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Quando a palavra silenciou o fascismo

Antigos e atuais dirigentes da AAC enfatizam importância das lutas estudantis de 1969. Falta de debates sobre impacto da crise na sociedade atual em destaque.

- POR FREDERICO CARDOSO E DANIELA FAZENDEIRO -

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Adécada de 60 pautou-se pela eclosão de diversas crises e movimentos estudantis. Alberto Martins, principal rosto da crise académica de 1969 e presidente da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) da época, recorda um Portugal “pobre, analfabeto e subdesenvolvido”.

A cidade de Coimbra, segundo o ex-presidente, era “a expressão de um país isolado no mundo, com uma forte opressão e censura política”. A Universidade de Coimbra (UC), que tinha os jovens “mais letrados e qualificados”, marcava-se pelo seu elitismo, governação a favor do regime e “uma forte presença na cidade”, refere Alberto Martins.

A primeira crise académica surgiu em Lisboa, em 1962, em resposta à proibição por parte do Estado das comemorações do Dia do Estudante. Foi no seguimento das manifestações na capital que se realizou, em Coimbra, o primeiro Encontro Nacional de Estudantes. Para Rui Namorado, doutorado em Direito Económico pela Faculdade de Economia da UC e participante das lutas estudantis nos anos 60, foram aí criadas “as circunstâncias que motivaram a segunda crise académica e o 25 de abril de 1974”.

O rescaldo da crise de 1962 na cidade e na AAC

Após a crise académica de 1962, o clima universitário era de “constante tensão e conflito”, evoca Rui Namorado. A AAC, explica, foi encerrada nesse ano e, a partir de 1965, ocupada por uma “comissão administrativa” liderada por estudantes “fascistas” ao serviço do Governo.

Esse “interregno”, conta Rui Namorado, fez com que o protagonismo estudantil fosse tomado pelas repúblicas que existiam na altura. Estas assumiram o “papel da resistência” através da sua expressão cultural e tradicional. Em conjunto com organismos autónomos e algumas secções desportivas, foi criada uma comissão eleitoral que, através do seu papel interventivo, fez com que o governo consentisse em eleições livres para a AAC.

Do ato democrático resultante, foi eleita uma lista para a DG/AAC em janeiro de 1969, encabeçada por Alberto Martins. Após tomar conhecimento da inauguração do novo edifício das Matemáticas, enfrentou uma “recusa constante das autoridades académicas e governativas” de cederem a palavra aos estudantes na cerimónia. O antigo dirigente decidiu que, perante o facto, seriam feitos “todos os esforços para que tal acontecesse”.

Para Celso Cruzeiro, membro da DG/AAC de 1969, o gesto de “pedir a palavra” significava o desejo de inverter “o processo até então estabelecido”. Na voz dos estudantes encontrava-se a “base da reforma da UC, que na altura atuava como difusora de ideais fascistas”, esclarece.

“Em nome dos estudantes da UC, peço a palavra.”

No dia 17 de abril, uma comitiva, constituída por membros do governo, autoridades académicas e o Presidente da República do regime, Américo Tomás, abriram a cerimónia de inauguração do novo edifício. Do lado de fora, centenas de estudantes esperavam, cientes do que estava prestes a acontecer. A AAC esteve representada, já com a nova direção “progressista, democrata e reinvindicativa”, como explica Rui Namorado.

Segundo Alberto Martins, naquele momento era “mais do que ele próprio, era a academia, a honra e o direito de expressão”. Foi “um momento difícil, de vencer as resistências e o medo”, assume. Após o ex-presidente pronunciar as famosas palavras “em nome de todos os estudantes da Universidade de Coimbra, peço para usar da palavra”, fez-se ouvir “uma salva de palmas impressionante” que abafou os gritos dos defensores do regime.

Após a saída dos ministros da educação e das obras públicas, ocorreu uma manifestação de cerca de 1500 estudantes que também queriam fazer-se ouvir. Nesse momento, vários dirigentes discursaram em forma de celebração do que consideravam ser uma vitória dos estudantes.

Alberto Martins foi levado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) às duas horas da manhã. A sua detenção desencadeou um protesto de estudantes, sobretudo repúblicos, em frente à sede da PIDE, que resultou numa “violência policial brutal”. Libertado na manhã seguinte, o então presidente participou na Assembleia Magna (AM) convocada pelo sucedido, que foi “muito emotiva e ditou o começo da luta académica”, revela.

Tempos de união e de solidariedade

Três dias depois foram suspensos oito estudantes, as principais caras da revolta: o evento catalisador para ser decretada greve às aulas. A AAC foi palco de uma AM permanente, que fomentou o debate ativo sobre os “problemas existentes no ensino superior” e as soluções para a “criação de uma universidade moderna”, elucida Alberto Martins.

Devido à censura existente na altura e à “falta de privacidade na comunicação”, a luta de Coimbra era “desconhecida ao país”, expressa Celso Cruzeiro. Até que, no dia 30 de abril, o ministro da educação, José Hermano Saraiva, fez um discurso televisivo “arrogante e ditatorial” em relação à crise académica. Durante 16 minutos, apresentou ao país, sem direito a qualquer resposta, a “onda de grande insubordinação que assolava Coimbra”, acrescenta o ex-dirigente.

Do discurso do ministro sobre os “agitadores que desrespeitaram o chefe de Estado”, ori- ginou-se, segundo Alberto Martins, o oposto daquilo que o regime esperava. Os tempos que se seguiram foram de “brutal repúdio” a José Hermano Saraiva e à sua incapacidade de ”fazer cumprir a ordem na UC”, como havia proferido ao país. A UC foi, de seguida, encerrada.

No dia 28 de maio realizou-se uma outra AM que contou com a participação de mais de cinco mil alunos, na qual se determinou a greve aos exames. Esta decisão, que implicava a perda de um ano para muitos estudantes e a consequente convocação para o serviço militar para os homens, foi respeitada por 86 por cento dos estudantes. “Este protesto pela liberdade foi uma luta coletiva e de extrema solidariedade”, reitera Alberto Martins.

O antigo dirigente caracteriza a "Operação Balão" e a "Operação Flor" como momentos que ditaram a aproximação dos estudantes à cidade. Face à violência e repressão da ditadura, “respondeu-se com a paz que nos era própria", acrescenta.

A final da Taça de Portugal, a 22 de junho, foi mais um momento de protesto. Os jogadores da Académica entraram no estádio com a capa sobre os ombros, em sinal de luto. Durante o intervalo, os estudantes empunharam cartazes com palavras de ordem contra o regime. Pela primeira vez, uma final de futebol não foi transmitida na televisão nem contou com a presença de chefes de Estado. Os estudantes saíram a perder, mas, para Alberto Martins, “ganharam para a história”.

O ex-presidente assinala que “a ditadura foi enfrentada, olhos nos olhos, pela juventude universitária de Coimbra”. O Estado, como forma de punição, prendeu e enviou alguns dos grevistas para a Guerra Colonial. Para Rui Namorado, esta decisão “apenas acelerou e potenciou a Revolução dos Cravos”, dada a ligação estabelecida entre estudantes e soldados durante o serviço militar.

A memória da luta que fez nascer abril Nestes dias “menos empolgantes”, Alberto Martins considera que “a juventude” passou por momentos difíceis. A “natureza jovem é o sonho e a construção do futuro”, acrescenta, com o apelo a que estes não parem de “lutar pela liberdade e pelos seus direitos”.

Para o atual presidente da DG/AAC, João Caseiro, este acontecimento fez despertar no país “um sentimento de revolta e vontade de mudança”. Apesar da distância temporal, a importância deste momento, que alavancou a revolução de 1974, é “reconhecida e inspiradora para todos”.

O que se passou em 1969 foi, portanto, a primeira demonstração em grande escala das fragilidades do regime, realça o dirigente associativo. “Enquanto existir a AAC e a democracia em Portugal, vai existir a memória das crises académicas”, finda.

Daniel Azenha, presidente da DG/AAC aquando do cinquentenário da crise académica, partilha da mesma opinião. Segundo este, a luta pela liberdade do país “partiu de Coimbra”, apoiada num “orgulhoso exemplo de como a união e a ambição permitem alcançar grandes feitos”. Acresce que a liberdade de expressão que existe hoje em muito se deve à “coragem de todos os que passaram pela casa”.

O dever de preservar a memória e de recontar a história da academia é um sentimento comum aos dois dirigentes. Ambos consideram que a ligação dos estudantes à cidade, embora diferente da que existiu no passado, se mantém viva através da manifestação política, da cultura e do desporto.

Já Celso Cruzeiro exprime o seu desagrado sobre a ausência de mais debates acerca “do que se passou e como isso se reflete nos tempos que correm”. A essência da crise de 1969, acima das comemorações e dos reconhecimentos, tem que ser interpretada “em retrospectiva, à luz da experiência atual”, finaliza.

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