja: 1. “Tenham sido introduzidas modificações no posto de trabalho resultantes de alterações nos processos de fabrico ou de comercialização, de novas tecnologias ou equipamentos baseados em diferente ou mais complexa tecnologia, nos seis meses anteriores ao início do procedimento” (artigo 375º, nº 1, alínea a)).
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Para aprofundar a evolução histórica do regime do despedimento por inadaptação cfr. João Pedro Regêncio, Da inadaptação do Memorando de Entendimento ao Direito Laboral Português, op. cit, pp. 6 e ss. 8 Não está em causa a inadaptação originária do trabalhador uma vez que o regime para tutelar essa situação é o do período experimental. Cfr. João Pedro Regêncio, Da inadaptação do Memorando de Entendimento ao Direito Laboral Português, op. cit, p. 7; cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Almedina, 2006, p. 895.
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2. “Tenha sido ministrada formação profissional adequada às modificações do posto de trabalho, sob controlo pedagógico da autoridade competente ou de entidade formadora certificada” (artigo 375º, nº 1, al.b)). 3. “Tenha sido facultado ao trabalhador, após a formação, um período de adaptação de, pelo menos, 30 dias, no posto de trabalho ou fora dele sempre que o exercício defunções naquele posto seja susceptível de causar prejuízo sou riscos para a segurança e saúde do trabalhador, de outros trabalhadores ou de terceiros” (artigo 375º, nº 1, alínea c)). 4. “Não exista na empresa outro posto de trabalho disponível e compatível com a qualificação profissional do trabalhador” (artigo 375º, nº 1, alínea d). 5. “A situação de inadaptação não decorra de falta de condições de segurança e saúde no trabalho imputável ao empregador” (artigo 375º, nº 1, alínea e), e sempre que se verifique “redução continuada de produtividade ou de qualidade ou avarias repetidas nos meios afectos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde do trabalhador, de outros trabalhadores ou de terceiros desde que sendo determinada pelo modo de exercício de funções do trabalhador, torne praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho” segundo o artigo 374º, nº 1. Da conjugação dos artigos 373º, 374º e 375º resultava um regime fechado e baseado exclusivamente em causas objectivas (introdução de elemento externo à actividade laboral ao qual o trabalhador não se adaptou). Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 23/2012 de 25 de Julho o regime do despedimento por inadaptação é totalmente desvirtuado e processa-se uma clara violação do Principio da Segurança no Emprego previsto no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa. Pois introduz-se, como analisaremos seguidamente, uma “nova” noção de justa causa de despedimento que não se baseia nem em causas objectivas nem subjectivas mas sim, claramente, na arbitrariedade. 11
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Do acordo celebrado a 11 de Maio de 2011 entre a Troika e o Governo Português na sequência do pedido de ajuda financeira feito por Portugal podem retirar-se diversas ilações. Em primeiro lugar, o Governo Português obrigou-se a redefinir as causas de despedimento, flexibilizando por sua vez o vínculo laboral e, por outro lado, a reduzir os custos relativos a compensação por cessação de contrato de trabalho9; objectivos: aumentar a produtividade, a competitividade das empresas, reduzindo, por sua vez, gastos com despedimentos baseados em causas objectivas. É justamente neste sentido, centrando-nos apenas no regime do despedimento por inadaptação, que o acordo celebrado entre o Governo e a Troika prevê que este deva ser possível mesmo sem que se produza qualquer alteração ao posto de trabalho10. Desta forma, é com a entrada em vigor da Lei nº 23/2012 de 25 de Junho, que é “arrasado” o regime jurídico do despedimento por inadaptação e com reforma atrás de reforma se “vai escrevendo a crónica da morte anunciada do (já não) tão moderno Direito do Trabalho”11. Veja-se: Em primeiro lugar, a noção de despedimento por inadaptação prevista no artigo 373º do Código de Trabalho em vigor não sofre qualquer alteração – 1ª incongruência – pois, “Considera-se despedimento por inadaptação a cessação de contrato de trabalho promovida pelo empregador e fundamentada em inadaptação superveniente do trabalhador ao posto de trabalho”. Em segundo lugar, às situações de inadaptação previstas no artigo 374º, acrescenta-se a descrita nº 2 que prevê que se verifica “inadaptação de trabalhador afecto a cargo de complexidade técnica ou de direcção quando não se cumpram os objectivos previamente acordados, por escrito, em consequência do seu modo de exercício de funções e seja praticamente
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Cfr. Lei nº 53/2011 de 14 de Outubro. Cfr. Ponto 4.5. i) do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica de 17 de Maio de 2011 celebrado entre Governo Português, Comissão Europeia, FMI e Comissão Europeia. 11 Cfr. João Pedro Regêncio, Da inadaptação do Memorando de Entendimento ao Direito Laboral Português, op. cit, p. 18. 10
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impossível a subsistência da relação de trabalho” – 2ª incongruência – Por um lado, porque se introduz uma “espécie de período experimental” que faz depender a manutenção do posto de trabalho do cumprimento de determinados objectivos quando na verdade no âmbito laboral a figura dos objectivos apenas releva para efeitos de retribuição (artigo 261º)12. Por outro lado, porque sendo este tipo de despedimento baseado em causas objectivas (não imputáveis ao trabalhador) não se pode de forma alguma considerar situação de inadaptação o não cumprimento de objectivos em consequência do modo de exercício das funções adstritas ao trabalhador (causa subjectiva) podendo, desta forma, colocar-se a questão: inadaptação a quê? Em terceiro lugar, naquela que provavelmente constitui a alteração mais controversa, o artigo 375º, nº 2 dispõe: “O despedimento por inadaptação na situação referida no nº 1 do artigo anterior, caso não tenha havido modificações no posto de trabalho, pode ter lugar desde que, cumulativamente, se verifiquem os seguintes requisitos: a) Modificação substancial da prestação realizada pelo trabalhador, de que resultem, nomeadamente, a redução continuada de produtividade ou de qualidade, avarias repetidas nos meios afectos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde do trabalhador, de outros trabalhadores ou de terceiros, determinados pelo modo do exercício das funções e que, em face das circunstâncias, seja razoável prever que tenha carácter definitivo;
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Se se quiser chegar mais longe pode ainda afirmar-se que com o estipulado no artigo 374º, nº 2 se abala a própria noção de contrato de trabalho mediante o qual o trabalhador está vinculado a uma obrigação de meios e não de resultados o que, por sua vez, distingue o contrato de trabalho (artigo 11º do CT) do de prestação de serviços (artigo1154º do CC). Ou seja, para a perfeita execução do contrato de trabalho é suficiente que o trabalhador se encontre à disposição do empregador para desenvolver de forma diligente e reiterada a actividade contratada. A não obtenção de um fim é, normalmente, irrelevante para a referida perfeita execução do contrato. Desta forma é totalmente desprovido de sentido que se faça depender a manutenção de um contrato de trabalho da obtenção de um resultado/objectivo.
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b) O empregador informe o trabalhador, juntando cópia dos documentos relevantes, da apreciação da actividade antes prestada, com descrição circunstanciada dos factos, demonstrativa de modificação substancial da prestação, bem como de que se pode pronunciar por escrito sobre os referidos elementos em prazo não inferior a cinco dias úteis; c) Após a resposta do trabalhador ou decorrido o prazo para o efeito, o empregador lhe comunique, por escrito, ordens e instruções adequadas respeitantes à execução do trabalho, com o intuito de a corrigir, tendo presentes os factos invocados por aquele; d) Tenha sido aplicado o disposto nas alíneas b) e c) do número anterior, com as devidas adaptações.” – 3ª incongruência – concede-se ao empregador a faculdade de fazer cessar a relação laboral recorrendo ao despedimento por inadaptação, mesmo não se tendo processado qualquer alteração ao posto de trabalho; então é hora de perguntar, de novo: inadaptação a quê? Recordando, em conformidade com a noção de despedimento por inadaptação prevista no artigo 373º, o empregador apenas poderá fazer cessar o contrato de trabalho por esta via com o fundamento em inadaptação superveniente ao posto de trabalho, inadaptação esta que resulte de alteração introduzida no posto de trabalho à qual o trabalhador não se adaptou13. Por outro lado, o artigo 351º, nº 2, alínea m) considera como justa causa subjectiva de despedimento “reduções anormais de produtividade” bem como a alínea d) do nº 2 do mesmo artigo que consagra, igualmente, como justa causa subjectiva de despedimento o “desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto”. É, na realidade, absurdo que se consagrem as mesmas situações constituintes de justa causa objectiva (despedimento por inadaptação não se tendo processado qualquer alteração ao posto
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Pois se assim não fosse, todos os contratos de trabalho teriam uma espécie de “período experimental” durante toda a sua duração o que levaria a questionar o previsto no artigo 53º da CRP sobre a Segurança no Emprego.
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de trabalho) e simultaneamente subjectiva de despedimento (despedimento por facto imputável ao trabalhador) basta confrontar os artigos 375º, nº 2 e 351º, nº 2, alíneas d) e m) para se constatar tal realidade. Em suma, o despedimento por inadaptação deve basear-se apenas na introdução de alterações ao posto de trabalho às quais o trabalhador não logrou adaptar-se ou seja, sempre com base numa causa objectiva, não imputável ao trabalhador, em concreto de natureza tecnológica. Admitimos, de facto, a importância da modernização dos postos de trabalho com o objectivo de aumentar a produtividade e consequentemente a competitividade das empresas e que os trabalhadores devem adaptar-se obrigatoriamente a essa constante modernização. O que não podemos admitir é um regime que considere a inadaptação de um trabalhador ao posto de trabalho sem que se tenha processado qualquer alteração nesse posto de trabalho porque, se assim fosse, aceitaríamos uma forma de “despedimento nova” que não tem por base nem causas objectivas nem subjectivas, um despedimento arbitrário e claramente inconstitucional por violação do artigo 53º da Constituição da República Portuguesa. É justamente a questão da inconstitucionalidade do actual regime desta forma de cessação de contrato de trabalho que vamos analisar.
3. Da inconstitucionalidade do actual regime do despedimento por inadaptação – notas conclusivas O artigo 53º da Constituição da República Portuguesa permite efectivamente o despedimento com base em causas objectivas (estruturais, tecnológicas ou de mercado) ou subjectivas (comportamento culposo do trabalhador) sempre que em qualquer das situações se manifeste impossível a subsistência da relação laboral. Com o regime actualmente em vigor do despedimento por inadaptação desaparece a garantia da segurança no emprego prevista na Lei Fundamental. Consagra-se, pois, uma forma de despedimento “estranha”, arbitrária, baseada na redução de produtividade ou de qualidade, avarias repetidas nos meios afectos ao posto de trabalho ou riscos para a segurança e saúde
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do trabalhador ou de outros trabalhadores por causa não imputável ao trabalhador e sem qualquer alteração introduzida no posto de trabalho. Desta forma “não existindo qualquer modificação no posto de trabalho, deixa de existir também qualquer interesse da entidade empregadora digno de tutela”14. Na conjuntura actual, a necessidade das empresas aumentarem a produtividade, a competitividade e reduzirem custos é uma evidência. No entanto, quando se confronta essa necessidade com um valor fundamental como o previsto no artigo 53º da Constituição da República Portuguesa que proíbe claramente despedimentos arbitrários obviamente que o valor constitucionalmente tutelado se sobrepõe às necessidades de mercado. Concluindo, pode dizer-se, ironicamente, que a solução passa pela alteração da Constituição da República Portuguesa de forma a legitimar um regime jurídico morto à nascença por ferido de inconstitucionalidade.
BIBLIOGRAFIA CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 2007. LEITÃO, Luís Menezes Direito do Trabalho, 2ª ed., Almedina, 2010. MONTEIRO FERNANDES, António Direito do Trabalho, 13ª ed., Almedina, 2008. PALMA RAMALHO, Maria do Rosário Direito do Trabalho, Almedina, 2006.
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Cfr. João Pedro Regêncio, Da inadaptação do Memorando de Entendimento ao Direito Laboral Português, op. cit, p. 14.
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REGÊNCIO, João Pedro Da inadaptação do Memorando de Entendimento ao Direito Laboral Português, artciencia.com, year VII, Number 15, May 2012 – November 2012. ROMANO MARTINEZ, Pedro Direito do Trabalho, 3ª ed., Almedina, 2006.
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Da Revogação da Decisão de Contratar
ARTIGOS CIENTÍFICOS DA REVOGAÇÃO DA DECISÃO DE CONTRATAR: QUESTÕES DECORRENTES DA DECISÃO DE CONTRATAR* Por André Matias * Estudo realizado no âmbito da disciplina de Contratação Pública incluída do mestrado de ciências jurídico-financeiras.
Sumário Ao longo deste estudo fizemos uma análise antes de tudo temporal: desde a decisão de contratar enquanto ato administrativo não esquecendo os primórdios e a discussão que preside depois ao tema central do estudo – revogação da decisão de contratar. Depois de colocarmos em análise o que nos pareceu mais relevante, desde logo a definição do momento a partir do qual a administração se encontra vinculada perante os particulares a praticar uma decisão. Tratámos de seguida os efeitos e demais consequências legais constantes da revogação da decisão de contratar, não sem antes fazermos uma descrição do instituto e da ausência de normas legais que o regulem como seria de exigir. Foi notório ao longo deste trabalho a falta de doutrina e jurisprudência que se tenha já pronunciado sobre esta temática. Perante esta ausência legal, quer de normas quer de tomadas de posição, estudámos outro mecanismo de fazer operar a indemnização a que o artigo 80º do Código dos Contratos Públicos deve obrigar, concluindo-se pela aplicação da lei que regula a responsabilidade extra-contratual das entidades públicas.
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Não olvidando a evidente qualidade sistemática que o Código dos Contratos Públicos possui, parece-nos que numa próxima alteração legislativa a regulação deve merecer mais atenção por parte do legislador.
Introdução: Pretende-se com o presente estudo aprofundar as questões mais relevantes relacionados com a revogação da decisão de contratar, prevista no artigo 80º do Código dos Contratos Públicos. É sabida a divergência que a leitura, e subsequentes efeitos, do artigo 80º e a decisão de contratar propriamente dita, têm criado na nossa doutrina e jurisprudência. Impõe-se por isso uma análise cuidada sobre esta matéria atentas as incongruências em que até o próprio supremo tribunal administrativo já incorreu. Neste estudo iremos abordar apenas as questões que presidem a este procedimento administrativo, e posteriormente analisaremos o problema da revogação da decisão de contratar conjuntamente com todos os efeitos daí decorrentes e que padecem, muitos deles, de previsão legal. Ao iniciarmos este estudo damos desde já nota de que o mesmo não pretende ser um aglomerar de opiniões por parte da doutrina e jurisprudência portuguesas. Pretende-se – isso sim – aprofundar aquilo que pensamos ainda não ter sido dito e pensado sobre a revogação da decisão de contratar. Sem prejuízo de naturalmente apresentarmos as posições mais coerentes da doutrina sobre esta matéria, não nos absteremos de apresentar soluções que, depois de um estudo cuidado, mereceram a nossa melhor opinião.
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Bem sabíamos ao iniciar este estudo a reduzida doutrina e jurisprudência que em Portugal se debruçou sobre esta matéria. Pretende-se, pois, fazer uma análise que não olvide a pronúncia de ilustres autores sobre este tema mas que ao mesmo tempo não iniba o nosso espírito crítico de apresentar novas soluções, abrindo novos caminhos naquilo que pode ser o futuro da decisão e da revogação da decisão de contratar no Código dos Contratos Públicos.
Da Revogação da Decisão de Contratar
Antes do CCP
Entre nós foi Sérvulo Correia quem primeiro discorreu sobre a decisão de contratar propriamente dita, consagrando-a como um procedimento com autonomia própria. O digníssimo mestre caracteriza-o como um ato inicial e propulsivo do procedimento. Para uma melhor explicação do que deve considerar-se por ato inicial ou propulsivo o ilustre professor sublinha “ao apelidarmos esta decisão inicial ou ato propulsivo do procedimento pré-contratual, temos em mente tratar-se do primeiro ato decisório do procedimento. Mas toda a decisão nasce de algo que a antecede porque tem de ser preparada”1. Nesta tese, que data de 1987 (ano de edição), tentava o professor Sérvulo Correia demonstrar que a decisão ou deliberação de contratar envolve necessariamente a apreciação de um ou mais interesses públicos cuja prossecução representa a atribuição do Estado e a identificação do contrato, e dentro deste amplo género, de um contrato com determinada causa-função, como meio mais idóneo para satisfazê-lo2. Foi esta consideração inicial, apoiada pelo nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 55/95 (entretanto revogado), que o autor apoia e sedimenta a sua tese na medida em que o mesmo artigo, ao expressamente referir “a decisão ou deliberação de contratar”(expressão jurídica que viria a ser banida com a entrada em vigor do Decreto-Lei 197/99)demonstrava claramente que o procedimento merecia alguma autonomia relativamente à contratação propriamente dita. Contudo não foi pacífico na doutrina que este procedimento – a decisão de contratar enquanto ato determinante do inicio do procedimento administrativo – merecesse tanta atenção e autonomia quanto a que Sérvulo Correia lhe pretendia dar.
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CORREIA,Sérvulo, in Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, 1987, Almedina, p. 664. 2 ESTEVES DE OLIVEIRA, Mário e ESTEVES OLIVEIRA, Rodrigo, in Concursos e outros procedimentos de adjudicação administrativa, 1998.
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Na mesma linha de pensamento, mas por motivos diferentes, se situam os ilustres autores Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira e Margarida Olazabal Cabral. Os primeiros3 argumentam que não há qualquer justificação que a administração deva pela sua decisão de contratar, na medida em que, independentemente do processo ter de se iniciar com uma decisão, ainda nada foi comunicado para “ o exterior da pessoa coletiva”. Com efeito, nada é devido pela administração uma vez que nada foi ainda comunicado ou publicitado, dispondo a mesma entidade administrativa que tomou a decisão de contratar, de uma liberdade ampla que lhe permitiria decidir-se livremente pela revogação do procedimento, alterando até eventualmente a sua forma. Os ilustres autores parecem ignorar, como bem denota Tiago Duarte4, que pode existir publicitação de uma decisão de contratar por parte de uma entidade pública sem que tenha havido um convite à apresentação proposta. Exemplo paradigmático e tantas vezes visto é o da resolução do conselho de ministros, onde se publicita uma decisão sem que tenha ainda existido anuncio de abertura de concurso. Por seu turno, Margarida Olazabal Cabral5, não apresenta reticências para admitir que o procedimento se inicia com a decisão de contratar, ressalvando até as situações nefastas para as partes que tal obliteração criaria, como seria o caso de os destinatários não terem conhecimento do momento a partir do qual a administração se encontra vinculada. Todavia, e não obstante este reconhecimento, a mesma autora não adere à tese da autonomia dogmática da decisão de contratar5, considerando que o procedimento não se inicia com a decisão de contratar mas sim com a próprio ato de abertura do procedimento, chegando mesmo a poder inferir-se que os dois atos se acabam por confundir, não existindo portanto autonomia dogmática da decisão de contratar face ao próprio ato de abertura do
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Ob. e a. cit. DUARTE, Tiago in A decisão de contratar no Código dos Contratos Públicos, in Estudos da Contratação Pública, vol. I, 2008, Coimbra Editora, pp. 153-156. 5 OLAZABAL CABRAL, Margarida, in O Concurso Público nos contratos Administrativos, 1999, pp. 142-144. 4
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procedimento, considerando até que não poderia tal procedimento pré-contratual configurar um ato administrativo definitivo. A posição dos autores em referência, era de resto entendimento de larga maioria da doutrina que não considerava esta fase pré-contratual, configurando até requisitos negativos para que qualquer uma (pré-contratual) pudesse existir, sendo, pela lei e entendimento da doutrina anteriormente em vigor, necessária a cumulação de vários pressupostos negativos. Dentre eles: que a lei não previsse um procedimento; que a minuta do contrato não se encontrasse sujeita a visto do tribunal de contas; que a competência para deliberar não coubesse ao órgão colegial; que se não dividisse entre os órgãos diferentes a competência para deliberar sobre a matéria regulada pelo contrato, e competência para celebrar o contrato em nome da pessoa coletiva; que a pretensão que a administração tivesse de contratar determinado tipo de contrato não tivesse sido deduzida por mais de um interessado; que a decisão de contrarie uma pretensão deduzida por um particular; que tal pretensão de contratar não contrariasse uma pretensão deduzida por um particular. Se estes limites fossem violados o contrato seria inválido. Era este o regime e o entendimento anterior que regia as relações nesta fase pré-contratual entre a entidade pública e os destinatários das suas decisões. A adesão à autonomia dogmática da decisão de contratar
Em bom rigor não teria sido necessário que o Código dos Contratos Públicos (CPP) tivesse concretizado juridicamente tal procedimento pré-contratual, aderindo ao entendimento de Sérvulo Correia. Note-se que ainda antes da publicação do CPP já podiam proceder os argumentos que consideravam a decisão de contratar um ato administrativo. Notamos e aderimos especialmente à posição de Maria João Estorninho6 que clarifica a destrinça entre, por um lado aquilo que é a decisão de contratar
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ESTORNINHO, Maria João, in Direito Europeu dos Contratos Públicos, in Um olhar Português, 2006, p. 370 e seg.
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e do procedimento que deve ser adotado, e por outro a publicitação do anuncio relativo ao concurso, que consubstancia uma formalidade. Bem se percebe a necessidade de considerar este ato (decisão de contratar) como um ato de natureza administrativa. É porque se não for considerado enquanto tal, como aconteceu durante largos anos, não poderia estar sujeito a impugnação contenciosa, o que levantaria diversas questões formais sobre as quais não cabe nesta sede discernir. Se bem atentarmos na formação dos concursos públicos e das respetivas decisões que não agradam aos destinatários, verificamos que as maiores objeções que motivam uma maior intervenção contenciosa não são tanto as decisões finais da entidade adjudicante, ou a sua fundamentação, mas sim as decisões de contratar por parte da entidade pública a que subjaz abertura de concurso e que tantas vezes é considerada ilegal por parte de quem com ela se sente lesado. Também Vieira de Andrade7 já se pronunciou sobre esta autonomia. O ilustre administrativista alinhou ao lado dos defensores da autonomia da decisão de contratar por várias ordens de razões: em primeiro lugar – diz Vieira de Andrade – estamos perante um ato jurídico que reflete uma decisão administrativa na medida em que se delimita o âmbito material em que o concurso pode e vai decorrer, constituído esta decisão de contratar um momento inicial autónomo que culminará na adjudicação. Pela nossa parte este parece-nos ser claramente a boa doutrina. O ter de existir uma publicitação e um anúncio ao público pressupõe uma tomada de decisão prévia. Esta decisão não é desprovida de conteúdo jurídico ou vazia de argumentação, é, antes de mais, uma decisão de um ente público que se debruça sobre que tipo de procedimento, e necessários trâmites, irá seguir o concurso que só subsequentemente irá ser publicitado.
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DE ANDRADE, Vieira, in Anotação ao Acórdão do STA, de 26 Janeiro 2000, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132, nº 3097.
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Dizer-se que o que os lesados têm direito a impugnar é o concurso público, equivale a afirmar-se que podem impugnar a decisão de contratar. Este direito que é conferido aos lesados não é o de agir contenciosamente sobre um anúncio ou uma publicitação de concurso, porque o que eles pretendem impugnar são as razões que levam a entidade pública a abrir concurso e as respetivas fundamentações. É exatamente isto que consubstancia a decisão de contratar e que os lesados podem colocar em causa e dar como matéria sujeita a discussão. Como se infere da argumentação aduzida, somos defensores de uma visão mais lata sobre o âmbito da decisão de contratar. Esta decisão não inclui só a tomada de posição propriamente dita da entidade pública, ela deve incluir – antes de mais – os fundamentos que levaram a administração a contratar; as razões de interesse público; os interesses ponderados; a racionalização dos meios etc. Em suma, deve considerar-se neste âmbito toda uma atividade cognoscitiva que a entidade pública realiza antes de declarar e publicitar o concurso, e que embora constitua uma formalidade essencial do procedimento, não é sobre ela que os tribunais se irão debruçar.
Vinculação da administração Questão diversa da que tratámos no ponto anterior, embora como ela intimamente relacionada, é a determinação do momento a partir do qual se deve considerar que a administração pública se encontra vinculada. Esta temática já fez jorrar muita tinta na doutrina e jurisprudência, ao ponto de até o próprio Supremo Tribunal Administrativo (STA) ter entrado em contradição8.
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Os acórdãos proferidos pelo STA em 29/03/2007 no âmbito dos proc. nº 0681/06 e o acórdão proferido pelo mesmo tribunal em 21/02/2002 no âmbito do proc. nº 046808, são contraditórios nos seus próprios termos.
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Ponto de partida para uma análise sobre deste momento em concreto é o artigo 36º do CPP que oferece a “decisão de contratar” como o momento nuclear para o inicio da formação de qualquer contrato. Ao indicar expressamente que a formação de qualquer contrato se inicia com decisão de contratar, o CPP deixa também claro que a este ato decisório subjaz uma decisão da entidade adjudicante de autorizar a despesa e de dar inicio ao procedimento, como de resto é depois sustentado pelo artigo 38º do mesmo diploma legal. Não cumpre aqui analisar o regime de despesas previsto nos artigos 16º a 22º do RJRDPCP, e que se mantêm em vigor depois da entrada do artigo 14º do Decreto-Lei nº 18/2008, que aprovou o CCP. Sobre esta temática apenas diremos que por via de regra a entidade que tem poderes para adjudicar é a mesma que tem poderes para autorizar a despesa. Na eventualidade do ato ser proferido por quem não possua competência para tal, o ato deve ser considerado nulo ao abrigo do artigo 133º do Código Procedimento Administrativo. Para o saudoso mestre Diogo Freitas do Amaral, seguido por Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, a administração só deve considerar-se vinculada com abertura do concurso, sendo que, antes de tal abertura, tudo o que existe é meramente interno e que pode sempre ser alvo de modificação por parte da administração. Com o devido respeito, não professamos de tal entendimento. A administração está vinculada desde o momento em que decide contratar. Era já este o entendimento defendido por Sérvulo Correia9, e que, a nosso ver, o CPP veio agora consagrar. Note-se que os referidos autores que defendem que a administração só se encontra vinculada depois da respetiva abertura de concurso parecem esquecer que em muitos casos a própria decisão é alvo de publicitação. É de resto o que acontece com a resolução do conselho de ministros quando é publicada em Diário da República.
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CORREIA, Sérvulo, ob. cit.
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A partir do momento em que se toma a decisão há um conjunto de atos que lhe estão subjacentes como é exemplo o caderno de encargos. Todos estes atos que estão diretamente conexionados com a tomada de decisão e respetiva publicitação continuem já uma vinculação da administração. Os ilustres autores Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira10 classificam a decisão de contratar como o ato jurídico unilateral pelo qual constatada a conveniência para comprometer, a entidade adjudicante decide abrir um procedimento para determinar com quem e em que condições será celebrado o correspondente contrato. Depois desta classificação os mesmos autores conferem à decisão de contratar o marco inicial do procedimento para logo depois tentarem aferir o grau de vinculação da administração no caso de esta se querer precipitar numa revogação da decisão de contratar. Argumentam os referidos autores que a vinculação da administração deve decorrer de uma melhor interpretação do artigo 80º, nº 2 do CPP, aduzindo argumentos que merecem aqui referência: primeiramente sublinham que o momento determinante para se dar o termino do momento revogatório é o da apresentação de qualquer proposta e, secundariamente, porque só perante uma publicidade devida não existe qualquer vinculação por parte da administração, dando nota de que a falta de anuncio não faz relevar a consideração de tal decisão enquanto ato administrativo. Em jeito de conclusão referem os mesmos autores que esta decisão tem apenas importância para terceiro a partir do momento em que tal se torne pública e seja devidamente anunciada devendo, pois, considerar-se que é a partir deste momento que se deve considerar que a administração se encontra vinculada perante terceiros, dispondo a decisão de contratar como apenas uma pré-decisão ou antecedente de procedimento11. Os argumentos impressionam e não se encontram completamente desprovidos de razão pelo que, e pese embora não mereçam a nossa adesão, cumpre explicitar de que forma tal procedimento deve operar.
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ESTEVES DE OLIVEIRA, Mário, e ESTEVES DE OLIVEIRA, Rodrigo, ob. cit., p. 777 e s. 11 Idem.
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Vejamos: No que concerne à publicidade e necessária abertura do concurso já referimos o exemplo que a resolução do conselho de ministros torna claro, mas mais há a referir. Pense-se, por exemplo, no caso de um ministro que no fim de uma reunião do ministério torna público que ficou assente que a administração iria proceder a uma abertura de concurso, em bom rigor o ministro não tem competência para sozinho vincular a administração desta forma, todavia, tal comunicação cria uma inegável expectativa nos possíveis concorrentes. Esta expectativa tem, obviamente, de ser tutelada. Embora seja defensável que um anúncio feito desta forma, sem que exista qualquer comunicação formal, e onde nem sequer existe caderno de encargos não pode ser considerado válido para efeitos de vinculação da administração, designadamente no que a propostas de concorrentes diz respeito, a verdade é que, o particular-concorrente tem conhecimento de que a administração irá proceder a uma abertura de concurso e tomará isso em consideração nas suas decisões. Aqui chegados será legítimo perguntar se não estaremos a ir longe demais nesta vinculação da administração. A resposta não pode encerrar em si mesma uma só conclusão. No mundo da contratação pública nada é linear, nem mesmo quando os cadernos de encargos englobam um elevado número de previsões. Pensamos, assim, que a análise deve ser casuística e feita mediante as circunstâncias em concreto, mas balizada por princípios fundamentais que não podem ser obliterados quando estamos perante a criação de expectativas no particular-concorrente. Princípios como a prossecução do interesse público; da publicidade; da transparência; da informação e da decisão, são, neste domínio, fundamentais. Alguns destes princípios, embora sendo princípios gerais previstos no código procedimento administrativo têm aqui aplicação plena.
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O princípio da publicidade não deve ser visto apenas no âmbito do procedimento propriamente dito, isto é, quando o procedimento já se encontra em fase de apresentação de propostas ou em fase de informações
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que a administração deve prestar sobre as opções que adota. Ele pode e tem de ser visto a montante, numa ótica abrangente que deve abarcar e atingir a própria comunicação do concurso, seja ela feita em jornal oficial, em diário da república, ou meio de comunicação social. Aliado a este princípio aparece o da transparência. Este, por seu turno, obriga a administração a um dever de publicitação ajustada da própria decisão de contratar. A transparência aqui veiculada deve ter-se, também, por mais abrangente. A decisão de contratar deve ter-se por clara e concisa de forma a que todos os interessados possam calcular o seu interesse em concorrer. Este interesse que o concorrente pode eventualmente vir a ter decorre naturalmente do grau de conhecimento de que este dispõe, designadamente das condições que o próprio concurso vai envolver e dos requisitos necessários para apresentação de propostas. Só assim os concorrentes poderão tomar a decisão de participar no concurso uma vez que já dispõem de uma previsão de custos e benefícios, definidos à partida possibilitando a criação de uma estratégia concorrencial. Com efeito, a transparência deve ter-se também por realizada quando opere publicamente ao abrigo do princípio da publicidade. Estamos portanto em posição de afirmar que o princípio da publicidade representa a face externa do princípio da transparência, alargando os destinatários a que a informação se destina. Não se pense que ao afirmarmos esta visão estamos em contradição com o afirmámos supra, nomeadamente no exemplo já referido. Voltaremos a ele mais à frente. Outro princípio basilar nesta matéria é o da informação e da decisão. Ambos vistos de uma prestativa global e abrangente. Os particulares devem poder dispor de toda a informação no sentido de formarem corretamente a sua decisão de participar no concurso, e deste modo o princípio da informação desempenha uma importante função material. É ao abrigo deste princípio que a administração deve comunicar todas as decisões aos particulares/participantes e, bem assim, a própria decisão de contratar deve aqui ter-se por incluída.
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Já discorrermos sobre o momento a partir do qual se inicia o procedimento, pelo que a comunicação de que a administração tomou a decisão de contratar, independentemente de já existir (ou não) caderno de encargos ou termos em que tal concurso irá operar, deve ser o momento por excelência em que se efetiva a vinculação da administração. Voltando ao exemplo atrás referido, no caso do ministro ter comunicado a decisão de abertura de concurso pela comunicação social deve, ainda assim, considerar-se que a administração se encontra vinculada? Pensamos mais uma vez que a análise deve ser casuística na medida em que deverá depender do conteúdo e sobretudo da substancia da informação facultada. Bem sabemos que a defesa de tal vinculação sofre críticas de grande parte da doutrina, todavia, casos haverá em que uma comunicação de um organismo do Estado poderá consubstanciar uma vinculação da administração ou pelo menos criar no Estado um dever de indemnizar. Basta por exemplo pensar-se no caso de um particular que deixa de realizar um proposta ou de fazer uma operação devido às declarações públicas de um ministro ou de um organismo do Estado. Naturalmente poderemos estar sempre em sede de lucros cessantes, mas nem sempre isso acontecerá. Pense-se numa situação em que um particular, depois de ouvir tal comunicação, e porque é aquele exatamente o seu ramo de atividade, decide averiguar as suas próprias condições de participação. Tudo isto implica custos que o particular terá porque foi veiculada uma informação, embora ainda não exista sequer um caderno de encargos. Em jeito de conclusão relativamente ao momento a partir do qual deve a administração considerar-se vinculada, e sendo certo que a formula encontrada pelo legislador não está de todo isente de críticas, cumpre salientar que nos opomos frontalmente a alguma doutrina que ao abrigo do plasmado no artigo 36º do CPP considera que a decisão de contratar se encontra inserida na decisão de autorização de despesa. (36º, nº 2 CPP).
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Tanto assim não é que facilmente se configuram situações em que ainda não existiram autorizações de despesa mas já se encontra tomada a decisão por parte da administração de contratar.
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Feitas estas considerações estamos em condições de poder afirmar que a decisão de contratar é um ato administrativo que fixa o início do procedimento de formação de qualquer contrato, não obstante a necessidade de esta decisão de contratar se tornar uma decisão autónoma e consubstanciar assim um ato administrativo impugnável nos seus próprios termos quando constitua uma violação dos direitos dos particulares. Assim, a decisão de contratar deve considerar-se um ato administrativo externo na medida em que deve ser alvo de publicitação.
Da revogação da decisão de contratar Depois de já termos visto em que momento, e com que grau a administração deve considerar-se vinculada, passamos a uma análise mais cuidada sobre o tema deste estudo: a revogação da decisão de contratar. A revogação da decisão de contratar encontra-se prevista no artigo 80º do CPP. Este preceito não tem correspondência com legislação anterior o que significa que tal mecanismo embora pudesse de certa forma já ser considerado anteriormente, só com as alterações feitas ao novo CPP foi efetivamente positivado. O nº 1 do artigo 80º é claro ao definir que nos casos previstos no artigo anterior a administração pode revogar a decisão de contratar. Se atentarmos no artigo 79º há uma primeira duvida que nos assalta toda a análise, que é a de saber se as alíneas que o artigo em estudo dá como válidas para uma revogação da decisão de contratar são taxativas ou, ao invés, representam apenas uma mera enunciação, podendo existir outras causas que justifiquem a revogação e que com estas sejam conexas. Pensamos que a resposta deve ser negativa. A segurança jurídica que este tipo de contratos e toda a contratação exigem, não se compadecem com um regime que sustentasse causas de revogação mais híbridas do que as plasmadas no CPP. Se o próprio mecanismo da revogação da decisão de contratar não é todo ele ainda muito claro no que ao modus operandi diz respeito, muito menos o seria se se aceitasse a tese de que, o artigo 79º poderia funcionar como uma válvula de segurança para a administração. 31
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Pese embora o artigo 79º não possa servir como válvula de segurança fora dos casos tipicamente previstos na lei, não quer isto significar que se o procedimento fixado pela administração nada disser sobre possíveis causas de não adjudicação, estas se encontrem excluídas. Os princípios gerais a que o CPP se encontra adstrito como é designadamente o da prossecução do interesse público, justificam que a administração possa revogar a decisão de contratar sem prejuízo de eventual indemnização a que se encontre adstrita. Todavia tal poder fundado na prossecução do interesse público12 deve ser assente em motivos supervenientes, imprevisíveis, inevitáveis e ponderosos13. De especial realce no que a esta matéria diz respeito, é o legislador veio consagrar no nº 4 do artigo 79º do CPP. Anteriormente à consagração legal deste preceito era admitido o direito dos concorrentes a serem indemnizados desde que não dessem causa a essa decisão, e esta fosse tomada por estritas razões de interesse público14, sendo que o direito à indemnização reduzia-se aos danos emergentes, isto é, às despesas em que os particulares incorreram para participar no procedimento. Tomaremos posição quando tratarmos das causas de revogação propriamente ditas. Tendo-nos já inclinado para a não admissão da possibilidade de a administração revogar a decisão de contratar fora dos casos previstos no artigo 79º do CPP, muito por considerarmos que o interesse público já se encontra abrangido nas alíneas do artigo em referência.
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Relativamente ao interesse público diga-se que foi o Conselho de Estado francês o primeiro a reconhecer que a administração dispunha de um poder de modificação unilateral assente em razões de interesse público; que acresceriam outros como o da rescisão fundada em interesse público e o da revogação da decisão de contratar fundada em interesse público. Tal poder passou a constituir um poder específico do interesse público que tinha por base a lei e os princípios gerais do direito administrativo e já não o contrato, configurando por esta via um poder extra-contratual. 13 ANDRADE DA SILVA, Jorge, in Código dos Contratos Públicos Anotado, anotação ao artigo 79º. 14 ANDRADE DA SILVA, Jorge, ob. cit.
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Tudo dito, importa salientar que na hipótese de a administração revogar a decisão de contratar fora dos casos previstos no artigo 79º a decisão deve ter-se por ilegal, podendo o particular agir judicialmente. Dever de indemnizar
Na introdução a esta parte sobre a qual este estudo se debruça, já dissemos que poderia haver lugar a indemnização por parte da administração derivada da revogação da decisão de contratar. Importa agora reter em que termos e com que efeito pode esta indemnização operar. Temos para nós que o dever de indemnizar, decorrente da decisão da revogação, decorre, antes de mais, de um facto licito. Está previsto legalmente a possibilidade da administração revogar a sua própria decisão (artigo 80º do CPP), pelo que um dever de indemnizar nunca poderia ser por facto ilícito na medida em que a administração se encontra dele protegida. No fundamento da tese que nesta sede iremos construir, uma vez que a doutrina e jurisprudência raras vezes se pronunciaram sobre esta questão em concreto, importa clarificar que temos como certo a existência neste ato administrativo (revogação da decisão de contratar) a figura da culpa in contrahendo15. O artigo 227º do Código Civil disciplina a responsabilidade por culpa na formação dos contratos, o que por si só faz pressupor negociações, criando-se um vinculo especifico entre o particular e a administração. Configuram-se aqui vínculos que antecedem o fecho do negócio e que pressupõem uma relação pré-contratual que já contém alguns deveres, designadamente de boa-fé e de lealdade entre os contraentes. Esta boa-fé deve radicar numa ideia de equilíbrio material entre as partes desde o contacto inicial até ao termos das negociações.
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Sobre a culpa in contrahendo, vide VON JHERING, Rudolf, in Culpa in Contrahendo ou indemnização em contratos nulos ou não chegados à perfeição, 2008, Almedina.
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É por isto que a administração não pode escudar-se no artigo 80º do CPP e, depois de ter criado a expectativa no particular e ter lançado os dados para o concurso, vir dar o dito por não dito e revogar a decisão sem qualquer consequência jurídica. Bem sabemos que não tem sido entendimento pacífico por parte da doutrina o de que a administração não possa utilizar a seu bel-prazer o instituto consagrado no artigo 80º do CPP. Margarida Olazabal Cabral16 refere mesmo que administração será livre de modificar ou revogar a deliberação de abertura, já que esta não cria quaisquer direitos nos particulares a verem o concurso aberto nos termos anteriormente decididos. Não podemos comungar de tal posição. Não olvidando os argumentos da ilustre autora, a verdade é que há graus de vinculação para as duas partes. Desde o momento em que a administração abre concurso ou confere um grau de publicidade ao mesmo que seja susceptível de a vincular, o particular está em condições de poder participar nela, e muito embora os particulares até ao termo de apresentação de candidaturas possam retirar a sua proposta e apresentar uma diferente (artigos 137º e 176º do CCP), a verdade é que têm por assente que haverá concurso e que o concurso decorrerá em determinados termos. É com base nesse conhecimento que preparam a sua proposta concorrencial. Deixar que todo este procedimento pré-contratual se transformasse em letra morta conferindo à administração um tal poder de revogação como a referida autora parece querer indicar, seria, além de leonino, criador de uma desigualdade de armas entre as partes, e que abriria a porta para o conluio de possíveis interesses entre a administração e determinados particulares, podendo um concurso ser feito à medida de um particular com muito maior facilidade. Mais claro fica se temporalmente nos situarmos no momento do encerramento de apresentação de propostas. Note-se que após esse momento, os concorrentes são obrigados a manter as propostas por um prazo mínimo de 66 dias, tornando-se a proposta intangível (artigo 65º do CPP).
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OLAZABAL CABRAL, Margarida, ob. cit., p. 143.
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O princípio da intangibilidade das propostas encontra acolhimento no nº 2 do artigo 72º do CPP, segundo o qual os esclarecimentos prestados pelos respetivos concorrentes fazem parte integrante das mesmas, desde que não contrariem os elementos constantes dos documentos que as constituem; não alterem ou completem os respetivos atributos; nem visem suprir omissões que determinam a sua exclusão nos termos do disposto da alínea a) do nº 2 do artigo 70º. Estamos portanto num âmbito em que têm de existir vinculação de ambas as partes nesta fase pré- contratual. Questão diversa da que aqui se coloca é a situação de um concurso que é aberto e o concorrente, sem mais, começa imediatamente a incorrer em despesas sem clarificar à administração a sua posição, apresentar proposta; ou indicar que pretende participar no concurso. Nesta situação, não é possível sustentar o direito do concorrente a uma indeminização ainda que haja revogação da decisão de contratar. A administração não pode por certo saber quantos concorrentes querem ou não participar no concurso. Não pode, sequer, a não participação do particular causar qualquer lesão ao próprio na medida em que se a revogação ocorreu antes de o particular poder participar dela não há possibilidade de fundamentação de uma culpa in contrahendo. Estamos de acordo com Jhering ao afirmar que, quem é suficientemente imprudente para, com base numa proposta, em vez de a aceitar e participar nela, atua desde logo, tomando posições para a execução do contrato, está por si só próprio in culpa, pois tinha de contar com a possibilidade de revogação até ao momento da aceitação a proposta. Feita uma analogia para a situação que aqui temos sob julgamento vertente, verificamos que o concorrente não pode incorrer em custos sem dar sinal à administração que vai participar no concurso e que vai apresentar proposta (ou apresentando e alterando até ao termino do prazo) para depois vir reclamar custos que teve com – sublinhe-se – a não participação. Verificamos pois que o que vale juridicamente quanto ao grau de culpa por que se responde no cumprimento do contrato vale também para o caso de um dos contraentes deixar de observar na conclusão do contrato
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os deveres que lhe incumbem17. A culpa in contrahendo não é mais do que culpa contratual da administração numa direção específica do contrato que decide não celebrar por lançar mão do mecanismo da revogação da decisão de contratar. Já referimos que somos partidários da posição que defende uma possibilidade de aplicação analógica do instituo da culpa in contrahendo ao mecanismo da revogação da decisão e contratar. Este mecanismo do artigo 227º, e o imperativo de diligência contratual, vale tanto para as relações contratuais formadas, como para as relações contratuais em formação, estando ambos os casos abrangidos por uma obrigação de indemnizar. Note-se que quem se encontra na fase de contratação já não se encontra num círculo negativo onde se enquadram todos os deveres extra-contratuais, mas, ao invés, entra na esfera positiva do mundo contratual. Como indica Jhering, não são apenas as relações contratuais formadas, mas antes logo as que estão em formação que têm de estar sob a proteção das regras sobre a culpa18. Este entendimento é assente na realidade de que o particular-concorrente com a participação no concurso está inteiramente seguro de que o concurso se irá realizar segundo os pressupostos determinados pela administração, e é com base nisso que atua e pratica diligências. A isto subjaz uma segurança e uma confiança comercial que têm de estar implícitos em todos os contratos. Como certamente se perceberá, ninguém entra num concurso tendo em perspetiva que a administração irá revogar a decisão de contratar. Assente que está este dever em indemnizar cabe discernir de que forma esta indemnização deve operar uma vez que o artigo 227º do CC não dispõe acerca do regime do dever de indemnizar. Larga maioria da doutrina tem encontrado no artigo 562º e seguintes do mesmo diploma legal o caminho a seguir para a via indemnizatória. O artigo 562º consagra o principio da reposição natural, que não faz depender da natureza licita ou ilícita do ato para que haja lugar a indemnização.
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Vide VON JHERING, Rudolf, ob. cit., p. 39 e seg. VON JHERING, Rudolf, ob. cit., p.32.
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Este princípio da reposição natural visa a colocação do lesado numa situação em que este se encontraria se não tivesse ocorrido o dano, o que pressupõe claramente um dano real e efetivo por parte de um dos contraentes. Todavia pressupõe a existência de um contrato, o que levanta as maiores dúvidas. A Opinio Júris dominante em Portugal e que tem reunido maior consenso já sustenta a aplicação do regime genérico da obrigação de indemnizar ao dever nascido da responsabilidade pré-contratual, aplicando a obrigação de indemnizar também nestes casos19. Contudo, pensamos que esta via lateral pela qual se tenta sacar a indeminização não tem sustento legal no caso da contratação pública. Estamos perante um ato lícito praticado pela entidade pública mas em que a reposição natural não é possível pela natureza das coisas. Os custos em que particular incorreu podem ser ressarcíveis, mas neste tipo de indeminização pensamos já não ser possível o ressarcimento de outro tipo de danos como os lucros cessantes que o concorrente deixou de obter e, bem assim, todas os procedimentos administrativos que praticou¸ alterações na empresa que poderá ter feito; contratação ou despedimento de trabalhadores, etc. Todos estes danos não se encontram abrangidos neste mecanismo dos artigos 562.e seguintes do Código Civil. Pensamos que a ressacabilidade deve ser encontrada por outra via. Já vimos que a revogação da decisão de contratar, como ato tipicamente previsto na lei, é um ato lícito, o que obriga a que um dever de indemnizar não possa ter por base a ilicitude como de resto acontece na maioria dos casos. Assim pensamos que a solução deve ser encontrada na Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprova o regime da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas. Referimos supra que a culpa in contrahendo pode ter lugar em procedimentos pré-contratuais como este, que em bom
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DE ALBUQUERQUE, Ruy, in Da Culpa in Contrahendo no direito luso brasileiro, Lisboa, 1961, p. 85; MENEZES CORDEIRO, António, in Da boa Fé, p. 585.
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rigor, ainda não há contrato e portanto é difícil sustentar um dever de indemnizar à luz de uma possível relação contratual que aqui não existe. O que existe é uma expectativa que a administração com a sucessiva prática de atos foi criando nos concorrentes e que tem de ser tutelada. Estamos portanto em sede de responsabilidade extra-contratual por facto lícito. Neste momento estamos em condições de poder avançar com uma proposta de resolução que pensamos ser adequada e que, pese embora neste momento esteja isolada em toda a doutrina, parece-nos ter alguma sustentabilidade. Senão vejamos: O artigo 1º do referido diploma legal que configura o âmbito de aplicação da lei em análise dispõe:
A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege -se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial. E o nº 2 dispõe:
Para os efeitos do disposto no número anterior, correspondem ao exercício da função administrativa as ações e omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. Ora a revogação da decisão de contratar é precisamente um ato enquadrável no âmbito da referida lei até porque, salvo melhor opinião, estamos em sede extra-contratual na medida em que não há ainda contrato firmado propriamente dito, sem prejuízo do que dissemos supra relativamente aos deveres contratuais emergentes da relação que se estabelece entre o concorrente e administração. 38
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Assim, pensamos ser possível sustentar que a solução passa pelo artigo 3º da mesma lei. O artigo 3º sob a epigrafe – Obrigação de indemnizar – dispõe: 1. Quem esteja obrigado a reparar um dano, segundo o disposto na presente lei, deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. 2. A indemnização é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa. 3. A responsabilidade prevista na presente lei compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como os danos já produzidos e os danos futuros, nos termos gerais de direito. Feita uma análise cuidada não encontramos obstáculos para que a indemnização que a administração incorre não seja sacada tendo por base este artigo 3º. A sistemática do diploma relativamente a atos lícitos e ilícitos é tão clara que a Secção II do diploma, para uma correta destrinça, tem, por epígrafe – Responsabilidade por Facto Ilícito. Pensamos ser este artigo 3º a pedra de toque para uma sensível solução sobre esta matéria, na medida em que é possível fazer com que administração indemnize o concorrente por todos os danos, não fazendo aqui apenas operar o princípio do restauro natural. Duvida que se tem colocado quanto à indeminização é se esta deve incluir o dano negativo ou só o positivo. Pela nossa parte pensamos ser claro que muitas vezes o dano negativo excede o positivo pelo que este critério não nos merece a melhor opinião. Pensamos antes ser mais coerente defender que a determinação do valor da indeminização a ser tida em conta deve ter por base todos os prejuízos que o concorrente sofre, tanto lucros cessantes como danos emergentes e também danos futuros. Consideramos que este aresto é imprescindível para um equilíbrio contratual entre concorrentes e administração, que com a alteração legislativa que consagrou a figura da revocação da decisão de contratar, sem ditar
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por que termos deveria operar uma indeminização, deixa desamparado uma das partes da relação contratual. É esta pois a nossa solução – ao que parece inovadora – sobre aquilo que pensamos ser correto na condução de um dever genérico de indemnizar. Porém, nada obsta a que outras soluções possam ser prefiguradas pelos tribunais, pese embora esta nos mereça a melhor atenção atentos os argumentos já enumerados anteriormente.
Um caso especial: concurso limitado por prévia qualificação Um caso diverso dos normais, e que importa ser visto a par da revogação da decisão de contratar é o do concurso limitado por prévia qualificação. É um processo mais moroso que o concurso público na medida em que segue trâmites que dos quais concurso público está desobrigado. Este tipo de concurso contem uma fase de prévia qualificação em que a entidade adjudicante interpela os concorrentes para que estes façam prova das suas capacidades para participação no concurso, o que o faz diferir do concurso público nesta sede, uma vez que neste a administração faz um convite a todos os concorrentes interessados para que apresentem as suas propostas. Este tipo de concurso pauta-se por uma análise cuidada por parte da administração das qualidades dos concorrentes, em que pode ocorrer uma audiência prévia e a preparação de um relatório por parte do órgão que tomou a decisão de contratar (artigos 184º a 188º do CPP). Realizados estes procedimentos e outros que a administração tenha por convenientes para uma melhor avaliação dos concorrentes, segue-se uma interpelação aos concorrentes já previamente avaliados no sentido de estes apresentarem as suas propostas. Temos portanto um processo de seleção de candidatos a montante (primeira fase), e um processo de apresentação de propostas a jusante (2ª fase).
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São assim dois momentos distintos que não ocorrem no concurso público (dito normal). Estes dois momentos, independentemente da decisão de contratar estar ainda montante da que classificámos como primeira fase, não nos merece a mesma conclusão que supra já defendemos.
Da Revogação da Decisão de Contratar
Pensamos ser justo afirmar que no caso de ocorrer uma decisão por parte da administração de revogar a decisão de contratar durante o período da primeira fase, não existe obrigação de indemnizar. Do que supra sustentámos, esta obrigação de indemnizar decorre naturalmente dos danos sofridos pelo concorrente e demais custos em que este incorreu devido à expetativa que a administração criou com a abertura de concurso em que este participa. Pensamos ser esta a melhor destrinça: não temos por correto afirmar que nesta primeira fase o concorrente já esteja a participar no procedimento que a administração decidiu abrir. Nesta fase o concorrente ainda nem sequer foi convidado a apresentar a apresentar proposta, ele é, antes, avaliado pela administração para que esta apure se ele se encontra em condições de ser convidado subsequentemente a apresentar uma proposta. Nesta fase não só não deve ser possível falar em danos como não existe da parte dos concorrentes qualquer expetativa sobre a sua vitória no concurso. Os concorrentes sabem que estão sob análise e que só numa fase subsequente serão efetivamente convidados a apresentar proposta. Não existindo dano, não se vislumbra como sustentar aqui qualquer tipo de dever de indemnizar por parte da administração. Como aliás já referimos a propósito das diligências das partes: não é por um candidato providenciar diversas diligências sem a administração ter fundamentado qualquer expetativa de um convite a apresentar propostas que o candidato pode depois vir reclamar dessas despesas. Entendemos portanto de especial importância esta destrinça entre este tipo de concurso e os restantes meios uma vez que aqui é evidente a falta de relação causal entre o convite da administração e a existência de danos.
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ARTIGOS CIENTÍFICOS DA COLIGAÇÃO DO CONTRATO DE COMPRA E VENDA E DE CRÉDITO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO. REFLEXOS DO INCUMPRIMENTO DO VENDEDOR NA ESFERA DO FINANCIADOR1-2 Por Rui Bello da Silva
PALAVRAS-CHAVE “Contrato de consumo financiado”; “coligação de contratos”; “consumidor”; “relatividade dos contratos”.
RESUMO Perante as opções tomadas pelo legislador, nacional e comunitário, relativamente aos contratos de consumo financiado, propõe-se concretizar os direitos consagrados no regime jurídico do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho. Dada a falta de concretização legislativa, a sua exequibilidade deve resultar da conjugação entre a ratio do regime jurídico e o princípio da relatividade dos contratos. Por um lado, deve dar-se atenção à protecção que o legislador pretende conferir ao consumidor e, por outro, aos efeitos que atingirão o financiador.
1 O presente estudo consiste, no essencial, no trabalho apresentado na prova oral de melhoria da disciplina de Direito dos Contratos I (ano lectivo 2012/2013), sob coordenação e regência do Senhor Professor Pedro de Albuquerque e colaboração da Mestre Joana Pereira Dias e Dra. Madalena Perestrelo de Oliveira. 2 O presente texto está escrito de acordo com a antiga ortografia.
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ABSTRACT Given the choices made by the legislator, at a national and EU level, regarding the financed consumer contracts, one proposes to implement the rights enshrined in the DL nº 133/2009, of 2nd June. Due to the lack of legislative achievement, its feasibility should result from the combination of the ratio of the legal system and the principle of relativity of contracts. The protection the legislator intends to offer the consumer should be protected not disregarding the effects on the financier.
1. Introdução O presente estudo tem como finalidade a análise do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, que transpôs para o direito interno português a Directiva nº 2008/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril, relativa a contratos de crédito nas relações de consumo. Desta forma, revogou o Decreto-Lei nº 359/91, de 21 de Setembro, também resultante da transposição de Directivas3. Este diploma, na parte que agora cabe analisar, prevê no seu artigo 18º uma coligação de contratos. Esta coligação resulta de dois contratos que têm o consumidor como denominador comum. Um primeiro contrato, celebrado com o vendedor e, um segundo, celebrado com o financiador. Esta coligação tem, como se verá infra, o claro intuito de protecção do consumidor. Contudo, dada a redacção do artigo 18º que apenas fornece os remédios ao dispor do consumidor, exige-se uma análise cuidada por forma a compreender quais os seus pressupostos de aplicação, tornando inteligível a sua exequibilidade. Esta exigência resulta, prima facie, da própria coligação: apor ao financiador efeitos produzidos por alguém que não é parte directa no contrato de crédito. Desde logo, face ao princípio da relatividade dos contratos.
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Cf. artigo 33º do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho.
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Nestes termos, cabe analisar de forma breve a coligação nos contratos de consumo financiado face ao princípio res inter alios acta. Em seguida, concretizar o incumprimento do vendedor, pressuposto base de aplicação do artigo 18º, bem como os requisitos e modos de funcionamento dos remédios ao dispor do consumidor.
2. A coligação nos contratos de consumo financiado e o princípio da relatividade dos contratos Nos contratos de consumo financiado, é o próprio dispositivo normativo a exigir uma coligação de contratos4. Esta coligação surge-nos, numa primeira abordagem, no artigo 4º, nº 1, alínea o), sendo a sua concretização feita nas subalíneas i) e ii). De seguida, o artigo 18º prescreve os remédios resultantes dessa coligação, que nos surgem como uma prescrição de natureza imperativa, ex vi artigo 26º. Nestes termos, está vedado às partes a dissociação destes dois contratos. Face a esta indissociação, pergunta-se como deve ser feita a harmonização do artigo 18º com o artigo 406º, nº 2 do Código Civil. Trata-se de um enunciado normativo que consagra a regra da relatividade contratual5. Como se referiu supra, da relação consumidor-vendedor surgem efeitos que afectam a relação consumidor-financiador. Ora, a uma primeira leitura do artigo 406º, nº 2 Código Civil tal estaria vedado. Não entendemos assim. Suportamos que o artigo 18º é um dos casos “especialmente previstos na lei”, estando neste caso superado o problema.
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Sobre a coligação de contratos, cf. VARELA, Antunes, Das obrigações em geral, vol. I, 10ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, pp. 281 ss., TELLES, Inocêncio Galvão, Manual dos contratos em geral, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1965, pp. 395 ss., CORDEIRO, António Menezes, Direito das obrigações, vol. II, Coimbra: Almedina 2010, pp. 273 ss., bem como as referências à doutrina italiana, MORAIS, Fernando de Gravato, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 392 ss.. 5 Para uma noção de “parte” e de “terceiro”, vide SERRA, Adriano Vaz, «Efeitos dos Contratos (princípios gerais)», in Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, nº 74º, 1958.
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Mas a questão não se pode quedar por aqui. Aderimos, com efeito, a Fernando de Gravato Morais, quando afirma (relativo à coligação) estarmos perante um programa económico unitário. Resulta daqui a exigência de ambos os contratos serem tratados de forma unitária. Esta exigência prende-se, entendemos, por três motivos: (i) a própria previsão legal da coligação, (ii) a consagração de remédios, relegando para o interprete-aplicador o estudo dos seus modos de funcionamento e, por fim, (iii) as cifras que estão em jogo6. Superado o princípio res inter alios acta, cabe agora analisar, de forma sucinta, em que moldes deve ser entendido o incumprimento de vendedor. Trata-se, como já foi salientado, de um pressuposto do funcionamento dos remédios do artigo 18º.
3. Incumprimento de vendedor Em matéria de incumprimento, faz o artigo 18º, nº 2 duas referências: incumprimento e cumprimento desconforme. Falaremos, na análise ao preceito, na omissão de entrega da coisa por parte do vendedor e da falta de conformidade da coisa com o contrato, respectivamente. Trata-se de uma matéria que, não obstante a sua previsão no Código Civil, deve ser uniformizada com os instrumentos normativos comunitários, bem como com aqueles que resultam da sua transposição. Quanto a esta matéria, será feita uma abordagem sintética. Quando à omissão de entrega da coisa7, o seu dever decorre do artigo 879º, alínea b) CC, tendo o consumidor um direito de crédito à entrega da coisa. Assiste-lhe também, em virtude do efeito real produzido pelos
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Cf., sobre este ponto, a exclusão do âmbito de aplicação do diploma em questão, o artigo 2º, nº 1, alínea c). 7 Cf., ALBUQUERQUE, Pedro de, Direito das obrigações (Contratos em Especial), vol. I, Coimbra: Almedina, 2008, pp. 144 ss., MARTINEZ, Pedro Romano, Direito das obrigações (Parte Especial), 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2001, pp. 42 ss., LEITÃO, Luis Menezes, Direito das Obrigações, vol. III, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, pp. 29 ss.. Em especial, sobre a matéria do contrato de consumo financiado vide MORAIS, Fernando de Gravato, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Coimbra: Almedina, 2004, pp. 108 ss.
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artigos 879º, alínea a) e 408º, nº 1 CC, a possibilidade de recorrer à acção de reivindicação. Como remédios aplicáveis ao não cumprimento, pelo vendedor, da obrigação de entrega da coisa, pode ainda o consumidor intentar uma acção de cumprimento8 (artigos 817º e ss. CC) e, caso se trate de coisa determinada, recorrer à execução específica (artigo 827º CC). Quanto a eventuais danos causados pelo incumprimento, cabe ao consumidor o direito à indemnização (artigos 798º e ss. CC) ou, em caso de mora (artigos 804º e ss. CC) a reparação dos danos causados. De todo o modo, pode o contrato ser resolvido (artigo 801º, nº 2 CC), bem como a invocação da exceptio9 ter plena aplicação. Quanto à falta de conformidade10 da coisa com o contrato, o regime surge-nos mais complexo. Como se disse supra, por vezes o regime do Código Civil intersecta-se com o Direito Comunitário derivado, ainda que transposto para o ordenamento português. E este é um dos casos em que tem aplicação o Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril11 (relativo à venda de bens de consumo e suas garantias), resultante da transposição da Directiva nº 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, assim como a Lei de Defesa dos Consumidores. Reiteramos uma vez mais que a análise deste ponto não será exaustiva. Exige o artigo 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 67/2003 um dever de conformidade da coisa vendida com o contrato. O regime previsto na Directiva, vertido nesta norma, teve como função a harmonização legislativa a nível comunitário, em conformidade com as Convenções de Viena de 1980 (artigos 35º e ss.) e de Haia de 1964 (artigos 19º, nº 1 e 33º e ss.). Esta garantia de conformidade é importante, na medida em que afasta a solução tradicional do caveat emptor (em que cabe ao comprador assegurar a conformidade e idoneidade
8 Pode o consumidor, que obtenha sentença favorável e esta não seja respeitada pelo vendedor, recorrer a uma acção executiva de entrega de coisa certa, desde que munido de título executivo (artigos 928º e ss. CPC). 9 É maioritariamente unânime a possibilidade da exceptio ser invocada em casos de cumprimento defeituoso. 10 Para uma distinção entre conformidade e defeito vide ALMEIDA, Carlos Ferreira de, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol. I, Coimbra: Almedina, 1992, p. 639. 11 Alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008, de 21 de Maio.
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da coisa), cabendo antes ao vendedor o ónus da prova12, transformando-se num caveat venditor13. Quanto ao momento em que se afere a falta de conformidade, dispõe o artigo 3º, nº 1 do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril que esta é aferida no momento da entrega material da coisa ao comprador. Ora, nesta lógica, o risco de perecimento ou deterioração da coisa entre a venda e a entrega corre por conta do vendedor. Temos assim um claro afastamento das regras gerais do risco que constam do regime civil, somente justificado por uma protecção do consumidor14. Por fim, quanto aos remédios invocáveis perante o vendedor. Estes constam do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril: reparação, substituição, redução do preço, resolução do contrato e indemnização, nos termos gerais (artigo 12º, nº 1 LDC). Ao contrário do que poderia parecer, de acordo com o princípio favor negotti, em que a resolução deveria ser a ultima ratio, entendemos que o Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril não procede a nenhuma hierarquização. Sustentamos esta posição com base no seguinte: (i) ao contrário da Directiva, o Decreto-Lei não o prevê, (ii) o Decreto-Lei é excepção ao regime civil e (iii) tem como corolário a protecção do consumidor15. Feitas estas considerações tendentes à análise da previsão normativa do artigo 18º do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, cabe agora analisar o modo de funcionamento dos remédios nele previstos.
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12 LEITÃO, Luís Menezes, Direito das Obrigações, vol. III, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 130. 13 LEITÃO, Luís Menezes, «Caveat venditor? A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a venda de bens de consumo e garantias associadas e suas implicações no regime jurídico da compra e venda», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. I, Coimbra: Almedina, 2002, p. 265. 14 Esta interpretação não é pacífica, em virtude do considerando 14 da Directiva, quando prevê que “as referências à data da entrega não implicam que os Estados membros devam alterar as suas normas sobre transferência do risco”. Contudo, não aderimos à mesma. Entendemos que a ratio do artigo 3º, n.º1 vai ao encontro da protecção do consumidor, frustrando-se se assim não fosse. 15 Vide o artigo 4º, nº 5 do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril com os seus dois limites.
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4. Direitos invocáveis perante o financiador 4.1. Excepção de não cumprimento
Quanto à invocação da exceptio, diz-nos o proémio do nº 3 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho que esta pode ocorrer após a interpelação do vendedor. Levantam-se, logo aqui, algumas dificuldades. A primeira delas surge à luz do artigo 805º CC, quando exige interpelação nas obrigações puras (nº 1), o que não acontece nas situações de mora ex re (nº 2). Estarão os artigos 18º e 805º a falar da mesma interpelação? Cremos que sim, não obstante dever ser feita, no primeiro caso, uma interpretação cum grano salis. Vejamos. Havendo incumprimento por parte do vendedor, nos moldes acima descritos, deve o consumidor interpelá-lo. É certo que a interpelação pode ser expressa ou tácita (artigo 217º) mas, em virtude da materialidade subjacente da questão, não nos podemos quedar por aqui. É aconselhável que seja dirigida ao vendedor, mesmo que perante uma obrigação de prazo certo (artigo 805º), uma interpelação. E esta pode ser judicial (artigos 228º, nº 2, 261º e 262º CPC) ou extrajudicial, em que neste último caso se aconselha, v.g., carta registada com aviso de recepção. Só cumprindo estas formalidades, parece-nos, é que é possível apor consistentemente os efeitos do incumprimento do vendedor ao financiador. Como tal, respeitando o procedimento e invocada a exceptio, deixa o consumidor de cumprir a sua prestação face ao financiador, não sendo lícito a este último colocar aquele em mora debitoris. Se, após interpelar o vendedor e este cumprir16, deixa de haver legitimidade em manter a excepção. Nesse caso, deve o consumidor satisfazer as prestações que entretanto se venceram. Doutra forma, permitir-se-ia um desequilíbrio nas prestações, sem dúvida prejudicial e desajustada para o financiador. Com a ressalva de que o consumidor não pode ver as suas prestações, tanto vencidas como vincendas, agravadas. Deve haver, isso sim, uma reposição do cumprimento, como se a exceptio nunca tivesse sido invocada.
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Porque, v.g., a coisa foi entregue, reparada ou substituída.
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Por fim, quanto à excepção, mas sendo transversal aos outros dois remédios, propugnamos por uma interpretação restritiva do n.º 3 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho, quando refere “exercer qualquer uma das seguintes pretensões”. Ao contrário do defendido quanto ao Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, deve haver uma hierarquia nas pretensões. Não se contra-argumente que é contrária à ratio da norma e que desprotege o consumidor. A restrição exige-se por poder evitar resultados desproporcionados. Ilustre-se com o seguinte exemplo: a prestação não é conforme (v.g., a coisa padece de um defeito), podendo ainda o vendedor substituí-la ou repará-la. Permite-se que o consumidor se dirija ao financiador, invocando a resolução? Se tal se admitisse e o contrato de mútuo fosse resolvido, o que aconteceria se o vendedor (após a interpelação) cumprisse? Tudo isto, claro, temperado com os limites da bona fide. A questão será novamente abordada no ponto relativo à resolução do contrato17. 4.2. Redução do montante de crédito
Para que o consumidor possa recorrer à actio quanti minoris face ao financiador é necessário que o faça, paralelamente, junto do vendedor18. Mesmo que, neste último caso, o pagamento tenha sido feito a pronto19. Vejamos como se processa a redução com um exemplo. O consumidor (C) pretende comprar ao vendedor (V) a coisa X, no valor de € 15.000. Recorre, por isso, a uma instituição de crédito (F), celebrando um contrato de crédito de igual montante, nas seguintes condições: TAEG20
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A questão será novamente abordada no ponto relativo à resolução do contrato. Seja pelo artigo 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril ou pelo artigo 911º (relativo a bens onerados), aplicável à venda de coisas defeituosas ex vi artigo 913º CC. 19 MORAIS, Fernando de Gravato, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Coimbra: Almedina, 2004, p. 162. 20 TAEG – taxa anual efectiva global: custo total do crédito para o consumidor expresso em percentagem anual do montante do crédito concedido. No seu cálculo incluem-se despesas de cobrança de reembolso e pagamentos de juros, bem como restantes encargos a suportar (v.g., impostos, comissões, prémios de seguros). Cfr. artigo 4º, nº 1, alínea g), subalínea i) e artigo 24º. 18
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de 14,8%, calculada com base numa TAN21 de 12,209%, com reembolso a 60 meses, em prestações mensais de € 336,90, com um montante total imputado ao consumidor de € 20.740,99. Tendo, por exemplo, a coisa X um defeito que lhe diminua o valor, pode C reduzir o montante pago por ela em 30%. Pergunta-se, ex vi alínea b) do n.º 1 do artigo 18º, sobre que montante recairá a redução de 30%. Entendemos que será sobre os € 15.000 (crédito concedido) e não o seu montante bruto. Como tal, deverão os custos associados ao novo valor (€ 10.500) ser recalculados. Já vimos sobre que valor recai a redução do crédito: o do crédito concedido. Questão conexa é saber como se vai repercutir esta redução do montante do crédito nas prestações a efectuar ao financiador pelo consumidor22. Três soluções podem ser apontadas: uma redução proporcional das prestações vincendas, uma redução do prazo do crédito ou uma redução total da dívida. Vejamos. Quanto à primeira solução, o prazo de pagamento do crédito mantém-se inalterado, simplesmente reajusta-se o que falta pagar (isto é, descontando as prestações vencidas e pagas). Exemplificando23: após a redução, o valor em falta é de € 10.500. Das 60 prestações, 14 já foram pagas, totalizando € 4.716,6. Resta para pagamento € 5.783,4. Restando 46 prestações por cumprir, temos um reajustamento do valor em falta, devendo ser pago mensalmente € 125,8 (€ 5.783,4/46 = € 125,8). Quanto à segunda solução, ao contrário da anterior, o valor das prestações mensais mantém-se inalterado, reajustando-se antes o número de prestações. Exemplificando: mantendo-se inalterada a prestação mensal de € 336,90, e faltando liquidar € 5.783,4 (por já terem sido cumpridas 14 prestações), o número de prestações reduz-se para 18 (€ 5.783,4/336,90 = € 16,9), sendo que a última prestação deve ser de € 56,1. Assim, tínhamos inicialmente 60 prestação e agora apenas 32 (14 + 18).
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TAN – taxa nominal de juro expressa numa percentagem fixa ou variável aplicável numa base anual ao montante do crédito utilizado. 22 MORAIS, Fernando de Gravato, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Coimbra: Almedina, 2004, p. 173. 23 Nos exemplos que se seguem não será tida em conta as variações da TAEG. Esta solução justifica-se pela maior facilidade científica na compreensão dos exemplos.
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Quanto à terceira solução, ao consumidor assiste-lhe o direito de suspender o pagamento das prestações vincendas até obter o valor da redução, se tal couber no caso. Exemplificando: tendo cumprido as 14 prestações, o consumidor pagou € 4.716,6. Contudo, em virtude da redução do crédito para € 10.500, este deveria ter pago (no total das 14 prestações) € 2.450 (€ 10.500/60 = € 175; € 175 x 14 = € 2.450). Assim, comparativamente ao que deveria ter pago ex post à redução, há um excesso de € 2.266,6. Logo, até à 26ª prestação pode o consumidor suspender o pagamento, na 27ª paga apenas € 8,4, retomando as seguintes prestações o seu valor normal, de € 175. Nestes termos, o número de prestações mantém-se, ajustando-se o seu valor mensal à redução operada, havendo um “período de carência” por forma a compensar o que já fora pago, “indevidamente” (isto é, € 2.266.6). Face a estas três soluções, cabe tomar posição. Na escolha por uma das hipóteses propugnadas deve o interprete-aplicador conjugar os interesses do consumidor e do financiador. Daquele porque é o denominador comum da coligação, aquele que ao caso cabe tutelar; deste porque é atingido (face à referida relatividade contratual) por efeitos de uma relação contratual que lhe pode ser estranha. Sendo certo que em qualquer uma das soluções não pode ser aposta ao consumidor (v.g., uma modificação do juro sobre o capital mutuado) uma situação mais gravosa. Mas também se deve atender, para o financiador, ao valor que tem o dinheiro que mutuou e, como tal, não lhe pode ser imposto que a sua remuneração diminua (ainda que proporcional com a redução operada). Posto isto, defendemos a solução da redução proporcional das prestações vincendas, em que estas são reajustadas ao prazo inicialmente estipulado. Afastamos, por isso, a solução da redução total e a redução do prazo de pagamento por serem penosas demais para o financiador.
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Quid juris se tiver sido pago ao financiador um valor superior àquele que vai resultar da redução do crédito? Por exemplo: o consumidor já pagou, de € 15.000, € 12.000. Contudo, a coisa X desvaloriza € 5.000, sendo esse o valor da redução. Passando a coisa X a valer € 10.000, o que acontece aos € 2.000 já pagos ao financiador? Estará esta solução prevista na alínea b), do nº 1 do artigo 18º? Esta situação pode ter diversas causas (v.g., elevado valor da redução ou elevado valor das prestações em empréstimo), sendo
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que a solução, no nosso entender, não passa pela referida norma. Admiti-lo seria extravasar a mera interpretação extensiva da mesma. Como tal, cabe resolver o problema. De duas, uma: ou o financiador se recusa a restituir o que já foi pago ou deve fazê-lo. A recusa não tem fundamento, devendo operar a restituição. Na falta de norma que o imponha propõe-se, subsidiariamente (artigo 474º CC), a restituição dos € 2.000 por enriquecimento sem causa. Neste caso, em virtude da causa finita (artigo 473º, nº 2), por ter ocorrido “a posterior extinção do direito à prestação já recebida”24. É certo que a doutrina não dá este caso como exemplo mas, atendendo à subsidiariedade do instituto e na falta de norma expressa, parece ser a solução correcta. Mais: restituir-se-á também os juros pagos sobre o capital em excesso (€ 2.000). 4.3. Resolução do contrato de crédito
Aborda-se agora o remédio mais gravoso que o consumidor pode apor ao financiador: a resolução do contrato de financiamento. Coloca questões complexas, desde logo a sua exequibilidade. E é também aquele que exige pressupostos mais delimitados e que o torna, em nosso entender, a última ratio. Como tal, defendemos que esta resolução só pode operar se também o contrato de compra e venda tiver sido resolvido. Como se defendeu supra, contrariamente ao defendido para o regime do D.L. n.º 67/2003, de 8 de Abril, deve ser defendida uma hierarquização do artigo 18º, por todas as razões já aduzidas em torno das particularidades que a coligação suscita. Não parece equilibrado se, p. e., recorrendo o consumidor à redução adequada do preço (junto do vendedor) exija, em seguida, a resolução do crédito. Este caso, parece-nos, constitui solução lógica. Mas deve ser explicitado e analisado porque, como se disse nas notas iniciais desde estudo, o enunciado normativo em questão não explicita os modos de exequibilidade. Cabe, portanto, ao interprete-aplicador fazê-lo, analisando os
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LEITÃO, Luís Menezes, Direito das Obrigações, vol. I, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 427.
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mais diversos pontos de vistas suscitados pela norma e, como é o caso, balizar o seu funcionamento. Posto isto, e partindo da premissa de que só a resolução do contrato de compra e venda fundamenta o mesmo remédio para o contrato de crédito, é necessário analisar em que situações pode aquele ser resolvido. Necessário se torna, também, analisar em que moldes opera a resolução e, conexamente, como se produzem os seus efeitos restitutórios. Por fim, e brevemente, elencar alguns meios de reacção ao dispor do financiador. Ao contrário dos dois remédios já analisados, a gravidade desta resolução exige que este ponto seja abordado. 4.3.1. A resolução do contrato de compra e venda
Exige o artigo 432º, nº 1 CC, para a resolução, uma norma expressa. É essa norma expressa que se busca agora no ordenamento. Encontramos, desde logo, dois grupos: o constante no regime geral das obrigações e o previsto no Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril. No Código Civil podemos elencar, sem pretensões taxativas, as regras relativas ao incumprimento definitivo, imputável ao devedor (artigos 801º, nº 2 e 802º, nº 1 CC) e que sucede à mora (artigo 808º, nº 1 CC) e a impossibilidade parcial, definitiva, não imputável ao devedor (artigo 793º, nº 2 CC)25. Quanto ao Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, permite-o o artigo 4º, nº 1. Resolvido o contrato de compra e venda, cabe ver como se resolve o contrato de crédito. À semelhança do defendido no ponto referente à exceptio, deve o consumidor dirigir uma declaração resolutiva ao financiador. Esta declaração pode ser extrajudicial, mas deve ser feita por escrito (v.g., carta registada com aviso de recepção). Entendemos que esta declaração não pode conter, unicamente, que o contrato de compra e venda foi resolvido. Deve justificar o porquê daquela resolução, pois só isso permitirá que o
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Devedor é, para o presente efeito, o vendedor.
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financiador reaja contra a resolução. Vamos mais longe: se assim não for, e a declaração resolutiva não contiver este conteúdo mínimo, parece lícito ao financiador não aceitar a resolução e, consequentemente, esta não produzir efeitos. Se assim for o consumidor continua adstrito ao pagamento das prestações vincendas e, caso não o faça, entra em mora. Importa agora analisar, em virtude do artigo 434º CC, os efeitos restitutórios. Será, porventura, a questão mais delicada e complexa que toda esta matéria suscita. Quid juris quanto às prestações já vencidas? E, quanto a estas, aos juros pagos pelo consumidor? Vejamos a solução face ao direito constituído. Quanto aos efeitos que a resolução produz, a regra é a retroactividade (artigo 434º, nº 1 CC). Contudo, dispõe o nº 2 que nos contratos de execução periódica há uma situação de irretroactividade face às prestações vencidas. Quanto à dicotomia entre contratos de prestação continuada/periódica: os primeiros veem o seu cumprimento prolongar-se ininterruptamente pelo tempo, os segundos são aqueles em que as prestações se renovam em prestações singulares sucessivas, ao fim de períodos consecutivos26. É neste último que o contrato de crédito se enquadra. E, como tal, à primeira vista a retroactividade estaria vedada, não podendo as prestações (mensalidades) pagas pelo consumidor ao financiador serem restituídas. Não pensamos assim. Tem plena aplicação a parte final do nº 2 do artigo 434º, ao referir a estreita relação entre as prestações vencidas e pagas, por um lado, e o fundamento da resolução, por outro. E assim é em virtude da materialidade subjacente a toda a coligação. É certo que o vínculo de que fala o nº 2 é de difícil concretização e, de certa forma, deverá ser entendido restritivamente sob pena de inverter e consumir a primeira parte da norma. Não obstante, estamos perante uma dessas situações particulares em que esse vínculo se concretiza: por força da coligação, do programa económico unitário, não
26
Quanto à distinção vide VARELA, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, p. 62, PRATA, Ana, Dicionário Jurídico, vol. I, 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, Ac. STJ 18/12/2007, Processo nº 07B4496 (www.dgsi.pt).
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perece razoável que, ex vi resolução, uma vez restituído o bem ao vendedor não possa o consumidor ver restituído aquilo que prestou. Porque o fez com o intuito de adquirir um bem que, no final, teve que restituir. É certo que o preço pago também será restituído27 (seja ao consumidor ou ao financiador se, neste último caso, tiver sido este a pagar directamente o vendedor) mas, se assim fosse quanto às prestações já cumpridas do consumidor, podíamos estar perante um locupletamento do financiador. Em suma, quanto às prestações vencidas e pagas tem o consumidor direito à restituição, ex vi artigo 434º, nº 2 in fine. Admite-se que esta solução é de extrema violência para o financiador, nomeadamente para as instituições de crédito. Mas preconizamo-la atendendo às razões já expostas e acrescentando uma outra: na celebração do contrato de financiamento com o consumidor, que será um “mútuo de escopo”28, o financiador, pela sua posição de vantagem, deve estar consciencializado do regime jurídico em questão, bem assim dos seus efeitos. Se o contrato correr bem, é-lhe restituído o capital com a devida remuneração (juros); caso contrário, há uma restituição mútua das prestações. E, nesta senda, porque a lógica o impõe, também os juros pagos com as prestações vencidas e pagas devem ser restituídas. Na falta de norma expressa, é a solução mais consentânea como o regime defendido no artigo 434º, nº 2. 4.3.2. Meios de reacção do financiador
Analisa-se agora, de forma breve, de que forma pode o financiador reagir à declaração resolutiva emitida pelo consumidor contra si. E aduzimos três possibilidades. Primeiro, pode o financiador alegar que não estão preenchidos os pressupostos da coligação, exigidos pelo artigo 4º, nº 1, alínea o) do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho. Desta forma, impede que os efeitos do artigo 18º se produzam. Trata-se de um mecanismo transversal
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27 Consideramos, neste caso, que o contrato de compra e venda é de execução instantânea. Cfr. LEITÃO, Luís Menezes, Direito das Obrigações, vol. III, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 16. 28 CORDEIRO, António Menezes, Manual de Direito Bancário, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, p. 636 e pp. 648 e ss.
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a todos os remédios, e não exclusiva da resolução. Segundo, pode reagir aos motivos que levaram à resolução do contrato de compra e venda alegando, p.e., que em virtude da escassa importância do não cumprimento parcial da prestação, aquele não pode ser resolvido (artigo 802º, nº 2 CC). Terceiro, utilizando também mecanismos próprios da defesa do vendedor como a excepção de caducidade da resolução. Pense-se no prazo de caducidade previsto no artigo 5º, nº 1 do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril. Processualmente, pode ser proposta uma acção declarativa contra o consumidor (ou contra este e o vendedor, onde estaríamos perante um litisconsórcio voluntário, artigo 27º CPC) ou até uma acção executiva com base no contrato29.
5. Conclusão Findo este trabalho, cabe tirar as devidas conclusões. De facto, o Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho veio consagrar, com o intuito proteccionista do consumidor, um novo regime jurídico relativo aos contratos de crédito ao consumo. Daqui decorre que nos contratos de consumo financiado o legislador impõe que entre eles haja uma coligação. Deixa, contudo, alguma margem de discricionariedade ao interprete-aplicador na forma como os remédios consagrados se tornam exequíveis. O que foi acima exposto, em particular as soluções propostas, resulta da conjugação entre a própria ratio do regime, i.é., a protecção do consumidor, e os efeitos reflexos produzidos por um terceiro (maxime vendedor) que são apostos ao financiador. É neste equilíbrio de formas que o interprete se deve mover e decidir. E por isso, é manifesto que as soluções propostas não são vinculativas. Mas são aquelas que perecem estar em conformidade com o direito constituído. Apesar de, admitimo-lo, ser aconselhável repensar as soluções do ponto de vista do direito positivo em sede de de jure constituendo.
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Posição aceite pela jurisprudência, em que o contrato de mútuo serve de título executivo (artigo 46º CPC). Como requisitos, são os exigidos pelo artigo 12º do Decreto-Lei nº 133/2009, de 2 de Junho.
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BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE, Pedro de Direito das Obrigações. Contratos em especial, vol. I, Coimbra: Almedina, 2008. ALMEIDA, Carlos Ferreira de
Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol. I, Coimbra: Almedina, 1992. CORDEIRO, António Menezes Direito das Obrigações, vol. II, Coimbra: Almedina, 2010. CORDEIRO, António Menezes Manual de Direito Bancário, 4ª ed., Coimbra: Almedina, 2010. LEITÃO, Luís Menezes Direito das Obrigações, vol. I, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2009. LEITÃO, Luís Menezes Direito das Obrigações, vol. II, 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2010. LEITÃO, Luís Menezes Direito das Obrigações, vol. III, 8ª ed., Coimbra: Almedina, 2013. LEITÃO, Luís Menezes «Caveat venditor? A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a venda de bens de consumo e garantias associadas e suas implicações no regime jurídico da compra e venda», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. I, Coimbra: Almedina, 2002, pp. 263-300.
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MARTINEZ, Pedro Romano Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada, Coimbra: Almedina, 1994. MARTINEZ, Pedro Romano Direito das Obrigações (Parte Especial). Contratos. Compra e venda. Locação. Empreitada, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2001. MORAIS, Fernando de Gravato União de Contratos de Crédito e de Venda Para o Consumo, Coimbra: Almedina, 2004. PRATA, Ana Dicionário Jurídico, vol. I, 5ª ed., Coimbra: Almedina, 2008. SERRA, Adriano Vaz «Efeitos dos Contratos (princípios gerais)», in Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, nº 74º, 1958. TELLES, Inocêncio Galvão Manual dos Contratos em Geral, 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1965. VARELA, João de Matos Antunes Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed., Coimbra: Almedina, 2000.
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ARTIGOS CIENTÍFICOS DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS GERAIS DO ESTADO Por Rui Miguel da Rocha Rodrigues Lopes da Cruz
1. Introdução – Dos Princípios Executórios – igualdade e prioridade A motivação para a elaboração deste trabalho prendeu-se com o facto de haver no nosso ordenamento jurídico causas de preferência no pagamento a credores em acção executiva que são desconhecidas, dir-se-á mesmo secretas, de quem executa determinado crédito. Tratando-se de um regime excepcional, os privilégios creditórios constituem actualmente uma importante excepção ao princípio par conditio creditorum que deriva da regra prevista no artigo 604º CC. Importa, portanto, antes de entrar na discussão central do tema em causa, precisar alguns conceitos. Consoante a execução seja diligenciada por um só credor ou por vários, é qualificada singular ou colectiva, respectivamente. Esta última modalidade, por sua vez, subdivide-se em universal ou especial. A primeira ocorre quando a execução aproveita todos os credores pela liquidação de todos os bens do devedor, como por exemplo nos casos de insolvência1.
1
Vide artigo 1º CIRE, cit., in Ferreira, Fernando Amâncio, Curso de Processo de Execução, Coimbra, Almedina, 3ª ed., 2010, p. 315.
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A segunda, denominada de execução colectiva especial, aproveita apenas os credores que se apresentarem na execução, com liquidação dos bens penhorados. Este último caso, o que nos interessa relevar na elaboração deste trabalho, reclama dois princípios basilares acolhidos pelo CPC1939: o princípio da igualdade e o princípio da prioridade. O princípio da igualdade determina que todos os credores, excepto os preferentes, sejam colocados em pé de igualdade. Como refere Amâncio Ferreira2 este princípio fundamenta-se na regra de que o património do devedor é garantia comum de todos os credores, assegurando-se a estes o direito de participar em igualdade de circunstâncias na distribuição do produto da execução. Contudo, este princípio deve ser temperado com o princípio da prioridade, na medida em que houverem credores que tiverem penhora ou garantia real registada ou constituída anteriormente. Dir-se-á que só parcialmente o sistema de execução colectiva especial do CPC1939 terá sido acolhido pelo actual CPC. Assim se optou, sob pena “de se transformar a acção executiva num verdadeiro processo de falência”3. Efectivamente, os credores não convocados sempre poderão, se o desejarem, instaurar o processo de falência. Deste modo, o actual código preconiza um arquétipo de execução singular com uma componente concursal – a execução é somente impulsionada por um exequente em satisfação do seu crédito, podendo ainda intervir os credores com garantia real sobre os bens penhorados, por estes bens serem transmitidos livres de direitos de garantia, conforme artigo 824º CC, não tanto para obterem pagamento do seu crédito mas sim para fazerem valer os seus direitos de garantia sobre os bens penhorados4.
2
Ob. cit., p. 316. Cfr. FERREIRA, Amâncio, ob. cit., p. 317. 4 Cfr. FREITAS, Lebre de, A Acção Executiva – depois da reforma da reforma, Coimbra Editora, 5ª ed., 2009, p. 302. 3
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2. Graduação dos créditos Feita a penhora, nos termos do artigo 865º, nº 3 e 4 CPC citam-se outros interessados, nomeadamente os titulares de direitos reais caducáveis5 (vd. artigo 824º, nº 2 CC), as entidades referidas nas leis fiscais, com vista à defesa dos possíveis direitos da Fazenda Nacional e o Instituto de Segurança Social e o Instituto de Gestão do Fundo de Segurança Social, com vista à defesa dos direitos da segurança social. Feitas as citações e a devida verificação de créditos6, importará efectuar a graduação de créditos (artigo 868º CPC). No fundo saber em que lugar determinado credor, incluindo o exequente, de todos os interessados em jogo, verá satisfeito o seu crédito. Seguindo a exposição efectuada por Lebre de Freitas7, a ordem pela qual devem ser satisfeitos os créditos reclamados é a seguinte: 1. Havendo concurso sobre coisa móvel, prevalece o direito real de garantia que mais cedo tiver sido constituído (ou registado, caso se trate de coisa móvel sujeita a registo, cfr. artigo 6º, nº1 CRP), salvo disposição legal em contrário8.
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Tendo presente o previsto no artigo 604º, nº 2 CC, consideram-se garantias reais das obrigações: a consignação de rendimentos (artigos 656º e ss. CC), o penhor (artigos 666º e ss. CC), a hipoteca, legal (artigos 704º e ss. CC), a judicial (artigos 710º e ss. CC) e a voluntária (artigos 712º e ss. CC), o privilégio creditório (artigos 733º e ss. CC) e o direito de retenção (artigos 754º e ss. CC). Seguindo a doutrina dominante, designadamente Lebre de Freitas, a estes direitos acrescem o arresto, não convertido em penhora e a penhora, que conforme Teixeira de Sousa afirma, não sendo direitos reais de garantia, são “fontes de uma preferência sobre o produto da venda dos bens penhorados”, cfr. SOUSA, Miguel Teixeira de, Acção Executiva Singular, 1998, p. 250. e ss. Deverão ainda ser citados para a execução, segundo Amâncio Ferreira, os titulares de direitos reais de gozo que caducam com a venda, fazendo uma interpretação extensiva ao artigo 864º, nº 3, alínea b) CPC de forma a preencher a lacuna existente. 6 Temas que não serão desenvolvidos neste trabalho, pois imporiam uma pesquisa autónoma. 7 Freitas, Lebre de, ob. cit., p. 318 e ss. 8 Como por exemplo o artigo 746º CC, que gradua em primeiro lugar os privilégios por despesas de justiça (cfr. artigo 738º, nº 1 CC); artigo 10º, nº 2 Decreto-Lei nº 103/1980 que gradua os créditos por contribuições para a segurança social antes de qualquer penhor.
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2. Sendo o concurso entre coisa imóvel, o privilégio imobiliário é graduado em primeiro lugar, seguindo-se o direito de retenção e, depois, a hipoteca e consignação de rendimentos (prevalece a que for registada primeiro). 3. No caso de haver vários privilégios creditórios em concurso, a ordem de prevalência é a estabelecida em lei – artigo 745º CC a 748º CC, sem embargo de por disposição avulsa ser estabelecido o lugar em que são graduados determinados privilégios. 4. Por fim, o crédito do exequente é satisfeito, caso o crédito seja apenas garantido pela penhora, pois tendo o exequente direito real de garantia anterior atender-se-á à natureza e à data de constituição deste. Esquematicamente, para melhor compreensão, a ordem de graduação de créditos é a seguinte: 1. Se concurso sobre a mesma coisa móvel: a) Custas – artigo 746º CC; b) Privilégios creditórios especiais ou penhor (conforme data); c) Direito real de garantia anterior à penhora; d) Privilégio mobiliário geral – artigo 749º, nº 1 e artigo 750º CC; e) Penhora (crédito do exequente); f) Direito real de garantia posterior à penhora, incluindo arresto e penhora posterior. 2. Concurso sobre a mesma coisa imóvel: a) Custas – artigo 746º CC; b) Privilégios imobiliários especiais; c) Direito de retenção – artigo 755º, nº 1, alínea f) CC; d) Hipoteca e consignação de rendimentos (entre estas prevalece a que for registada primeiro – regra da anterioridade – artigo 751º, artigo 759º CC e 6º, nº 1 CRP); e) Penhora.
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3. Concurso entre privilégios creditórios – ordenados segundo o previsto nos artigos 745º a 748º CC.
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Ora, como verificamos supra, por regra a satisfação do crédito do exequente é feita apenas após a satisfação de outros credores, que por lei tenham direito a concorrer ao produto da venda dos bens penhorados. Se em determinados casos, como por exemplo a existência de direito de garantia real anterior à penhora se compreende que determine a satisfação do crédito primeiro que ao exequente, pois havendo registo existe a publicidade bastante para que o exequente saiba com o que pode contar quando indica determinados bens à penhora, assegurando-se a tutela da confiança do credor, outros casos há em que causa estranheza que assim seja, nomeadamente nos casos em que o crédito privilegiado é desconhecido quando a execução é instaurada, indo ao arrepio de princípios estruturantes do sistema. Estamos nos a referir aos privilégios creditórios gerais para garantia das dívidas de impostos e de contribuições para a segurança social que encontram arrimo na tutela dos interesses do Estado e de outras pessoas colectivas públicas, em detrimento dos credores particulares. Conforme nos ensina Lebre de Freitas9 tais privilégios subvertem a finalidade do processo executivo, desviando-o da sua função essencial de realização coactiva do crédito do exequente para a cobrança de créditos fiscais e para-fiscais10. Nesse sentido, o credor privilegiado acaba por ser, não raras vezes, o único a ser pago pelo produto da venda dos bens penhorados, enquanto o exequente não consegue satisfazer o seu direito.
3. A resposta (insuficiente) da lei e da jurisprudência O Código Civil de 1966, sensível a esta questão, extinguiu todos os privilégios creditórios e hipotecas legais que constavam à data em legislação avulsa, mantendo apenas aquelas que o próprio CC consagrou. Contudo ficaram ainda de fora os privilégios concedidos ao Estado ou a outras
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FREITAS, Lebre de, ob. cit., p. 320. Mediante o aproveitamento da actividade do exequente, e à sua custa, dadas as custas e despesas que suporta, cfr. FREITAS, Lebre de, ob. cit., p. 320, nota 47. 10
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pessoas colectivas públicas quando não destinados à garantia de créditos fiscais. Este avanço rapidamente seria subvertido, designadamente através da criação de um privilégio creditório mobiliário e imobiliário geral a favor da Segurança Social instituído pelo Decreto-Lei 103/80, de 9 de Maio e o privilégio imobiliário geral do Estado créditos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – artigo 111º do CIRS11. Ora esses privilégios creditórios previstos em lei avulsa alargaram-se de tal modo que a jurisprudência Constitucional viria a ser chamada a pronunciar-se sobre a sua conformidade com os parâmetros constitucionais, nomeadamente da sua consonância com o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica – artigo 2º CRP e princípio da tutela jurisdicional efectiva – artigo 20º CRP, na medida em que tais privilégios põem em causa a tutela judiciária do exequente assegurada pela acção executiva. Assim, deixaram de vigorar na nossa ordem jurídica, por inconstitucionalidade declarada com força obrigatória geral pelo tribunal Constitucional o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 – privilégio imobiliário geral da segurança social, e o artigo 111º CIRS – privilégio imobiliário geral por créditos de IRS, por violação do princípio da confiança12. Em consonância, face à nova redacção do artigo 751º CC, conferida pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 08 de Março, os privilégios imobiliários gerais reconhecidos fora do CC ficaram fora do seu âmbito, passando a sujeitar-se ao regime do artigo 749º, nº 1 CC, não valendo definitivamente contra terceiros, titulares de direitos que sejam oponíveis ao exequente. Contudo, essa inoponibilidade restringe-se a titulares de direitos reais (anteriormente constituídos/registados), e já não relativamente ao exequente que seja credor comum. É, pois, um facto que os privilégios gerais levam vantagem ao crédito do exequente garantido (apenas) pela penhora.
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Outros exemplos podem ser conferidos em FREITAS, Lebre de, ob. cit., p. 319, nota 44. Cfr. Acórdão nº 362/2002 e Acórdão nº 363/2002, ambos de 16 de Outubro.
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Ainda assim, a lei processual ex vi artigo 749º, nº 2 CC, neste domínio tutela de alguma forma o exequente: 1. Artigo 865º, nº 4 CPC: Não é admitida a reclamação do credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário, quando: a) A penhora tenha incidido sobre bem só parcialmente penhorável, nos termos do artigo 824º, renda, outro rendimento periódico, ou veículo automóvel; ou b) Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, a penhora tenha incidido sobre moeda corrente, nacional ou estrangeira, depósito bancário em dinheiro; ou c) Sendo o crédito do exequente inferior a 190 UC, este requeira procedentemente a consignação de rendimentos, ou a adjudicação, em dação em cumprimento, do direito de crédito no qual a penhora tenha incidido, antes de convocados os credores. 2. Artigo 873º, nº 3 CPC: Sem prejuízo da exclusão do nº 4 do artigo 865º, a quantia a receber pelo credor com privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário, é reduzida até 50% do remanescente do produto da venda, deduzidas as custas da execução e as quantias a pagar aos credores que devam ser graduados antes do exequente, na medida do necessário ao pagamento de 50% do crédito do exequente, até que este receba o valor correspondente a 250 UC. Neste último caso é assegurado o pagamento ao exequente de 50% do seu crédito, porém apenas até ao limite de 250 UC (102 € x 250 = 25.500 €). Não querendo isto significar que tais privilégios gerais (mobiliário ou imobiliário) sejam graduados depois do crédito exequendo13. Eles continuam a ser graduados antes do crédito do exequente que goze apenas da garantia
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Cfr. decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09/05/2007, P.0721613: vd. http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/dld5ce25d24df5380257583004ee7d7/058479a8c1716a4 7802572e400480ca0?OpenDocument.
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decorrente da penhora, estabelecendo-se, outrossim, em benefício do exequente, limites ao pagamento ao credor que tenha reclamado crédito garantido por privilégio creditório geral, mobiliário e imobiliário. Pretende-se, com esta norma, como refere Lebre de Freitas “... reduzir a possibilidade da completa defraudação do direito do exequente por via do aparecimento de credores com privilégio geral desconhecido...”. Ora, em nossa perspectiva tal limite, supra referido, será insuficiente pondo não raras vezes em causa a satisfação do crédito do exequente que intentou a acção, suportou custos relativos à mesma e que, a final, vê gorado o seu direito à tutela jurisdicional efectiva prevista no artigo 20º CRP, que havia de ser assegurada pela acção executiva14. Atente-se no seguinte exemplo: tratando-se de um crédito exequendo de 110.000 €, relativo a uma penhora de uma dívida cujo exequente apenas possui a garantia decorrente da penhora, não havendo qualquer outro credor que deva ser graduado antes do exequente, e havendo um privilégio creditório geral, mobiliário ou imobiliário, por exemplo relativo a um crédito da Segurança Social – IP por dívidas de contribuições e respectivos juros de mora15, nos termos do artigo 873º, nº 3 CPC, o exequente, teria direito ao pagamento de 50% do produto da venda (deduzidas as custas da execução, que por hipótese ascendem aos 10.000 €). Assim, o exequente teria direito a 50% do remanescente (100.000 €), que seria de 50.000 €. Contudo, tendo em conta a parte final do artigo 873º, nº 3 CPC, esse direito tem como limite 250 UC (que como supra calculamos são 25.500 €). Nestes termos, o exequente receberia apenas a quantia de 25.500 €, cabendo o resto do produto da venda ao credor privilegiado mencionado.
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14 Vd. também artigo 202º, nº 2 CRP que impõe a tutela dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, quer perante a Administração, quer no âmbito dos conflitos de interesses privados. 15 Nos termos do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80 de 9 de Maio e artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76 de 3 de Julho, estes créditos gozam de um privilégio creditório imobiliário geral.
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4. Conclusão Parecendo-nos insuficiente a resposta dada pela lei, em face do exposto reconhecemos que para dívidas de montante não muito elevado, por via da ressalva prevista no artigo 873º, nº 3 CPC, o exequente não titular de garantia real prevalente, vê tutelado o seu direito, ainda que não de forma completa. Já para dívidas de alta monta, o exequente poderá ver o seu crédito apenas satisfeito de forma diminuta, conforme o exemplificado anteriormente. Pertinente é também de relevar o carácter secreto do privilégio creditório geral, que será pois desconhecido do credor, pondo em causa a sua tutela da confiança, que quando concedeu crédito ao ora devedor desconhecia (sem culpa) o privilégio. Sendo certo ainda que tal privilégio pode até ser posterior à constituição da dívida, saindo da esfera de controlo do credor, que desconhecendo não poderá já tomar qualquer medida. Tutela-se assim os interesses do Estado, quiçá de forma exagerada, em detrimento dos credores particulares. Neste patamar de ideias, não podemos deixar de concordar com o defendido por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza16, entendendo que tais privilégios mobiliários gerais atentam contra os princípios da confiança e da proporcionalidade. Os argumentos seguidos pela citada Conselheira, os quais acompanhamos, prendem-se com o facto de o credor comum, que não tem a mera possibilidade de conhecer tais privilégios creditórios ocultos quando decide instaurar a acção executiva, levaria a uma afronta ao princípio da confiança, acabando por não tirar (quase nenhum) proveito dela. Tal preferência deve ser rejeitada porque “não tem em consideração a prioridade relativa na constituição dos créditos, não tem limites temporais e falta-lhe a publicidade”.
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Cfr. voto de vencida no Acórdão do TC nº 668/98, de 15 de Dezembro de 1998.
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Quanto à proporcionalidade a digníssima Cons. advoga que sendo a “preferência absoluta, não permitindo a ponderação concreta do sacrifício sofrido pelos credores em confronto, lesando sempre um deles independentemente das circunstâncias do caso” viola o princípio constitucional da proporcionalidade. Como nos ensinava o saudoso Professor Alberto dos Reis17, em defesa do princípio da igualdade na execução colectiva especial, ele “representa um prémio e um estímulo à diligência (...); parece justo que o credor diligente recolha o benefício da sua actividade e afigura-se injusto que os credores concorrentes venham a aproveitar-se do esforço, do trabalho, do zelo do exequente e das despesas e incómodos a que ele se sujeitou”.
BIBLIOGRAFIA COSTA, Salvador da Concurso de credores, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2005. FERREIRA, Fernando Amâncio Curso de Processo de Execução, Coimbra, Almedina, 3ª ed., 2010. FREITAS, Lebre de A Acção Executiva – depois da reforma da reforma, Coimbra Editora, 5ª ed., 2009. LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes Direito das Obrigações, vol. II, 5ª ed., Almedina, 2007. PINTO, Rui Penhora, venda e pagamento, Lex, Lisboa, 2003.
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REIS, José Alberto dos, Processo de Execução, vol. II, p. 247, cit., in FERREIRA, Amâncio, ob. cit., p. 322.
Da (In)constitucionalidade dos Privilégios Creditórios Gerais do Estado
SOUSA, Miguel Teixeira A reforma da acção executiva, Lex, Lisboa, 2004. Jurisprudência
•
Acórdão do TC nº 668/98, de 15 de Dezembro de 1998.
•
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09/05/2007, P.0721613.
•
Acórdão 362/2002 e Acórdão 363/2002, ambos de 16 de Outubro.
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A Programação Orçamental
ARTIGOS CIENTÍFICOS A PROGRAMAÇÃO ORÇAMENTAL: OBJECTO DE AUXÍLIO E IMPOSIÇÃO AO DECISOR ORÇAMENTAL PORTUGUÊS Por Nuno Saldanha de Azevedo
RESUMO O presente artigo pretende, ao tratar de um tema tão actual como é a programação orçamental, demonstrar a relevância desta nas finanças públicas, tanto a nível nacional como europeu. Esta matéria assume particular relevância devido à fragilidade financeira e económica europeia, bem como os novos desafios que se impõem de modo a que esta crise possa ser ultrapassada com sucesso, e que sirva igualmente para a construção das bases necessárias de uma economia estável a longo prazo capaz de fomentar o crescimento e garantir uma maior liquidez e solvabilidade, não só das empresas como igualmente dos estados-membros. Nesta pequena dissertação iremos igualmente abordar o polémico “Tratado Orçamental”, bem como os desafios com que o decisor orçamental português se irá deparar devido ao memorando de entendimento entre o Estado Português, o BCE, o CE e o FMI. Sendo bastante atual, este artigo espera não só despertar o interesse dos seus leitores, bem como auxiliar todos os estudantes que procurem aprofundar esta matéria.
ABSTRACT This article seeks to address a topic as current as budget planning, demonstrate the relevance of public finances, both at national and European levels. This matter is of particular relevance due to the European economic and
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financial fragility, as well as the new challenges that are imposed so that the crisis can be overcome successfully, and also serving to build the necessary foundations for stable economy in the long term able to foster growth and provide greater liquidity and solvency, not just the companies as equally member states. In this short essay will also address the controversial “intergovernmental treaty”, as well the challenges that the decision maker will faced due to the memorandum of understanding between the Portuguese State, the ECB, EC and IMF. Being fairly current, this article hopes to not only pique the interest of your readers, as well as assist al students seeking to deepen this matter.
Nota introdutória Neste artigo, irá ser feita uma abordagem ao conceito de programação e a sua distinção com o conceito de planeamento. Será igualmente atendida toda a evolução da programação macroeconómica, com a análise do modelo racionalizador e da evolução para o modelo planeador do orçamento, sendo depois atribuída a devida importância da programação orçamental em Portugal, bem como os desafios orçamentais que o estado português enfrenta: o memorando com a CE, BCE e FMI e todas as reformas orçamentais que estas implicam, e ainda uma pequena abordagem quanto ao polémico pacto orçamental. O trabalho em questão pretende ser elucidativo quanto às diversas técnicas analíticas que auxiliam a programação orçamental, de modo a proporcionar uma melhor compreensão sobre os vários desafios com que se depara o decisor orçamental, nomeadamente com a mutabilidade da conjuntura económica e com as vinculações externas que limitam a sua margem de manobra. Será igualmente efectuado um estudo sobre os diplomas legais que regem a orçamentação e os seus princípios programáticos, tendo em causa as evoluções efectuadas e algumas debilidades do ordenamento (nomeadamente a relativa importância da lei das grandes opções do plano decorrentes do nº 2 do artigo 105º da CRP). 74
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A programação orçamental ocupa cada vez mais, uma relevância superior em relação aos vários estados, tal como demonstra o relevo do orçamento de estado, e a solenidade com que este é elaborado e aprovado (tal como demonstra o artigo 106º CRP), sendo um objecto fundamental para a organização e estabelecimento de objectivos orçamentais, sendo igualmente um dos grandes pilares do princípio da transparência, que permitirá uma maior informação dos cidadãos sobre o destino de parte dos seus impostos, bem como uma melhor percepção dos compromissos com que o estado se debate e se debaterá. A programação orçamental irá igualmente dificultar a exposição de valores orçamentais falsos, permitindo um melhor controlo e fiscalização da execução orçamental, pelo que a sua compreensão se torna fundamental.
1. A programação e a sua relação com o conceito de planeamento O conceito programação é, por si só, um conceito bastante rico, que foi evoluindo através da própria evolução dos regimes económicos1. Será possível definir a programação como o acto de programar ou de estabelecer um programa, sendo igualmente certo, que a programação é um termo bastante próximo do conceito de planeamento, e isto porque, estes dois conceitos poderão surgir como sinónimos um do outro, ou até mesmo serem considerados espécies um do outro. Desta aproximação conceptual, poderíamos considerar a de que a programação seria uma política prosseguida pelo Estado perante o sistema económico, caracterizando-se pelo seu carácter indicativo, não havendo sanções de ordem administrativa para o seu desrespeito, estando a planificação ligada à noção de esquema organizativo de alguma coisa2. No entanto, e apesar desta clara “ligação” conceptual existente, e o facto de ambos os conceitos se encontrarem, ao longo dos tempos, constantemente interligados, a verdade é que existem
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. MONCADA, Luís S. Cabral, A problemática jurídica do planeamento económico, Coimbra Editora, 1985. 2
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algumas diferenças entre estes, apesar de algumas divergências doutrinárias3 relativamente a estes conceitos, sendo possível considerar a programação como uma aprofundamento do planeamento, através da qual será possível estabelecer determinados objectivos, bem como as futuras expectativas quanto ao exercício orçamental (sendo que aqui nos referimos, já, à programação enquanto orçamental). Antes de, aprofundarmos o tema da programação orçamental, bem como a sua própria evolução ao longo dos anos, será necessário verificarmos os elementos fundamentais da programação4, sendo estes: elemento teleológico, elemento instrumental, elementos de auxílio e metodológicos e o elemento temporal. Quanto ao elemento teleológico, tal como o nome indica, estarão em causa os objectivos finais da programação, que muitas vezes se confundem com os da própria política económica, no passado, o objectivo principal seria o pleno emprego, sendo este substituído pelo valor mais alto da estabilidade dos preços5, como tal, os instrumentos da programação serão construídos com base nesse objectivo fundamental. No que ao elemento instrumental diz respeito, este encontra-se bastante ligado ao objectivo da disciplina das finanças públicas, concretizando-se de imediato na redução das despesas do estado. Os elementos de auxílio de metodológicos dizem respeito à boa utilização da programação em relação aos instrumentos e aos métodos provisionais, no quadro da modelização económica. Por fim, o elemento temporal diz respeito ao facto da programação ter horizontes dominantes de médio ou curto prazo, e são fortemente tributários das técnicas de flexibilização temporal.
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Entre estas divergências, verificamos, por exemplo, os autores Vittorio Marrama e Piérre Massé, sendo que o primeiro considerava o planeamento como um esquema de desenvolvimento que englobava a própria programação, o segundo, considerava a programação como conceito técnico de optimização, constituindo o próprio processo de planeamento. 4 CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. 5 O que comprova a mutabilidade da política económica por aquilo que é considerado fundamental.
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2. Programação macroeconómica A programação económica poderá ser definida6 como um quadro que garante uma coerência acrescida na definição da política económica, nomeadamente através de uma maior coerência no tratamento e interpretação da informação, nos meios utilizados e nos objectivos definidos, procurando assim, ultrapassar possíveis dificuldades suplantadas pela existência de diferentes sistemas de preferências entre si. Podemos por isso concluir que a programação macroeconómica corresponde à concretização dos actuais sistemas de orçamentos económicos, construídos através de duas ideias fundamentais7: a ideia de orçamento (enquanto previsão de operações registadas de acordo com um dado quadro contabilístico) e a ideia de orçamento económico (pelo facto deste integrar o conjunto das operações económicas dos agentes). No entanto, e apesar de uma aparente “conformidade interna”, a verdade é que, dentro da programação macroeconómica, poderemos verificar a existência de vários modelos contrastantes de propostas actuais de programação macroeconómica, em que poderemos destacar o exemplo francês e o exemplo britânico, sendo que no primeiro, encontramos a figura da programação como autónoma em relação ao planeamento, muito devido à sua incidência temporal (onde se verificava a existência de previsões de médio prazo, a sua incidência verificou-se apenas a curto prazo), no segundo exemplo, os trabalhos levados a cabo por diversos seguidores8 de Keynes, permitiram uma transposição das ideias do seu “mestre”, gerando assim um modelo de previsão quantitativo de base contabilística. Fazendo, uma breve transposição para a actualidade, verificamos que diversos organismos internacionais9 têm recomendado, no âmbito da programação macroeconómica, determinadas mudanças nos sistemas orçamentais dos diversos países, de modo a demonstrar o papel fundamental que representa
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. 8 Sendo os principais John Meade e Richard Stone. 9 Entre eles, o Banco Mundial e a OCDE, por exemplo. 7
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a sua concretização para a economia mundial, sendo que esta concretização, seria igualmente necessário para atingir três objectivos fundamentais10: o enquadramento necessário à elaboração dos orçamentos anuais, a confirmação da sustentabilidade financeira das políticas orçamentais e a identificação das alterações desejáveis nessas mesmas políticas. Ora, a concretização destes objectivos recomendados pelos organismos atrás referidos, dependerá, em primeiro lugar de projecções macroeconómicas11, devendo estas ser feitas com base nos objectivos estabelecidos pelo programa orçamental, de modo a gerar uma melhor compreensão (quer do poder político, quer da própria opinião pública), se as políticas económicas prosseguidas produzirão ou não estabilidade económica e se serão ou não verdadeiramente viáveis para a prossecução dos objectivos previamente definidos no orçamento. Os organismos internacionais, não ignoram no entanto o facto de que, para que estas projecções possuam efectivamente relevância, será necessária uma devida elaboração do programa orçamental, e apontam por isso para um exercício de carácter interativo12, cuja caracterização será necessária para uma melhor compreensão do trabalho em questão. 2.1. O abandono da perspectiva racionalizadora da programação, e a adopção planeadora do orçamento
Após algum debate no que toca à melhor forma de proceder à programação, chegou-se à conclusão de que a programação macroeconómica (através do orçamento), deveria ser feita de uma forma o mais racional possível, sendo de entender que a noção de “racional”, neste caso, estará utilizada deforma a que todas as receitas e despesas do estado tenham o mínimo de custos e o máximo de benefícios extraídos dos investimentos efectuados, estando o estado em causa apenas adstrito à obrigação de conferir aos
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. Elaboradas em Portugal por diversas entidades públicas, como o Instituto Nacional de Estatística e os departamentos de previsão e estatística dos Ministérios, com ênfase, como é lógico, para os departamentos pertencentes aos Ministérios das Finanças e da economia. 12 CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. 11
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cidadãos aquilo que será legislativamente considerado como o interesse público. Apesar desta parecer, a priori, uma política orçamental apetecível para qualquer estado, a verdade é que ao longo dos anos, e devido às limitações económicas existentes em cada estado, estes têm contraído diversas vinculações jurídicas que os impedem de definir livremente as suas metas orçamentais, sendo estas vinculações da responsabilidade dos próprios, uma vez que altos níveis de despesa pública e uma fraca capacidade de gerar receitas, acabam por gerar determinados compromissos que os estados terão de assumir para garantir a sua própria sustentabilidade. Podemos por isso considerar que o modelo racionalizador não é um modelo praticável, sendo o aplicado o modelo planeador da programação orçamental, que iremos aprofundar posteriormente. Deveremos no entanto salientar que, não obstante de não ser o modelo programático orçamental em causa, a verdade é que o modelo racionalizador está presente nas decisões orçamentais, nomeadamente nas técnicas analíticas do orçamento13, como demonstram dois casos particulares: a evolução e o aperfeiçoamento das técnicas de previsão orçamental (orçamento enquanto “previsão14) e a utilização da análise custo-benefício na orçamentação de modo a observar qual a solução mais benéfica em cada decisão orçamental. Apesar do modelo planeador conferir um maior grau de responsabilidade aos estados, a verdade é que, tal como qualquer modelo, não deixa de ter os seus defeitos, sendo estes bastante compreensíveis, atendendo à sua natureza, sendo os restante de clara responsabilidade política. Ora, os defeitos que foram primeiramente mencionados, dizem respeito a todos os erros técnicos resultantes à instabilidade da conjuntura económica (como observamos na actualidade), já os segundos dizem respeito à fraca informação ou mentira orçamental, através, por exemplo, da exposição de falsos valores orçamentais15.
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. FRANCO, António Luís de Sousa, Finanças Públicas e Direito Financeiro, AAFDL, 1980. 15 Como o recurso à subestimação de despesas, reduzindo assim, nas previsões, o montante total do défice orçamental. 14
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2.1.1. A importância dos dois elementos da racionalização no modelo planeador
Como observámos no título anterior, apesar de ter sido acolhido o modelo planeador, é possível vislumbrar no mesmo, dois grandes elementos do modelo racionalizador de programação: a previsão e a análise custo-benefício. Quanto ao primeiro, verificamos que este possui uma enorme importância quanto à elaboração de todo o orçamento, de tal forma que o mesmo poderá ser visto como uma previsão (por norma, anual), das despesas a realizar pelo estado e a forma de as cobrir16, ou seja, sem previsão o orçamento perde todo o seu conteúdo. É nesta previsão que deverá constar a verdade sobre os valores em causa, de modo a evitar, como há pouco referimos, a mentira orçamental. Ora, com o aumentar da relevância elemento da previsão, houve uma incorporação das finanças públicas nas economias dos vários países, o que permitiu a percepção da evolução económica futura, garantindo aos poderes públicos a possibilidade de agir sobre ela através de meios financeiros17. Esta maior importância atingida por este elemento gerou igualmente a ampliação do respectivo objecto e ainda um reforço das técnicas provisionais, mais propriamente no que concerne a relevo do enquadramento da previsão, ou seja, se no próprio orçamento é possível verificar-se a possibilidade das circunstâncias económicas actuais poderem sofrer alguma alteração, e se a previsão tem em conta essa possibilidade estabelecendo medidas prévias. Já a análise custo-benefício, sendo considerada como uma técnica de avaliação de programas e de projectos, onde se procura avaliar se e em que medida os benefícios esperados excedem os respectivos custos antecipados, ao longo do período de implementação daqueles programas ou projectos18 (itálicos nossos), parece sem dúvida um outro aspecto fundamental para um exercício orçamental de sucesso, uma vez que, se procurará sempre as decisões orçamentais das quais se extraia
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FRANCO, António Luís de Sousa, Finanças Públicas e Direito Financeiro, AAFDL, 1980. 17 CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. 18 CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008.
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um maior número de benefícios, ou seja, as decisões serão, à partida, as mais eficientes possíveis. No entanto, apesar desta aparência aparente, a verdade é que a análise custo-benefício é portadora de algumas debilidades, sendo de salientar, aquela que mais se destaca, ou seja a sua fraca adaptabilidade a projectos de combate à pobreza ou de promoção da igualdade social, apesar disso, não poderemos ignorar o facto de que a matéria destes projectos é bastante ambígua e até mesmo subjectiva, devendo até ser consideradas como de difícil alcance, como tal, é de salientar que estas debilidades da análise custo-benefício são bastante reduzidas, sendo este tipo de análise bastante positivo no que toca à previsão e decisão orçamental. Será igualmente de sublinhar a extrema relevância quanto ao auxílio da análise custo-benefício no que concerne aos projectos de investimentos públicos, o que parece bastante claro, uma vez que estes representam o investimento de toda uma nação, sendo por isso necessário extrair o máximo de benefícios para a mesma, de modo a garantir um melhor acolhimento da decisão orçamental em causa. Concluímos portanto que a incorporação destes dois elementos do modelo racionalizador no modelo de planeamento são fundamentais para uma programação orçamental sustentável, eficiente e acima de tudo, concretizável.
3. A relevância da programação orçamental no ordenamento português 3.1. As vinculações externas e a evolução constitucional quanto às mesmas
Tal como é possível observar na Lei do Enquadramento Orçamental19, o orçamento deverá atentar, obrigatoriamente todas as receitas para a amortização das obrigações a que o estado se encontra vinculado. Ora, no nº 2 do artigo 105º da Constituição da República Portuguesa, é possível
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Nomeadamente os artigos 16º, 16º-A e 17º.
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extrair dois tipos de vinculações: as opções em matéria de orçamento e as decorrentes de lei ou de contrato. São estas as vinculações que terão de ser tidas em conta aquando da elaboração do orçamento, sendo dada uma maior relevância das primeiras em relação às segundas, no entanto, não há dúvida de que as vinculações decorrentes de contrato, ocupam um espaço importante no que concerne ao orçamento, uma vez que estas representam uma despesa obrigatória, e em alguns casos, ditam qual a política decisória orçamental a seguir20. Verificamos por isso que no que concerne às obrigações decorrentes de contrato, não existem grandes dúvidas, no entanto, a matéria das grandes opções em matéria de planeamento não é totalmente clara, tendo sido abordada por várias revisões constitucionais merecendo por isso uma grande atenção por parte da doutrina. Após a revisão constitucional de 1982, duas teses se opunham quanto à relação entre o plano e o orçamento: a de Cabral de Moncada21, que considerava a existência de uma hierarquia, estando no seu topo a lei das grandes opções do plano, em segundo o orçamento do estado que deveria ser elaborado segundo a primeira e por fim o orçamento elaborado de acordo com a lei do plano e com as verbas inscritas e as despesas previstas no orçamento. Posição diferente foi a adoptada por Marcelo Rebelo de Sousa22 que considerava existir uma relação tripartida, na qual o orçamento prevalecia sobre o Plano, dependendo no entanto da Lei do Plano. Com a revisão de 1997, verificou-se uma maior amplitude dos elementos de orçamentação do planeamento, sendo considerado que apenas se manteriam as vinculações às grandes opções do planeamento, conjugando-se assim a vinculação em causa com uma política económica flexível e conjuntural23.
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Tal como comprova o memorando de entendimento entre Portugal e CE, BCE e FMI. 21 MONCADA, Luís Cabral de, Perspectivas do Novo Direito Orçamental Português, Coimbra Editora, 1984. 22 SOUSA, Marcelo Rebelo de, 10 Questões sobre a constituição, o orçamento e o plano, in Nos dez anos da constituição, Jorge Miranda (org.), Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. 23 MONCADA, Luís Cabral de, Direito Económico, Coimbra Editora, 2007.
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Conclui-se portanto que a lei do plano, apesar de ser considerada como uma lei em sentido formal e material, carece de obrigatoriedade, visível pela falta de sanção em caso do seu incumprimento, e de efectividade, exposta com a aparente dispensa de cumprimento. Na nossa opinião, a lei das grandes opções do planeamento, possuem uma importância bastante reduzida no que toca à decisão orçamental, o que é aliás comprovado pela actual lei24 relativa às grandes opções do plano para o período entre 2010 e 2013, na qual se poderá observar que o nº 1 do artigo 4 com a epígrafe “Grandes Opções do Plano”, possui um conjunto de opções algo ambíguas e abstractas, e que parecem não ter em conta as circunstâncias económicas do espaço europeu, parecendo transparecer a clara irrelevância da mesma lei, o que não deixará de ser um aspecto bastante negativo. Mas se é de salientar alguma divergência em relação a algumas vinculações, é de notar a existência de outras que foram cimentando a sua importância, tornando-se claramente efectivas, sendo estas, os constrangimentos da decisão orçamental e as verdadeiras vinculações. Os primeiros, apesar de não constituírem qualquer imperatividade, acabam por reduzir o espaço de manobra do decisor orçamental (governo), já os segundos não se limitam a influenciar a decisão orçamental em causa, pelo contrário, não só indicam qual deverá ser o seu conteúdo como a forma de o alcançar, verificando, neste tipo de vinculações, uma quase substituição do decisor orçamental pelas mesmas, como é o caso das obrigações de estabilidade definidas pelas instâncias comunitárias, concretizadas na obrigatoriedade de elaboração, dos programas de estabilidade e crescimento25 (comummente conhecidos por PEC) por parte de cada estado-membro. As vinculações são de facto de
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Leia-se o documento da lei das grandes opções do plano no sítio http://app.parlamento. pt/webutils/docs/doc.pdf. 25 Que apesar de substituírem, em parte, o decisor económico, são de uma enorme importância no que à programação e à responsabilidade orçamental diz respeito, pelo facto de prever, entre outros, o enquadramento macroeconómico em cenários de médio prazo (2011-2014), bem como a previsão da sustentabilidade das finanças públicas a longo prazo, e ainda a execução orçamental e as respectivas perspectivas de execução. Sendo portanto um diploma de autodisciplina orçamental dos estados, e que reforça a responsabilidade dos Governos quanto à sua sustentabilidade. O Programa de Estabilidade e Crescimento pode ser consultado no sítio: http://www.parlamento.pt.
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grande importância para o decisor orçamental, podendo no entanto limitar a sua actuação, tal como demonstra o memorando de entendimento entre Portugal e a CE, BCE e FMI (que, pela relevância que possui actualmente, será alvo de particular atenção). 3.2. A programação financeira em Portugal
Até à sua previsão expressa em 2001, a programação financeira não tinha em Portugal qualquer tradição, estando apenas associada à gestão de projectos de investimento público26, sendo por isso vista como uma calendarização de meios tendo em vista a realização de determinada obra. Como é evidente, a conceptualização actual é bem diferente da sua antecessora, estando em causa a concretização de objectivos de disciplina financeira e de estabilidade orçamental, tendo como primordial objectivo o da contenção ou redução da despesa pública, tal como aliás demonstra o Programa de Estabilidade e Crescimento. Contudo, até à adopção do PEC, existiram dois outros programas de ajustamento adoptados pelo estado português após a adesão à CEE, sendo estes: o Programa de Correcção Estrutural do Défice Externo e do Desemprego (1987) e o Quadro de Ajustamento Nacional para a Transição para a UEM (1990)27. Quanto a estes, e atentando que já prosseguiam um ideal disciplinador, destaca-se o facto de terem um objecto mais vasto e ambicioso do que os instrumentos de programação financeira, traçando metas precisas em relação às principais variáveis macroeconómicas (considerando como principais variáveis as taxas de câmbio, a taxa de inflação e as Finanças públicas)28. Finalmente em Dezembro de 1998, para fazer coincidir com a adopção do euro, Portugal adoptou o PEC 1999-200229.
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. LOUREIRO João, Política Orçamental na Área do Euro, Almedina, 2008. 28 Tal como demonstra Nazaré Costa Cabral em Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. 29 Bastante menos “completo” em relação ao actual, sendo de salientar a falta de exploração quanto à execução orçamental, sendo no entanto de realçar a importância dada à estratégia de gestão da dívida pública. O PEC 1999-2002 pode ser consultado no sítio: http://ec.europa. eu/economy_finance/economic_governanceprogramme/pt_1998-12-01_sp_pt.pdf. 27
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Actualmente, não há dúvida de que a tendência programadora do orçamento possui uma enorme relevância no sistema orçamental português, seguindo o exemplo da generalidade dos países da OCDE. Tendo em conta as políticas comunitárias, Portugal adoptou o que, Nazaré Costa Cabral, denomina de sistema de planeamento das despesas públicas30, cuja estrutura se encontra dividida por quatro patamares, cuja análise se torna obviamente necessária: Primeiro Patamar – Planeamento de longo prazo das despesas
Este patamar tem como base as exigências decorrentes do envelhecimento demográfico, e de outros factores cuja mutabilidade coloca em causa os sectores fundamentais para a subsistência de qualquer estado e respectivo povo (emprego, saúde, segurança, etc.). O Estado Português tem-se socorrido da LEO31 e da Lei de Bases da Segurança social32 de modo a elaborar documentos, que serão fonte de verdadeiros instrumentos de programação e de enquadramento de longo prazo nas respectivas receitas e despesas como é o caso do Relatório A sustentabilidade Financeira do Sistema de Solidariedade e Segurança Social (2002)33. Este patamar, para além de uma melhor projecção que permitira uma programação macroeconómica mais eficiente, comporta igualmente, como foi salientado, um princípio de equidade intergeracional, também consagrado na LEO (artigo 10º.), e que tem como objectivo algo fundamental: que nenhum cidadão nasça a ter que pagar algo pelo qual não teve qualquer usufruto.
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. Nomeadamente da alínea a) do nº 1 do artigo 37º, no que respeita aos indicadores financeiros a longo prazo. 32 Mais concretamente no artigo 13, que concerne ao princípio da coesão intergeracional, defendendo um ajustado equilíbrio e equidade geracionais quanto à assunção de responsabilidades do sistema. 33 Revisto em 2006, e que contém o cenário demográfico até 2050, constituindo por isso, um verdadeiro instrumento da decisão política quanto às opções a tomar em relação à Segurança Social. 31
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Segundo Patamar – Programação económica de médio prazo
Em relação ao segundo patamar, será possível referir que este se encontra claramente relacionado com a elaboração dos programas de estabilidade e crescimento entregues por Portugal às instâncias comunitárias. Estes programas, permitem não só a construção de cenários a longo prazo, bem como as perspectivas de execução orçamental a médio prazo34, garantindo igualmente a existência de alguma disciplina orçamental por parte de todos os estados-membros. Esta disciplina orçamental está inteiramente relacionada com o princípio da estabilidade orçamental (consagrado na LEO35), e cuja caracterização se torna necessária para uma melhor compreensão deste segundo patamar. Assim sendo, deveremos considerar que o princípio da estabilidade exige, para efeitos de reporte às instâncias europeias, a utilização do critério da Contabilidade Nacional, seguindo por isso o disposto no Sistema Europeu de Contas (SEC-95), sendo um princípio bastante associado ao princípio da transparência orçamental (também consagrado na LEO36), o que se reflecte na necessidade do orçamento possuir toda a informação necessária para a verificação de uma situação de equilíbrio financeiro sem perdas. É ainda de salientar que para o alcance da estabilidade orçamental enquanto verdadeira disciplina financeira, será necessária a verificação de três elementos37: a flexibilidade (enquanto regra facilitadora da operatividade dos estabilizadores automáticos, tendo em atenção o evitar do agravamento do défice), a credibilidade e a transparência. Só através do respeitos dos elementos anteriormente enunciados, será possível alcançar uma situação de equilíbrio ou excedente orçamental, que garanta um equilíbrio económico estadual, sendo esse o principal foco deste segundo patamar.
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O Programa de Estabilidade e Crescimento pode ser consultado no sítio: http://www. parlamento.pt. 35 Mais concretamente no artigo 10º-A. 36 Artigo 10º-C. 37 Assim, MARTINS, Guilherme Waldemar d’Oliveira, Guilherme d’Oliveira e Maria d’Oliveira em Lei de enquadramento orçamental anotada e comentada, Almedina, 2007 (anotação referente ao nº 2 do artigo 84º, que corresponde actualmente ao artigo 10º-A).
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Terceiro Patamar – Programação financeira de médio prazo
No que ao terceiro patamar diz respeito, podemos considerar que em Portugal, este foi acolhido como instrumento de orientação dos orçamentos anuais, sendo caracterizado por documentos de programação financeira plurianual38, não tendo carácter legal nem merecendo qualquer tipo de aprovação parlamentar. A consagração deste patamar em Portugal como elemento instrumental39 do princípio da estabilidade orçamental, está relacionada com o facto de o legislador entender que esta está associada à necessidade de definição de regras financeiras, sendo estas regras financeira aplicadas no sentido de assegurar a estabilidade macroeconómica, aumentar a credibilidade da política financeira empreendida pelo Governo a ajudar à consolidação da dívida, assegurar a sustentabilidade de longo prazo das políticas financeiras, minimizar as externalidades negativas decorrentes de um acordo internacional ou estabelecimento de uma federação e ainda garantir a redução dos efeitos pro-cíclicos da política financeira40. Apesar da aparente relativa importância destes elementos informativos de programação financeira, a verdade é que esta ocupa um lugar de enorme relevância pelo facto de lhe ser atribuído, pela LEO41, o estatuto de vinculação externa. Quarto patamar – A orçamentação
É neste capítulo dos patamares, que se verificam as restrições observadas nos patamares anteriores, nomeadamente com a consagração do nº 2 do artigo 4º da LEO, segundo o qual a elaboração dos orçamentos deverá ser enquadrada num quadro plurianual de programação orçamental, tendo em conta as obrigações referidas no artigo 17º da LEO42. Como é possível verificar, este artigo da LEO, consagrou materialmente o carácter programador
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Alínea b) do nº 1 do artigo 37º da LEO. Algo que se pode concluir através da análise dos nºs 1 e 2 do artigo 86º da LEO. 40 Assim, MARTINS, Guilherme Waldemar d’Oliveira, Guilherme d’Oliveira e Maria d’Oliveira, Lei de enquadramento orçamental anotada e comentada, Almedina, 2007. 41 Alínea c) do artigo 17º. 42 Referente às vinculações externas. 39
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da definição das regras orçamentais à luz de instrumentos plurianuais diversos, que procura garantir uma maior racionalidade das decisões orçamentais à luz da credibilidade política económica e do objectivo disciplinador das finanças públicas43. Este patamar acaba igualmente por consagrar a orçamentação por objectivos44, que pretende uma racionalização dos recursos económicos, através da definição de prioridades e de objectivos a que devam ser afectados os recursos orçamentais, promovendo a facilitação do controlo dos gastos e da responsabilização dos agentes administrativos em função dos objectivos que se podem alcançar45. Em suma, será possível concluir que através da consagração da orçamentação por objectivos, procurou-se ultrapassar a orçamentação tradicional de meios, incrementalista por natureza e derivar para um orçamento por objectivos46. 3.2.1. As dificuldades do decisor orçamental português, face ao memorando de entendimento ente o Estado Português e CE, BCE e FMI
Como foi possível verificar, são várias e diversificadas as técnicas de programação e análise orçamental, que serão de extrema relevância para a elaboração do orçamento de estado. No início da exposição sobre a programação financeira em Portugal, foi possível verificar que o estado português apesar de ser totalmente independente em matéria orçamental, não poderá deixar de atender às vinculações externas com as quais se comprometeu47, e que irão, decerto, limitar o espaço de manobra do decisor português, ora, um dos temas que tem merecido maior destaque quanto à elaboração do orçamento é sem dúvida a obrigação decorrente do
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CABRAL, Nazaré Costa, Programação e decisão orçamental, Almedina, 2008. Observável no artigo 15º da LEO referente à Gestão por objectivos. 45 Assim, MARTINS, Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins, Guilherme d’Oliveira Martins e Maria d’Oliveira, Lei de enquadramento orçamental anotada e comentada, Almedina, 2007. 46 CABRAL, Nazaré Costa, O orçamento da segurança social, Cadernos IDEFF, nº 3, Almedina, 2005. 47 Artigo 17º LEO e nº 2 do artigo 105º CRP. 44
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contrato estabelecido entre Portugal e CE, BCE e FMI (popularmente designado como a “troika”), na qual, de modo a conseguir a sua sustentabilidade e evitar o colapso da sua economia, Portugal recebeu de empréstimo destas três entidades internacionais cerca de 78 mil milhões de euros, devendo ser pagos num prazo não superior a sete anos e meio. No entanto, para conseguir obter este empréstimo, Portugal teve de chegar a acordo com as respectivas entidades, vinculando-se a determinadas obrigações que visam não só garantir um maior equilíbrio económico e financeiro do país, como também oferecer à Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional a garantia de que irá pagar o empréstimo em causa com os juros devidos. Tendo em conta essa situação, o Estado Português e as respectivas entidades acordaram no dia 17 de Maio de 2011, um memorando quanto a medidas que Portugal terá de tomar de modo a receber as várias tranches do empréstimo. Como é possível observar através da leitura do respectivo memorando, estão previstos no mesmo diversas medidas a ter em conta, não só em relação à política orçamental (redução do défice para 3% do PIB em 2013) até 2014, ou seja, as linhas orientadoras estão já lançadas, como estão igualmente previstas medidas nas mais diversas áreas como é o caso do sector bancário, das parcerias público-privadas, da saúde do mercado de trabalho, da segurança social entre muitas outras. Em suma, deveremos concluir que existe já definido um enorme rol de medidas a que o Governo português se encontra adstrito, e que podem ter grandes repercussões no que à programação orçamental diz respeito. Na nossa opinião, não há dúvidas de todas as políticas orçamentais previstas no memorando entre 2011 e 2014, limitam enormemente qualquer tipo de margem de manobra do decisor orçamental, sendo igualmente certo que a programação orçamental portuguesa far-se-á tendo em conta todos os objectivos definidos no contrato em causa, restando ao decisor orçamental português ter em conta a mutação dos circunstancialismos económicos procurando adoptar as medidas previstas, tentando ter em conta a técnica de análise do custo-benefício, ou seja, procurar garantir que por muito elevado que seja o custo social das decisões em causa, existam benefícios efectivos a retirar a longo e a médio prazo. É igualmente de salientar que para o sucesso de todo este complexo processo, será necessário dar um valor reforçado aos princípios da transparência e da equidade intergeracional,
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o primeiro porque operações que envolvem avultados custos sociais deverão oferecer o máximo de informação possível de forma a garantir um maior e melhor consentimento da população, já o segundo diz respeito a não hipotecar o futuro das gerações futuras, o que para além de poder ter efeitos catastróficos para a economia, acarretaria consequências em todas as outras áreas de relevo nacional. Um outro ponto a ter em conta por parte do decisor orçamental será a conquista da credibilidade financeira por parte do poder político português em relação aos mercados financeiros, porque só com a estabilização dos mercados será possível a Portugal a tentativa sólida de alcançar o equilíbrio orçamental. Será por isso, possível concluir que a programação macroeconómica em Portugal entre 2011 e 2014 estará já praticamente efectuada, restando ao decisor orçamental tomar decisões que, apesar de pequeno relevo, poderão alcançar uma importância significativa. 3.2.2. O tratado intergovernamental e os desafios que este representa para a programação orçamental portuguesa
O ponto agora em análise, diz respeito a uma matéria bastante actual e que não reúne qualquer consenso quer a nível doutrinário como também a nível do poder político, o que se espelha igualmente pela forma que esta foi “imposta”. O documento em causa (tratado intergovernamental, também designado por pacto orçamental), visa a consagração de uma enorme disciplina orçamental, consagrando a denominada “regra de ouro”48, que, segundo o diploma em causa, será atingida através de inscrição na constituição ou lei de valor equivalente, fixando um limite para o défice de estrutural de 0,5% do PIB, devendo o tribunal de Justiça fiscalizar as medidas tomadas pelos vários estados-membros de modo a compreender se estas dão garantias de vir a cumprir a meta em causa até 2014 (data limite). Estando prevista uma sanção de 0,1% do PIB para todos os estados que incumpram esta
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Correspondente ao princípio da estabilidade orçamental.
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medida, o que para Portugal significaria o pagamento de uma quantia que rondasse os 160 milhões de euros. Uma outra medida prevista neste tratado é a existência de uma lei travão para a dívida pública que não poderá exceder 60% do PIB, e os planos de emissão da dívida deverão ser previamente apresentados à Comissão Europeia e ao Conselho, sendo igualmente de salientar o facto de que os estados que não ratificarem o tratado não poderão beneficiar do mecanismo europeu de estabilidade, ou seja, em caso de crise económica e financeira, não poderão ser auxiliados pelo fundo criado especificamente para esse fim49. É possível por isso verificar que este tratado, foi praticamente “imposto” aos estados-membros, tendo em conta a sanção prevista e a conjuntura económica actualmente existente, sendo por isso, na nossa opinião, um tratado com poucas probabilidades de sucesso por diversos motivos: em primeiro lugar porque não parece que o acolhimento constitucional da denominada “regra de ouro” venha a garantir a diminuição do défice estrutural em 0,5% do PIB50, em segundo, não parece razoável a sanção em causa, por fim, parece uma medida algo débil, e isto porque, se é verdade que os estados europeus procuram garantir aos mercados a sua credibilidade, demonstrando uma forte disciplina orçamental (que não se verificou nas últimas décadas), é verdade também que não será através de medidas de contenção e de obtenção da “regra de ouro” a todo o custo, que o crescimento económico será alcançado, para além de alguma contenção será igualmente necessário algum investimento. Este tratado também não será benéfico para Portugal, uma vez que, estando o estado já sobrecarregado com o memorando há pouco analisado, não será razoável o comprometimento com metas de quase impossível alcance e de uma programação orçamental que, para o alcançar, estaria certamente condicionada pela exposição de falsos valores orçamentais o que corromperá o princípio da transparência.
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Quanto às informações em causa, estas foram retiradas do seguinte sítio: http://rr.sapo. pt/informacao. 50 Recorde-se o caso da Alemanha, que possui um preceito constitucional que consagra a regra de ouro, e que o próprio estado veio a incumprir.
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Conclusões Em tempos de grande turbulência económica mundial, a programação assume cada vez mais uma importância nos vários estados, nomeadamente nos estados europeus, em que a apresentação dos programas de estabilidade e crescimento, pressupõem mecanismos de programação macroeconómica, permitindo uma autodisciplina reforçada dos estados. Na nossa opinião, para que os estados possam enfrentar com seriedade todos os problemas que lhes são colocados actualmente, será necessário o reforço dos instrumentos de previsão a longo prazo, porque só através desta elaboração de possíveis “cenários” económicos será possível ao decisor orçamental presente, tomar de forma consciente todas as decisões orçamentais necessárias para a prevenção dos efeitos negativos previstos, sendo de salientar que toda a programação orçamental deverá ser efectuada sob a batuta de dois grandes princípios orçamentais: o princípio da transparência e o princípio da equidade intergeracional. O primeiro, será fundamental para a conquista da confiança dos mercados e para a concessão de maiores créditos ao poder político, cada vez mais débil devido a acontecimentos passados em que se comprovou o falseamento de valores orçamentais, que culminaram em alguns estados, em situações catastróficas (caso da Grécia), o segundo será preponderante para o afastamento da hipótese de hipoteca do futuro das gerações vindouras, que poderão ter que pagar determinadas despesas que não só não contraíram, como também não retiraram quaisquer usufrutos da mesma, o que, para além de não ser justo, será, porventura contraproducente, correspondendo ao exemplo de alguém pagar um serviço pelo qual não irá usufruir, o que é de todo absurdo. A programação debate-se por isso, sobre alguns desafios que terão, forçosamente de ser ultrapassados através do compromisso do decisor orçamental com o futuro orçamental, porque só assim, será possível uma execução orçamental estável. Só uma programação ponderada e eficiente quanto aos problemas económicos e financeiros poderá gerar novos índices de confiança, e será, sem dúvida, a base para o alcance de uma verdadeira estabilidade financeira. 92
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CRÓNICAS DA ATUALIDADE UM NOVO FUTURO PARA A UNIVERSIDADE DE LISBOA E PARA A SUA ASSOCIAÇÃO ACADÉMICA Por André Machado [Presidente da Direcção Geral da AAUL] A Associação Académica da Universidade de Lisboa (AAUL) enfrenta, no mandato 2013-2014, muitos e importantes desafios. Este será um ano fundamental para a afirmação da Associação Académica, no momento em que se consuma a maior reforma das últimas décadas no Ensino Superior português: a fusão das antigas Universidade de Lisboa e Universidade Técnica de Lisboa. Neste cenário, assumem-se importantes tarefas no plano interno, com o acompanhamento do primeiro ano da nova Universidade e a construção de um movimento associativo institucional, ao tempo que, no plano externo, são muitas as matérias que exigem posições de força da maior Academia do país. O processo de fusão das antigas Universidades culminou com a eleição do Reitor da nova Universidade de Lisboa. Num país tantas vezes avesso à mudança, o papel e liderança do Professor António Sampaio da Nóvoa e do Reitor António Cruz Serra foi exemplo de coragem e perseverança, que nos deve inspirar. Agora, consumada esta importante mudança, surgem inúmeros desafios que exigem uma Academia unida e motivada nos seus três corpos: docente, não docente e estudantil. Desde logo, a afirmação da UL como Universidade de investigação exige um equilíbrio sustentado com a missão primeira da Universidade: um Ensino graduado e pós-graduado de excelência, baseado na craveira científica do corpo docente, na preparação e formação contínua dos funcionários não docentes, em infra-estruturas modernizadas e em sistemas de avaliação e garantia da qualidade transparentes. Ainda a este nível, releva a transversalidade
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dos conhecimentos que a fundação de uma Universidade tão completa nos permite. A efectivação dos colégios será um trabalho essencial, a este nível. A ligação à cidade de Lisboa é, também, vector fundamental de afirmação da nova UL. O vasto património edificado, artístico, cultural e científico da Universidade deve estar ao serviço da Academia, mas aberto à sociedade que serve. Na cidade capital, a UL pode e deve constituir-se como pólo de dinamização da sociedade civil e, por esta via, cumprir um seu desígnio essencial: o serviço à causa pública, através da palavra, do exemplo e da vida das suas Escolas e do seu património material e imaterial. Os museus, as bibliotecas, o Estádio Universitário, os institutos e as demais entidades que, de uma forma ou outra se ligam à Universidade, devem estar, acima de tudo, abertas e comprometidas com a cidade, no sentido de comunidade. A internacionalização, por seu turno, é o principal vértice de uma estratégia de crescimento de uma Universidade desta dimensão. A integração em redes europeias e a participação activa nas mesmas exige-se, com os olhos postos no grande objectivo de um Espaço Europeu de Ensino Superior, com ainda mais mobilidade de docentes e Estudantes, com estratégias concertadas de intervenção social e com colaborações mais estreitas na investigação, no Ensino e na definição de políticas de educação e ensino superior. Por outro lado, exige-se a valorização da ligação histórica aos países de língua portuguesa: a criação de uma comunidade de ensino superior lusófona, com a qual devemos estar comprometidos, é uma oportunidade extraordinária de elevação da defesa da língua e cultura portuguesas no Mundo.
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Ainda a propósito da fusão e à luz do exemplo do sucesso deste empreendimento, importa transportar o espírito de compromisso e diálogo para o plano do movimento associativo da nova Universidade. Com efeito, no passado, existiam culturas institucionais diferentes, que nunca impediram entendimentos alargados e um trabalho em conjunto que, em muitos momentos históricos, contribuiu para importantes mudanças no Ensino Superior e no país. Não há outra forma de defender, com elevação e dedicação autêntica à causa académica, o interesse dos Estudantes que não o aproveitamento dessas diferenças para a construção de uma Academia
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unida. A experiência da AAUL mostra-nos que as associações académicas e de Estudantes podem empenhar-se nesse esforço e a participação, cada vez mais significativa, dos Estudantes, deve motivar essa convergência e esse compromisso. Somos a maior comunidade estudantil do país e esse facto incontornável exige, por si, a efectivação de uma Académica abrangente, representativa e preparada. Estamos focados na urgência desse desígnio, com a convicção inabalável de que a representação dos Estudantes da Universidade de Lisboa será, sempre, aquela que os próprios, nós, construirmos. Ainda aqui, importa recordar o importante papel dos órgãos da Universidade, designadamente o Conselho Geral e o Senado. O primeiro ano da nova UL será o momento da criação da identidade institucional e da definição das políticas estratégicas de futuro da instituição. A aprovação de documentos como o plano de acção do Reitor, o plano estratégico de médio prazo, as linhas gerais de orientação da Universidade (científicas, pedagógicas, financeiras e patrimoniais) e as demais regulamentações estatutariamente previstas são momentos de crucial importância para o futuro da Universidade. Importa, pois, acompanhar de perto o trabalho do Conselho Geral, apoiar os representantes dos Estudantes neste órgão e, mais importante, conseguir alargar o debate que se impõe a toda a Academia, procurando dinamizar todos os corpos na construção do futuro da nossa Universidade. Neste contexto, a elevação do Senado a verdadeiro “parlamento” da Academia é essencial e os representantes dos Estudantes no órgão devem estar comprometidos com o alargamento dessas discussões. A AAUL, consciente da necessidade de legitimação e solidez destes momentos, será a primeira protagonista deste debate. O cenário que encontramos dentro de muros é trabalhoso e desafiante. Contudo, a Associação Académica compreende uma dimensão externa, de intervenção, que os Estudantes que representa exigem que exerça e que os tempos que o país atravessa demandam de estruturas como a nossa. Desde logo, a situação de autêntica emergência social que muitas famílias portuguesas vivem, motivam-nos no mais importante dos desígnios actuais da representação estudantil. O debate sobre a política de Acção Social arrasta-se há tempo demais, com a pior das consequências: o crescente abandono de colegas, por falta de recursos financeiros para frequentar o Ensino Superior. É urgente rever toda a política de apoio social do Estado,
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com a consciência de que o futuro do país vai além das dificuldades do presente e os custos, neste âmbito, não são simples “despesa”, mas verdadeiro investimento. Entre políticas de acção social indirecta, algumas matérias pontuais ligadas ao sistema de segurança social e alguns apoios avulsos, a questão do sistema de bolsas ganha especial importância: é urgente rever o regulamento, eliminando disposições injustas, alargando o âmbito de apoio e desburocratizando os processos, com a noção clara de que cada “corte” implica consequências que vão muito além das financeiras e imediatas. É nesse compromisso que estamos, em primeira linha, empenhados. No plano do financiamento das instituições, em que há muito o investimento deixou de ter lugar no vocabulário político, não poderemos vacilar um milímetro que seja. As instituições vivem asfixiadas e, não poucas vezes, repercutem dificuldades nos serviços prestados e nos custos de um ensino, cuja gratuitidade estão constitucionalmente consagrada. Esta é a hora de ter uma só voz: Estudantes, Docentes e Funcionários unidos na mesma afirmação de que “Não Vacilaremos”. Num outro plano, o fracasso atestado do actual Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) deve motivar a sua revisão premente e global. Alterações pontuais, que ignorem os principais atentados à autonomia universitária e à participação de todos os corpos na gestão das Universidades, estão votadas ao mesmo insucesso que o actual regime alcançou. A estas questões junta-se a urgência da revisão do mapa da rede de instituições de Ensino Superior, sobre o qual falamos com a autoridade de quem protagonizou uma importante mudança; a polémica questão da oferta formativa de primeiro grau; as políticas de empregabilidade, num contexto em que o desemprego jovem é o maior flagelo do futuro de uma geração; e, por fim, a participação activa na definição das políticas de juventude.
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As dificuldades do presente, que se multiplicam em tempos difíceis como os que vivemos, não podem desmotivar uma geração do combate pelo seu futuro. Antes devem constituir verdadeiros desafios que, juntos, como uma comunidade comprometida com a construção do “amanhã”, devemos enfrentar com esperança e irreverência. O mais importante contributo que
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devemos dar ao futuro consiste na dedicação autêntica à causa que nos motiva, no presente. A Associação Académica da Universidade de Lisboa está comprometida com a causa académica, que defende na sua essência e em nome de uma geração que acredita no seu país. Os Estudantes da Universidade de Lisboa podem contar connosco na defesa do futuro das suas Escolas e da sua Academia. Esta geração universitária pode contar connosco na defesa das suas causas. Todo o país pode contar connosco na defesa dos pilares do seu futuro.
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O Novo Regulamento de Avaliação: Desistir ou Avançar?
CRÓNICAS DA ATUALIDADE O NOVO REGULAMENTO DE AVALIAÇÃO: DESISTIR OU AVANÇAR? Por Afonso Brás Sobre os pilares essenciais do Novo Regulamento de Avaliação já muito foi dito e pensado. Consequentemente, impõe-se agora uma reflexão geral sobre tudo aquilo que foi debatido – felizmente! – por toda a Comunidade Académica. O Novo Regulamento de Avaliação tem como ponto de partida uma ideia que, a meu ver, não pode deixar de ser considerada meritória: acabar com a insistente necessidade avaliativa que subjaz à maior parte das disciplinas que são lecionadas na nossa Faculdade. Como qualquer diploma que pretende nortear a avaliação de um estabelecimento de ensino, também este Regulamento tem por base dois “atores” principais: alunos e professores. Por isso mesmo, no que a este ponto diz respeito, há que analisar as consequências que o anterior Regulamento trazia, quer para os que são avaliados, quer para aqueles que avaliam. Um aluno que chegasse à Faculdade de Direito de Lisboa deparava-se, ao longo de dois semestres, com um sistema que se preocupava mais em avaliar os alunos do que a transmitir-lhes conhecimentos. Nas disciplinas nucleares (sem esquecer as devidas exceções, obviamente), num espaço de pouco mais de 3 meses, eram realizados dois testes de avaliação contínua, ao mesmo tempo que o aluno tinha de preparar as aulas e os elementos avaliativos (v.g., casos práticos e outros) das demais cadeiras. Com todo este acumular de momentos de avaliação, tornava-se difícil para o aluno conseguir dedicar o tempo que é devido a cada cadeira, tendo inexoravelmente de prescindir de algumas para estudar para aquelas em que o teste estava mais próximo. Ora, esta nova reforma avaliativa quer, precisamente, mudar este paradigma. Por tudo o que foi exposto, poder-se-ia pensar que talvez a melhor solução fosse acabar, definitivamente, com os testes de avaliação contínua. No entanto, o Conselho
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Pedagógico teve um entendimento diferente, já que ficou plasmado no Novo Regulamento que existirá apenas um teste, abrangendo toda a matéria que foi lecionada até 6 dias antes da sua realização, realização essa que se situará, preferencialmente, na última semana de aulas do semestre. É compreensível esta solução: efetivamente, esse momento de avaliação marca o fim daquela cadeira e a passagem para o seu “segundo nível”. No fundo, como alguém já disse, trata-se de um “compromisso” entre aqueles que propugnavam a abolição de todo e qualquer momento avaliativo que não fosse o exame, e aqueles que tinham o entendimento contrário. Ora, a meu ver, o que não fazia sentido era a solução que o antigo Regulamento oferecia: quer porque roubava tempo de estudo ao aluno, quer porque roubava tempo de lecionação ao Professor (que se via condenado ao típico discurso do “temos de avançar senão não damos a matéria toda que vai sair no teste”), quer porque, tendo em conta a dimensão dos programas das cadeiras nucleares, se chegava a um resultado desfavorável para ambas as partes: falo das famosas “aulas extra”, na maior parte das vezes de duração indefinida, e que mais não serviam para compensar o tempo que o Professor, legitimamente, tinha perdido com os alunos a esclarecer as suas dúvidas, ao mesmo tempo que, inevitavelmente, deixava matéria por lecionar. Penso que não carecem de demonstração as consequências nefastas que este sistema trazia quer para o aluno, quer para o professor.
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O segundo pilar do Novo Regulamento assenta na possibilidade que o aluno tem de dispensar o exame final se tiver uma nota de avaliação contínua igual, ou superior, a 12 valores. Confesso que à partida duvidei do patamar que era exigido para se dispensar exame, considerando que era necessário que o mesmo se situasse, preferencialmente, nos 14 valores. No entanto, fruto do debate que foi suscitado em torno desta questão, abandonei este entendimento. Na verdade, não nos podemos esquecer da tendência que eventualmente poderá haver, por parte de alguns Professores Regentes, em baixar as notas de avaliação contínua, transformando um 15 num 13, ou um 13 num 11. Parece assim que o 12 será um valor sensato, tendo em conta estes “circunstancialismos”. No que a este pilar diz respeito, a implementação do mesmo apenas peca por ser tardia. Na minha opinião, não fazia absolutamente nenhum sentido que tendo sido um aluno avaliado por duas vezes (falo, claro está, do teste escrito), avaliação essa que acrescia
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àquela que era feita pelo Assistente à participação desse aluno, e tendo este último demonstrando um bom aproveitamento capaz de ficar espelhado numa nota positiva de avaliação contínua, tivesse ainda de ser avaliado, novamente, através de um exame final. Mais uma vez, esta situação trazia consequências nefastas quer para o aluno, que via o seu tempo de preparar uma eventual Melhoria de nota reduzido a uns 3 dias, quer para o professor, que teria de perder tempo a avaliar de novo aquele aluno que sabia ter um bom aproveitamento. Não fazia sentido. É por isso mesmo que estes dois pilares fundamentais que presidem ao Novo Regulamento vêm melhorar estes aspectos que acabo de referir. É bastante interessante o contexto em torno do qual gira esta discussão. Se repararmos, esta problemática não é apenas nossa: bem pelo contrário, ultrapassa as “fronteiras” da nossa Faculdade. Se eu disser que somos o único país da Europa com exames nacionais no 4º ano que têm efeitos na progressão do aluno, e que a Finlândia, país onde só há um exame no final do secundário, tem, segundo os dados do PISA, um dos melhores sistemas de ensino público do Mundo, dir-me-ão que somos culturalmente diferentes. É verdade que se trata de uma dimensão absolutamente diversa, mas o que é certo é que aqueles que insistem nesta necessidade avaliativa (quer na Faculdade, quer fora dela), assentam os seus argumentos em três palavras-chave: “rigor”, “qualidade” e “prestígio”. Uma das principais críticas apontadas a esta reforma é que a mesma, a ser implementada, iria destruir por completo o sistema de avaliação contínua que pauta – lá está! – o ensino de “rigor” e de “prestígio” desta Faculdade, transformando-se o Novo Regulamento numa porta para o desemprego, já que poucos seriam os escritórios de advogados que aceitariam um aluno que viesse de uma Faculdade com um sistema de avaliação deste género. Enganam-se os que pensam desta maneira. O “rigor” e o “prestígio” de uma instituição não se criam por decreto: bem pelo contrário, surgem através de um trabalho e esforço diários, quer por parte da equipa docente, quer por parte dos alunos. E a Faculdade de Direito de Lisboa, quer se queira quer não, tem a melhor equipa docente e os melhores alunos deste país. É portanto através de um esforço conjunto destas duas partes que uma Faculdade como a nossa pode merecer – e merece – o elogio de ser a melhor Faculdade de Direito do país. E esse elogio, reforço, vem do trabalho diário que é feito
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por estas duas partes, e não através da aprovação de um Regulamento de Avaliação. E também não se diga que com este Regulamento os estudantes da nossa casa não terão outro destino senão o desemprego. Ressalvo que aqui não posso falar por causa própria, até porque não sou dono de nenhum escritório de advogados. No entanto, daquilo que sei e conheço, posso dizer que poucos são os escritórios que, aquando de uma entrevista de emprego, se dão ao trabalho de ir pesquisar o instrumento que regula a avaliação da Faculdade de onde provém o estudante em causa. Fica portanto uma pergunta: se há uma possibilidade de melhorar esse esforço que é exigido a ambas as partes, por que não aproveitá-la? Por que não dar mais espaço e tempo ao aluno para preparar as aulas práticas? Por que não dar mais espaço e tempo ao Professor para lecionar a matéria, ao mesmo tempo que pode exigir mais dos seus alunos, através de novas formas de avaliação, bem como de um esclarecimento de dúvidas permanente, sem ter sempre o “fantasma” do teste de avaliação contínua a pairar sobre a sala? Enfim, por que não acabar com a exaustão que é visível nos alunos e professores aquando do término das aulas práticas, precisamente por terem realizado um enorme trabalho (quer a serem avaliados – alunos, quer a avaliar – professores) num curtíssimo espaço de tempo?
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Por tudo o que agora foi exposto, poder-se-ia pensar que a implementação do Novo Regulamento só traria consequências positivas para a nossa Escola. Obviamente que não é assim. Uma reforma, como qualquer outra, tem os seus pontos fortes e os seus pontos fracos. E mesmo que aceite que os pilares fundamentais que presidem a esta reforma são necessários para melhorar e valorizar o nosso sistema de avaliação contínua, nem por isso posso deixar de reconhecer que também ela tem os seus pontos fracos: uns apontam o facto de um aluno que tem menos de 8 de Avaliação Contínua passar imediatamente para a Época de Recurso, sem oportunidade de realizar o exame final à disciplina a que chumba (oportunidade essa que hoje existe, já que se esta situação acontecer o aluno passa imediatamente a Método B, e não a Recurso); outros entendem que o problema fundamental reside na diminuição do tempo efetivo de lecionação, uma vez que a concentração, na última semana de aulas, dos únicos testes a realizar, tornaria impossível o cumprimento dos programas de quase todas as disciplinas. Na generalidade, não acompanho estas críticas. Quanto ao
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primeiro aspecto, o aluno é livre de escolher que Método quer aquando do início das aulas. Como sabemos, liberdade implica responsabilidade, e a responsabilidade inerente a cada escolha está espelhada nas eventuais consequências que o aluno poderá sofrer se o seu desempenho não corresponder àquilo que lhe era exigido. Já no que concerne à putativa diminuição do tempo de lecionação, trata-se de um aspecto que deve ser acertado entre toda a equipa docente, no sentido de ajustar o programa àquilo que deve ser efetivamente lecionado. Aliás, esta situação já vem sendo habitual na nossa Faculdade: como consequência da Reforma de Bolonha, tornou-se muito difícil para qualquer equipa docente dar todos os “pontos” do programa. Não é portanto de estranhar que um aluno termine uma cadeira sem lhe terem sido transmitidos todos os conhecimentos inerentes à mesma, havendo sempre que prescindir de alguns para dar mais atenção a outros. Na minha opinião, talvez o aspecto negativo mais gritante – e que merecia ser reconsiderado – resida na possibilidade de um “aluno chumbado” passar à cadeira à qual chumbou tendo apenas 10 valores na prova escrita de Recurso, sem necessidade de realização de qualquer exame oral. Ou seja, parece afinal que o “Método” mais apelativo será chumbar a todas as cadeiras, já que para se passar se necessita apenas de ter um 10 no exame escrito... Como disse, e reforço, uma mudança tem os seus pontos fracos e os seus pontos fortes. Uns dirão que os primeiros se sobrepõem aos segundos, outros dirão o contrário. Facto assente é que uma reforma não nasce perfeita, e o tempo, melhor do que ninguém, saberá pôr em evidência quais os aspectos que podem – e devem – ser aperfeiçoados. Confesso que cada vez que associo a palavra “mudança” à nossa Faculdade, tenho sempre a tendência em pensar naquele sujeito que já tem tudo preparado, que já fez todos os planos, que está pronto para empreender a respectiva mudança, mas que no final acaba por desistir de tudo o que fez, porque “se calhar é melhor deixar como está”, já que “mais vale prevenir”. Com um pensamento assim tão “tradicionalista” estamos condenados a nunca avançar, estamos condenados a nunca mudar. Temos de ter a coragem suficiente para assumir novos compromissos, para pôr em prática novos planos, novos projetos, e, dessa forma, chegar a um resultado que possa dignificar a nossa Academia. Não podemos transformar os argumentos desta discussão (quer os que
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se apresentam contra o Regulamento, quer os que se apresentam a favor dele) numa espécie de “crença generalizada”, que se impõe a toda a comunidade académica sem direito a contraditório, de tal forma que aquilo que é falso torna-se, subitamente, e sem qualquer explicação, verdadeiro. Por exemplo, desde cedo que foi dado como adquirido que “todos os Professores Regentes estão contra este Novo Regulamento”. Ora, surpreendentemente (para alguns), nos finais de junho o Conselho Científico pronunciou-se a favor desta reforma que foi empreendida pelo Conselho Pedagógico, havendo apenas 3 votos contra. Foi assim dado um importante passo para o sucesso da mudança que se pretende. Para finalizar, cumpre-me dizer o seguinte, na linha do que já explanei: se o Novo Regulamento tem aspectos muito positivos? Sem dúvida. Se também tem aspectos negativos? Evidentemente. Mas pergunto: não são disso que as reformas são feitas? Haverá alguma reforma educativa que apenas tenha tido boas consequências? Duvido muito. Aliás, basta olhar para aquilo que nos últimos anos foi feito a nível nacional para se perceber da resposta a esta última pergunta. Quero com isto dizer que não podemos ter um sentimento de adversidade relativamente a toda e qualquer mudança que perante nós se apresente. Mas note-se que isso não significa que a devemos aceitar sem rodeios, sem questionar, sem debater. Folgo em saber que estes dois últimos aspectos foram postos em relevo nos últimos meses, dando sinal que a nossa Faculdade está – e continua – viva e ativa. Mas cabe agora a nós, Comunidade Académica, pôr em prática este novo projeto, dar corpo a uma reforma que pretende valorizar, e não desacreditar, a avaliação contínua que é, por excelência, o que distingue esta Faculdade das demais. Tenho plena consciência de que quando este Regulamento entrar em vigor, muitos dos novos “mecanismos” por ele introduzidos serão louvados. Mas também estou convicto de que outros, porventura, serão objecto de uma (nova) reflexão, tendente a que haja uma modificação positiva dos mesmos. E isto porque toda a discussão que presidiu – e continuará a presidir - a esta reforma assenta num valor crucial: o espírito académico que subjaz à Faculdade de Direito de Lisboa. Esse, quer se queira quer não, é, e continuará sempre a ser, irrevogável. 108
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Em Nome de Uma Mudança
CRÓNICAS DA ATUALIDADE EM NOME DE UMA MUDANÇA Por João Serras de Sousa O assunto “regulamento de avaliação” esteve na ordem do dia durante todo o ano lectivo de 2012/2013. A discussão terminou, quando, no passado dia 22/7/2013, o Conselho Pedagógico (de ora em diante, CP) aprovou a novo regulamento de avaliação, que entrará em vigor já no próximo ano lectivo. A proposta apresentada pelo CP parte de várias premissas. Assim: existiam numerosos momentos de avaliação, um a dois testes de avaliação contínua, exame e, possivelmente, oral; necessidade de valorização da avaliação contínua e introdução de um factor de risco na avaliação contínua, com o objectivo de aumentar a qualidade das aulas práticas. Daqui, com destaque para as alterações mais relevantes, resultou o seguinte: a realização de uma única prova escrita no período de avaliação contínua, a realizar, de preferência, na última quinzena do período relativo à mesma (cfr. artigo 15º, nº 1, alínea a) e artigo 16º, nº 4, do regulamento); dispensa de exame escrito aos alunos inscritos em método A com nota igual ou superior a 12 valores (cfr. artigo 17º, nº 1, do regulamento); exclusão do exame escrito aos alunos em Método A com nota igual ou inferior a 7 valores (cfr. artigo 17º, nº 3, do regulamento); dispensa de exame oral concedida aos alunos em Método B com nota de exame escrito igual ou superior a 12 valores na época normal (cfr. artigo 21º, nº 1, do regulamento) e com nota de exame escrito igual ou superior a 10 valores na época de recurso (cfr. artigo 37º, nº 5, do regulamento); a época de exames de recurso realiza-se após a época normal de orais a que respeita, estando dividida em época de recurso do 1º e do 2º semestre, com a duração de uma semana (cfr. artigo 37º, nº 4, do regulamento).
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Face ao exposto, toda esta situação merece algumas considerações. A realização de apenas uma única prova escrita durante a avaliação contínua, não merece, da nossa parte, uma crítica feroz. O CP partiu do pressuposto de que existiria uma obsessão avaliativa. No entanto, espera-se que a realização de uma única prova escrita não faça depender a nota do aluno dessa mesma prova escrita. Aliás, essa preocupação levou o CP a introduzir no artigo 15º, nº 3 uma proibição de valoração dessa prova em mais de metade da nota final de avaliação contínua. Parece-nos ser uma boa solução. Quanto ao momento desta avaliação, a solução de realização desta prova na última quinzena de aulas, face à dispensa de exame, parece-nos a melhor solução (dentro das piores soluções, até porque encurta o já curto tempo disponível para leccionar aulas práticas). Voltaremos a este assunto adiante. No que diz respeito à dispensa de exame acima referida, as nossas considerações não podem ser tão benevolentes. Na verdade, não há uma verdadeira dispensa de exame. Os exames deixarão de se realizar findo o semestre e realizar-se-ão na última quinzena de aulas de avaliação contínua. Dissemos anteriormente que não somos contra a realização de uma única prova escrita durante o semestre. Parece-nos desproporcionada a possibilidade de realização de duas provas escritas a cada cadeira durante um semestre. No entanto, a realização de uma prova escrita não pode ser suficiente para que um aluno não realize nenhuma outra prova escrita, caso obtenha uma classificação superior a 12 valores na avaliação contínua. A prova escrita de avaliação contínua nunca vai abordar toda a matéria do programa, ainda para mias quando se encurta o tempo disponível para as aulas práticas. Como não abordava anteriormente. E esse é o papel do exame: por um lado, uma avaliação exaustiva no que à matéria diz respeito; por outro, uma forma de uniformização de critérios de avaliação entre os alunos com diferentes assistentes e, portanto, com diferentes formas de ser avaliado). É por este motivo que concordámos, como se viu supra, com a realização do teste de avaliação contínua na última quinzena de aulas: é a única forma de assegurar que é avaliada a maior parte da matéria (e não toda). Por fim, repare-se que deixámos a obsessão avaliativa, passando para a leviandade avaliativa. De três momentos escritos de avaliação, podemos passar para um. 112
Em Nome de Uma Mudança
Quanto à exclusão dos alunos de exame escrito face à obtenção de nota inferior a 7 valores em avaliação contínua, as nossas considerações também não podem ser muito positivas. Afinal, dividiu-se a época de recurso para que não se provocasse uma atrofia administrativa na faculdade, face ao elevado número de alunos inscritos na época de recurso, que se realizou, até agora, no final do ano lectivo. Não obstante, um aluno que obtenha uma nota de avaliação contínua inferior a 7 valores fica excluído de exame e só tem a possibilidade de passar à cadeira em recurso. Estamos, por isso, perante uma grande contrariedade. Por um lado, alivia-se a época de recurso; por outro, sobrecarrega-se a avaliação contínua. Por fim, cabe relativizar a tão apregoada introdução de um factor de risco. Assim, caso se obtenha nota em avaliação contínua (entre 7 e 11) para realizar exame escrito, a obtenção de nota entre 10 e 11 em exame, não dispensa o aluno de oral. No recurso, a obtenção de uma nota semelhante, dispensa o aluno de oral. Afinal, é maior o risco de realização de exame na época normal. No que diz respeito à dispensa de exame oral concedida aos alunos em Método B com nota de exame escrito igual ou superior a 12 valores na época normal, parece-nos que o CP entra, mais uma vez em contradição. Repare-se que um dos objectivos do novo regulamento de avaliação é a valorização da avaliação contínua. Ora, não nos parece que o objectivo seja alcançado ao permitir que um aluno passe à cadeira nas mesmas condições que o faz um aluno de método A (ou seja, com a mesma avaliação quantitativa). Para que o objectivo fosse conseguido, seria necessário que o aluno não fosse dispensado de oral, já que se pode ser mais vantajoso para o aluno dispensar a cadeira com a realização de um único exame (note-se que vantagem significa, aqui, maior facilidade). Várias são as conclusões que podemos retirar do supra explanado. Um aluno que obtenha uma nota em Método A ou em exame da época normal (caso não dispense de avaliação contínua) igual ou superior a 12 valores e o aluno que obtenha, em exame da época de recurso uma classificação de 10 valores, é um aluno meritório. Tão meritório, que demonstra ter os conhecimentos necessários para dispensar a uma cadeira, apesar das notas relativamente baixas que alcançou. E isto repare-se, no caso da avaliação em Método A, sem o aluno ser avaliado em toda a matéria do programa. Trata-se de uma inovação da Faculdade de Direito de Lisboa.
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O aluno, ainda no caso da avaliação contínua, é avaliado pelo seu potencial em adquirir conhecimentos, não pelos seus efectivos conhecimentos, o que lhe permite até que, em tese, possa licenciar-se sem realizar um único exame, obtendo a classificação de 12 valores no final do curso. Relativamente à leviandade avaliativa a que já nos referimos, cabe lembrar que a sua consequência é a perda de exigência que marca a nossa Escola. Parece que o CP entende que os alunos desta Faculdade são mais inteligentes que os demais alunos de Direito e que, afinal, o que os distingue no mercado de trabalho não é a formação mais exigente que tiveram. As consequências não são imediatas, já que o mercado de trabalho vai demorar a perceber que há um aluno “pré novo regulamento” e “pós novo regulamento”. Não obstante, o regresso ao status quo ante parece ser tarefa difícil, pelo que as consequências desta alteração revelam, pelas nossas palavras, um carácter praticamente irreversível. Relembre-se apenas que, com o anterior regulamento, a qualidade dos alunos licenciados por esta Faculdade nunca foi colocada em causa. Ao invés, o novo regulamento vem abrir essa possibilidade. Assim se pode questionar o mérito deste novo regulamento. Todas as considerações por nós avançadas não revestem um carácter inovador. Aliás, os alunos, em sede de Reunião Geral de Alunos, pronunciaram-se contra esta proposta de regulamento de avaliação. O Conselho Pedagógico, através da representação da AAFDL no órgão, teve conhecimento da posição dos alunos. No entanto, isso não impediu que a proposta fosse aprovada, contra aquilo que é o interesse dos alunos, expresso pelos mesmos. Surpreendente foi a posição dos conselheiros pedagógicos discentes em todo este processo. Não obstante a pronúncia desfavorável dos alunos a esta proposta, alguns destes mostraram-se irredutíveis quanto à posição dos alunos que representam. Parece ser uma posição, no mínimo, criticável.
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Concluindo, resta esperar que as consequências por nós projectadas não se verifiquem. No entanto, fica a nota de que a Faculdade de Direito de Lisboa é um verdadeiro reflexo do País. A Faculdade poderá assim acompanhar o País no caminho decadente que este último tem trilhado. As vantagens efémeras, vulgo, facilidades, sobrepõem-se às vantagens de longo prazo. Afastamo-nos, assim, de um ensino de qualidade. Porque, por vezes, “mudança não significa progresso”.
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