NOVA em Folha | Dez-Jan 24/25

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N O V A e m F o l h a

COGITO, ERGO SUM

O QUE NOS UNE ENQUANTO GERAÇÃO? E ENQUANTO PAÍS? QUEM SOMOS NÓS E O QUE DEFINE A NOSSA IDENTIDADE?

EM QUALQUER CONTINENTE, DENTRO OU FORA DA FACULDADE, TODOS NÓS SOMOS ALGUÉM. QUE IMPLICAÇÕES É QUE

ISSO TEM NAS NOSSAS VIDAS? TODAS ESTAS QUESTÕES LEVAM-NOS A DIALOGAR E DESCONSTRUIR DIVERSAS NUANCES DENTRO E FORA DA FACULDADE, PRINCIPALMENTE AQUELAS QUE SÃO AS CARACTERÍSTICAS QUE MOLDAM DE FORMA TÃO AUTÊNTICA CADA CAMINHO. POR ISSO, NA ÚLTIMA EDIÇÃO DO ANO, O NOVA EM FOLHA DESAFIA OS SEUS LEITORES AUMEXERCÍCIOINTRÍNSECOEEXTRÍNSECODEDESCOBERTAIDENTITÁRIA.

UMJORNALD@SESTUDANTESPARA@SESTUDANTES!

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Este jornal é impresso em papel 100% reciclado. notas

Is It Mine If I Add Some Yellow? - IGNANT

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Conteúdos

07 OdairMonizeaidentidadenegrana periferia

Face à morte de Odair Moniz por um polícia, no bairro do Zambujal, em novembro de 2024, Alice Couto analisa a desumanização e exclusão das comunidades racializadas e denunciaaviolênciapolicialeasnarrativasdiscriminatórias

08 Investirnadestruição:ComoosEUA escavamasuaprópriasepultura climáticaaoinvestirnamáquinade guerraisraelita

Carolina Gonçalves destaca o financiamento dos EUA à máquina de guerra israelita, que agrava a crise climática e intensificaosdesastresnaturais

10 OPiorLugarparaSerMulheréAquie Agora

O Núcleo Feminista da FCSH reflete sobre a opressão extrema das mulheres no Afeganistão sob o regime talibã e destaca a resistência da RAWA e a urgência de atenção internacional

15 Contratostemporários,Desgaste Permanente:UmretratodaNOVAFCSHEntrevistaaumdocente

O texto denuncia a precariedade laboral dos docentes da NOVA FCSH, marcada por cortes salariais, contratos instáveis e desvalorização profissional, refletindo um problema estrutural do ensino superior português que compromete a qualidade académica e o futuro da educação

17 RevoluçãoCancelada:Comoosistemanos silencia?

Vivemos numa sociedade marcada por contradições, desigualdades, consumo desenfreado e manipulação política Tiago Freitas explora como é que estas dinâmicas nos levam a questionar a nossa identidade e propósito

18 Brasilidade

Diogo D’Alessandro desabafa sobre o que é ser brasileiro A brasilidade descoberta na distância, expressa na saudade, memórias e contradições, unindo a cultura, o pertencimento e a autodescoberta

24 EntenderoAfeganistãoatravésdo cinema

Neste artigo, Miguel Martins e Clara Figueiredo exploram o cinema como lente para entender o Afeganistão No final, tens um QR code com uma lista de filmes afegãos 15 39

Contratostemporários, DesgastePermanente: UmretratodaNOVA FCSH-Entrevistaaum docente

novaemfolha@fcsh.unl.pt

25 Sobreaexposiçãotemporária «DesconstruireColonialismo, Descolonizaroimaginário»noMNE

Margarida Calado reflete sobre a exposição no Museu Nacional de Etnologia, elogiando a sua relevância na abordagem do colonialismo português, mas apontando limitações práticas e conceptuais

Dez/Jan24/25

Direção Clara Figueiredo

Margarida Calado

Tália Moniz

Redação Alice Couto

Bárbara Rafael

Bárbara Soares

Beatriz Martins

Carolina Gonçalves

Clara Figueiredo

Diogo D’Alessandro

Diogo Mota Duarte

Gonçalo Pato

Helena Gregório

Inês Fonseca

Inês Lopes

Revisão Clara Figueiredo

Inês Fonseca

Leonor Moreira

Mar Ferreira

Margarida Calado

Margarida Figueiredo

Sofia Fernandes

Ficha Técnica

EdiçãoGráfica Catarina Galvão

Madalena Grilo Teles

Margarida Figueiredo

Natali Gonçalves

Victoria Leite

Iúri Soares

José Miguel Perfeito

Leonor Ribeiro

Lourenço Rosa

Luís Toledo

Manuel Gorjão

Mar Ferreira

Margarida Calado

Margarida Finisterra

Margarida Runa

Maria Beatriz Silva

Mariana Aleixo

Mariana Vaz Riscado

Matilde Marques

Miguel Martins

Miguel Pereira

Pedro Lázaro

Raquel Francisco

Ricardo Reis

Tália Moniz

Tiago Freitas

Tomás Vila Nova

Colaboradores AEFCSH Anemos

Anónimo

Catarina Basílio

Clara Ferreira

Henrique Reis

Matilde Curvão

Núcleo Feminista da FCSH

Rafael Marques

Rita Silva

Índice

AE em Folha

Editorial: Tentativa nº84793 de desejar um bom

2025 para tod@s!

Tudo de novo e nada de mundo

Odair Moniz e a identidade negra na periferia

Investir na destruição: Como os EUA escavam a sua própria sepultura climática ao investir na máquina de guerra israelita

Como aqui chegámos: A História do Talibã

Um País, Duas Identidades

O Pior Lugar para Ser Mulher é Aqui e Agora

Ser Mulher no Irão

Claudia Jones no Parque Eduardo VII

Terapias de conversão e o dom da sexualidade “Nós temos uma vida tão curta, não é fixe podermos ter um trabalho em que vivemos tantas vidas?” : Entrevista

Contratos temporários, Desgaste Permanente: Um retrato da NOVA FCSH- Entrevista a um docente

Revolução Cancelada: Como o sistema nos silencia?

Fluidos

Brasilidade

Carta à Mãe Natal

Agenda Cultural

A Virginia Woolf tinha razão!

A Outra Metade, de Britt Bennet

Entender o Afeganistão através do cinema

Sobre a exposição temporária «Desconstruir e Colonialismo, Descolonizar o imaginário» no MNE

Celebremos os 87 anos de Ary dos Santos, celebremos a liberdade

Não-ser é Ser?

dentidade a ais ou a enos

Entre Vitórias e Desafios: Como o Desporto me

Moldou

Os Reis da Identidade: Athletic Bilbao

Identidade: Gostava de Descartes no 11º ano

Manual de Instruções

Vida e Luta de Amílcar Cabral

Burlas Comuns na Indústria da Cultura e das Artes

Sou como sou

Fil(h)armonia

O que nos torna realmente nós?

Notas “natalaicas” Breves

A valsa sensual entre a vida e a morte

Morfeu sussura-me ao ouvido

E não é bonito pensar que, o tempo todo, havia um fio invisível que nos ligava?

A condição do Homem

Aquilo que Sou com Você

As Descobertas de Nuno Folha: Quem sou eu?

Dança dos Espelhos

A Natureza da Besta (Empatia)

Passatempos!

FOLHA AEEM

Podemos afirmar que os estudantes, novamente, deram o seu voto de confiança à Lista A, a fim de continuar o projeto que visa defender o Ensino Superior público, gratuito, democrático e de qualidade.”

Aúltima edição do NEF deste ano surge a meio de um mês atribulado para os estudantes da FCSH - entre um processo eleitoral

dos órgãos sociais da AEFCSH e uma época de frequências Assim, corrompendo com a agitação do mês de Dezembro, o NEF promove, mais uma vez, leituras de estudantes para estudantes

De portas abertas todos os dias, também na AEFCSH se passaram várias coisas nestes últimos meses Decorreu a ansiada Feira de Núcleos, em outubro, no campus de Berna, que culminou em festa com a Nucleada e contou com a participação de vários núcleos e da Tuna da nossa faculdade. Realizouse também a RGA, onde foi apresentado, a todos, o relatório de contas do presente mandato e convocadas as eleições para o próximo mandato

Ao dia 6 de Novembro, os estudantes da FCSH concentraram-

se em frente à torre B do campus de Berna, decididos a lutar pelo ensino que é seu por direito Após meses à conversa com a comunidade estudantil e a recolher problemas concretos sentidos na faculdade, foi, finalmente, entregue o Caderno

Reivindicativo à direção Os estudantes fizeram-se ouvir: querem ver cumprido o Ensino de Abril!

Findado o processo eleitoral, podemos afirmar que os estudantes, novamente, deram o seu voto de confiança à Lista A, a fim de continuar o projeto que visa defender o Ensino Superior público, gratuito, democrático e de qualidade Um projeto herdado de Abril, mas com muito futuro pela frente Saúda-se a afluência às urnas Pretendemos continuar o nosso caminho lado a lado com os estudantes

Assim, resta à AEFCSH deixar a todos os estudantes votos de um Feliz Natal e boas entradas no ano que se avizinha Voltamos ao trabalho em Janeiro!

Foto: AEFCSH

Tentativanº84793dedesejar umbom2025paratod@s!

Dezembro/Janeiro

Após um ano com mais baixos do que altos num mundo cada vez mais fragmentado, é impossível não refletir no porquê da escolha do temadestaedição Identidades Pen-

sar no que nos caracteriza enquanto estudantes é mais do que necessário A verdade é que, sendo tudo tão incerto, mais do que nunca, temos de encontrar um meio termo em todo o nosso individualismo para permanecermos junt@s A liberdade é uma luta constante, seja ela no nosso microssistema da FCSH, em que gritamos na rua por melhores condições no ensino, seja ela no sistema que codifica o mundo em que gritamos na rua por direitos essenciais a todos os povos Somos estudantes e tal simboliza alguma coisa Quer seja para sermos chamados de woke nos jantares por aquele primo problemático, quer seja para nos tirarem fotografias na rua quando estamos trajados porque parecemos o Harry Potter, ou até por aquilo que caracteriza a resiliência que é estudar num contexto sociopolítico cada vez mais difuso Existe um orgulho fundamental que nunca deve ser ignorado naquilo que nos caracteriza como estudantes, em todas as nuances que vêm com cada pequena identidade que nos define enquanto únicos Há um orgulho tão grande em pertencer a um espaço onde tod@s se sentem representados

Com o fim do ano a chegar, temos sempre aquele típico momento de reflexão: avaliamos o que fizemos bem, o que fizemos mal Procuramos compreender porque é que escolhemos aquele filme como o melhor, aquele restaurante como o pior, questionamo-nos porque escolhemos passar o tempo da forma como o passamos, porque pensamos como pensamos e agimos como agimos, chegando a um monólogo quase existencial daquilo que se centra na criação da nossa pessoa, da nossa identidade O fim do ano desperta em todos nós uma ânsia de perceber e analisar cada pedaço de nós, tentando sem sucesso compreender o que nos distingue Sei que este ano tentei ser mais amiga do amigo, ver mais filmes portugueses, apoiar negócios locais, parar de consumir tanto, mas nenhuma destas metas realmente importa porque parece que cada vez estou mais longe de perceber o que ver-

TáliaMoniz

dadeiramente categorizo como meu, e cada vez mais os problemas que tenho parecem insignificantes depois de tudo que se passou em 2024 Parece simplesmente fútil a preocupação com algo que não seja o futuro do nosso mundo Com a fragmentação das relações e incerteza identitária que nos assola enquanto indivíduos, perdemos todos os dias um pouco de nós para o algo tão abstrato que é a vida Não quero ser a pessoa que mais uma vez escreve negativamente sobre os problemas que surgem na nossa sociedade e na falta de um senso identitário da nossa juventude, que se prende em modas, amigos e piadas temporárias Por isso, em vez de entrar num buraco melodramático de como tudo é mau, escolho olhar com esperança o próximo ano, um ano em que o mundo prospera, em que tod@s vamos embarcar em experiências únicas e transformadoras, desejando um excelente 2025 a tod@s os leitores do NOVA em Folha, que relembram o que nos une enquanto faculdade Como estudantes de uma universidade pública, somos muito mais do que apenas aqueles wokes que gritam todos os dias pelo fim da propina (ainda que a escritora deste editorial reitere essa importância!) Somos, no fim do dia, amigos, amigas e amigues que se reúnem, ou naquela gloriosa esplanada em Berna, ou na tão

Editorial

pouco apreciada relva do CAN, a falar sobre os assuntos que verdadeiramente importam - sejam eles o fim do mundo ou uma conversa de café de “Que nomes querem dar aos vossos filhos?” Não somos muito mais que isso e, embora pareça redutor face a tudo aquilo que passámos este ano - enquanto faculdade ou sociedade - gosto de pensar que, no fim do dia, tudo se resume a uma boa conversa Podem neste momento apenas ler a minha desconfiguração mental após um semestre conturbado e confuso, mas deixa-me tranquilizada saber que em cada esquina há um amigo e que 2024 foi um ano excelente para o NOVA em Folha A este, digo, pessoalmente, que estou mais do que animada para um novo ano cheio de churrascos, de manifestações onde estes jovens wokes gritam na rua por melhores condições e pelo fim da precariedade do ensino público São estas experiências e vivências incríveis que me fazem compreender porque estou aqui Espero contar com tod@s vocês nesta jornada, obrigada a quem leu e ativamente apoiou o NeF, estamos aqui de estudantes para estudantes! E um obrigada essencial a toda a equipa do jornal por este ano fenomenal Nunca nada poderia ter sido feito sem vocês

MiguelPereiraeAliceCouto

Fonte:JornaldaUSP

Tudodenovoe nadademundo

“Sóummundonovonós queremos:oquetenhatudo denovoenadademundo.”

De“OsMastrosdoParalém”,MiaCouto

MiguelPereira

A história moçambicana atravessou vários momentos de instabilidade política e social, começando com a guerra colonial, passando pela guerra civil e chegando aos dias de hoje de revolta e protesto Num país onde a identidade resulta da tensão entre a preservação das tradições ancestrais e as influências externas do colonialismo e da globalização, e onde convivem inúmeras religiões, etnias e línguas distintas, a busca pela mudança é o que a todos une

No passado dia 24 de outubro, a Comissão Nacional de Eleições declarou o melhor resultado eleitoral de sempre da FRELIMO e do seu candidato presidencial, Daniel Chapo, que alcançou mais de 70% dos votos Todavia, este resultado foi fruto de um processo eleitoral ambíguo, marcado por suspeitas de fraude, como subornos aos membros das mesas de voto ou obstrução ao trabalho dos observadores durante a contagem dos votos Além disso, ocorreram os assassinatos políticos de Elvino Dias, advogado de Venâncio Mondlane, e de Paulo Guambe, manda-

tário do Podemos, o que manchou ainda mais a legitimidadedestaseleições

Inevitavelmente, Venâncio Mondlane, candidato presidencial pelo Podemos, tem vindo a apelar a manifestações pacíficas, em todas as capitais provinciais, não com o objetivo de fazer um golpe de Estado, mas de pressionar as instituições a reveremoprocessoeleitoral

Acompanhado com o aumento dos protestos vem o aumento do nível da repressão por parte da polícia moçambicana Em um mês de manifestações, pelo menos 67 pessoas morreram e mais de mil ficaram feridas, segundo os dados da plataforma de monitorização eleitoral Decide Deste modo, esta tem sido a pior repressão contra os direitos à liberdade de expressão, reunião pacífica e associação no país, nos últimos anos, através de métodos violentos e ilegais, como a utilização de gás lacrimogéneo, balas e detenções arbitrárias

A um ano das celebrações dos 50 anos de independência de Moçambique, a legitimidade histórica da FRELIMO, de guia da liberdade, vai-se esgotando pouco a pouco, num contexto de grandes desigualdades sociais, corrupção e repressão Os moçambicanos gritam por um mundo novo, e surge a questão: que mundo novo seriaeste?

Mia Couto responderia “o que tenha tudo de novo e nada de mundo” Por esta lógica, seria algo tão simples como permitir que a população elegesse os seus representantes, mediante processos justos e transparentes; um país onde as manifestações pacíficas não fossem sufocadas pela violência e medo; um lugar em que os direitos humanos fossem respeitados Um mundo que tivessetudodenovo

OdairMonizea identidade negrana periferia

No passado dia 21 de outubro, Odair Moniz foi assassinado pela polícia com dois tiros por não ter cumprido uma ordem de paragem Circulava na Cova da Moura, alegadamente num carro roubado, que mais tarde se viria a descobrir que não era o caso O agente justificou a sua ação dizendo que foi em legítima defesa, por Odair ter consigo uma arma branca; mais tarde também se viria a descobrir que não era verdade e que o polícia tinha mentido Estas mentiras foram rapidamente descobertas, mas isso não impediu que fossem

difundidas e usadas para justificar a ação do agente, que estaria em perigo de vida e precisava de se defender Nas semanas seguintes, vários bairros da Amadora e de outros municípios da AML revoltaram-se pela vida perdida, tendo incendiado caixotes do lixo e autocarros e proibindo a entrada da polícia nos bairros

Habitante no Bairro do Zambujal, Odair era acarinhado por muitas pessoas É comum a desumanização de quem mora nos bairros, sobretudo se forem pessoas racializadas Isto leva a que, quando situações destas ocorrem, políticos sintam impunidade suficiente para dizer que se deve condecorar um assassino e a sociedade diga que foi merecido Estes bairros são conhecidos pela forte presença negra e africana que, aos olhos de grande parte da sociedade, estão num nível inferior, não trabalham e vivem à custa dos outros Contudo, são estas pessoas que carregam o país às costas com os seus trabalhos precários, nos setores secundário e terciário, a receber salários miseráveis Muitas das narrativas atuais da extrema-direita focam-se nestes trabalhadores, ao acusá-los de roubar postos de trabalho e fazendo esquecer que o empobrecimento dos trabalhadores em geral é culpa do grande capital e não dos imigrantes Os bairros foram palco de vários tumultos após o assassinato de Odair Estas zonas, situadas principalmente nas periferias, são resultado de uma segregação subtil, feita indiretamente ao longo dos anos Muitos dos bairros têm o estatuto de “zona urbana sensível”, onde o policiamento é regular e reforçado, e são considerados “problemáticos”, o que legitima a vigilância constante e a violência das forças de segurança Ao longo dos anos, a sociedade passou a relacionar os bairros com a delinquência, transformando-os em espaços de exceção, com restrições aos direitos de cidadania traduzidos em infraestruturas precárias e livre-trânsito da polícia (exemplo disto mesmo foi a invasão por parte da polícia da casa de Odair enquanto a família fazia o luto) Para além da exceção, representada também pela discriminação que estas populações sofrem, estes locais são também caracterizados pela exclusão e pela extra-territorialidade, ao estarem relegadas às periferias e os seus moradores afastados dos restantes membros da sociedade

Podemos culpar quem se revoltou com esta morte, que sabe que podia ter sido consigo e que está farto de viver nas franjas da sociedade? Quem começou os desacatos nos bairros foi a juventude negra, cansada de ser responsabilizada pelo aumento da violência urbana e sem projetos de vida, por saber que

está numa sociedade que não a irá apoiar crise na habitação e a falta de soluçõ eficazes para este e outros problemas que jovens enfrentam têm um impacto ainda ma nas juventudes da periferia, que se veem ca vez mais discriminadas e deixadas de lado p um governo que não está interessado ajudá-las

A Amadora é palco para muitos casos violência policial, especialmente na Cova Moura, bairro de autoconstrução na fregue das Águas Livres Foi aqui que, em 2015, u mulher foi alvejada pela polícia, o que levo que um grupo de jovens invadisse a esquad de Alfragide Estes seis jovens ficaram detid durante mais de 48 horas, enquanto er torturados e violentados Este foi um d poucos casos em que houve condenaçõ para os polícias envolvidos no caso Em 20 Cláudia Simões foi espancada por um agente da polícia por não ter consigo o passe gratuito da filha e ter-se recusado a pagar um bilhete de autocarro Neste caso, foi a vítima, Cláudia, que foi condenada, tendo o polícia ficado absolvido após espancar uma mulher negra à frente da filha na paragem de autocarro A função da polícia é proteger as pessoas Mas não protege os imigrantes, ao fazer buscas inúteis nos locais por eles mais frequentados em nome da “segurança” para, no final, fechar estabelecimentos e deter um único imigrante em situação irregular Não protege as pessoas negras, que têm 21 vezes mais probabilidade de serem mortas pela polícia, nem as pessoas ciganas, para quem esta probabilidade aumenta para 43 vezes A violência policial continua a aumentar e é sobretudo praticada contra as comunidades marginalizadas nos bairros periféricos das grandes cidades Infelizmente, este caso não foi o primeiro nem será o último de abuso de poder por parte das forças de segurança que acaba numa morte injustificada

AliceCoutoeCarolinaGonçalves

Investirna destruição:

ComoosEUAescavam asuaprópria sepulturaclimáticaao investirnamáquina deguerraisraelita

CarolinaGonçalves

O presente genocídio em Gaza, bem como todas as ações de violência que Israel pratica no Médio Oriente, relacionam-se de forma complexa com os desastres climáticos que ocorreram no mês de novembro nos EUA Esta correlação não se esvazia quando considerada apenas a constante alimentação da máquina de guerra israelita, na qual os Estados Unidos injetam consecutivamente milhões de doláres, que, de resto, poderiam ser investidos de forma a preparar o país para estas situações ou até apoiar as populações atingidas por tempestades, cheias e furacões: há também que considerar o impacto que a poluição desmedida resultante do constante bombardeamento de Gaza, e mais recentemente, do Líbano e do Irão, tem nas alterações climáticas

Apenas nos primeiros 60 dias de guerra foram geradas emissões poluentes superiores à pegada anual de carbono de mais de 20 das nações mais vulneráveis ao clima De acordo com o estudo realizado pelas Universidades de Londres e Lancaster e pelo Climate and Community Project, estima-se que, durante os primeiros dois meses de guerra, foram emitidas 281000 toneladas métricas de dióxido de carbono, sendo que 99% das mesmas decorrem do bombardeamento aéreo e da invasão terrestre em Gaza Após mais de um ano de ataques de Israel, que se estenderam também ao Irão e ao Líbano, estes números tornam-se cada vez mais preocupantes

O transporte de armamento dos EUA para Israel via aviões de carga como o C-17 Globemaster III, amplamente usado pelos serviços militares dos EUA, emite entre 3 a 5 toneladas métricas de CO₂ por hora de voo Estimativas do CCP apontam para o facto de estes voos para transporte militar no contexto do conflito em Gaza poderem ter emitido cerca de 140000 toneladas métricas de CO₂ durante o período inicial do conflito De facto, estudos revelam que o Departamento de Defesa dos EUA emite mais gases de efeito estufa do que a maioria dos países do mundo Este ecocídio protagonizado pelos Estados Unidos aumenta a temperatura global e, consequentemente, intensifica desastres cli-

Fonte:CNNPortugal

máticos extremos, como tempestades, tornados e cheias, de que são exemplo as registadas este mês no leste do país Além de serem amplamente responsáveis pela continuidade do genocídio em Gaza, os Estados Unidos devem igualmente ser responsabilizados pelo ecocídio que promovem Até ao mês de novembro, os EUA ja haviam registado um novo recorde de 25 desastres climáticos de impacto bilionário, denotando uma tendência para eventos de maior magnitude e frequência nestes últimos anos O governo norte-americano tem ignorado as ameaças crescentes da crise climática e negligenciado as suas responsabilidades internas, como a preparação adequada para enfrentar estes fenómenos e a proteção dos seus próprios cidadãos Enquanto bilhões de dólares de impostos são canalizados para sustentar a máquina de guerra israelita, muitos americanos permanecem desalojados e desprovidos de qualquer proteção contra os impactos devastadores dos desastres naturais Esta disparidade evidencia uma grave falha na gestão de prioridades públicas e no compromisso com o bem-estar ambiental e social

Em suma, a manutenção do genocídio na Palestina por parte dos Estados Unidos agrava não só o conflito em si, como também consequências a nível climático, materializadas nos desastres que acontecem no seu próprio território, algo verificado durante o presente mês https//wwwecyclecombr/emissoes-da-guerra-de-israe-em-gazaagravam-catastrofe-climatica-global/https//wwwafml/About-Us/FactSheets/Dispay/Article/1529726/c-17-globemaster-iii/ https//enwkipediaorg/wiki/BoeingC-17GlobemasterIII https//wwwclimatecentralorg/climate-matters/record-globaltemperatures-and-us-billon-dollar-disasters-2023 https//wwwnceinoaagov/access/bilions/summary-stats https//wwwclimategov/news-features/blogs/beyond-data/2023-hstoricyear-us-billon-dollar-weather-and-climate-disasters

Comoaqui chegámos:

AHistóriadoTalibã

Em 1978, os socialistas afegãos operam um golpe de estado que culmina na conversão do Afeganistão numa nação socialista aliada à União Soviética

A efetivação do socialismo no país trouxe consigo diversas mudanças tais como a reforma agrária, a promoção da igualdade de género e a secularização do país Evidentemente, tais reconfigurações desagradaram os grupos mais conservadores da região

Desta insatisfação beberam os Estados Unidos que decidiram financiar o treino e armamento dos descontentes, que passaram a lutar contra o governo socialista, enfraquecendo-o Criaram-se assim diversos grupos rebeldes, muitos deles fundamentalistas islâmicos Instaladas as rebeliões, o governo afegão pediu auxílio aos soviéticos, o que culminou numa guerra de 10 anos entre estes e os rebeldes

Em 1989 deu-se a retirada soviética Em 1992 é derrotado o governo socialista afegão A 27 de Setembro de 1996, o Talibã sobe ao poder no país Talibã é um movimento fundamentalista e nacionalista islâmico que se difunde no Afeganistão em 1994 Surgiu como um grupo militar armado durante a guerra civil afegã (19921996), período de grande disputa entre vários grupos que queriam controlar o país Inicialmente, o movimento era formado por estudantes das escolas religiosas do Afeganistão, por isso, Talibã significa “estudantes”, na língua pachto O seu principal objetivo é o de implementar no Afeganistão uma interpretação radical da Sharia, a lei que rege a conduta de vida dos muçulmanos fiéis

Enquanto governo, o Talibã foi apenas reconhecido por três países: Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Paquistão Em contrapartida, enquanto organização terrorista, reconhecem-no a União Europeia, os Estados Unidos, a Rússia, o Canadá e o Cazaquistão

Os seus anos de governo, entre 1996 e 2001, ficaram marcados pela perseguição de minorias étnicas e religiosas - Xiitas, cristãos e budistas eram perseguidos até ao campo dos seus patrimónios religiosos, que eram, sem piedade, destruídos Além disto, qualquer opositor ao governo, ou qualquer um que não obedecesse à lei islâmica, era agredido, amputado ou executado em praça pública – ou seja, enquanto Portugal, desde o séc XVIII, já só vê a inquisição em livros de História, o Afeganistão vive-a até ao século XX

Em 2001 o governo Talibã cai - após os atentados de 11 de Setembro, dadas as ligações entre o Talibã e a Al-Qaeda, os Estados Unidos invadem o Afeganistão, levando ao desmantelamento do governo

Durante 20 anos, os Estados Unidos continuaram em luta contra as tropas do Talibã Neste período, investiram na reforma do exército afegão e na tentativa (falhada) de formação de governos democráticos – os posteriores governos afegãos mostraram-se corruptos, impopulares e incapazes de se estender para além de Cabul, a capital

Cansados do esforço – e do dinheiro gasto –que implicava tentar remediar o caos de que podem ser culpados de ter instalado nos anos 80, as tropas norte-americanas retiram-se do Afeganistão em 2021, a comando de Joe Biden Nesse ano, ao derrubar o governo central afegão e voltar a conquistar Cabul, o Talibã regressa ao poder, trazendo o país de volta aos noticiários do Ocidente

Três anos depois, entra em vigor no Afeganistão a ‘Lei sobre a promoção da virtude e a prevenção do vício’, que obriga as mulheres afegãs a cobrirem-se totalmente e proíbe-as de falar, cantar ou ler em público; são ainda impedidas de dirigir o olhar a qualquer homem que não seja o seu marido –ou de quem elas não sejam mulher, fazendo as justas formulações frásicas

OPiorLugar paraSerMulher éAquieAgora

NúcleoFeministaFCSH(SubmissãoExterna)

Estamos vivas, mas não vivemos, disse uma mulher afegã, cuja voz traduz o sentimento que possivelmente ecoa na maioria das mulheres no Afeganistão Como é lutar pelos teus direitos quando o andar dos teus sapatos têm de ser silenciosos? Como existir quando não se pode falar?

À luz do contexto atual no Afeganistão, quer nos refiramos a 1996 ou a 2021, há uma pauta que é indissociável enquanto problemática de ambos os períodos: os direitos das mulheres Desde a retirada das tropas armadas americanas do país, as mulheres afegãs têm assistido sistematicamente à restrição de todos os aspetos das suas vidas, sob o pretexto da moralidade e por meio da instrumentalização da religião

Dentre as proibições dos últimos anos, destaca-se a Lei do Vício e Virtude, que proíbe as mulheres de cantar, falar em público ou rezar em voz alta Desta forma, o silenciamento das vozes das mulheres afegãs é mais um passo na imensa opressão destas mulheres E o que realmente fala mais alto são as consequências observadas: mulheres têm falecido devido à falta de acesso a cuidados médicos, ou mesmo a carros, pois as suas burcas restringem a visão; bem como 87% já experienciaram violência doméstica, segundo a Human Rights Watch

Além disto, a saúde mental destas mulheres tem sido altamente afetada, aumentando o número de pensamentos suicidas que, desde o regresso do Talibã ao poder, são experienciados por uma a cada 10 mulheres

“We’relikedeadbodiesmoving around”,mencionaumamulhernum artigodaBBC

Outro produto deste conjunto de leis restritivas é de, a longo prazo, as mulheres não poderem cuidar umas das outras, devido à proibição da continuação dos estudos após o 6º ano de escolaridade e à proibição do contacto entre os géneros, tornando atividades mais básicas quase impossíveis, tais como a informação do estado de uma paciente ao seu marido, ou tirar sangue

Apesar disto, em outubro de 2024, o chefe do Escritório Político Talibã afirmou ao Correio Braziliense que “não existe nenhuma restrição às mulheres”, mas que, se a comunidade internacional se preocupasse com o bemestar das mulheres, deveria suspender as sanções internacionais ao país

Ainda assim, há organizações que procuram contornar o ‘apartheid’ de género (termo introduzido por Simi Wali em 1999), pretendendo gerar algum impacto social, pelo que é de se destacar o trabalho incansável da RAWA, organização política feminista que atua clandestinamente no país, em prol da luta pelos direitos das mulheres, partilhando princípios da luta feminista, em vista à emancipação

A atuação deste coletivo debruça-se sobre contornar as restrições impostas pelo Talibã por meio da publicação semanal de notícias, histórias e relatos de mulheres no seu site principal, redigido em dari (persa), bem como a organização de encontros clandestinos em datas relevantes, tendo o último que se sabe ocorrido a 8 de março de 2024

Conforme mencionado pela ativista Weil, de modo a perceber e a lutar por uma alteração estrutural da condição feminina no país, a comunidade internacional deve per-

manecer atenta e reconhecer que realizaram projetos que eram bons apenas na teoria, sob a supervisão de autoridades estrangeiras, mas sem mudanças reais e estruturais para o povo afegão, o que facilitou a consolidação da corrupção talibã no país Atualmente, para se ter quaisquer atualizações acerca das ameaças aos Direitos Humanos no Afeganistão, devemos recorrer a veículos independentes, como a RAWA ou os relatórios da ONU, visto que se encontram mais próximosdarealidade

A título de exemplo, em julho de 2024, a RAWA publicou uma notícia em persa sobre talibãs que filmaram o processo de violação coletiva de uma prisioneira, mas apenas após o envio das imagens ao The Guardian é que a notícia se tornou conhecida no Ocidente (e, ainda assim, por poucos veículos)

Devido à distância do Ocidente face a esta situação, talvez nos seja difícil relacionarmonos com a realidade das mulheres afegãs Todavia, se ficarmos em silêncio, beneficiamos a desinformação e o desinteresse Se ficarmos em silêncio, os direitos das mulheres afegãs não terão outro espaço, senão o escuro

“Aalternativaéfugir?”,perguntao jornalista.“Não,deformaalguma. Encontraremosumaformadecontinuar( ) Qualquerformaderesistênciarequer sacrifícios.”,afirmaaativistaMaryam,do RAWA,paraoOsservatorioAfghanistan, numaentrevistaexclusivacomCristiano Tinazzi,em2021.

UmPaís,Duas Identidades

Um dos momentos que marcou o mundo no dia 14 deste mês, foi quando os deputados do partido Te Pāti Māori, na Nova Zelândia, inte-

rromperam uma sessão do parlamento para interpretar a haka “Ka Mate”, em protesto contra a proposta de lei do Governo, apresentada pelo Act - partido libertário e parceiro minoritário da coligação governamental Apesar da ação ter resultado na suspensão da deputada Maori HanaRawhiti Maipi-Clarke durante 24 horas, a impopularidade da medida fez com que o próprio primeiro-ministro recuasse no apoio à polémica proposta que, juntamente com a retirada do outro parceiro governamental – o populista NZ First – comprometem a aprovação do documento na votação na especialidade, onde estará até dia 7 de janeiro

Mas o que está em causa nesta proposta?

Em primeiro lugar, algum contexto: ao contrário dos restantes países colonizados pelas potências europeias, a fundação da Nova Zelândia não se deu pela desanexação da elite colonial em relação à elite da metrópole, como aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos Em vez disso, o país foi fundado numa lógica de partilha de soberania entre a Coroa britânica e as comunidades Maori, povo polinésio natural da Nova Zelândia, plasmada no Tratado de Waitangi, assinado em 1840 por representantes das duas partes

Este tratado previa igualdade de direitos entre as duas partes e a manutenção das terras pelos Maoris, em troca da soberania britânica sobre o território É aqui que as coisas se complicam, pois existem duas versões diferentes: enquanto a inglesa fala em “soberania”, a Maori fala em “proteção”, o que causou, ao longo destes 184 anos, muitos problemas legais e de jurisprudência, que culminaram na criação de um tribunal específico, em 1975, para a interpretação do tratado e dos seus princípios

Agora, o Act, com o argumento da “igualdade”, pretende mudar o texto do tratado, retirando as referências aos Maori e substituindo por “neozelandeses”, afirmando que, com esta mudança, se retira a retórica alegadamente polarizadora do tratado Só aqui, existem dois problemas: a alteração de um tratado feita sem o consentimento de uma das partes; e os riscos que tal pode trazer para a população Maori, em matéria de direitos e de representatividade (mesmo que a proposta reconheça o respeito pelo povo Maori)

Ainda que haja um propósito de “igualdade”, a verdade é que fruto de muitas expropriações de terras maori, que aconteceram após a assinatura do tratado, e mesmo com o reconhecimento dessas comunidades como iguais em Waitangi, falamos de uma camada significativa da população (cerca de 20% dos neozelandeses) que enfrenta sérias dificuldades socioeconómicas, como o desemprego, saúde, entre outros

Para além disso, a proposta vem no seguimento da extinção de vários departamentos governamentais exclusivamente dedicados à melhoria das condições de vida dos Maoris, como a Autoridade de Saúde, criado em 2022 pelo governo trabalhista de Jacinda Arden Isto intensifica a preocupação legítima por parte da população Maori, que tem visto muitos dos seus direitos conquistados e reconhecidos no Tratado e na Lei, serem ameaçados

Tudo isto coloca em confronto dois tipos de identidade: a identidade branca e a identidade Maori Se, na primeira, temos o argumento de um suposto “privilégio” dos Maoris em relação à restante população, na segunda, temos a defesa dos princípios fundadores do Estado neozelandês (constituído pela partilha de soberania entre os colonos e os locais), assim como a proteção da cultura Maori face a esta e outras propostas ameaçadoras à sua autonomia e identidade

O protesto de dia 14 revelou-se viral - o vídeo da haka não só teve cerca de 340 milhões de visualizações a nível mundial, como também foi divulgado no New Zealand Herald, a 18 de novembro, apenas quatro dias após MaipiClarke ter liderado a haka - acompanhada pelo rasgardoprojetodelei-emplenoparlamento

Também o hīkoi - marcha feita por todo o país, durante vários dias e semanas – serviu de instrumento de luta, tendo reunido cerca de 42 milpessoasatéàsededoParlamento

Quer isto dizer que, a partir do momento em que temos a nossa identidade ameaçada, fazemos de tudo para a defender e para a divulgar, e estes dois exemplos são prova disso Ao contrário do que o partido Act quis fazer crer, a haka foi uma forma legítima de protesto, trazendo para a discussão internacional, a defesadospovosindígenas

Em suma, a Nova Zelândia tem sido consideradaumexemplonadefesadosdireitos humanos, especialmente das pessoas indígenas Mas é de sublinhar que sob a alçada de uma suposta ideia de “igualdade”, esses direitosestãoasercolocadosemrisco

SerMulherno Irão

No século XIX, Elizabeth Packard, uma mulher doméstica e mãe de seis filhos, decidiu enfrentar o seu marido de forma assertiva Como resultado, acabou enclausurada num asilo para doentes mentais em Jacksonville, Illinois Na época, a independência e assertividade femininas eram sinónimos de loucura, e a psiquiatria era utilizada para oprimir as mulheres e policiar o seu corpo Segundo a Time, uma mulher de 20 anos que passava muito tempo a ler concentradamente e uma esposa que expressara a sua “grande aversão” pelo marido estavam na lista de pessoas que foram submetidas a um “inovador” tratamento para doenças mentais femininas: a remoção do clitóris

O silenciamento e a desacreditação das mulheres através da psiquiatria e a medicalização do seu comportamento não terminaram no século XIX Atualmente, são métodos utilizados por regimes autoritários, onde a agência feminina é repressivamente negada

No início de novembro, o Estado iraniano anunciou a abertura de uma clínica de saúde mental para “tratar” as mulheres que desafiem as leis do hijab (o véu islâmico) que as obrigam a cobrir o cabelo e usar roupas largas e compridas A chefe do Departamento de Mulheres e Família explicou que a clínica irá prestar “tratamento científico e psicológico” às mulheres que recusam utilizar o hijab, promovendo a “dignidade, modéstia e castidade” A hospitalização psiquiátrica involuntária tem sido utilizada sistematicamente pelas autoridades iranianas, tal como durante a era vitoriana, para suprimir a resistência feminina e descredibilizar as mulheres, considerando-as mentalmente instáveis

O anúncio da nova clínica surge depois de uma estudante da Universidade Azad, em Teerão, ter sido detida por se ter despido em público Vídeos da jovem a andar pelo campus de roupa interior foram divulgados e amplamente partilhados nas redes sociais, assim como gravações da sua detenção pelos seguranças da universidade A estudante foi levada para uma esquadra e, posteriormente, para um hospital psiquiátrico, tendo o diretor de Relações Públicas da Universidade declarado que a jovem sofria de “graves perturbações psicológicas”

A Amnistia Internacional, como vários outros grupos de direitos humanos, declarou

que a ação da iraniana representou um ato de protesto contra o uso obrigatório do hijab e a opressão das mulheres na República Islâmica Por outro lado, a organização denunciou “alegações de espancamento e violência sexual durante a detenção” da jovem e relembrou que há provas de que as autoridades iranianas utilizam métodos de tortura e violência, incluindo a administração forçada de substâncias químicas e choques elétricos, em manifestantes que são enviados para instalações psiquiátricas A narrativa de que protestantes e dissidentes sofrem de transtornos mentais é propagada pelos media estatais e, por vezes, corroborada por familiares ou amigos, que são pressionados a tal pelas autoridades iranianas A ativista Azam Jangravi relatou que, após ter retirado o véu em público, como um ato de desobediência civil, a sua família foi pressionada a declará-la como doente mental

procura apagar as suas identidades da história

Fonte:YasinAkgul

O The Guardian relata uma série de casos de manifestantes que foram internados em hospitais psiquiátricos após a sua detenção durante os protestos ‘Mulher, Vida e Liberdade’, que eclodiram em setembro de 2022 na sequência da morte de Mahsa Amini, uma jovem de 2022 que fora detida pela polícia da moralidade por alegado uso incorreto do hijab

Após os protestos, brutalmente reprimidos pelo regime, Teerão reforçou as suas leis draconianas, o policiamento em espaços públicos e o recurso à pena de morte Em setembro deste ano, foi ratificada pelo Conselho dos Guardiães a Lei da Castidade e do Hijab, que endurece as punições para as mulheres que violem o código vestuário da República Islâmica O pacote legislativo introduz um aumento das multas, penas de prisão até 10 anos, o confisco de automóveis, assim como proibições de conduzir e viajar, ameaçando não apenas mulheres, como também empresas, instituições e figuras públicas que apoiem violações do hijab

Desde a obrigatoriedade do uso do véu às restrições de movimento e participação, o corpo das mulheres iranianas é usado como instrumento de repressão e objeto de poder Os seus corpos não são seus - estão submetidos ao aparelho coercivo do Estado, que os policia e controla O seu grito de resistência é visto como um sintoma de loucura e a sua dissidência como sinónimo de instabilidade, à medida que o regime utiliza a psiquiatria como arma de silenciamento e dominação Porém, mesmo perante tamanha opressão e controlo sufocante, elas resistemem atos de rebelião, procuram reclamar os seus próprios corpos e a sua liberdade, desafiando corajosamente um regime que

Fonte:Irão,15deoutubrode2022/Fonte:OmerMessinger

ClaudiaJones noParque

EduardoVII

LuísToledo

Um hábito peculiar

Cada vez mais jovens na internet usam os três K's no meio de palavras inesperadas como forma de crítica e sátira O “KKK”, símbolo universal do racismo, é usado para falar do imperialismo (AmeriKKKa), para criticar o nacionalismo (PortuKKKal) e até para se referir a partidos políticos e figuras públicas Algumas

LuísToledoeClaraFerreira(submissãoexterna)

pessoas acham este uso engraçado, outras consideram-no necessário, enquanto outras ainda vêem esta moda como insultuosa e inconveniente Isto não seria assinalável, não fosse o facto de os três K's serem também utilizados agora em contexto explicitamente político

A 31 de agosto deste ano, em resposta a um protesto neonazi, um grupo de militantes antifascistas graffitou as colunas no topo do Parque Eduardo VII com o slogan “PORTUKKKAL É 1 ERRO” No contexto do assassinato de Odair Moniz em outubro, “PSP = KKK” foi uma expressão que surgiu nas paredes E, fora de Portugal, militantes antisionistas frequentemente desenham este tipo de comparações em materiais políticos e pichagens; as IDF são rotineiramente identificadas com a Gestapo e, em Brooklyn, os carros da polícia são vandalizados com as palavras “NYPD = IDF = KKK”

numa viragem face ao anterior imaginário da mulher soviética emancipada Nos EUA, este processo ocorreu de forma extrema, sob a direção de Earl Browder que incorporou uma ideologia Americanista no seio do Partido (CPUSA)

No entanto, a aplicação desta linha teve efeitos contraditórios No contexto da entrada estadunidense na II Guerra Mundial, as militantes mulheres adquiriram um papel muito mais público e central dentro do partido, sobretudo mulheres negras como Claudia Jones Face a uma situação de autonomia reforçada, estas militantes procederam a criticar o racismo e machismo nas fileiras do partido Através dessa crítica específica, formou-se uma plataforma para um ataque mais amplo ao Americanismo do CPUSA 5 6

Isto não é totalmente novo O graffiti do Parque Eduardo VII é uma referência à música de 1994 do General D, “PortuKKKal é um erro” Em contexto especificamente político, em 2021, um pequeno coletivo anti-racista chamado Anti-Metrópole, criticando a invisibilização das camadas racializadas e imigrantes do proletariado em Portugal, produziu um cartaz com 4 membros do Ku Klux Klan a segurar a seguinte faixa: “Pela classe trabalhadora contra o sectarismo! Não dividas a classe trabalhadora” Antes disso, esta linguagem chegou aos círculos da internet de forma mimética, repetindo-se imagens e vídeos criados nos anos 2000 por obscuros coletivos terceiro-mundistas, como o Maoist International Movement e a LLCO, cujo logotipo ainda pode ser lido no célebre meme: “Unlimited Genocide in the First World”

A invenção da AmeriKKKa

Estas expressões, no entanto, não são mais do que um elo numa cadeia de circulação e transmissão muito mais longa A história do uso dos três K's num contexto radicalmente crítico do racismo e do colonialismo obriga-nos a viajar no tempo e no espaço aos EUA dos anos 30 Com a ascensão do fascismo, a Internacional Comunista propôs uma viragem estratégica no seu 7º Congresso (1935), passando de uma linha de "classe contra classe" para a Frente Popular Esta última política consiste essencialmente na aliança da classe operária com os restantes setores antifascistas da sociedade, em nome da defesa da democracia burguesa contra o fascismo

A Frente Popular expressou-se de forma geral como um meio para os Partidos Comunistas se constituírem como partidos nacionalistas, com a sua própria formulação da nação Esta reconfiguração coincidiu com uma nova predominância do patriotismo por parte da URSS, onde a pátria era associada à imagem da mulher como mãe e dona de casa, 1 2 3 4

Os três K’s eram uma forma extremamente flexível de articular essa crítica Por um lado, fazia-se referência à ideologia patriarcal do Império Alemão – Kinder, Küche, Kirche (“crianças, cozinha, Igreja”) - para atacar os ideais da vida doméstica e da família nuclear Mais tarde, durante a Guerra da Coreia, mobilizou-se a imagem das mulheres combatentes para contrapor à imagem dominantemente materna da “nova mulher do comunismo” Ao mesmo tempo, era uma referência ao Ku Klux Klan, durante a II Guerra Mundial associado à Gestapo, posicionando esta crítica na história do abolicionismo nos EUA Em vez de uma Frente Popular, a forma mais potente de anti-fascismo nos EUA seria, então, o combate ao racismo e machismo na sociedade americana, formas sociais que iam muito além dos setores explicitamente fascistas: a América era AmeriKKKa

A política de identidade sob revisão O uso crítico dos três K’s é muito mais associado às formações que emergiram nos anos 60 e 70, hoje classificadas de New Left Realmente foram essas correntes mais tardias

que popularizaram esta terminologia, mas a sua genealogia é muito mais esclarecedora para nós hoje Ela demonstra que o antiracismo e o feminismo foram modos predominantes de crítica de uma linha de colaboração entre classes dentro dos Partidos Comunistas Hoje, é frequente contrastar-se esta “política de identidade” com a política de unidade de classe Segundo a linhagem desta expressão, contudo, a identidade foi um meio pelo qual se regressou a políticas internacionalistas, combativas e novamente próximas da independência de classe Isto é, pela identidade são denunciados os falsos universais, revelando as partes que são excluídas dos chavões da “classe”, da “nação” ou da “democracia” Da perspetiva das inventoras da “AmeriKKKA” , este era um momento necessário na elaboração de um eto, ao nita na e e, três sob nda em fica ores ow, ao a a que que a É nda ade sto

“Ésuficientemencionaraideologia chauvinistaquecontinuapenetrandoo coraçãoeaculturadanossavidanacional, tornandomuitaspessoassuscetíveisa apanharemestadoençasocial”

1-https://wwwinstagramcom/p/CVg6i8MzSE/ 2-https//wwwfacebookcom/photo/? fbid=133403805511321&set=a123614503156918

3-https//robashlarsubstackcom/p/in-memory-of-older-third-worldists

4- FranciscoMartinsRodrigues 1985 Anti-Dimitrov

5- AnaBarradas 2006 OsComunstaseaHomossexualidade

6-RebeccaHill 1998 "FosteritesandFeminsts Or1950sUltra-Leftstsand theInventionofAmeriKKKa" NewLeftRevew228

7-ClaudaJones 1945 “DiscussionArtcle” Politica Affairs 720

ClaraFerreira

Terapias de conversão (ou “terapias de reorientação sexual”) são definidas pela Ordem dos Psicólogos Portugueses como “intervenções que têm em comum a crença de que a orientação sexual ou identidade de género de uma pessoa pode e deve ser alterada, através de práticas que visam a mudança de pessoas gays, lésbicas ou bissexuais para heterossexuais e de transexuais para cisgénero” A 21 de dezembro deste ano celebra-se o 1º aniversário da lei que bane estas práticas em Portugal Apesar da sua existência escondida, estas práticas podem ser observadas num país historicamente católico

A igreja, nalgumas comunidades, não se fica pela espiritualidade, mas padece também de um papel sociocultural A religião é utilizada como meio de difusão de ideais, nomeadamente a ideia da homossexualidade como uma “prática” e não uma identidade Estes ensinamentos religiosos acabam por deixar marcas profundas em meios menos populosos, como é o caso do interior do país, onde a Igreja tem um papel mais significativo dentro da comunidade

Falei com Joaquim (nome fictício) que cresceu neste contexto A família de Joaquim, como qualquer uma na vila onde reside, é ativa na vida da igreja Em criança, a sua família torna-se parte de um movimento na sua paróquia que tinha a unidade familiar como base Ao unir pessoas de todas as idades, o movimento realizava reuniões com os seus próprios catequistas - sendo estes sempre casais - onde discutiam os temas relevantes para a sua missão evangelizadora

Este movimento zelava pelo direito da criança à pureza e castidade Antes de ele próprio ter uma concepção de sexualidade, Joaquim já tinha em si assente a ideia das “opções sexuais” como pecaminosas “O sexo é uma coisa bonita, mas enquanto casal A sexualidade tem um único propósito que é a entrega no matrimónio” Qualquer vivência fora deste padrão torna-se impura “Para eles, tudo isto que fossem questões de sexualidade, questões de género fora da binariedade, eram coisas que eram alimentadas pelo que há de pecado no mundo que faz com que o pecado cresça em ti” Esta perspetiva introduzia no pensamento de Joaquim a ideia de que, não só a sua orientação sexual era impura e corrigível, como era um produto daquilo que há de impuro no mundo A internalização desta narrativa é fundamental para a difusão e normalização de ideias conservadoras “Lembro-me também de falarem muito na forma como os pais deviam estar a par daquilo que se falava na escola E eram contra tudo o que fosse temas de educação sexual”

Num destes encontros, Joaquim aprendeu sobre a homossexualidade e ouviu falar pela 1ª vez, aos 9 anos, daquilo que poderia servir de solução para o seu “problema” Apesar de nunca entrarem em detalhe, os seus catequistas sempre se demonstraram disponíveis para resolver este tipo de situações Contudo, o assunto trazia sentimentos de desconforto e paranóia, não a luz ao fundo do túnel que Joaquim tanto procurava “Cada vez que falavam disto eu ficava “Será que eles sabem?” e ficava sempre desconfortável Tinha muito medo de falar” Os catequistas afirmavam que “tinham contactos com grupos que tinham reuniões e tinham tratamentos para resolver estas questões” Contudo, a informação acerca destes era sempre vaga: “Não diziam que era diretamente da Igreja Nunca disseram que grupos eram estes Mas diziam que era uma coisa útil”

Joaquim recorda um episódio em que a sua mãe, perante a menção destes grupos, o questionou acerca da sua opinião “A minha mãe tinha bastante consciência de que eu não era ‘hétero’ Ela desconfiava, mas não queria desconfiar Eu sabia que ela tinha ficado desconfortável e apercebeu-se do meu desconforto a ouvir aquilo” Joaquim, instintivamente, reproduziu a narrativa que lhes tinha sido transmitida, afastando o assunto É curioso entender a influência destes ensinamentos em adultos como a mãe de Joaquim, sendo que não se limita às crianças em períodos formativos do seu crescimento A normalização de discursos como este traz consigo possíveis influências dentro do seio familiar

Anos mais tarde, Joaquim entra no seminário, onde passa a sua adolescência Perante uma reportagem polémica sobre terapias de conversão, ao qual os seus colegas seminaristas expressam revolta, a perceção de Joaquim acerca da homossexualidade, apenas aos 18 anos, começa a mudar: “Ao ver a revolta das pessoas, eu comecei a perceber porque é que estavam revoltadas e porque é que era condenável E acho que me acordou para a ideia de que a minha perspetiva sobre a minha própria sexualidade não me estava a fazer bem A minha sexualidade é um dom e é uma coisa boa, porque é que eu só vejo coisas más nela?” No entanto, se os seus colegas se opunham deliberadamente a estas práticas, “depois via a perspetiva dos padres que estavam em silêncio” Joaquim e os restantes seminaristas foram sujeitos à mesma narrativa: a homossexualidade consistia numa alteração da sexualidade normal devido a traumas a que as crianças são expostas, que deve ser tratada Apesar de não tocar diretamente no assunto das terapias de conversão, “quiseram introduzir o tema, a narrativa que justificava as terapias

de conversão”

A própria existência destas terapias serve como principal tática de repressão da sexualidade e identidade de género ao difundir a homofobia internalizada e o medo da exposição “No fundo eu estava a adiar, a tentar resolver a coisa por mim mesmo” Esta narrativa da pureza de uma alma livre do pecado anda de mão dada com estratégias da extrema-direita A luta contra os direitos das pessoas LGBTQ+ é igualmente fundamentada pela narrativa de direitos humanos Isto porque partem da ideia de que a base da sociedade ordenada e civilizada assenta na unidade da família monogâmica e heteronormativa É tomada uma atitude protetora das crianças e do seu bem-estar que está ligada ao conservadorismo e à ideia de pureza Hoje, Joaquim vive afastado da Igreja, tendo encontrado a verdadeira pureza da alma em si mesmo e na complexidade da sua sexualidade e género

“Nóstemosuma vidatãocurta,não éfixepodermoster umtrabalhoem quevivemostantas vidas?”

Entrevista e adaptação de CatarinaBasílio

Mónica Belchior concluiu este ano o curso na ACT- Escola de Atores, percurso ao longo do qual participou em três peças: Lulu, uma tragédia monstruosa (encenada por Nuno Nunes), Forma Das Coisas (encenada por Sofia de Portugal) e o musical Grease (encenado por António Pires) no Teatro do Bairro Participou também no filme Octameron de David Bonneville e noutros mais recentes projetos Nesta entrevista falanos sobre o papel da identidade no trabalho de ator e das linhas por vezes ténues que o separam das suas personagens

Dirias que quando começaste a envolverte no trabalho de ator, que isso teve um impacto na tua identidade própria?

Mónica: Sim, muito ( ) No trabalho de ator, tens de resolver muitas coisas tuas, traumas, dificuldades, tiques, muletas Passas por todo um processo de ficar uma tela em branco e ( ) é muito difícil especialmente com personagens em que não podes ter uma assinatura tua ( ) O importante é que coisas emocionais próprias não passem para

a personagem Tu tomas consciência delas, da tua própria cabeça e do teu corpo Acima de tudo cresces imenso como pessoa ( ), e por isso acabas por perceber como é que lidas contigo própria ( ), e arranjas ferramentas Eu aprendi imenso sobre meditação, que não esperava nada num curso de atores Mas é importante porque dá te uma consciência sobre ti, mental e física, e acho que isso foi o que mudou mais ( ) Tu aprendes como lidar contigo através da arte ( ) É isso, ficar mais madura em todos os sentidos, mais consciente, é uma profissão que completa muito uma pessoa Uma frase que talvez possas pôr por aí de uma amiga minha: “nós temos uma vida tão curta, não é fixe podermos ter um trabalho em que vivemos tantas vidas?”,( ) é muito verdade num sentido de “fogo quero aproveitar a vida de tantas maneiras” e este trabalho realmente dá para fazer isso ( )

CatarinaBasílio(SubmissãoExterna) Entrevista/Divulgação

da tua personagem?

M: Como ator, há sempre três passos: tu, a personagem intermédia e a personagem A personagem intermédia é essa tal folha em branco, não és tu nem é a personagem, é uma pessoa E isso tem a ver com técnicas essa técnica ( ) é muito utilizada no Teatro do Bando, foi um método criado pelo João

EntrevistaeadaptaçãodeCatarinaBasílio

Obrigada! M:Denada,euesperoquetenhasaí muitacoisa,souumafala-barato.

Achas que, ou sentes que tiras das tuas personagens e pões em ti? Isso é bom ou mau ou ?

M: Depende muito porque tem de haver sempre uma barreira entre o real e o irreal, e pode ser difícil mantê-la Às vezes aparecem-nos personagens no momento certo, ou no momento errado, e uma personagem pode ajudar a resolver as tuas próprias coisas ou a piorar essas coisas ( )

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Tu tens de perceber como separar, e isso vem da técnica Claro que ( ) há muitas personagens que eu já fiz que me deram lições de vida, ( ) isso não é a coisa mais certa, mas vem como aprendizagem então ( ) é bom ficar com isso Agora características da personagem? Diria que não é a melhor coisa, porque ( ) tens de fazer uma decisão prévia: deixo-me envolver ou não? Deixo-me envolver até ao fim e abuso da minha sanidade, ou escolho separar? Nós somos seres vivos ( ) às vezes confundimos realidades, são emoções muito fortes e muito à flor da pele ( ), mas tudo vai dar à técnica De certa forma, o trabalho de ator é uma pista de gelo, se tu te deixares ir e não puseres travões, aceitas aquilo, e às vezes há personagens que mexem muito contigo ( ) Na minha opinião acho que não seria indicado tirar coisas das personagens porque não se deve perder a identidade como ator ( ) Conseguires descolar completamente é muito importante como ator e para a tua saúde mental

Como é que equilibras no teu processo criativo a tua identidade e a identidade

Brites Basicamente, tu descolas-te de ti e és uma personagem intermédia, é aquele limbo e isso ajuda ( ) Eu uso-a muito para me separar e para não me envolver tão emocionalmente com a personagem, é difícil principalmente quando tu tens empatia por elas ( ) Uma coisa que ( ) devia sempre acontecer é: nunca critiques a tua personagem Podes estar a fazer de Hitler, pode ser a pior pessoa que possas imaginar, mas não és tu, é uma personagem Defende-a sempre Basicamente, se souberes quem tu és, e se souberes quem a personagem é, vais perceber o que vos difere e que vos liga e tendo isso em conta, vais perceber o que é que pode ser perigoso para ti ( ) Se tiveres a mentalidade de “eu tenho que me proteger” vai sempre correr bem, vai sempre manter um equilíbrio

Para concluir, tens dificuldade em sair de personagem? Há algum “truque”?

M: Isso é interessante, é todo um processo ( ) Não te vou mentir, há personagens que são difíceis de tirar, e às vezes consegues sair, ( ), mas ficas cansadíssima emocionalmente O que eu tenho aprendido é, primeiro, shake it off, saltar, abanar, não sei porquê funciona ( ) Depois, lidar com a emoção oposta Imagina que tens uma personagem tristíssima, vai fazer uma coisa que tu gostas, vai te rir, não te isoles Outras vezes, não te deixares consumir Há personagens que são viciantes, isso acontece imenso, já me aconteceu Personagens ( ) que te empoderam, ficas viciada nessa sensação Tu ficas tipo “e se eu continuar?”, não Isto é um trabalho como todos os outros e que devia ser “deixar o trabalho à porta” Dizer: “amanhã pego em ti outra vez” Mas sim, em casos banais, deitar tudo cá para fora ( ) e alongar Alongar corporalmente, que às vezes as pessoas esquecem-se, mas tu manténs muita coisa ( ) no teu corpo Não é só a mente que controla o corpo, o corpo controla a mente Se tens muita tensão, se não alongares, ou pedires a alguém para te fazer uma massagem, ou o que for, não vai sair e vai doer, fisicamente ( ) Por isso, largar a tensão, alongar, ouvir música, e estar com outras pessoas, esse seria o meu melhor conselho ( )

Mekie (Interjeição,gíriaultracasual)

Cumprimentoderua,cheio deatitudeezero formalidade;écomodizer: “Então comoéqueé?”mas commuitomaispinta Estagíriadeveserutilizada numtomemood descontraídos

A Mekie começou por ser uma ideia na cabeça de uma alminha que se transfigurou para palavras gritadas em alto e bom som que acabaram por ser interpretadas por uma outra alminha que alinhou na ideia,hojematerializadanouniversodigital

O meu nome é Rita Silva, sou licenciada em Ciências da Comunicação e Design de Moda e sou a alminhaquegritouaideia

O meu nome é Rafael Marques, sou Web Designer e sou a alminha que incentivou a criação da marca Lançámos o nosso site no dia 3 de novembro e acreditamos que a marca é para qualquer um que queira vestir e transmitir um mood descontraído, mas semprecomestilo

Queres um bucket hat e um hoodie bordado, nós temos Ou és mais de cap e t-shirt com um big designnascostas?Nãoteaflijas,nóstambémtemos Podes descobrir mais peças e desenhos nas nossas redessociaisesite

MónicaBelchior;Fonte:EscoladeAtores

Contratostemporários, DesgastePermanente:

UmretratodaNOVAFCSH

Entrevista anónima a um docente

“ParacompreendermelhoroimpactodaprecariedadelaboralnaNOVA FCSH,conversámoscomumdosseusdocentes,queaceitoupartilhara suaexperiênciasobcondiçãodeanonimato Aentrevistarevelauma realidademarcadapelaincerteza,pelodesgasteemocionalepelafaltade valorizaçãoprofissional.”

Nos últimos anos, tem-se observado uma crescente negligência em relação aos professores, independentemente do nível de ensino em que atuam Desde a primária até à universidade, os docentes enfrentam desafios que vão muito além das suas responsabilidades pedagógicas Estes profissionais, essenciais para a formação de indivíduos e, consequentemente, para o progresso da sociedade, têm sido frequentemente subvalorizados em termos de reconhecimento social e material

Um dos aspectos mais visíveis desta negligência é a questão salarial Os professores em Portugal enfrentam remunerações que, em muitos casos, não refletem a importância e complexidade do seu trabalho Esta realidade é particularmente evidente no ensino básico e secundário, onde o congelamento de carreira e a falta de progressão salarial têm gerado frustração e desmotivação Por outro lado, no ensino universitário, assistentes e investigadores frequentemente lidam com contratos precários e uma pressão imensa para a produção de resultados, enquanto o investimento público nas instituições se revela insuficiente Adicionalmente, os professores estão sobrecarregados com tarefas administrativas que os afastam da sua principal missão: ensinar e educar Relatórios, reuniões intermináveis e exigências burocráticas têm consumido tempo e energia que poderiam ser direcionados para preparar aulas mais eficazes e prestar o devido apoio aos alunos Entre as instituições que perpetuam estas condições, consta a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade NOVA de Lisboa. Colocada no ranking das melhores 150 universidades do mundo e em 1º no ranking português de Economia, Gestão e Humanidades (de acordo com a Times Higher Education), é reconhecida pelo seu papel central na produção de conhecimento e pela formação de milhares de estudantes em áreas como Literatura, História, Sociologia e Comunicação

Diversos relatos de estudantes têm informado que as suas aulas têm vindo a ser reduzidas, dentro destes a aluna X que afirma que, logo na primeira semana de aulas do ano letivo de 2024/2025, foi comunicado à sua turma por parte de professor Z que estes passariam a ter apenas uma aula semanal Para compreender melhor o impacto da precariedade laboral na NOVA FCSH, conversámos com um dos seus docentes, que aceitou partilhar a sua experiência sob condição de anonimato A entrevista revela uma realidade marcada pela incerteza, pelo desgaste emocional e pela falta de valorização profissional.

“Existe um medo por parte dos colegas de não serem contratados paraopróximoanoletivo”

Quando e porquê é que decidiu tornar-se professora?

“Há 23 anos Sempre tive paciência [acho eu] para ensinar, e línguas foi algo de que sempre gostei Os meus pais eram imigrantes, e como eu não dominava bem a língua, tinha que traduzir”

Quando é que começou a observar algum tipo de negligência profissional para com os docentes?

“A negligência profissional [na minha opinião] começou a observar-se de diversas formas; Como, por exemplo, quando não nos era dado tempo suficiente para ensinarmos e planejarmos as aulas, e obviamente também quando ocorreram cortes nos horários”

Como é que foi abordada pelo Director relativamente à situação do corte de horários e salarial?

“No dia 2 de Maio de 2024, no segundo semestre do ano letivo de 2023/2024, eu e vários colegas recebemos um email com a notificação do corte salarial, que afirma:

“Bomdia, Vimospelopresenteinformarque,pordespachodoSenhorDiretorda NOVAFCSH,datadode24/04/2024,foialteradaapercentagem contratualdasuapropostadecontrataçãoparao2ºsemestredo presenteanoletivo,nacategoriaXY,paraXX%. Iremosprocederaorespetivoacertodovencimentonocorrentemêsde maio”

As percentagens não foram todas iguais, variando de acordo com o contrato de cada um No fim do mês de Maio, eu e os meus colegas recebemos uma chamada dos Recursos Humanos, onde me foi dito que este corte ia ser aplicado ao segundo semestre retroativo, que no meu caso era março de 2024 Houve uma reunião no fim do semestre com o departamento de línguas e foi aí que a coordenadora do departamento comunicou a todos os que se encontravam presentes, que este corte seria aplicado no ano letivo de 2024/2025 e que funcionaria da seguinte maneira “A todas as UCs de licenciatura com menos de 10 alunos e todas as UC de Mestrado com menos de 5 alunos seria aplicado um corte de 50% Se a UC tem 4 horas, passa a ter apenas 2 horas (2 horas pagas ao docente) Pois no horário oficial continua o horário completo, ficando ao critério do Professor se quer dar aulas que não são pagas”

Qual foi a sua reação perante a notícia, e qual a contra-reação da Direção?

“Primeiramente falei com vários colegas, pedimos uma reunião com o diretor Houve uma carta aberta, falámos com o sindicato, etc Tivemos uma reunião com a Subdiretora e com duas pessoas do Núcleo de Gestão Curricular A Subdiretora pediu que se escrevesse um email a explicar a situação e o nosso horário (pois quando se dá aulas tanto a licenciaturas como a mestrados, torna-se um horário deveras complexo) Para além do horário, as UCs que asseguramos comportam um conjunto de tarefas que vão além do horário atribuído e pago Após o envio deste email, não se obteve nenhuma resposta, não havendo qualquer reação por parte do Diretor”

Houve alguma tentativa de expor a universidade de maneira mais pública? Caso não, existe alguma razão?

“Eu fui ao Ministério do Trabalho, onde me foi dito que haviam sido feitas diversas queixas ao Tribunal do Trabalho (entidade jurídica responsável pela resolução de conflitos do ambiente laboral) Porém não foram efetuadas denúncias, existindo um medo por parte dos colegas de não serem contratados para o próximo ano letivo, ou seja, os colegas reclamam, mas não de maneira oficial Infelizmente, não posso contar com o apoio dos meus colegas, mas eu próprix farei uma denúncia”

Como é que se está a sentir em relação a todo este processo? Sinceramente zangadx e furiosx A direção não tem qualquer tipo de respeito para com os alunos nem para com os docentes Este comportamento e falta de respeito é inaceitável, considero vergonhoso a Direção ter este tipo de atitudes Eu recuso-me a aceitar isso, enviei uma carta ao Diretor a reivindicar as medidas laborais e a pedir uma devolução do corte efetuado no ano passado, caso contrário irei apresentar judicialmente esta questão Após isto, ontem (sexta-feira, 8 de Novembro) recebi finalmente uma reação por parte da Direção, na forma de uma carta registada da FCSH Ainda não consegui ler a mesma, porém espero que tenham tido mais consideração do que tiveram até agora

Recursos Humanos da FCSH após esclarecer que o contrato dx docente iniciado em setembro de 2022, foi renovado para o ano letivo 2023/2024 com alterações nos termos percentuais de trabalho, culminando assim numa redução salarial a partir de março de 2024 No entanto, não assinou a adenda contratual referente à mudança, causando assim o cessamento do vínculo em setembro de 2024

A precariedade não é um fenómeno isolado da NOVA FCSH, mas sim um reflexo de um problema estrutural no ensino superior português. O subfinanciamento público das universidades tem resultado em cortes que afetam diretamente as condições de trabalho dos professores e limitam as oportunidades de contratação Contudo, este fenómeno é claramente agravado por decisões institucionais que desrespeitam os próprios docentes Estes cortes salariais e condições contratuais desvantajosas não afetam apenas os docentes em início de carreira, mas também aqueles que já possuem anos de experiência na instituição Este tipo de abordagem mina o valor do trabalho académico, reduzindo-o a uma lógica de mercado onde a prioridade é cortar custos, mesmo que isso seja à custa da dignidade profissional Desta forma, estas práticas recorrentes colocam os professores numa posição de vulnerabilidade, perpetuando um ciclo de insegurança e subserviência Este medo é amplificado pela falta de oportunidades em outras instituições, uma realidade que é agravada pela centralização de universidades nas grandes cidades e pela dependência de concursos públicos, muitas vezes morosos e pouco transparentes

UmaContradiçãoàMissãoAcadémica

Ao impor condições laborais precárias e cortes salariais aos seus docentes, a direção da NOVA FCSH contradiz a missão fundamental de qualquer instituição de Ensino Superior: promover o conhecimento, assegurar a sua transmissão às novas gerações e valorizar os agentes que o produzem Os professores, como pilares deste processo, não podem ser desconsiderados sem que se comprometa a qualidade do ensino e da investigação Quando os professores são tratados como recursos descartáveis, a motivação e a estabilidade emocional necessária para garantir um ensino de excelência torna-se inalcançável Mais crítico ainda, a capacidade de atrair e reter talentos na academia é posta em causa, limitando a inovação e o progresso científico que deveriam ser o objectivo central da instituição Investir nos professores não deve ser encarado como um custo, mas como um investimento estratégico e indispensável para o futuro da NOVA FCSH. No entanto, enquanto cortes salariais e contratos precários forem encarados como práticas normais, a faculdade estará a enfraquecer os alicerces que sustentam o seu contributo e reputação na sociedade

AUrgênciadeumaMudançadeParadigma

Para garantir um ensino superior inclusivo, inovador e dinâmico, é imprescindível que a Direcção da faculdade reveja as suas políticas laborais Os professores precisam de condições dignas, que lhes permitam exercer plenamente as suas funções pedagógicas e científicas. Sem essa valorização imprescindível, o propósito académico da NOVA FCSH perde consistência e o ensino superior no seu conjunto sofre

Desde então, foi possível apurar o conteúdo da correspondência: “É tudo o que nos cumpre informar sobre a matéria”, afirma a Divisão dos Re-

A precariedade e o medo não podem ser a base de uma instituição que se apresenta como um espaço de excelência académica A sustentabilidade do ensino superior em Portugal passa, necessariamente, por um compromisso sério com os docentes que, apesar das adversidades, continuam a dedicar-se ao desenvolvimento intelectual e profissional das próximas gerações É urgente que esta prioridade se reflita nas práticas institucionais.

RevoluçãoCancelada

Comoosistemanossilencia?

Quem somos, afinal, nesta sociedade que grita, silencia, constrói e destrói ao mesmo tempo? Vivemos num mosaico de contradições, onde cada peça parece contar uma história mas nenhuma se encaixa por completo A política ferve, o planeta arde, a economia dança sobre uma corda bamba, e nós seguimos a tentar perceber onde estamos a pisar neste caos.

Estamos cercados por discursos inflamados, pelas promessas de líderes que nos pedem esperança enquanto apertam os fios da desigualdade Vivemos na era do espetáculo, onde tudo é performance: o político que chora ao microfone, o influenciador que vende autenticidade fabricada, e nós, que assistimos a tudo, impotentes, com a sensação de que o guião já foi escrito e ninguém nos contou o final

Mas não é só a política que nos desorienta É o consumo que nos transforma em máquinas de querer Queremos tudo: o novo telemóvel, o corpo ideal, o sucesso instantâneo, a vida perfeita que vemos em ecrãs luminosos. E, enquanto queremos, esquecemos de perguntar: precisamos? Talvez seja essa a ironia mais cruel do nosso tempo temos acesso a tanto e sentimos falta de tudo.

E a identidade? É uma arena onde o indivíduo luta contra a multidão Dizemos que somos livres, que escolhemos, mas somos conduzidos por algoritmos que sabem mais sobre nós do que nós próprios. Os nossos desejos, os nossos medos, os nossos amores tudo mapeado, categorizado, vendido Será

que somos protagonistas ou apenas figurantes de um sistema que nos usa e descarta?

A desigualdade, essa velha conhecida, continua afiada. Enquanto alguns constroem foguetões para fugir do planeta, outros lutam por água potável Falamos de progresso, mas que progresso é este que acelera para poucos e atropela tantos? E o que dizer da democracia? Uma ideia bonita no papel, mas cada vez mais frágil nas mãos de quem a manipula como se fosse um brinquedo partido.

E no meio disto tudo, o planeta observa-nos, ferido e exausto Cada tempestade, cada onda de calor, é um grito abafado E mesmo assim, continuamos: extraindo, queimando, descartando Vivemos como se tivéssemos outro lugar para ir, como se as consequências fossem sempre para depois

O que resta, então? Talvez a pergunta não seja o que estamos a fazer, mas no que nos estamos a tornar? Um amontoado de vozes que não se ouvem? Uma sociedade que corre, mas não sabe para onde? Uma geração que herda os cacos de um espelho estilhaçado e tenta, desesperadamente, ver algum reflexo nele?

A resposta não é clara Talvez nunca seja Mas o que sabemos é que estamos no limite, na borda de algo que não conseguimos nomear E se não pararmos para olhar o abismo, talvez não percebamos que ele já nos começou a engolir

Seremos a faísca que reacende a esperança ou apenas o eco final antes do colapso?

Costumo roer as unhas com frequência Sei que não é um hábito saudável, todos me dizem isso, mas não consigo evitar trincar e ralar as lâminas de queratina que se situam nos meus dedos

Claro que já progredi para aparar as peles destes com os dentes Encaro este ato como inofensivo, até chegar à camada menos exposta de pele e começar a sentir o sabor de sangue na língua Pode incomodar alguns, mas sinto um certo conforto quando reparo na pele rosada e húmida – a meros milímetros de expor o que está por baixo

Quão mais aprenderei sobre mim mesmo se rasgar a carne noutros sítios? Se decidir continuar e cravar a mandíbula em torno de um dos meus membros, finalmente me conhecerei? O que iria eu descobrir se tivesse a habilidade de trincar a jugular - ver todos os meus conteúdos mais profundos expelirem-se a si próprios perante os olhos de quem passa?

Na verdade, é disto que sou feito É a mistura de sangue e saliva a secar-me nos dedos que prova realmente quem sou Não sou uma nacionalidade, um género, uma aparência ou identidade: sou os fluidos à flor da pele

Porque, afinal, o que sou eu se não setenta por cento de água? Que mais há para além de lágrimas, bílis, urina e sangue? Se quebrar os meus ossos, serei eu mais do que a medula que escorre?

Mar Ferreira

DiogoD’Alessandro

Brasilidade

Vamos do começo, quem sou eu para falar o que é ser brasileiro?

Eu nem tenho certeza do que é, mas sei que sou. Demorou para perceber, precisou que um oceano me mostrasse, mas agora eu vivo brasilidade Não consigo explicar o que é ser brasileiro, mas posso, talvez, dizer como sou brasileiro

Antes de continuar, queria apenas esclarecer que esse texto não seguirá nenhum formato, não é, necessariamente, uma crônica, um artigo ou algo assim, se assemelha mais com um desabafo, um grito, que antes preso, se liberta aqui. Então se para você não fizer muito sentido, relaxa, às vezes não faz, nem sequer para mim

Tive grande dificuldade para escrever sobre isso, são tantos sentimentos simultâneos que fica complicado colocar tudo em palavras A saudade do que um dia chamei de casa, a fome de conquistar tudo que planejei ao mesmo tempo que fico preso no sofá A distância me mostrou quem, de fato, sou e, ao mesmo tempo, me faz sentir que não sou nada

Chego em casa ao fim do dia mas não sinto que lá estou, não sinto que é casa, mas quando saio para começar o dia e passo no mercado comprar café da manhã, tenho a sensação de que aqui também pertenço Estar longe de onde me fiz permitiu que entendesse essa tal brasilidade, a minha brasilidade

Minha brasilidade é quando a trilha sonora do banho é samba, quando passo no mercado e compro um pão de queijo para tentar matar um pouco da saudade, quando digo uma gíria e ninguém me entende Mas também é quando sofro as memórias que esse samba traz, quando o pão de queijo não tem o mesmo gosto, ou quando a gíria já não faz tanto sentido

Minha brasilidade é ter saído de casa rumo a outro continente atrás de um sonho que nem sabia que tinha É ver alguém na rua falando “brasileiro” e sentir que, de alguma forma, estamos conectados É me conhecer novamente como algo que não sabia que sempre fui É saudade, de todos que ficaram, mas ao mesmo tempo é gratidão, por terem ficado e me permitido viver o que vivo É a ânsia de orgulhar os que me apoiam, ao mesmo tempo que nem sempre faço a mim mesmo

Tudo é bem confuso Os dias vão ficando

cada vez mais fáceis, até que não ficam Os sentimentos que achei que conhecia, afinal não os conheço tão bem A vida que eu conhecia afinal já não existe E essa de agora eu ainda estou conhecendo Aparentemente, a brasilidade é muito mais do que música, riso e sotaque. É também confusão, inquietação e saudade. E eu espero que seja tudo isso mesmo, enquanto agradeço ao oceano que me deu certeza de que sou brasileiro e me mostrou que isso tudo é a minha brasilidade

Sabemos que o tempo deve estar apertadinho aí por casa, mas queríamos deixar aqui alguns pedidos de toda a nossa equipa! Temos-nos portado bem este ano, viste as nossas redes? A equipa do NeF tem arrasado nas publicações E a qualidade dos nossos textos? Temos trabalhado muito! Que pena não sabermos colocar vírgulas bem Mas prometemos melhorar no próximo ano!

A nossa equipa também aumentou imenso! Estamos muito felizes por termos uma equipa tão dedicada e diversificada, desde a licenciatura, às pós-graduações!

Se não te importares, e se tiveres tempo, tínhamos só algumas coisas a pedir:

Bilhetes de teatro mais baratos;

Que os incentivos à cultura se alastrem para o resto do país;

Que quem trabalha na Arte tenha uma profissão digna;

Que haja mais investimento na formação de áreas artísticas;

O aumento das verbas do OE para a cultura para, no mínimo, 1%;

Que todas as modalidades desportivas sejam igualmente valorizadas e que o género não seja uma condicionante;

Que a Inteligência Artificial não conquiste o mundo;

Que o Canva Pro seja mais barato;

Que a AEFCSH tenha um maior orçamento (sobretudo para investirmos em mais exemplares!);

Melhores condições para os professores de todo o país, desde a primária ao ensino superior!

Que a crise climática seja tão urgente para o mundo como o crescimento económico;

Que o bar tenha mais bolinhos no horário pós-laboral;

Que os estudantes leiam mais o jornal e que isso os ajude a participar mais na esfera estudantil!

Distribuição gratuita de calmantes para os exames no caso de não ser possível uma expansão do sistema de apoio psicológico aos estudantes;

Que a Palestina fique finalmente livre :)

Um abraço dos departamentos de Design, Política, Cultura, Desporto, Notícias, Escrita Criativa e Revisão! Esperamos que não sejam pedidos demasiado impossíveis, acreditamos em ti e nos duendes!

Para: Mãe Natal, Polo Norte

De: Equipa do NeF

Lisboa, Portugal

11 de dezembro de 2024

Agenda cultural dez/jan.

Exposições.

atédez

Exposição

22

InstalaçãodeLuísaCunha: Odd

Lumiar Cité, Lisboa, quarta a domingo, das 15H às 19H

Entrada livre.

atédez

Exposição

31

atéjan "25deAbrilSEMPRE!" Exposição

Curadoria de Rita Rato

Museu do Aljube - Resistência e Liberdade 3€ bilhete normal, 1,5€ <25, jovens entre 13-23 residentes em Lisboa - grátis

23atémar

ImagensdoFadonaArte Portuguesa Exposição

Museu do Fado, Lisboa

Entrada com o bilhete de acesso ao museu (5€ normal, 2,50€ 13-25 anos)

28

JessicaBackhaus:The natureofthingsand indicationsofthesea

Galeria Carlos Carvalho Arte Contemporânea, Lisboa, segunda a sexta, das 10- 1930H, sábado, das 12- 1930H Não há informação sobre preços

atédez

Exposição

30

Canto,deHelenaAlmeida

Diferença Rua São Filipe Neri, 42, cave (Rato) Ter-Sex 14-19H, Sáb 15-20H Entrada livre

11atéjan DiafragmadeVhils Exposição

Galeria Vera Cortês, Rua João Saraiva, Lisboa Abre de terça a sábado (terça - sexta das 14 às 19H, sábados das 10-13H e 14-19H)

Entrada Livre

AequipanoNeFdeseja-teum felizdezembroeumótimoano novo,cheiodeprogramaçãoe atividadesculturais!Aindanão nosdestenenhumasugestão? Podessemprefazê-lopelas nossasredessociais! Esperamosqueaproveitesa interrupçãoletivapara aumentaresatuafrequênciaa eventosculturais.Nãote esqueçasdeconsultarasnossas sugestõessemanaisno Instagram!

26atémar

OBelo,aSeduçãoea PartilhaObrasdaFundação GaudiumMagnum-Mariae JoãoCortezdeLobão Exposição

Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa, Terça a domingo 10-18H

Entrada com o bilhete de acesso ao museu (bilhete normal 10€, 5€ 13-25 anos, GRATUITO se se usar o regime dos 52 dias de gratuitidade)

23

atéfev "OMóveleoImóvel"de LucianaFina Exposição

Museu Neorealismo, Vila Franca de Xira Entrada Livre

atémai Exposição

05

“Resistir!OsPortuguesesno SistemaConcentracionário doIIIReich”

Curadoria de Fernando Rosas, Ansgar Schaefer, António Carvalho, Cláudia Ninhos e Cristina Clímaco

Museu Neorealismo, Vila Franca de Xira Entrada livre

Cinema; Teatros; Concertos.

04-dez.

Cinema 30 dez.

dez.14

Concerto

TheLuckyDuckies:Lucky Christmas

Capitólio, Lisboa, 21h30H Entrada livre, sujeita à lotação do espaço e mediante levantamento prévio de bilhete no local, no dia do espetáculo, a partir das 20h30H (máximo dois bilhetes por pessoa) .

atédez

Teatro

Cinemateca Portuguesa

Estudante = 2,15 € (por sessão); Estudante de cinema = 1,35 € (por sessão) Ciclo"ViagensPelaNoite OMundodeAnatoleLitvak"

08atédez

Asressuscitadas

15

ARuadoInferno

Teatro da Comuna, Lisboa. Quarta e quinta às 19H, sexta e sábado às 21h, domingo às 16H, segundo marcação no 217 221 770 ou reservas@comunateatropesquisa.pt. Bilhete normal 15€, bilhetes quarta e quinta 12,50€

dez.21

Concerto

Co$tanzaapresenta"5Anos deLinhaVerde"c/Orquestra |norma|DJCasiocore

Galeria Zé Dos Bois, 22H 10€

22atédez

Teatro

Ventoforte

Teatro Variedades, Parque Mayer, Lisboa Quartas, quintas, sextas e sábados às 20H, domingos às 16H

Bilhete: 10 - 15€

dez.

Concerto

28

Casa de Teatro de Sintra Quintas e sábados às 21:30H, domingos às 16H.

Bilhete: 5 - 7,5€

Teatro dez.14

Concerto

DurodeRoer4.0(BORF| COLDSWEAT|MANICJESUS +DJsetwtvr&pr0xy)

Damas (Bar - Sala de Concertos), 23h4H 10€

17dez.

27 dez.

Cinema

AmorSelvagem(1946)de JacquesTourneur+O Imigrante(1917)deCharlie Chaplin

Cinemateca Portuguesa, 15:30H (17/12) e 21:30H (27/12)

Estudante = 2,15 €; Estudante de cinema = 1,35 €

HipHopSouEuLive

Sessions:LaysG+ElSayed+ WineTkk+KDOneSeven

Musicbox, 21h30H 6,49€

jan.18

BossBichePoesia:a divagarsevailonge (espetáculo+openmic) EventodePoesia

Prisma (Martim Moniz), 20 H 4€

AVirgínia Woolftinha razão!

Muitas coisas formam a identidade de uma pessoa, as suas crenças e valores, o seu filme preferido, a literatura a que é exposta e na qual se indulge, a música que ouve, aquilo que defende, o seu background e muito mais

No entanto, no caso da literatura, principalmente em tempos mais antigos, o sexo de alguém tinha um papel crucial no que tocava a publicar obras literárias e, sobre isso, a Virginia Woolf tinha razão

Em Um quarto que seja seu (A room of one’s own, na forma original), Virginia Woolf demonstra como conforto, dinheiro e privacidade são cruciais para produzir boa escrita e como a falta destas pôs as mulheres em desvantagem no que toca à possibilidade de publicar obras que sejam consideradas boas A autora demonstra estas disparidades em várias ocasiões do livro, nomeadamente quando a sua personagem é parada à porta da bibliotecatinha de estar acompanhada por um homem para lá entrar ou até nas diferenças entre os jantares de Oxbridge, uma faculdade para homens, bem financiada, com grande conforto e um belo banquete, e Fernham: uma faculdade para mulheres com muito pouco financiamento, onde os jantares eram a mais básica refeição paa sustentar uma pessoa

as críticas de que eram alvo por desrespeitar o seu “verdadeiro dever” como mulheres O verdadeiro nome de George Eliot era Mary Ann Evans; a Charlotte Brontёe publicou Jane Eyre sob o nome Currer Bell e, tal como a sua irmã, também as duas outras irmãs Brontё adotaram diferentes nomes ao publicar as suas obras; Louisa May Alcott, autora da famosa obra Mulherzinhas, escreveu muitas outras obras sob o pseudónimo A M Barnard

Durante séculos, as mulheres foram postas em desvantagem e forçadas a esconder a sua verdadeira identidade no mundo da literatura No entanto , apesar de algumas escolherem publicar sob pseudónimos por diferentes razões, esse já não é o caso, certo?

Porque é que quando é referido que uma mulher escreveu tal livro ainda existem surpresas? E porque é que quando dizemos o nome de uma autora do sexo feminino ainda existe quem assuma de imediato que a autora escreve “romanceszinhos parolos”? Não é o romance um dos maiores e mais notórios géneros literários?

Quando é que o sexo com que uma pessoa nasce vai deixar de desempenhar um papel tão importante na identidade da mesma, no mundo da literatura e fora dele?

Estes diferentes níveis de conforto colocam constantemente as mulheres em desvantagem Porém, não é só nesta obra que se encontram exemplos de como ser uma mulher colocava em causa o estatuto de alguém que desejava escrever e publicar obras literárias Muitas vezes,alguns dos autores mais notórios eram, na verdade, mulheres que escondiam a sua verdadeira identidade atrás de pseudónimos para conseguirem publicar a sua obra ou evitar

Na localidade de Mallard, a população residente é essencialmente negra Contudo, a comunidade esconde um segredo que acaba por se tornar mais visível Geração após geração, o objetivo da comunidade negra de Mallard passa por aclarar o tom da pele, favorecendo-se os casamentos mistos As duas gémeas, de “pele cor de areia húmida”, com olhos castanho-avelã e cabelo ondulado, são exemplo disso Apesar das tentativas de se enquadrarem como “brancas” e da luta contra o estigma, as gémeas, ainda crianças, acabam por assistir à morte violenta do pai e à humilhação da mãe depois disso, apenas por causa da cor da pele

Já em Nova Orleães, a perseguir objetivos distintos, as gémeas acabam por se separar, que até, então, eram inseparáveis Catorze anos depois, acabam por se reencontrar, confrontando-se com vidas totalmente diferentes

Narrado entre o passado e o presente, este livro acaba por contar a história de uma família, ao longo de quatro gerações, tornando-se, por isso uma história intemporal Mas para além disto, este livro é, sem dúvida, sobre identidades e sobre a forma como a, procura da mesma pode demorar uma vida inteira Tanto Stella como Desiree lutaram a vida toda para conseguirem encontrar a sua entidade Se, por um lado, Stella procurou ncontrar a sua identidade junto de uma mília branca, camuflando-se entre ela, orque assim conseguia definir-se, já Desiree, or outro lado, acabou por contrariar aquilo ue a família pedia, assumiu-se como negra e ve uma filha com um homem negro, de ele negra como alcatrão”

AOutraMetade, deBrittBennet

MarianaAleixo

“A Outra Metade”, de Brit Bennet, conta a história de duas irmãs gémeas, Stella e Desiree Vignes, que aos 16 anos fogem juntas da terra natal, Mallard, uma pequena localidade, no estado sulista do Luisiana, nos Estados Unidos da América As gémeas decidem fugir para Noa Orleães, com o objetivo de escapar ao sufoco da sua terra

Este livro mostra, também, como, muitas ezes, a forma como nos identificamos acaba or depender do meio e das pessoas que nos deiam, que podem acabar por prender e mitar em algo que não somos Apesar de o rem feito em sentidos opostos, uma no entido de se tornar “branca” e outra de sumir verdadeiramente a cor da sua pele sem medos, tanto Stella como Desiree só se sentiram realmente livres para serem quem queriam quando se libertaram das amarras da sua pequena localidade A identidade está muito ligada à liberdade individual e é isso que este livro procura mostrar ao acompanhar a história desta família, até porque numa parte mais avançada da história, é nos contada a história das filhas das duas gémeas É nesta parte que encontramos uma outra forma de identidade A filha de Desiree, Jude, já crescida, acaba por namorar com um homem trans Apesar de diferentes, ambas são formas de identidade, que em muito são afetadas e, por vezes, incompreendidas por muitas pessoas, mas que muito definem alguém

Fonte: George C Beresford
Fonte: George C Beresford; Foto: Wook
BeatrizMartins

Entendero Afeganistão atravésdo cinema

“OCinemaAfegãoexiste.Apesar daguerra,damorte,datristezae dadeslocaçãoforçada,eleexiste nasuaforma,mesmoque passandodespercebidopeloresto domundo.

Afghan Nomads (1974), de Norman MillerNo norte do Afeganistão, a presença de nómadas é comum Muitos Maldar - aqueles que possuem (“-dar”) gado (“mal-”) - não conseguem pagar um terreno, muito menos uma casa Como tal, viajam pelo território afegão várias vezes ao ano, procurando as melhores condições para as suas famílias e para as suas ovelhas, cabras, burros e camelos - as suas únicas posses Na imagem, observamos, mais do que um pai, um sábio e pensador Este homem expressa em poucos minutos um problema transversal a décadas de pobreza e desigualdade no seu país Num país seco, um terreno irrigado é raro e praticamente inacessível Vivendo constantemente em movimento, de tenda em tenda, a sua única fonte de rendimento são os seus animais, os quais valoriza como sendo o seu único tesouro Para isso, tem a ajuda dos seus filhos, para os quais a escola nem é uma opção A sua família não tem capacidades para financiar o estudo das crianças, por mais que este pai defenda firmemente que o lugar das crianças é na escola, onde aprenderiam “a conhecer-se; a pensar por si, como seres humanos” Poderá uma criança empobrecida, explorada pelo sistema, sem casa, pensar em si mesma como um ser humano? Terá ela espaço para ser, de facto, humana?

Afghan Women (1974), de Nancy Dupree e Josephine Powell - A mulher afegã tem um sorriso intemporal, filmado vezes sem conta por Nancy Dupree e Josephine Powell Através dele se exprime a felicidade de estar em comunidade, de contar histórias a quem as quer ouvir, de fazer arte com as suas próprias mãos Por estas mãos passam tecidos por colorir, pães acabados de sair do forno, e crianças felizes por poder fazer parte Na escola, vemos apenas aquelas cujos pais pertencem ao governo No filme ouve-se: “A escola é boa para os rapazes, mas não para as raparigas” Hoje, mais de um milhão de raparigas afegãs estão proibidas de ir à escola pelas autoridades Os pés descalços das mulheres em Afghan Women navegam uma terra que, hoje, já não é a mesma pela qual caminhavam há 50 anos A mulher afegã veste a cor e a força, canta o trabalho e a simplicidade, cria a roupa, a comida, a casa e a vida O que recebe em troca?

MiguelMartinseClaraFigueiredo

Afghan Women (Mulheres afegãs, 1974) NancyDupreeeJosephinePowell

Lezate Divanegi (2003) + Buda az sharm foru rikht (2007), de Hana Makhmalbaf - “Para prestarmos homenagem à paisagem é preciso morrer de esforço nela ”

O que faz com que, até hoje, pouco se fale de uma ideia de cinema afegão que não seja organizado por forças externas aquelas pelas quais entendemos o cinema afegão como nómada, e que, mais do que isso, se desdobram como fatores que há muito envolvem as condições de vivência no país? Não é por acaso que o livro seminal sobre cinema afegão, o que em si não é dizer grande coisa, tenha como título O Afeganistão no Cinema e não O Cinema do Afeganistão

Hana Makhmalbaf, uma iraniana, fez (e não mostra parar de fazer) grande cinema. Algum desse cinema, é o caso de ambos Lezate Divanegi e Buda az sharm foru rikht, foi rodado no Afeganistão, sendo o primeiro dos dois um filme-bastidores, de montagem rimática, filmado por uma Hana de catorze anos, que confidencia as ocorrências da préprodução de Panj é Asr (2003) filme da sua irmã mais velha A dialética entre a equipa de filme iraniana e a população afegã salienta-se precisamente numa crença (ou falta dela) no cinema Ao passo que o Afeganistão é visto por outros como uma paisagem fértil para um império fílmico, os próprios afegãos, de quem Samira Makhmalbaf tenta fazer estrelas de cinema (é exatamente a promessa de glória que não com-

puta), não o conseguem ver dessa maneira Ora um filme, algures entre identidades, numa dialética concretizada entre dois pontos de vista (ou desejos) de cinema

Quatro anos mais tarde, Hana Makhmalbaf converge a tese passada num filme sem uniformes, concretizando a alienação afegã de uma época pós-talibã, a partir de um “Ano Zero” Tal como em Rossellini, as crianças são, simultaneamente, o veículo da esperança e a evidência do desastre Se há quem diga que o interesse da crítica de cinema passou da caligrafia para o preço das canetas, o esforço que encontramos no cinema de Makhmalbaf é histórico: no sentido em que dá a ver uma paisagem que já se considera adquirida, na maneira como resgata um legado de cinema, evocando-o, mas mais importante, na maneira como imagina uma posterioridade onde o cinema afegão não faz mais sentido do que já faz, mas onde o seu lugar é devidamente atendido, independentemente da sua viabilização comercial ou pretensões festivaleiras O Cinema Afegão existe Apesar da guerra, da morte, da tristeza e da deslocação forçada, ele existe na sua forma, mesmo que passando despercebido pelo resto do mundo Ao existir, o Cinema Afegão provoca, disturba quem o vê Força-nos a dar de caras com uma realidade dura, desconfortável e perpetuada por várias forças políticas dentro e fora deste país

Budaazsharmforurikht(BudaCaiudeVergonha,2007),deHanaMakhmalbaf

Sobreaexposiçãotemporária «DesconstruireColonialismo,Descolonizar oimaginário»noMNE

No passado dia 30 de outubro foi inaugurada no Museu Nacional de Etnologia a exposição temporária “Desconstruir e Colonialismo, Descolonizar o imaginário – O colonialismo português em África: Mitos e realidades”, onde ficará até 2 de novembro de 2025 Perspetiva-se que após essa data se torne uma exposição itinerante tanto em Portugal como no continente africano É uma exposição que se propõe, como o título sugere, a desconstruir os mitos europeus de origem colonial associados a África e aos/as africanas, bem como os mitos associados à própria prática colonizadora portuguesa

Conjugando uma vertente museológica, com a apresentação de peças produzidas em África, e uma vertente gráfica, com textos em painéis flutuantes organizados por cores e temas, esta exposição pretende catalisar «um olhar crítico sobre essa página da nossa história, [porque] é urgente desenvolver uma reflexão nova sobre a perceção do Outro, que permita eliminar o preconceito e desmontar as representações do passado para descolonizar os imaginários e compreender os fenómenos contemporâneos» (Isabel Castro Henriques no capítulo introdutório do catálogo da exposição)

Nesta curta crítica não me dedicarei ao conteúdo escrito desta exposição, que acredito transmitir uma mensagem importante, de modo claro e acessível, algo que se pretende de qualquer museu, sobretudo, nacional Talvez para alguém que vem de um meio em que o debate sobre a negritude e a herança colonial já chegou a outras metas o conteúdo desta exposição seja insuficiente, porém, é necessário posicioná-lo no seu enquadramento social

Nesta ordem de pensamento, é essencial questionarmo-nos sobre para quem foi feita esta exposição À partida, uma iniciativa que traga para si o conceito da descolonização pretende beneficiar aqueles que mais sofrem, atualmente, as consequências do colonialismo No entanto, esta, além de estar patente num museu com escasso acesso de transportes públicos, é sobretudo textual, um formato talvez menos apelativo para uma camada social desgastada pelo trabalho diário e com muito menos acesso à educação formal O que nos leva a crer que esta é uma exposição para um público branco, ocidental e de classe média se desconstruir Resta, então, questionar que benefícios práticos traz esta exposição para a vivência das comunidades afro descendentes marginalizadas, que no fundo, continuam a ser faladas na voz dos ex-colonizadores

“Oquenoslevaacrerque estaéumaexposição paraumpúblicobranco, ocidentaledeclasse médiasedesconstruir.”

Exposição Fonte:EdiçõesColibri

A primazia do texto deixa os elementos visuais aquém das suas potencialidades Por um lado, o tamanho reduzido das fotografias/documentos dificulta o entendimento e a relação do público com eles Assemelham-se a um complemento ao texto que pode ou não ser consultado Deu-se até a situação caricata de o vigilante da exposição me aconselhar a utilizar a câmera do telefone para ampliar as imagens Também se dá o caso de a mesma foto ser utilizada em diferentes secções temáticas mas com uma legenda diferente, que torna ambígua a sua compreensão Por outro lado, é também questionável a participação de objetos africanos nesta exposição, que a curadoria pretende “fazer falar” sobre a complexidade das organizações sociais, económicas, religiosas, políticas mas também culturais, racionais, artísticas, em África Uma peça que não nos é culturalmente familiar carece de mais do que uma pequena legenda para poder falar Desde muito cedo que somos acostumados a esse tipo de materialidade africana, nem que seja pela decoração de casa dos nossos avós O interesse seria antes potencializar novas compreensões destas peças que fossem além da estética através, por exem-

plo, de recursos audiovisuais Além disso, é também muito questionável a agregação de peças numa vitrine, com base num tema como «Poder em África: Símbolos de Autoridade», utilizando a categoria “África” com uma identidade e um grupo coeso e homogéneo Por fim, resta referir que a extensão e a exigência de atenção desta exposição tornam necessária uma segunda visita, se pretendermos consultá-la na íntegra Algo que, diga-se de passagem, não é lógico para um museu tão descentralizado e que continua a ser o menos visitado em Lisboa

Com esta crítica não pretendo desvalorizar o trabalho da sua equipa, que trabalhou para uma instituição que vive numa falta de investimento crónica Num pequeno parênteses, refira-se que a última equipa efetiva de investigadores saiu do MNE em 1989 Porém, pretendo deixar, em tom de proposta, a questão: Não seria mais benéfico para a comunidade afro descendente a desconstrução do imaginário colonial ser uma das ferramentas para se tratar o tema da situação atual das pessoas negras em Portugal? Ou seja, colocar a tónica da exposição na situação atual recorrendo a materiais históricos, e também chamando para si essa mesma comunidade que se encontra à margem destas iniciativas culturais?

Não basta pensar em descolonizar, é imperativo decolonizar É ir além da superação do colonialismo e transcendê-lo, dando espaço para que perspetivas não ocidentais contem as suas histórias

Celebremosos 87anosdeAry dosSantos, celebremosa liberdade

Poeta e declamador português, saudado como o "poeta de abril" - devido à sua ação política e à importância que sempre conferiu, na sua arte, à Revolução dos Cravos, José Carlos Pereira Ary dos Santos nasceu no dia 7 de dezembro de 1937, em Lisboa, e morreu no dia 17 de janeiro de 1984, aos 47 anos, na mesma cidade Apesar de descendente de uma família da alta burguesia transmontana - o primeiro Ary dos Santos era bisneto de um oficial do exército miguelista, e o seu pai, médico prestigiado, casou com a trineta do Intendente Diogo de Pina Manique, que era prima direta do 1º duque de Palmela, estando relacionada com quase todas as casas reais europeias, Ary sempre foi um homem rebelde, sem medo de enfrentar as convenções sociais estabelecidas

A sua personalidade livre e rebelde torna-se evidente quando analisamos a sua conduta, um pouco por toda a sua vida: antes do 25 de abril, enquanto Portugal se via assombrado por uma ditadura fascista, assume a sua homossexualidade em plena televisão nacional, sem medo nem pudor; apesar das suas origens mais conservadoras, tradicionalistas e aproximadas ao ideário do regime, converte-se desde cedo à ideologia marxista, defendendo, através da arte, as classes mais desfavorecidas e oprimidas pelo salazarismo; era conhecido por ser frontal e, por vezes, até provocador, expres-

sando-se sempre sem filtros

Numa época em que artistas e resistentes antifascistas eram presos, torturados, violentados e mortos pelo autoritarismo salazarista, Ary dos Santos assume-se como militante de esquerda e opositor ao Estado Novo Cinco anos antes da Revolução dos Cravos, filia-se no Partido Comunista Português, que servirá até ao final da sua vida As suas tendências marxistas influenciaram significativamente a sua obra e o seu desempenho artístico no período pós-25 de abril (PREC – Processo Revolucionário em Curso)

É tarefa difícil integrar o autor numa corrente estética ou literária A sua atitude despreocupada perante a vida e apreço pela liberdade refletiram-se sempre nos poemas e versos que escreveu: sem se preocupar em seguir pressupostos, regras ou linhas estabelecidas pelos movimentos literários que então vigoravam na Europa, Ary procurou expressar-se livremente, contando-nos, através da escrita, como era e via o mundo A sua obra espelha a sua vida: os seus poemas são, por isso, autênticos, excêntricos e subversivos Isto faz com que seja impossível ler um poema seu sem perceber que foi escrito por si, mesmo que procuremos inevitavelmente encontrar semelhanças entre si e os seus contemporâneos, ou até integrá-lo numa corrente literária Misturando aspetos identificados com movimentos artísticos diametralmente opostos, a poesia de Ary exprime nada mais do que a sua identidade, ainda que seja possível encontrar um certo paralelismo entre o neorrealismo e a sua obra, dada a utilização dos seus escritos como forma de luta social e de ativismo político Ary inicia a sua atividade como poeta em 1953, com apenas 14 anos, quando os seus pais publicam o seu primeiro livro, Asas, sem a sua permissão Contudo, a sua estreia efetiva só se dá em 1963, ao publicar a coletânea de poemas A Liturgia do Sangue Em 1969, são selecionados alguns dos seus poemas para a Antologia do Prémio Almeida Garrett e é publicada a obra Insofrimento In Sofrimento, inspirada na crise estudantil de abril do mesmo ano: em Coimbra, os estudantes universitários protestavam contra o regime e exigiam o fim da Guerra Colonial Segue-se a obra As Portas Que Abril Abriu (1975), escrita no seguimento da Revolução de 25 abril de 1974 e subsequente derrube do Estado Novo Além das obras mencionadas, Ary publicou outros livros de poemas e lançou vários discos, onde declama os seus próprios versos e expõe as qualidades inerentes à sua voz expansiva e teatral Gravou ainda textos e poemas de e com muitos outros autores e intérpretes, sendo importante assinalar a sua colaboração com Natália Correia e Amália Rodrigues no LP Cantigas de Amigos (1971), e o duplo álbum onde declama O Sermão de Santo António aos Peixes,

do Padre António Vieira

Mas falar de Ary dos Santos não é só falar de poesia, de escrita, de literatura: é também falar de música Ao longo dos seus escassos 47 anos de vida, escreveu mais de 600 poemas para canções, interpretadas por artistas como Carlos do Carmo, Simone de Oliveira e Fernando Tordo Participou numerosas vezes no Festival da Canção, sagrando-se vencedor em 1969, com Desfolhada, interpretada por Simone de Oliveira; em 1971, com Menina do Alto da Serra, interpretada por Tonicha; em 1973, com Tourada, de Fernando Tordo; e em 1977, com Portugal no Coração, do grupo musical Os Amigos Destacam-se ainda Estrela da Tarde, do fadista Carlos do Carmo, e Cavalo à Solta, do “cantautor” Fernando Tordo, que levou ao festival em 1971 e 1976, respetivamente Desfolhada é, muito provavelmente, o poema que mais se destaca dentre todas as suas participações no festival O verso polémico “quem faz um filho, fá-lo por gosto”, assim como a alusão feita à sexualidade feminina - através do emprego do termo desfolhada, utilizado na gíria popular como sinónimo de perda de virgindade, fizeram com que passasse à história como uma canção rebelde, revolucionária

Autor de fados de renome, cantados e celebrados por todos - como Lisboa Menina e Moça, de Carlos do Carmo, e Alfama, de Amália Rodrigues, a sua ligação ao Fado inicia-se pouco depois do lançamento do livro Liturgia do Sangue, com a interpretação de José Manuel Osório do seu poema Desespero Mais tarde, em 1968, escreve o poema Meu amor meu amor, que consta no alinhamento da obra-prima de Amália Rodrigues - o álbum Com Que Voz, lançado em 1970 Em colaboração com o compositor Alain Oulman, é autor das canções Amêndoa Amarga, Rosa Vermelha, O Meu é Teu e Meu Amigo Está Longe, que marcaram o reportório da rainha do fado

Ary dos Santos; Fonte: Vermelho
Ary dos Santos e Simone de Oliveira no Festival da Canção Fonte: Antena 1- RTP

A sua relação com o fado mostra-se evidente no disco Amália/Vinicius, proibido pela censura do regime salazarista É gravado na véspera de Natal de 1968, na casa de Amália Rodrigues, onde se haviam reunido Vinicius de Moraes, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Maluda e Alain Oulman, numa tertúlia marcada pela troca de opiniões, poemas e canções Todos conversam, Amália canta, os poetas declamam Importa ainda destacar o álbum antológico Um Homem na Cidade (1977), inteiramente concebido com poemas seus, de que sobressaem os temas Um Homem na Cidade e O Cacilheiro

Foi aí que surgiu o pedido de Amália para Ary lhe escrever uma carta Dezanove anos atrasada, essa carta surgiu em forma de disco-documento, como agradecimento à “Nossa Senhora de Lisboa” e à sua verdadeira amizade Nas palavras do poeta, Amália Rodrigues é “uma espécie de rouxinol da noite que primeiro, quase a medo, ensaia a voz torturada e depois, pouco a pouco, a desdobra em toalhas de estrelas que nos iluminam por dentro”

Após o triunfo das forças democráticas no país, com a Revolução de 25 de abril de 1974, Ary participa ativamente em comícios e espetáculos organizados pelos comunistas, onde declama poemas conotados com os ideais políticos do Partido, como Bandeira Comunista e As Portas Que Abril Abriu A sua participação no álbum Canções com Aroma de Abril (1994)juntamente com Manuel Freire, José Fanha, Fernando Tordo e José Jorge Letria, mostranos a importância que a Revolução dos Cravos exerceu na sua vida: o poema Portugal Ressuscitado é o melhor exemplo disso ("Agora/o povo unido/nunca mais será vencido")

São-lhe atribuídos os versos “Todos vivos/Todos nossos/vinte cem ou mil/nenhum de vós é só ossos/São todos cravos de abril” e o poema Retrato de Catarina Eufémia, resistente antifascista morta pelo regime

Não-seréSer?

BárbaraRafael

PLAF!

O despertador toca e finjo que o som estridente veio da minha mãe, claro que como é ela, posso ignorar Se fosse o telemóvel, aí sim estaria em apuros - afinal, tenho de contactar os inúteis dos meus amigos!

Passemos a algo mais interessante: como sou perfeita e consigo manter uma rotina concisa e calma, com a mão esquerda escrevo isto; com a direita candidato-me a Harvard; enquanto as pernas estão em repouso sob os ombros, verdade seja dita, a minha flexibilidade é invejável Bolas! Não estou a gravar, vou rebobinar

O despertador toca e finjo que o som estridente veio da minha mãe, claro que como é ela, posso ignorar. Se fosse o telemóvel, aí sim estaria em apuros - afinal, tenho de contactar os inúteis dos meus amigos!

bo que tudo mudou Saio com a promessa de que regressarei, mais tarde, para buscar os restos que ficaram para trás Deixo-me por toda a parte; fico na cadeira do autocarro e instaurar-me-ei nas calças de ganga do próximo passageiro; hospedo-me nas pernas do vizinho do lado, o idoso que consagra a vida e que já foi muito mais do que eu Merda! Vou chegar atrasada Não tendo coragem para entrar, fico na esplanada a ler para poder abrir o cérebro de outro enquanto viajo no meu Novamente, derreto-me naquelas páginas de pensamentos roubados Desgraçados! Não conseguem ver que escrevi aquilo?

Nestes87anosde ArydosSantos, celebremosasua obra,asuavida,a liberdade.

Passemos a algo mais interessante: como sou perfeita e consigo manter uma rotina concisa e calma, com a mão esquerda escrevo isto; com a direita candidato-me a Harvard; enquanto as pernas estão em repouso sob os ombros, verdade seja dita, a minha flexibilidade é invejável Bolas! Não estou a gravar, vou rebobinar Caros leitores, exigentes com certeza, estarão a perguntar que raio de escritora não percebe que está a repetir ideias, ainda por cima tão triviais? Pior, sem qualidade! Esqueceram-se que não estão a falar com uma escritora, mas uma aluna falhada que jamais será aclamada

Enfim, percorro com lentidão a rotina penosa de saída do paraíso Deixo-me ficar no pelo, macio, do cão; na testa enrugada da mãe; no desejo de permanecer para sempre naquele espaço onde o tempo não passa, contudo, quando olho para eles perce-

Insistem em chamar-me pelo nome, como se isso me pertencesse; como se não tivesse ganho o prémio Nobel; como se a medalha olímpica não fosse minha Ser-se isto e ser-se aquilo; pôr ponto aqui e vírgula ali, ortográficas regras as cumprir preciso é! Ali estão elas, nos meus amigos, partes que me pertencem, porém, não têm o meu nome afixado Como? Se sou feita daquelas palavras, pensamentos e estética Singular não sou, mas não sei comprová-lo Precisaria de um microscópio e de um cientista para que fossem detetadas as minhas impressões digitais na pele dos outros Encontro-me em todo lado Pelo dia adentro divido-me em pequeninas mutações Não o fazemos todos? Divido-me de tal forma que as perco a todas e, no regresso a casa, não existem respostas, somente perguntas Posso ser quem não sou?

(Este não é um texto autobibliográfico, copiei-o em qualquer lado)

InêsFonseca

ueriam m rojeto rande e erderam a dentidade. odos se reocupam om o ue ão e o ue encionam er. Eu ão sei o ue sou ou o ue vou ser, or sso ecorro aos randes para o aber. aria elho da osta já sto ez, mas unca screveu para um ornal de aculdade omo ste. alvez se ela oubesse o ue se assa por qui, nem uereria articipar. anta reocupação com rros rtográficos e assagens por dições, para epois ofrer com a ossibilidade de nem igurar nas íseras áginas. E se screvessem por screver, se eixassem o ensamento e as mãos luírem? ambém são ssim nas ossas elações morosas? estritos? Não enham para os eus lados. A inha dentidade é frontar a inha rópria dentidade. E a ossa. frontem-na e não se eixem icar. uestionaram e utaram por anto até qui, hegaram a rritar-me por erem emasiado nconformados, e gora stamos qui, em guas de acalhau. O mbiente é reenchido por entos de udança (ou anza, imam), as opas são quosas e o pão é eco. E este exto vai ser ncafuado numa ágina com utro, já o ei sem o aber. Não ei uem sou entro dos imites de scrita ue me mpõem, imites de ida. unca uis screver sto, nem osto deste stilo, mas hegaram-me ao elo da arte. referia ue me aspassem a ele com um sfregão erde a irarem-me o ue faz parte da scrita. d e n t i d a d e a a i s o u a e n o s

InêsLopeseLourençoSalgueiroRosa

EntreVitóriase

Desafios:Como oDesportome

Moldou

InêsLopes

Do atletismo ao hip-hop, da ginástica ao ballet, da natação ao basquetebol, desde os 3 anos que o desporto faz parte da minha vida 15 anos depois, não tenho dúvida de que foi algo que me moldou enquanto pessoa, e que representa uma parte essencial de quem sou

Os benefícios do desporto, tanto para a saúde física como para a saúde mental, são conhecidos por todos, mas só quem pratica ou praticou alguma modalidade sabe como esta pode moldar profundamente a personalidade de uma pessoa

Ser estudante-atleta é acordar cedo para ir treinar e deitar tarde para ficar a estudar, é correr para os treinos e correr para as aulas, é não ter tempo para fazer nada e conseguir fazer tudo, ter de fazer tudo, é ter de ser o melhor estudante e ter de ser o melhor atleta Isto pode parecer algo negativo, e é, de facto, exaustivo, mas isto sou e sempre fui eu, isto foi aquilo em que o desporto me tornou, e que eu, hoje, não trocaria por nada

Foi através do desporto que aprendi, desde cedo, a lidar com derrotas Aprendi a controlar os nervos e a gerir o meu tempo de forma mais eficaz O desporto tornou-me numa pessoa mais bem-humorada, mais ambiciosa, mais confiante e mais atenta Sou perfecionista, dedicada, aplicada e focada, sei trabalhar em equipa e sei sofrer, sei ganhar e, sobretudo, sei perder, tudo graças às várias modalidades que já pratiquei

Sou universitária e sou atleta: não sou de festas, não tenho tempo livre, ando sempre a correr de um lado para o outro (literal e figurativamente), os meus objetivos são demasiado ambiciosos, quando algo corre mal, tudo corre mal Mas sou feliz Chamem-me doida, mas sou verdadeiramente feliz

Athletic Bilbao Clube espanhol, símbolo maior do País Basco e um dos emblemas que carrega maior identidade no futebol espanhol e europeu No final do século XIX, Bilbao era uma das principais zonas industriais da Europa, e os estaleiros de Nervión, local de trabalho de muitos cidadãos ingleses, serviram de fonte de difusão do desporto-rei Os ingleses começaram a organizar desafios entre eles, onde rapidamente se juntaram os Bilbaínos e daí até à fundação do clube em 1898 foi um pequeno passo De 1898 até 1911, nos primórdios da instituição, jogadores estrangeiros, maioritariamente ingleses, chegaram a vestir as cores do clube De 1911 até hoje, só jogadores nascidos ou formados no País Bascos podem envergar o manto dos “Leones”, e é aí que o Bilbao marca a diferença para o resto do mundo A visão política e social esteve sempre presente nesta região, sendo ativos opositores de Franco que inclusive obrigou o clube a mudar de nome para “Club Atlético de Bilbao" Recuperado o nome original, este pequeno abalo de identidade, só serviu para vincar ainda mais o sentimento basco que caracteriza o clube até aos dias de hoje

Com a bola a rolar no relvado, foram o primeiro clube espanhol a ganhar a Copa del Rey em 1903, ao que juntaram desde aí mais 23 dessas taças, perfazendo um total de 24 na sua galeria Detentores de 8 campeonatos espanhóis, inclusive um campeonato invicto (1829/1930), feito apenas igualado pelo gigante da capital Real Madrid, detendo também a maior goleada da história da competição em 1931, num Athletic Club 12-1 FC Barcelona e a par do Real Madrid e do FC Barcelona, serem as únicas três equipas que nunca desceram de divisão O emblema de Bilbao também conteve nos seus quadros o terceiro melhor marcador de sempre da La Liga, o lendário Telmo Zarra com 250 golos, imediatamente abaixo de Cristiano Ronaldo e Lionel Messi No fundo, na lista histórica do futebol de “nuestros hermanos”, o Athletic Club é o medalha de bronze e ocupa o terceiro lugar apenas abaixo dos colossos mundiais Real Madrid e FC Barcelona

Saara a pé e descalços, fugindo do Gana, com Iñaki na barriga da mãe, à procura de um futuro melhor, encontrando-o em Bilbao, onde foram acolhidos com amor e carinho Criados com os princípios bascos, acabaram ambos por se estrear pela equipa do coração; Iñaki, o mais velho, estreou-se em 2014 e tornou-se no primeiro jogador negro a marcar pelo Athletic em 2015, já Nico, estreou-se em 2021 e desde aí não parou a sua meteórica ascensão, sendo inclusive um dos melhores jogadores do Euro 2024 Ambos representam a cultura basca, o amor pela região e a gratidão pela forma como foram acolhidos, que reforça mais uma vez, o brilhante lado social de Bilbao Juntos foram parte fulcral da conquista da Copa del Rey que lançou finalmente a Gabarra ao rio Nervión

O ano de 2024 marcou um novo apogeu para a turma de Bilbao: 40 anos depois da última conquista, os bascos voltaram a vencer um troféu, a Copa del Rey de 2024 Na final, o conjunto de Ernesto Valverde triunfou sobre o RCD Mallorca nas grandes penalidades (4-2) A equipa constituída na sua totalidade por jogadores nascidos no País Basco (como os campeões europeus Unai Simón e Daniel Vivian ou o herói da grande final, Álex Berenguer), também contém a sua cota-parte de jogadores formados no País Basco, destacando a dupla de irmãos Iñaki e Nico Williams Filhos de pai ganês e mãe liberiana, que atravessaram o deserto de

A "Gabarra del Athletic Club" é o mais bonito símbolo de identidade do clube O navio construído em 1960, nos estaleiros de Celaya por encomenda do Porto Autónomo de Bilbau, assume-se como um importante ponto de contacto entre os Bilbaínos e a instituição Em 1983, à porta da última jornada do campeonato espanhol, o Bilbao estava um ponto atrás do Real Madrid Neste sentido, o presidente da altura prometeu que se vencessem o campeonato, fariam uma festa especial Dito e feito! O Real perdeu e o Athletic ganhou o seu jogo e o campeonato, procedendo a uma comemoração “suis generis” ”Por el río Nervión bajaba una gabarra" era a frase mais entoada pelos adeptos do clube na altura, e a Gabarra desceu assim o rio pela primeira vez, juntando milhares de Bascos Durante 40 anos, as águas do rio não receberam a visita do barco, até este ano No dia 11 de Abril, a Gabarra voltou a desfilar pelas águas de Bilbao para celebrar a vitória na Copa Milhares de Bilbaínos acompanhavam-na nos seus próprios barcos, casas ou até no próprio porto, tornando o momento memorável e inesquecível

O País Basco é especial, o Athletic Club é histórico, juntos criam uma idiossincrasia única e irrepetível em qualquer outro lugar do mundo, não fossem eles os reis da identidade

Iden deD

Identidade exclusivas com objetos inani diversidades, reação social” retirada da wik identidade c palavras, trat saber sentir

Todos nós deslocar soci interminável, sociedade e d identidade m poderia dizer como a conte 10 anos como me inspirar em de heterónim orientações d cada ser h fabricadas po sujeitas ao co Assim, e at de alternativa concretizar at que nos confe que, até prova Ministro dos tenho a lutar c desesperada, gosta de mim, Por fim é sério, cabe à “identidade” não só a min meus sentidos sobre a realid seja apenas u virtual, se quis que achava questões, não

“Aiden edivisív cada sujei

Manualde Instruções

BárbaraSoares

Quem me fez perdeu-se a meio, ficou com receio, talvez

Deixou o trabalho inacabado, pô-lo de lado e nunca mais se lembrou dele Ficou empoeirado

Quem me fez foi de certeza homem. Decidiu ignorar as instruções sem fazer quaisquer correções

Vim com defeito de fabrico, demasiado e não o suficiente, sem força para ser diferente, o eco de um sonho ausente

Quem me fez não soube ver o potencial do que é baço para voltar a brilhar se se ignorar a impressão inicial.

Agora sou fragmentos, um quebra-cabeças em desordem, disperso num mar sem norte, um vazio cheio de lamentos

Talvez um dia o pó assente e eu entenda e aceite que sou feita de partes imperfeitas e não, por isso, menos verdadeiras

HenriqueReis(submissãoExterna)eLeonorRibeiro

VidaeLutadeAmílcar Cabral

HenriqueReis

Nascido em 1924 na Guiné-Bissau, filho de cabo-verdianos, Amílcar Cabral foi um importante dirigente político, teórico com importantes contribuições no anticolonialismo e anti-neocolonialismo, estrategista militar e agrónomo Trabalhou, em 1944, na Imprensa Nacional de Cabo Verde, antes de ir estudar para o Instituto Superior de Agronomia de Lisboa, período em que se envolveu com grupos anti colonialistas e opositores da Ditadura Fascista Trabalhou na Estação Agronómica de Santarém e, em 1952, foi trabalhar como agrónomo para a Guiné; durante este tempo, pôde conhecer bem o território e a realidade do país Após fundar a primeira Associação Desportiva, Recreativa e Cultural da Guiné, aberta a assimilados e indígenas, é obrigado, pelo governante da província, a emigrar para Angola, onde se junta ao MPLA Em 1956, torna-se um dos fundadores e secretário-geral do PAI (Partido Africano da Independência), com o objetivo de liderar a resistência contra o domínio colonial português Entre outros eventos da altura de luta política na Guiné, destaca-se a greve de larga escala de trabalhadores do porto de Pidjiguiti em 1959, que é violentamente reprimida pelo governo provincial, com a morte de 50 trabalhadores e muitos outros feridos e presos Em 1962, o PAI muda a sua designação para PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) e, em 1963, inicia-se a luta armada com o ataque ao quartel de Tite Isto acontece após o governo fascista português negar uma negociação com os guineenses por melhores condições de vida e de trabalho, optando pela repressão de protestos, censura, prisão e assassinato de opositores do regime, tal como em Portugal

O PAIGC conseguiu, rapidamente, controlar grandes áreas rurais, organizando a população local já revoltada contra o regime português e obtendo apoio internacional, especialmente do bloco socialista Portugal, embora militarmente superior, sofreu muitas baixas e derrotas Entre as razões está o forte apoio dado pelas populações locais ao PAIGC, o recrutamento de novos soldados das populações locais dos territórios conquistados, onde era construída a base de um Estado nacional e eram feitas iniciativas de educação, saúde, agricultura e justiça, fortemente apoiadas pelos habitantes locais Eram utilizadas táticas de guerra de guerrilha, assistidas pelo conhecimento dos rebeldes sobre o terreno, que tem vastas selvas onde os rebeldes se podiam esconder de forças militares convencionais e fazer emboscadas, tendo em mente um conflito prolongado O génio político e militar de Cabral e de outros dirigentes também não pode ser desvalorizado, bem como o crescente isolamento internacional de Portugal e as guerras de independência também em Angola e Moçambique Amílcar Cabral é assassinado em 1973, mas logo em setembro do mesmo ano é declarada a independênciadeGuiné-Bissau

Hoje, Amílcar Cabral é frequentemente visto como uma mera figura antirracista e anti-xenófoba, quando na verdade é muito mais do que isso Inclusive, chega a ser comparado a Martin Luther King, reconhecido por todos como figura importante do Movimento dos Direitos Civis nos EUA e como antirracista, quando foi também (embora raramente mecionado) opositor de guerras imperialistas como a do Vietname, do complexo industrial-militar americano, da negligência do governo americano em relação aos trabalhadoresecríticodocapitalismo

Ainda hoje, a vida de Amílcar Cabral é um exemplo e deve continuar a servir deinspiraçãoparaasvozesdaluta Comoditopelomesmo,

“Alutanãoéparasubstituirmososportugueses porafricanosnogoverno,masparadestruirtodoo sistemadeexploraçãodoHomempeloHomem, independentementedasuacor”

BurlasComunsnaIndústria daCulturaedasArtes

LeonorRibeiro

Não faz qualquer sentido pagar-se para trabalhar, logo, não faz qualquer sentido pagar a uma agência de casting para que nos agencie ou a uma editora para que publique o nosso livro

Estas afirmações podem parecer evidentes à primeira vista, mas muitos artistas emergentes acabam por se deixar levar por burlas cada vez mais comuns - e que só parecem justificáveis aos menos experientes

O esquema é sempre o mesmo: depois de receber a nossa proposta, a editora ou agência vai dizer-nos que tem clientes importantes (SIC, TVI) ou que tem mercado nas mais variadas feiras ou festivais - como se isso não fosse um requisito básico nestas indústrias

Passamos à segunda fase, em que nos apresentam tabelas de preços e planos de pagamento Claro que nunca dizem simplesmente “paguenos!”, mas inventam justificações para os preços:

No caso das agências de casting, alegam que precisamos, por exemplo, de fazer uma sessão de fotografias para ter material a apresentar aos clientes, e que sem isso a nossa inscrição não terá efeito Notem que estas sessões fotográficas não são nada baratas no mínimo são duzentos euros, chegando muitas vezes aos mil!

As editoras vanity, por outro lado, solicitam aos autores que adquiram exemplares do próprio livro, dizendo que necessitam dessas vendas garantidas e que esse é o procedimento normal para a publicação Por exemplo, a Oficina da Escrita solicitou-me que lhes pagasse 1120 euros para garantir que 80 exemplares do meu livro fossem vendidos - ou seja “vendidos” mas a mim mesma Este montante específico é exorbitante mas qualquer outro, por mais pequeno que seja, deve ser recusado Não se paga, ponto

Qualquer editora com boas intenções (são cada vez mais raras) ao achar um manuscrito digno vai publicar o livro e facilitar as várias etapas (revisão, paginação, ilustração, edição, publicidade) de forma gratuita, partilhando os eventuais lucros com o autor e é esse, sempre, o correto procedimento Não se paga para ter trabalhos expostos (seja fisicamente ou nas redes sociais) nem para participar em concursos e, claro, escusado será dizer que é igualmente ridículo solicitar-se a um artista - que faça parte de qualquer tipo de antologia ou colaboração - que pague para ter acesso a ela ou para adquirir um exemplar para si próprio Se só quem tiver dinheiro tiver acesso à indústria caímos num círculo vicioso que privilegia apenas o artista que já é privilegiado Estas atitudes são até um enorme insulto, pois são uma prova da falta de confiança no sucesso e eventual lucro do autor no mercado “Queremos que pagues para trabalhar porque não acreditamos que o teu trabalho seja promissor”: é a isso que soa este discurso Tenham cuidado e não caiam nestas burlas Parte de cada um de nós recusar este tipo de propostas e consciencializar o maior número de artistas, para que estes coletivos, editoras, agências e empresas deixem de prosperar através de scams cada vez mais comuns Já agora: faço sim questão de lhes chamar scams: por várias vezes me foi dito que estas são apenas propostas que “ninguém é obrigado a aceitar”

Amigos: todas as burlas e scams são propostas - que no caso induzem em erro Aliás, ninguém é obrigado a aceitar qualquer burla, seja ela em que contexto for Vale sempre mais fazer uma edição de autor: os custos são menores, justificados, e é o autor quem lucra com a venda dos livros

Estejam atentos aos concursos, bolsas de criação e residências artísticas que vão surgindo e, acima de tudo, apoiem os artistas portugueses, para que possamos ser cada vez mais a fazê-lo

Sesóquemtiverdinheirotiveracessoà indústriacaímosnumcírculovicioso queprivilegiaapenasoartistaquejáé privilegiado.

RaquelFranciscoeMargaridaRuna EscritaCriativa/Crónica

Soucomosou

Olho em frente e não me reconheço

Na cascata negra onde agora permaneço

Não vejo o fogo do qual forjei ferros

Nem a luz guia no meu devaneio

O sonho puxado a ferros morreu

E de encontro à luz cambaleio

Como quem cai nos braços do sono

Poço infinito sem fim

E se de joelhos caio, de joelhos fico

Mutilada como um aDeus num crucifixo

E o aleluia já não é um cântico

Mas um suspiro aliviado (e finalmente liberto)

O eu que fui E que nunca chegarei a ser Adeus aDeus Adeus

Assim que entro na feira, corro em frente, e separo-me de quem me trouxe, não só aqui, como ao mundo Levanto areia atrás de mim; tornado sedento de algo que preenche, por curtos momentos, o seu coração oco.

A casa de espelhos encontra-se vazia, e penso em como são maravilhosos os vários reflexos do meu eu perplexo. Em cada espelho uma realidade. Olho em frente e não me reconheço E, ainda assim, pareço mais real que todas aquelas figuras de que corro atrás e fico aquém A cara distorcida torna-se mais bonita, porque ao não ver beleza, sinto-me plena Mais que alguma vez antes e, não obstante, sempre falsa Vazia de significado A imagem à minha frente chora, mas quando levo as mãos à cara, vêm secas e confusas Giro como um sol decadente, e o choro aumenta Soa dolorosamente real e algo quebra em mim

Estou sozinha, descalça, encadeada pela luz ofuscante dos que julgam como quem nunca pecou Os reflexos já não estão distorcidos, mas mostram tudo o que vejo quando me olho ao espelho (e odeio tudo) Ainda assim, atravesso o vidro, perco a pele e os defeitos e, no final, descubro que não sou nada mais que nada e é bom viver assim Sabe bem não ser perfeito

Fil(h)armonia

Cresci nos corredores da filarmónica, no seio de uma família onde o associativismo corria nas veias Poucos são os primos que não tocaram lá um ré que fosse O meu avô Fernando foi músico e diretor dessa filarmónica muitos anos, até que a idade o fez passar a (assíduo) espectador Não sei exatamente de onde partiu a sua carreira, mas com a minha idade já tinha alguns anos de serviços nas terrinhas

Ironicamente, a minha mãe começou a tocar noutro lado Recusaram dar-lhe instrumento onde estava e mudou-se para a filarmónica da aldeia, a “do meu avô” Foi lá que os meus pais se conheceram, tipo filme: ele, trompetista, da aldeia e com conjugações de roupa questionáveis; ela, saxofonista, da cidade e filha do diretor De amigos a namorados, o resto é história Enquanto a minha mãe manteve a música como pano de fundo, o meu pai fez do trompete a vida dele na Charanga da GNR Giro

Sempre fui fomentada a seguir música à parte da escola e comigo seguiram uma panóplia de instrumentos, onde cada um marca um capítulo da minha crónica artística Uns continuaram e outros ficaram pelo caminho Faz parte Sou mais de cordas: de guitarra, de piano, ou até mesmo de cordas vocais

O senhor Fernando partiu em dezembro, no sítio que mais gostava, mas deixa cá uma herança associativa ímpar, para sempre imortalizada na marcha composta para ele O meu avô foi uma peça fundamental na engrenagem daquela filarmónica, estando ao seu serviço por mais de 50 anos e nela viu passar primos, sobrinhos, filha e genro. Por sinal, nunca toquei na banda e não sei se não ver nenhuma das netas num serviço alguma vez o incomodou Mas os clarinetes e as trompas nunca me puxaram

Ainda que a adesão da nova geração de Ribeiros e Ferreiras já não seja a mesma, orgulho-me de dizer que sou tão música como sou gente e só tenho a agradecer ao legado familiar que me abriu esta porta, que me mostrou a importância das pautas e dos acordes e que me ensinou o valor das escalas e meios-tons.

Hoje, transfigurei-me em tunante, onde encontrei uma família afetiva que valoriza algo tão bonito como a melodia bemconstruída e um passo corretamente marcado Não há terapia que apague o luto e nunca haverá homenagem que não custe

“Esseéopreçoapagarpelocarinho quemuitasvezesnãonosapercebemos queexiste.”

Oquenostorna realmentenós?

Nos tempos que correm, mostrar a nossa verdadeira identidade é um jogo impossível de jogar (ou é nisso que queremos acreditar) Porquê? Devido à opressão da sociedade, do mundo abstruso e demasiado volátil que nos rodeia

É muito difícil perguntar: “O que faz de nós, realmente nós?” Não só porque construímos a perceção de que não há tempo para tal (que dedicar sequer um minuto é um desperdício), mas também porque é cada vez mais difícil contrariar a onda capitalista da homogeneidade Portanto, torna-se menos complexo não questionar as nossas ações e ignorar a essência, do que cair num fundo poço de reflexão

Muitas vezes, nem sequer nos apercebemos de que nos entregámos ao fingimento Passamos ao lado do que o nosso instinto nos quer tentar dizer em tantas situações, que seguimos repetidamente caminhos que simplesmente não eram para nós Por consequência, arrependemo-nos das decisões efetuadas, pois afinal não se alinhavam connosco

Desse modo, a nossa verdadeira identidade é como um buraco que tentamos tapar com alcatrão Só que a questão estrutural não se encontra solucionada O desafio de mostrarmos quem realmente somos vai muito para além de enfrentar a crítica, é conhecer bem os constrangimentos do nosso contexto social e depois contorná-los o quanto baste para nos sentirmos plenos com a vida que construímos para nós próprios Por outro lado, é também ter ganas de persistir, mandar o medo à fava e navegar pelo nosso interior desconhecido

Por fim, apesar da resposta à pergunta inicial parecer indefinida, talvez a possamos encontrar algures entre as nossas idiossincrasias e a vozinha insistente do nosso coração, que não devemos abafar Possivelmente, a tentativa de encontrar essa resposta (única para cada um de nós) é o primeiro passo para nos descobrirmos na caoticidade e na imperfeição da vida, e aceitar a autêntica tonalidade da luz que emana do nosso ser, aquela a que chamamos de identidade

Programa:

Notas“natalaicas” breves

A ideia para o presente texto surge após a visualização de um episódio do programa: Hora Cinemateca - Magazines, que actualmente é transmitido pela RTP Memória; e no qual se falava do Natal de 1974 E a questão do Natal de 74 tem o seu relevo histórico, pois, e é claro, é o primeiro Natal em liberdade após os tempos da ditadura fascista, e que decorre durante o próprio período revolucionário É dito, a dado momento, que o Natal é, como que, "uma alucinação colectiva"; efectivamente é, tanto na altura como actualmente, com todo um imaginário, doce e infantil, que hoje percorre a generalidade da população, mas que na altura não E chego a essa conclusão após a reportagem que a RTP faz acerca desse mesmo Natal, hoje disponível na RTP Arquivos, e que se intitula: "1974 - Natal de Esperança na Terra Portuguesa" Nela vemos Carlos Rodrigues a entrevistar crianças no Chiado, que andam à compra e à escolha de brinquedos que pedir no Natal, contrastando com as entrevistas que se intercalam, e nas quais se entrevistam crianças e famílias numerosas, pobres, trabalhadoras; e aquando da pergunta a essas crianças - deixando a pergunta de ser "o que pediram para o natal?"passando a ser "se têm brinquedos?", elas respondem que "não"

Também dizem não ter árvore de natal, e uma das senhoras a quem lhe é perguntado "o que farão ou comerão na ceia de natal?", ela responde que simplesmente "umas batatas e hortaliças cozidas" Chega ainda a dizer, no momento em que identifica as crianças, acerca de uma, "tem 15 anos, está desempregado", o que aos dias de hoje, e ainda bem, é inconcebível

Esta disparidade, e diria mesmo, diferença de classes, não se alterou no dia 25 de Abril de 1974, mas abriu-se a porta que permite essa mudança O próprio carácter da entrevista evidencia isso; é um Portugal que sai do fascismo, em que uns vivem na opulência e outros passam fome, um Portugal de prisões e torturas, um Portugal agora liberto A segunda parte da reportagem contém entrevistas a mutilados de guerra, todos eles felizes com o fim da guerra, e contentes por não ter que haver mais mutilados, falando eles das famílias, pais, avós, namoradas, que não terão que ver os seus amados vir da guerra mortos, mutilados ou traumatizados

Foi um Natal de esperança, em que a própria entrevista final a Otelo Saraiva de Carvalho o acaba por evidenciar Havia muita expectativa nessa altura nessa altura festiva O 25 de Abril metera a nu o que se passava no país, a guerra, as prisões, os trabalhos opressores, as desigualdades, a fome, a pobreza Tudo isso foi constactado e havia esperança na resolução desses problemas A nacionalização da banca, a reforma agrária, entre muitas outras reformas desenvolvidas no período revolucionário, foram fundamentais para a elevação e melhoria das condições de vida dos trabalhadores do nosso país Sendo ainda de contar com o fim da guerra e direito à independência das colónias

Isto dá-se devido ao 25 de Abril, o Natal de 74 foi de esperança devido ao 25 de Abril, não houve nem há outra data neste país que tenha conseguido unir o Povo como esta, o que ficou verdadeiramente demonstrado com a imensa massa que encheu a Avenida da Liberdade, na celebração do seu 50° aniversário

Permaneçamos, assim, com essa esperança e fulgor que identificava o Povo português neste período Nem que seja por um Natal em que todos possamos ser felizes, num Mundo Novo sem desigualdades, sem opressores nem oprimidos

Hora Cinemateca - Magazines; Fonte: RTP Arquivos

Avalsasensualentrea vidaeamorte

Duas moscas entrelaçam-se num voo contínuo de anjos São livres, desprovidas do mal, carecem de vergonha, fazem amor em toda a parte, desde o canto mais clandestino à parede mais descoberta Como duas formas nuas, dançam uma valsa para trás e para a frente, a cada três um dois e, de uma vez, engolem-se, consomem o seu parceiro, engordam-se com paixão São um veículo vazio à procura de uma alma que o preencha, comportam-se com um donaire maquiavélico E atrevemo-nos nós, com mão de ferro, a acreditar-nos superiores, atrevemo-nos a matar essas formosas e ridículas criaturas

Se um dia eu morrer, gostava de poder retornar a este mundo como uma mosca, agir a qualquer momento sobre as minhas veleidades carnais, banhar-me na merda dos homens e perceber qual é a matéria de que é esculpido o seu interior, o seu âmago Pergunto-me, por diversão, se um nome faz um ventre Se o intestino grosso do João se chama António, se o útero da Margarida se chama Leonor, se o pénis do Vasco se chama Ulisses

– Quem és tu? – uma jovem pergunta-me enquanto bebo o meu “café” na esplanada

– José – respondo-lhe

– Então é assim, João

– José – interrompo-a, não tenho por hábito interromper mulheres, mas por vezes também a minha boca toma o nome de Luís

– José Estás no meu lugar, José

– A esplanada tem lugares marcados?

– Não, mas essa é a minha cadeira, tem o meu nome, sempre gostei disso, sempre me sentei nela

– É isso que a menina é? – inquiro, sorrindo perante as suas idiossincrasias maravilhosas

– O quê?

– O seu nome, a menina é o seu nome e por isso reconheceu-se nesta cadeira e portanto esta cadeira é sua, correcto?

– Desculpe?

Recordo as palavras dela “Quem és tu?”, não “Qual é o teu nome?” ou “Como te chamas?”, mas sim “Quem és tu?” Eu sou eu: um homem (e quase nem isso sou), não sei se sou José Sei que sou, na maior parte das vezes, picuinhas, pretensioso, inconveniente e, nos meus piores dias, alarmantemente próximo de insuportável Mas também sei que sou belo para alguns, aconchegante para poucos e amável para menos.

Discordo, portanto, daquela ideia de Descartes do “Penso, logo existo”, aliás, defendo exactamente o contrário Acredito que esse mesmo meu pensar enfadonho é o que me leva a crer que a identidade é uma falácia que contei a mim próprio para me sentir melhor com a minha incompetência Poisseparaoutrossoufrio,paraa minha família uma desilusão e para mim mesmo sou pouco mais daquilo que sou para a minha família, qual deles está mais correcto, o eu deles ou o eu meu? Saberão eles melhor quem eu sou do que eu sei? Estarei eu demasiado farto de estar vivo para ser confortável na minha pele? Estar vivo é tão redutivo Estar vivo, apenas isso, estar Estar preso numa corrida de cem metros atéumacaixademadeira

A minha identidade é uma incógnita e eu decidi dar-lhe um nome: Drosophila melanogaster, sou uma mosca Bato asas e cuspo para o lado enquanto rodeio os faróis dos carros passantes,recusandoovícioelegantedoadeus Sem cadeira, dirijo-me então à Torre B, sem perspectiva do que me resta, observando janelas e janelas e janelas, como Golias contra este pequeno rapaz que o acurrala Sou ainda jovem e, no entanto, na minha vida cabem cinco ou seis vidasdealgunsmenosafortunadosdoqueeu

Enquantocaminho,retiroentãoumacanetado bolso e rabisco alarvemente o meu nome, em letras redondas, na minha vida É agora minha, ninguém se senta nela Não quero que ma roubem, sou egoísta, hei-de juntar também esse defeito à minha lista Sou picuinhas; pretensioso; inconveniente; nos meus piores dias, alarmantemente próximo de insuportável e egoísta Eis a minha identidade, ou aquilo que dizem que ela é, que extraordinário monte de estrume “Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” Vocês, vocês são a minha circunstância Amo-vos Vão-se todos foder

Morfeu sussura-me aoouvido

BáraraRafael

O que queres ser quando fores grande?

Pergunta tão essencial, De tal forma fazia feliz

A criança que, Antigamente, tinha cavaleira na Ponta da Língua

Escritora não lhe ocorreu. Palavras inertes Não podiam fazer eco. O arco-íris era mais acessível.

Mas Grande, Ainda é tão pequeno, Inalcançável.

Identidade?

Escrevi obrigada.

Qualidade? Não terá. Gosto? Sem tempero.

Sonhos de criança?

Menores que os de agora.

– Nada, aqui tem Entrego-lhe a minha cadeira – a cadeira dela, perdão – e volto ao meu café Escrevo o meu nome no café com pedaços de biscoitos, agora sou dono do café, eu e todos os Josés, tal como todas as jovens que partilhem o nome com aquela rapariga são donas da cadeira branca com pernas cinzentas na esplanada desta faculdade 1

Enãoébonitopensarque,otempotodo, haviaumfioinvisívelquenosligava?

Quando somos pequenos, rapidamente aprendemos o poder do “não” É das primeiras palavras que usamos para testar a nossa independência, determinante dum vindouro sentido de identidade Na adolescência, a procura de identidade torna-se intencional, através de amizades e grupos para os quais gravitamos e onde nos queremos integrar, descobrindo quem somos e onde nos encaixamos Em ambas as fases, estamos a tentar equilibrar a autonomia com a necessidade de pertencer Será, assim mesmo, a identidade algo que criamos sozinhos ou é moldada pelas pessoas que nos rodeiam, pelos fatores a que estamos expostos?

Ao trabalhar com a GAPA, uma organização pública na área metropolitana da Cidade do Cabo, vi como a pertença pode influenciar quem somos e como nos vemos a nós próprios Esta comunidade, sem fins lucrativos, foi estabelecida para desenvolver a capacidade dos idosos locais (sobretudo do sexo feminino) para enfrentarem os efeitos da pobreza crónica, de forma a reforçar a sua dignidade e os seus direitos, apesar da violência baseada no género, do abuso de substâncias, do desemprego e dos problemas de saúde prevalentes

Estas mulheres não se definiam pelas lutas que

enfrentavam - encontravam resiliência e força umas nas outras, criando uma identidade coletiva que era mais forte do que a história de qualquer pessoa Aquelas senhoras, afetadas diretamente ou indiretamente pelo HIV ou pela SIDA, eram muito mais do que vítimas de uma realidade dura As avós de Khayelitsha, um dos cinco maiores bairros de lata do mundo, apesar das adversidades, criaram algo maior do que elas mesmas Não eram definidas pela doença ou pela perda, mas pela resiliência e pelo apoio que ofereciam umas às outras; definiram-se pela força do coletivo

Cerca de 70% dos residentes daquela zona ainda habitam casas improvisadas, feitas de chapa metálica, sem qualquer impermeabilidade para as chuvas fortes durante o inverno ou isolamento para o calor, custoso na zona árida para onde foram deslocados, devido ao redesenho da planta da cidade, durante o apartheid Apenas metade da população em idade ativa está empregada, sendo o trabalho doméstico a ocupação predominante, e nove em cada dez agregados familiares em Khayelitsha enfrentam, em níveis moderados ou graves, insegurança alimentar

Juntas, empoderavam-se para criar uma nova identidade, forte e unida A força delas estava no

compartilhamento constante de histórias, nas risadas, no cuidado genuíno e mútuo O sentimento de pertencimento era imensurável e transcendia a luta diária pela sobrevivência

A identidade não é algo que criamos sozinhos É construída nos espaços que partilhamos, nas pessoas em quem nos apoiamos e na força que nelas encontramos Num lugar onde os recursos são extremamente escassos, mas o sentimento de pertença é imenso, pude ver como a nossa comunidade molda, inegavelmente, a identidade humana A identidade não tem de ser, obrigatoriamente, uma busca a solo; também pode ser moldada pelas ligações que estabelecemos e pelas comunidades que escolhemos

Quem seria eu sem as pessoas com quem escolho partilhar a minha vida? As mulheres de Khayelitsha ensinaram-me, durante os três meses que tive a honra de partilhar com elas, que as nossas identidades não são meras buscas individuais, mas sim fios num tecido coletivo. Nunca somos apenas a soma das nossas partes individuais; a nossa identidade é uma colagem de todas as pessoas e lugares que, de alguma maneira, influenciam as nossas vidas.

Acondição doHomem

ManuelGorjão

A condição do Homem

Não lhe permite não dormir

E por isso os Homens dormem

A condição do Homem

Não lhe permite não morrer

E por isso os Homens morrem

A condição do Homem

Não lhe permite não foder

E por isso os Homens fodem

(Entre dormir e morrer)

anemos

rosa claro vermelho romã marrom peles, bocas e sardas cabelos castanhos

tenros beijos e abraços me chamam esqueço-me de mim sou toda tua

Como é doce o sabor daquilo que não tem volta Quão efêmeros o medo e a antecipação Como é bom não querer voltar no escuro tudo é tão claro na luz tudo é tão certo na verdade sou livre não me escondo.

As

Descobertas de Nuno Folha Dez/Jan QUEM SOU EU?

Nuno Folha bate à porta e, imediatamente, uma voz diz que ele pode entrar. É uma sala muito simples, pouco ornamentada; Nuno apenas repara no sofá em frente a um cadeirão e na enorme estante preenchida com volumosos livros, empilhados uns sobre os outros

- Bom dia, Nuno. Podes-te sentar. – diz a mulher do consultório apontando para o sofá – Sente-te o mais confortável possível Aqui estás num espaço seguro

Nuno Folha acena afirmativamente com a cabeça e esboça um pequeno sorriso, um tanto constrangido. Durante alguns segundos, tenta encontrar uma posição confortável Ora cruza a perna, ora descruza Os braços? Cruzados, depois descaídos, ou apoiados no tronco até às pernas

- Nuno, bem-vindo! Eu sou a Drª Carolina Pincel, sou psicóloga e trabalho em psicologia clínica há 7 anos

- Obrigado – responde Nuno Folha, nervosamente

- E como te sentes? – pergunta Carolina Pincel enquanto abre o seu caderno

- Estou bem, obrigado Um pouco cansado Faculdade e assim

- Gostaria que me falasses um pouco de ti, para conhecer um pouco melhor a tua vida, os teus hábitos, os teus gostos

- Então, eu sou o Nuno Folha, tenho 18 e estudo na NOVA FCSH Estou na licenciatura em Estudos Portugueses e além de gostar de ler, também gosto de puzzles monocromáticos e de jardinagem

- Ok, muito bem Mas quem é o Nuno Folha, na verdade? Quem és tu?

Quem sou eu ? Como é que eu me defino? Como é que as outras pessoas me veem? Identidade é um termo muito complexo. A que tipo de identidade se refere ela? Com o que é que me identifico? A forma como me relaciono com o mundo também faz parte da minha identidade, mas de que maneira?

- Creio que não há muito mais a dizer Chamo-me Nuno Folha, sou estudante universitário, quero ser professor de Português Ah, e também gosto de nadar, fiz natação durante 8 anos

- Ok, creio que é um bom começo Mas quero que saibas que o intuito destas sessões será que te descubras de forma cada vez mais aprofundada Ou seja, que te conheças cada vez melhor e que isso te ajude a conviver e a ultrapassar determinadas questões ou problemas – diz a psicóloga, rematando com um grande sorriso

- Creio que ainda tenho um longo caminho a percorrer

- É perfeitamente normal Quem somos nós com 18 anos? A vida acaba por se revelar um contínuo processo de aprendizagem E o que sabes hoje, não é o mesmo que saberás amanhã, pois há coisas novas que surgem e outras que acabas por excluir

- Acredito que sim, obrigado pelo esclarecimento

- Estamos cá para isso

Nuno Folha passou os 40 minutos seguintes a apresentar-se à psicóloga A falar da mudança da Covilhã para Lisboa, da sua vida de estudante universitário, dos seus dois grandes amigos: Ana Tesoura e Rafael Rocha E desta sessão por diante, Nuno Folha ia começar a descobrir quem realmente era, a definir a sua verdadeira identidade

DançadosEspelhos

TiagoFreitas

Na pequena barbearia do senhor Zé, o tempo parecia algo maleável Entre os espelhos gastos e o cheiro da loção pós-barba, havia uma sensação de que os ponteiros do relógio abrandavam, rendidos às histórias que flutuavam no ar E, enquanto os cabelos caíam ao som das tesouradas, o tema do dia surgiu espontaneamente: afinal, quem somos nós?

A professora Joana, que dava aulas de literatura na escola secundária, estava sentada à espera da sua vez, folheando uma revista antiga Levantou os olhos quando o Carlos, o taxista, proclamou com a convicção de quem não admite discussão:

Nós somos aquilo que fazemos De que serve complicar? Identidade é acção

Joana esboçou um sorriso

Ó Carlos, mas tu és mais do que o volante do teu táxi Se amanhã deixasses de conduzir, deixavas de ser tu próprio?

As pessoas presentes riram, mas ninguém tinha uma resposta imediata O senhor Zé, que sempre preferia ouvir do que intervir, continuava a aparar o cabelo do Pedro, o poeta da vila Este aproveitou o silêncio e, num tom inspirado, decidiu intervir:

Identidade é história, meus amigos Está no que herdamos, no nosso sotaque, nas memórias e nos sabores que trazemos connosco

Houve murmúrios de concordância Porém, foi então que entrou a Luana, a adolescente da vila Com o cabelo pintado de azul, os auscultadores sempre postos e o ar de quem está a anos-luz de todos os presentes, tirou os fones e lançou:

Isso é conversa de cota Identidade é escolha Somos o que decidimos ser, e ponto final

O ambiente ficou elétrico Pedro abriu a boca para responder, mas o senhor Zé levantou a mão, pedindo calma

Sabem começou ele, enquanto girava lentamente a cadeira de Pedro , há verdade no que todos dizem, mas nenhuma destas ideias, sozinha, responde à pergunta

Identidade não é só o que fazemos, nem só o que herdamos, nem só o que escolhemos

Então, o que é? insistiu Luana, num tom desafiador O senhor Zé fez uma pausa, pousando a tesoura com cuidado

Identidade é como um espelho Um espelho que nunca está inteiro Cada pedaço reflete um pouco: o que recebemos, o que inventamos, o que vivemos Mas nunca vemos o todo, porque o espelho está sempre a mudar

As palavras pairaram no ar, deixando um silêncio pesado, mas curioso Joana foi a primeira a quebrá-lo:

Então, identidade é movimento?

O senhor Zé sorriu, satisfeito com a pergunta

É movimento e reflexo Somos feitos de várias partes, e estamos sempre a mudar É uma dança que nunca acaba

Luana colocou os fones novamente, mas não sem antes murmurar um “faz sentido” Pedro coçou o queixo, claramente a preparar um novo poema Joana voltou à revista, mas com um olhar distante, como quem está presa numa reflexão

Quanto ao Carlos? Pagou o corte e saiu, resmungando que “estas filosofias” eram engraçadas, mas que o mundo real não tinha tempo para danças de espelhos tinha clientes para ir buscar antes que o trânsito piorasse

No final, na barbearia do senhor Zé, ninguém saiu com uma resposta definitiva

Mas, talvez, cada um tivesse saído a perceber um pouco mais sobre si próprio como quem, por breves instantes, se vê refletido num espelho que ainda está por completar

ANaturezadaBesta (Empatia)

MatildeCurvão

Que pena só sentirmos empatia, Ao caminhar nos sapatos do Outro

Que assim seja

Farão essas milhas de saltos altos:

A vergonha chegará por decreto de alistamento

Perfila a cara, o peito, o ventre, as coxas, os pés

Queimemos e mutilemos tudo quanto o olho vê

Colheremos os vossos corpos mercantilizados,

Julguemos cada pedaço da sua retalhada superfície

Não nos chocarão os relatos de pernas trémulas a abrir,

Muito menos as histórias de escravidão doméstica

Validaremos as suspeitas sussurradas de que mentes se falares

Mascaremos o ódio visceral com paixão ocasional: “Putas” – cuspiremos trocistas - “Putas ingratas”

Enfim, será nossa a bota sobre o vosso muito masculino pescoço

PARAPASSARES OTEMPO...

Horizontal

4 Receita dada pelo NEF; "tenho em mim todos os ... do mundo".

6. O teu amigo de caracóis e barba provavelmente esteve num concurso de lookalikes dele.

7 Local com a maior concentração de fumadores por metro quadrado na FCSH

Vertical

1 Tipo de voto que, embora possa ser uma manifestação política pessoal, não influencia absolutamente nada no resultado das eleições para a AE

2 Onde descobriste que ouves pink pilates ukulele princess pop

3 Pode ser tanto um cepo como um doce típico de Natal

5 Aquilo que os condutores portugueses não sabem usar

Passa pela playlist “Identidades”, onde as músicas exploram várias questõeseidentidadesdiversas!

@novaemfolha.aefcsh

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